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Discusiones Filosóficas

versão impressa ISSN 0124-6127

discus.filos vol.14 no.23 Manizales jul./dez. 2013

 

Sujeito e práxis social

Subject and social práxis

Neiva Afonso Oliveira
Universidade Federal de Pelotas. neiva.afonso.oliveira@gmail.com

Kelin Valeirão
Universidade Federal de Pelotas. kpaliosa@hotmail.com

Recibido el 28 de octubre de 2013 y aprobado el 06 de diciembre de 2013



Resumo

O presente artigo objetiva, em primeiro lugar, tratar do conceito de práxis na filosofia aristotélica enquanto ação. Em um segundo momento, o texto tenta comprovar a hipótese de que é na filosofia heideggeriana que o conceito de práxis assume uma vinculação com o sujeito. Heidegger tematiza a ética no âmbito da práxis, buscando uma contraposição entre o conceito de práxis e os conceitos de técnica e teoria e distancia-se de Aristóteles por defender que o procedimento teorético deriva da subordinação poiética.

Palavras-chave

Aristóteles, Heidegger, Práxis, técnica.

Abstract

This paper aims, firstly, at discussing the concept of praxis in Aristotelian philosophy as action. Secondly, the text tries to prove the hypothesis that it is in Heidegger's philosophy that this concept establishes a link with the subject. Heidegger studies Ethics in praxis's environment, and looks for a contraposition between the concept of Ethics and the concepts of technique and theory, and moves away from Aristotle when defending that theoretical procedure derives from poiethical subordination.

Key words

Aristotle, Heidegger, Praxis, Technique.



Sujeito e práxis social

A práxis enquanto atividade humana na sociedade e na natureza passa a ser uma reflexão central na discussão acerca do processo de humanização. Aqui, propomos analisar o conceito de práxis no pensamento de Aristóteles, principalmente do livro I ao VI da sua obra Ética a Nicômaco e relacionar, dentro do possível, com os estudos de Martin Heidegger e, consequentemente, de seus seguidores: Hannah Arendt e Hans-Georg Gadamer. Cabe salientar que, na obra de Aristóteles, a ética é vista enquanto práxis, contudo, opta-se por trabalhar, de forma sintética, somente os seis primeiros livros.

Com relação ao conceito, Abbagnano aponta que "com este termo (que é a transcrição da palavra grega que significa ação) designa-se especialmente na expressão 'filosofia da práxis' o mundo da história como êle é interpretado pelo materialismo dialético" (755). Aqui, pretende-se demonstrar que, grosso modo, o conceito de práxis é sinônimo de ação.

Aristóteles defende que há ações voluntárias, involuntárias e mistas. Com relação à primeira, afirmamos que a responsabilidade moral está no indivíduo, no agente que exerce a ação, consistindo não somente no agir corretamente, mas, também, no querer agir corretamente. Uma ação voluntária é uma ação moral do âmbito da práxis, ou seja, representa uma ação em que entra o julgamento como, por exemplo, bem e mal, grande e pequeno, etc. Aristóteles afirma que "a virtude se relaciona com paixões e ações, e é às paixões e ações voluntárias que se dispensa louvor e censura, enquanto as involuntárias merecem perdão e às vezes piedade" (41 III 1 1109b). Um exemplo para melhor elucidar esta ação, está em um homem que, estando atrasado para chegar ao trabalho, prefere seguir o seu caminho a prestar socorro a uma velhinha que está tendo um mal súbito.

As ações involuntárias se caracterizam pelo princípio motor ser exterior ao agente, gerando culpa e arrependimento. Tais ações ocorrem, segundo Aristóteles, por compulsão ?sendo forçado a realizar uma devida ação, ou por ignorância? quando não se tem conhecimento de todas as circunstâncias que implicam o ato. Aqui, cabe o exemplo de Édipo que, por ignorância, casou-se com sua mãe e matou o pai. Aristóteles destaca que "é de se presumir que os atos praticados sob o impulso da cólera ou do apetite não mereçam a qualificação de involuntárias" (43 III 1 1111a) e, portanto, não devem ser perdoadas.

