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Bitácora Urbano Territorial

Print version ISSN 0124-7913On-line version ISSN 2027-145X

Bitácora Urbano Territorial vol.31 no.3 Bogotá Sep./Dec. 2021  Epub Sep 20, 2021

https://doi.org/10.15446/bitacora.v31n3.86850 

Artigos

Ensaios para a Participação Popular em Curitiba-PR: a revisão do Plano Diretor em 2014 [1]

Ensayos de Participación Popular en Curitiba-PR: La revisión del Plan Maestro en 2014

Essay for Popular Participation in Curitiba-PR: The review of Master Plan in 2014

Répétitions pour la Participation Populaire en Curitiba-PR: Le Schéma Directeur du 2014

1Universidade Federado do Paraná lucas_cestaro@uol.com.br https://orcid.org/0000-0002-1267-5019

2Universidade Cândido Mendes liliance@uol.com.br https://orcid.org/0000-0002-9993-0122


Resumo

A construção de cidades com espaços urbanos mais democráticos segue entre os desafios do planejamento urbano contemporâneo. No Brasil, a democratização destes espaços passa pela institucionalização da participação popular no processo de planejamento da cidade, estabelecido pela Constituição Federal de 1988 e pelo Estatuto da Cidade. Analisando-se a experiência do planejamento e da cultura técnica urbanística em Curitiba/PR, questiona-se a participação popular no processo de revisão do Plano Diretor, no contexto pós-constituinte, com vistas a verificar se ela foi efetivamente incorporada. Para tanto, a análise consiste na averiguação, através de pesquisa exploratória, revisão bibliográfica e de documentos oficiais (como atas, listas de presença, cartilha e folder de divulgação), do recente processo de revisão do Plano Diretor, ocorrido em 2014, focando-se o olhar sobre a questão da participação popular. Apresenta-se assim, numa perspectiva comparada com processos anteriores, a análise sobre eventuais permanências da cultura técnica do planejamento de Curitiba, imposta pelo discurso tecnocrata, vigente desde a criação do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba, na década de 1960, e as rupturas, em função dos princípios da gestão democrática e participativa, introduzidos pelo Estatuto da Cidade em 2001.

Palavras-Chaves: planejamento participativo; planejamento urbano; Brasil

Abstract

The construction of the cities with more democratic urban spaces have been following among a challenge of contemporary urban planning. In Brazil, the democratization of these spaces involves the institutionalization of the insertion of popular participation in the city planning process, established by the Constitution of 1988 and the Statute of the City. Analyzing the experience of planning and urban technical culture in Curitiba/PR, we question whether popular participation was incorporated into the process of reviewing the Master Plan, in the post-constituent context. The analysis consists of verifying, through exploratory research, bibliographic review and official documents, the recent process of revision of the Master Plan, in 2014, focusing on the issue about of the popular participation. Thus, in a compared perspective with previous processes, the analysis of possible permanence, with the technical culture of Curitiba planning, imposed by the technocratic discourse, that has been currenting since the creation of Curitiba Urban Research and Planning Institute in the 1960s, and the ruptures, in detriment of the principles of democratic and participatory management, introduced by the City Statute in 2001.

Keywords: participatory development; urban planning; Brazil

Résumé

La construction de villes avec des espaces urbains plus démocratiques suit parmi les défis de l'urbanisme contemporain. Au Brésil, la démocratisation de ces espaces implique l'institutionnalisation de l'insertion de la participation populaire au processus d'aménagement d'urbanisme, établi par la Constitution de 1988 et le Statut de la Ville. En analysant l'expérience de la planification et de la culture technique urbaine à Curitiba/ PR, nous demandons si la participation populaire a été intégrée au processus d'examen du Plan Directeur, dans le contexte post-constituant. L'analyse consiste à vérifier, par le biais de recherches exploratoires, d'examens bibliographiques et de documents officiels, le processus récent de révision du Plan directeur, qui a eu lieu en 2014, en mettant l'accent sur la question de la participation populaire. Ainsi, dans une perspective par rapport aux processus antérieurs, l'analyse de la permanence possible, avec la culture technique de la planification Curitiba, imposée par le discours technocratique, en vigueur depuis la création de l'Institut de recherche et d'urbanisme de Curitiba dans les années 1960, et les ruptures, au détriment des principes de gestion démocratique et participative, introduits par le Statut de la Ville en 2001.