Com relação às ações mistas, Aristóteles afirma que são ações praticadas para se evitar um mal maior, representando ações forçadas ou realizadas por ignorância. Contudo, acrescenta que são estas ações mais próximas das voluntárias, porque o princípio moral está no agente e a ele cabe a escolha de agir de tal forma. Um exemplo, bastante sugestivo, ocorre "quando se lançam cargas ao mar durante uma tempestade; porque, em teoria, ninguém voluntariamente joga bens valiosos, mas somente quando assim o exige a segurança própria e a da tripulação de um navio, o que qualquer homem sensato o fará" (41 III 1 1110a). Logo, o indivíduo preferiu lançar os bens ao mar a arriscar a segurança da tripulação. Ou ainda "se um tirano ordenasse a alguém um ato vil e esse alguém, tendo os pais e os filhos em poder daquele, praticasse o ato para salvá-los de serem mortos" (41 III 1 1110a). Tais ações são mistas, justamente, por serem compostas por ações voluntárias e involuntárias.

Aristóteles afirma que "depende de nós praticar atos nobres e vis, e se é isso que se entende por ser bom ou mau, então depende de nós sermos virtuosos ou viciosos" e acrescenta: "ninguém é involuntariamente feliz, mas a maldade é voluntária" (47 III 5 1113b). Nesta perspectiva, as virtudes (ações corretas) são ações voluntárias realizadas através da escolha e da deliberação do agente sobre os meios a serem seguidos. De acordo com o Estagirita, "a virtude é, pois, uma disposição de caráter relacionada com uma escolha e consiste numa mediania" (33 II 6 1107a). Desta citação, entende-se que a virtude (aretê) envolve uma disposição de caráter, uma escolha deliberada, o meio-termo, a reta razão e a prudência. Nos parágrafos abaixo, tentar-se-á realizar uma breve síntese sobre o que vêm a ser cada um destes elementos que compõem o conceito de virtude. Com relação à disposição de caráter, entende-se que as virtudes são adquiridas por práticas de boas ações, tornando-se bons hábitos. Assim, a virtude é o produto final da educação e do cultivo destes hábitos. Um homem virtuoso seria aquele que apresenta um desempenho contínuo de bons hábitos. Para Aristóteles, a virtude não é uma simples disposição psicológica, mas, sim, um estado do caráter do agente, ou seja, um modo de ser.

A virtude como escolha deliberada é o que defende a filosofia aristotélica acrescentando o Estagirita que "a escolha envolve um princípio racional e o pensamento. Seu próprio nome parece sugerir que ela é aquilo que colocamos diante de outras coisas" (45 III 2 1112a). Nesse sentido, a escolha é uma ação voluntária que pressupõe a deliberação, a investigação dos meios necessários a atingir um fim buscado pelo agente. Aqui, cabe salientar que se deve deliberar sobre as coisas que estão ao nosso alcance e podem ser realizadas (ações particulares), pois não se pode deliberar sobre o que é exato como, por exemplo, a matemática. Portanto, se é verdade que a vontade estabelece os fins da ação, também é verdade que ela não pode ser confundida com apetite ou desejo, pois a escolha não é passional, mas, sim, racional.

Ainda sobre a escolha deliberada, demarca-se que somente na Teoria das Virtudes o indivíduo escolhe e delibera, dependendo da práxis, pois nesta teoria preocupa-se com o bem particularizado, envolvendo apenas o indivíduo; enquanto na Teoria da Justiça trabalha-se com o âmbito público, havendo uma relação com os outros e, conseqüentemente, com o bem alheio. Logo, há um critério mais rígido (objetivo) para alcançar o bem público. Cabe salientar que, segundo Aristóteles:

a justiça [...] não é uma parte da virtude, mas a virtude inteira; nem é seu contrário, a injustiça, uma parte do vício, mas o vício inteiro. O que dissemos põe a descoberto a diferença entre a virtude e a justiça neste sentido: são elas a mesma coisa, mas não o é a sua essência. Aquilo que, em relação ao nosso próximo, é justiça, como uma determinada disposição de caráter e em si mesmo, é virtude. (83 V 1 1130a)

Na Teoria da Justiça não há nem escolha deliberada, nem mediedade, no sentido da Teoria das Virtudes, enquanto um modo correto de agir, mas, sim, enquanto o ponto médio igual entre dois extremos, havendo a imparcialidade. Assim, a justiça é uma condição de possibilidade da felicidade (eudaimonia), sendo o bem a igualdade da justiça nas relações particulares.

Sobre o conceito de mediedade, afirma-se que a virtude é o meio-termo entre dois vícios. A palavra "meio" tem dois significados. Um diz respeito ao intermediário de um objeto que é o ponto eqüidistante de dois extremos. Já, o outro sentido do conceito, é definido como o meio-termo com relação ao indivíduo, não sendo o mesmo para todos. Nesta perspectiva, se sete bananas é muito para um indivíduo comer e uma é pouco, então, não se pode dizer necessariamente que o meio-termo (em relação ao indivíduo) seria quatro bananas, apesar de ser a média aritmética entre os extremos. Inicialmente, deve-se conhecer distintamente o que é o correto para posteriormente determinar os extremos. Aqui, a média correta poderia ser três bananas e partindo desta informação, estipular-se-ia os extremos, i. é., os excessos. Quando Aristóteles define a virtude, emprega este segundo sentido de "meio" que é o modo correto de agir, sendo os extremos os atos viciosos.

Para Aristóteles, as virtudes não são formas de razão, mas apenas envolvem a razão. O homem virtuoso deve agir de acordo com a regra correta que expressa a reta razão e não as paixões impulsivas. Desta forma, ser virtuoso significa agir de acordo com a racionalidade, praticar atos virtuosos (morais), sendo que o princípio racional é a regra universal da ação. Em algumas situações, o meio-termo é o mesmo para todos como, por exemplo, na distribuição de um bem material (um terreno). Nem todas as ações virtuosas, entretanto, admitem o meio-termo da mesma forma, uma vez que há situações em que as regras universais são necessárias e devem guiar a conduta de todos.

Sócrates tinha razão a certo respeito, mas a outro respeito andava errado: errado em pensar que todas as virtudes fossem formas de sabedoria prática, mas certo em dizer que elas implicam tal modalidade de sabedoria. Temos uma confirmação disto no fato de que ainda hoje todos os homens, quando definem a virtude, após indicar a disposição de caráter e os seus objetos, acrescentam: "aquilo (isto é, aquela disposição) que está de acordo com a reta razão". Ora, a reta razão é o que está de acordo com a sabedoria prática. (Aristóteles 113 VI 13 1144b)

Com relação à sabedoria prática ou prudência (phrónêsis), afirma-se que é um estado verdadeiro e racional de agir de acordo com as coisas que são boas ou más para o homem. Ademais, o homem prudente tem a habilidade de deliberar, cumprindo duas condições: investigar os meios para a boa vida em geral e proceder da mesma forma em relação a todas as pessoas. A sabedoria prática é essencialmente o conhecimento de como aplicar princípios universais em circunstâncias particulares.

As virtudes não são hábitos do intelecto como queriam Sócrates e Platão, mas, sim, da vontade. Para Aristóteles, não há virtudes inatas porque todas as virtudes se adquirem pela repetição dos atos virtuosos que geram o costume de onde surgiu o nome virtude moral. Os atos, para gerarem as virtudes, não devem desviar-se nem por defeito, nem por excesso, pois a virtude consiste no meio­ termo, estando longe dos dois extremos. De acordo com Aristóteles, à prudência cabe o papel, este fundamental, de determinar a eticidade da práxis, pois consiste na capacidade de discernimento amadurecida pela experiência. Assim, para o homem ser prudente precisa possuir esta mediedade advinda da virtude. Afirma Aristóteles:

tampouco a sabedoria prática se ocupa apenas dos universais. Deve também reconhecer os particulares, pois ela é prática, e a ação versa sobre os particulares. É por isso que alguns que não sabem, e especialmente os que possuem experiência, são mais práticos do que outros que sabem; porque, se um homem soubesse que as carnes leves são digestíveis e saudáveis, mas ignorasse que espécies de carnes são leves, esse homem não seria capaz de produzir a saúde; poderia, pelo contrário, produzi-la o que sabe ser saudável a carne de galinha. (116-17 VI 7 1141b)

Ademais, o homem virtuoso pode comer uma boa pizza de calabresa e degustar um bom vinho, desde que faça uso da moderação que é própria do agente moral. Disto segue que, delibera-se sobre os meios, pois a prudência é a boa deliberação, acontecendo em cada ato particular e conduzindo à finalidade. O conhecimento dos particulares é aquilo que possibilita ao indivíduo deliberar bem.

Há algumas décadas, Aristóteles não era considerado um filósofo importante para a maioria dos estudiosos de filosofia política; porém, é claro, aqueles que quisessem dedicar-se ao pensamento filosófico deveriam conhecer, ao menos, algumas obras deste importante filósofo, contudo, acabava sendo "casi exclusivamente un tema para aristotélicos o para historiadores del pensamiento" (Silveira 41).

Na filosofia contemporânea, a retomada da filosofia prática aristotélica surge em dois movimentos paralelos. Aqui, analisar-se-á somente a retomada do conceito de práxis do pensamento aristotélico por Martin Heidegger, filósofo alemão bastante conhecido por sua obra Ser e Tempo, que, durante os cursos sobre Aristóteles, ministrados em Freiburg (1919-1923) e em Marburg (1923-1928), acabou influenciando dois de seus educandos: Arendt e Gadamer.

Para Berti, Heidegger se distancia de Aristóteles porque defende que o procedimento teorético deriva da subordinação poiética, sendo "no sentido de que a ciência nasce sempre de uma tendência à utilização das coisas" (117). Já o Estagirita defende a supremacia da atitude teorética à poiética e, também, a práxis — por considerá-la um fim em si.

É importante ressaltar que Heidegger analisa a ética no âmbito da práxis, buscando uma contraposição entre este e os conceitos de técnica e teoria. No entanto, Cremaschi defende que "o paradoxo da posição heideggeriana consistia em repropor como postura 'autêntica' um retorno à teoria-práxis do indíviduo isolado, deixado a enfrentar seu destino mediante a decisão" (9-10).

Para Heidegger, a técnica não é um instrumento neutro nas mãos do homem porque pode ser utilizada para se fazer o bem ou para se fazer o mal, e, principalmente, não deve ser encarada como um acontecimento acidental no mundo ocidental. Ela consiste no resultado lógico e demonstra o esquecimento do Ser, representando a possibilidade de domínio sobre todas as coisas. Seguindo esta lógica, o esquecimento do Ser não é um fato que atinge somente o pensamento, mas determina todo o modo de ser do homem no mundo contemporâneo. Nas palavras de Heidegger:

permanece, portanto, correto: também a técnica moderna é meio para um fim. É por isso que a concepção instrumental da técnica guia todo o esforço para colocar o homem num relacionamento direto com a técnica. Tudo depende de se manipular a técnica, enquanto meio e instrumento, da maneira devida. Pretende-se, como se costuma dizer, "manusear com espírito a técnica". Pretende-se dominar a técnica. Este querer dominar toma-se tanto mais urgente quanto mais a técnica ameaça escapar ao controle do homem. (12)
Com referência à modernidade e suas técnicas, desde os meios de comunicação (rádio, televisão, internet, etc.) às técnicas de alimentação, afirmamos a impossibilidade de conter avanços e progressos e um dos traços deste novo mundo tecnológico seria a rápida disseminação com que os objetos são produzidos, conhecidos e descartados. No entanto, a questão crucial não está no mundo tornar-se totalmente técnico, mas antes, no homem não estar preparado para essa transformação. Assim, ainda segundo Heidegger:
a vigilância da técnica ameaça o desencobrimento e o ameaça com a possibilidade de todo des-encobrir desaparecer na dis-posição e tudo apresentar apenas no des-encobrimento da dis-ponibilidade. Nenhuma ação humana jamais poderá fazer frente a esse perigo. Mas a consideração do sentido próprio do homem pode pensar que toda a força salvadora deve ser de essência superior mas, ao mesmo tempo, aparentada com o que está ameaçado e em perigo. (36)

Aqui, cabe salientar que Heidegger não nega a técnica, mas, sim, defende que os seres humanos não devem agir como escravos dela, caso contrário, o homem moderno tornar-se-á funcionário da mesma. Nesta perspectiva, deve-se utilizar os artefatos tecnológicos servindo-se deles e, ao mesmo tempo, procurando deles libertar-se, podendo fazer uso do aparato técnico, contudo, não se deixando por ele violentar. Deve-se pensar a técnica a partir da sua essência, sublinhando que o grande perigo que ameaça a humanidade é a total falta de pensamentos perante a robotização humana. Desta forma, é necessário que o homem não rejeite aquilo que possui de mais próprio: o fato de ser pensante. Trata-se, então, de salvar essa essência do homem, mantendo acordado o pensamento.

Hodiernamente, acredita-se que o processo de globalização está ligado diretamente ao avanço tecnológico, pois essa multiplicação dos meios pelos quais os significados são produzidos tem a ver com a globalização econômica também em um plano cultural, modificando os fluxos de informações e mudando os fluxos das culturas. Desta forma, o homem moderno tende ao endividamento não somente no plano econômico, mas, também, com relação ao tempo: o ser humano age mais, porém acaba não dando conta de refletir sobre a sua própria ação.

Hannah Arendt, discípula de Heidegger, apresenta em sua obra A condição humana (1958) alguns aspectos fundamentais do pensamento político aristotélico. No capítulo primeiro intitulado "A Vita Activa e a Condição Humana" propõe que a vita activa determina três atividades do ser humano: o labor, o trabalho e a ação, sendo que a ação é a "única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade" (Arendt 15).

No capítulo quinto, intitulado "Ação", Arendt fala sobre a pluralidade humana enquanto condição básica de dois fenômenos: a ação e o discurso, defendendo que a ação é a atividade humana que mais necessita do discurso. E acrescenta Arendt:

na ação e no discurso, os homens mostram quem são, revelam ativamente suas identidades pessoais e singulares, e assim apresentam-se ao mundo humano, enquanto suas identidades físicas são reveladas, sem qualquer atividade própria, na conformação singular do corpo e no som singular da voz. Esta revelação de "quem", em contraposição a "o que" alguém é [...] está implícita em tudo que se diz ou faz. (192)

Cremaschi lembra que a postura de Hannah Arendt perante conceitos aristotélicos como, por exemplo, o de práxis, é fruto de seu estudo com Heidegger e acrescenta que "a forma de racionalidade não puramente teórica, e portanto tecnológica, buscada por Arendt, é, a um tempo, o juízo kantiano e a phronesis aristotélica" (15).

Hans-Georg Gadamer, filósofo alemão, precursor do movimento hermenêutico, apresenta em sua obra célebre Verdade e Método (1960) uma nova interpretação das palavras, defendendo que uma coisa é estabelecer uma práxis de interpretação como princípio enquanto a outra é, justamente, inserir a interpretação num contexto. Para Gadamer, "o conceito de práxis que se desenvolveu nos últimos dois séculos é uma deformação horrível do que a práxis é em realidade" (Cremaschi 11), ou seja, na modernidade o conceito vem sendo utilizado enquanto uma execução prática de uma teoria científica aplicada a modalidades tecnológicas.

A práxis então não se funda numa norma abstrata a aplicar; ela é sempre motivada por exigências concretas e definitivamente marcada por pré-juízos, mas é também chamada a criticá-los. Na realidade, em cada cultura, age uma série de pressupostos não problematizados de que não temos consciência plena. (Ibid. 12)
Quanto aos pensamentos apontados pelos seguidores de Heidegger, Arendt e Gadamer, cabe salientar que divergem em alguns aspectos devido à metodologia empregada, pois enquanto Arendt combina vários pensamentos chegando a um existencialismo revolucionário, Gadamer, por outro lado, relaciona Aristóteles com Hegel fundando um relativismo conservador e moderado. Para Cremaschi,
o que une os dois é o motivo da separação de Heidegger: o reconhecimento da pluralidade originária dos indivíduos é a base da recuperação da ética que Heidegger eliminava com seu amoralismo individualista a partir da recusa da separação entre teoria e práxis, que é o centro do ensino heideggeriano aceito por Arendt e Gadamer. (16)

Por fim, aponta-se que um dos motivos da retomada da ética das virtudes se dá enquanto contraposição à ética dos princípios, apresentada pelo movimento utilitarista e também por Kant e defensora da ideia de que o homem deve agir conforme a norma moral universal, o imperativo categórico. Por seu turno, para a ética das virtudes, um dos critérios do agente moral é, justamente, saber utilizar os princípios universais em situações particulares.

Com relação ao conceito de práxis, Heidegger difere de Aristóteles, pois o primeiro atribui à práxis a superioridade sobre todas as características do homem, enquanto autênticas decisões relativas ao Dasein.1 Já, Aristóteles enxerga a práxis como uma simples disposição da alma ou de atividades, sendo a filosofia prática somente uma parte, que, inclusive, não é considerada a mais importante, reconhecendo que a ética é do âmbito da práxis (racionalidade humana e ação humana) e, portanto, não é uma ciência exata como a matemática, uma vez que, como já foi dito, cabe ao agente da ação possuir o discernimento na aplicação de princípios generalizantes em suas ações individuais. Contudo, a inexatidão da ética não pode ser vista nem como uma renúncia à universalidade, nem como uma defesa ao relativismo, pois "a ação moral, que é particular, é um caso particular da ação humana em geral, isto é, da práxis" (Silveira Denis 318).



Notas de Rodapé

1 A análise do Dasein é concentrada na tarefa condutora à questão do ser. Heidegger traz um ente privilegiado (o Dasein), surgindo um novo nível de problematização do ser. Assim, o ser não se dá isolado, fazendo parte da condição essencial do ser humano, mas a partir da compreensão do Dasein e o Dasein se dá a partir da compreensão do ser. Logo, o ser não funda o ente, nem qualquer ente funda o ser. A recíproca relação entre ser e ente somente se dá porque existe o Dasein, ou seja, por haver a compreensão. O ponto de partida da questão do ser é o Dasein, pois ele é o ser privilegiado, por ser o único com a compreensão do ser. O acesso aos entes somente é possível porque o Dasein compreende o ser e não porque temos outro fundamento para o conhecimento dos entes. Logo, o Dasein, pela compreensão, inaugura uma circularidade hermenêutica.



Referências bibliográficas

Abbagnano, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1970. Impresso.         [ Links ]

Arendt, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. Impresso.         [ Links ]

Aristóteles. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1987. Impresso.         [ Links ]

Berti, Enrico. Aristóteles no século XX. São Paulo: Loyola, 1997. Impresso.         [ Links ]

Cremaschi, Sergio. "Tendências neo-aristotélicas na Ética Atual". Oliveira, Manfredo Araujo de. (org.). Correntes Fundamentais da Ética Contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2000. Impresso.         [ Links ]

Gadamer, Hans-Georg. Verdade e Método. Petrópolis: Vozes, 1997. Impresso.         [ Links ]

Heidegger, Martin. Ensaios e Conferências. Petrópolis/RJ: Vozes, 2001. Impresso.         [ Links ]

Silveira, Denis Coitinho. "A Ética Aristotélica das Virtudes e a Educação: complementaridade entre o universalismo e o particularismo". Filosofia e Educação. 2005: 315-338. Impresso.         [ Links ]

Silveira, Pablo. "Aristóteles y la filosofia política contemporánea: crónica de un reencuentro". Dissertatio. 1998: 41-54. Impresso.         [ Links ]