Mots-clés: développement participatif; aménagement urbain; Brésil

Resumen

La construcción de ciudades con espacios urbanos más democráticos sigue entre los desafíos de la planificación urbana contemporánea. En Brasil, la democratización del espacio urbano implica la institucionalización de la inserción de la participación popular en el proceso de planeamiento, establecido por la Constitución Federal de 1988 y el Estatuto de la Ciudad. Analizando la experiencia de planificación y cultura técnica urbanística de Curitiba/PR, pregunta-se si la participación popular se incorporó al proceso de planeamiento da ciudad, en el contexto post-constituyente. El análisis consiste en verificar, a través de la investigación exploratoria, la revisión bibliográfica y los documentos oficiales (como actas, listas de asistencia, folletos y carpetas de difusión), el reciente proceso de revisión del Plan Maestro, que se produjo en 2014, centrándose en el tema de la participación popular. En una perspectiva comparada con procesos anteriores, el análisis de la posible permanencia, con la cultura técnica de la planificación de la Curitiba, impuesta por el discurso tecnocrá-tico, en vigor desde la creación del Instituto de Investigación y Planificación Urbana Curitiba en la década de 1960, y las rupturas, en detrimento de los principios de gestión democrática y participativa, introducidos por el Estatuto de la Ciudad en 2001.

Palabras-clave: desarrollo participativo; desarrollo urbano; Brasil

Buscando compreender os impactos sociais, através das práticas, or- ganizações e vida cotidiana na cidade, este trabalho analisa, pois, com o enfoque na participação popular, como se deu a revisão do Plano Diretor do município de Curitiba/PR em 2014, que culminou com a aprovação da Lei 14.771/2015.

Introdução

A compreensão dos processos estruturais na construção do espaço urbano contemporâneo e a democratização dos espaços urbanos, no Brasil, passa pela institucionalização da inserção da participação popular no processo de planejamento da cidade, sobretudo no que tange aos processos de elaboração e/ou revisão dos Planos Diretores, marco estabelecido pela Constituição Federal de 1988 e pela Lei Federal 10.257/2001 - Estatuto da Cidade - e consolidado pela Resolução 25/05 do Conselho Nacional das Cidades. Conforme Burnett (2019), Rolnik (2015 e 1988), Avritzer (2013) e Maricato (1996), este processo de institucionalização é resultado da mobilização de movimentos sociais em torno da luta por cidades mais justas e da criação, no final do período militar, do Fórum Nacional pela Reforma Urbana (FNRU).

Ainda que as conquistas do FNRU sejam relativamente recentes, , com a inserção de uma política urbana na Constituição Federal de 1988 e da regulamentação desta política através do Estatuto da Cidade, em 2001, estas destacadas por Rolnik e Klink (2011), além da criação do Ministério da Cidade em 2003 e do Conselho Nacional das Cidades em 2004, o ideário do Plano Diretor como solução para a crise das cidades permeia o Brasil desde a década de 1930, conforme Brandão (2016), Reis e Venâncio (2016), Rezende (2011) e Villaça (2010). Além disso, na década de 1960, durante o regime militar, mais precisamente em 1964, foi criado o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (SERFHAU), que financiou a elaboração de planos diretores nos municípios.

É neste período que o município de Curitiba implanta seu primeiro Plano Diretor, instituído em 1966, e cria o Instituto de Pesquisa e Planejamento de Curitiba (IPPUC), órgão destinado a coordenar a execução do Plano, impondo-se uma cultura técnica de planejamento, distanciada do controle social e restritiva à participação popular. A modernização urbana de Curitiba coincide com o início da "institucionalização do SERFHAU e do Banco Nacional de Habitação (BNH), e a disseminação de um tratamento tecnocrático, centralizado e inadequado à realidade concreta da problemática da rápida e caótica urbanização" (BRANDÃO, 2016: 1105).

Entre a ditadura militar e a redemocratização, todavia, Curitiba permeia o imaginário brasileiro como sendo o exemplo de boas ações no âmbito do planejamento urbano e territorial. Nota-se o peso dado ao discurso tecnocrático no planejamento urbano da cidade, que excluiu os cidadãos dos processos decisórios, fato que se depara com uma inflexão tardia, a partir do processo de revisão do Plano Diretor ocorrido em 2014.

Buscando compreender os impactos sociais, através das práticas, organizações e vida cotidiana na cidade, este trabalho analisa, pois, com o enfoque na participação popular, como se deu a revisão do Plano Diretor do município de Curitiba/PR em 2014, que culminou com a aprovação da Lei 14.771/2015.

O trabalho se inicia situando a cultura técnica do planejamento urbano brasileiro frente ao ideário do Plano Diretor; insere a cultura do planejamento tecnocrático em Curitiba; avança para a discussão do primeiro processo de revisão do Plano Diretor de Curitiba após o Estatuto da Cidade e a promulgação da Lei Municipal 11.266/2004; e aponta para eventuais avanços, rupturas e também permanências em relação a um ensaio para a participação popular, analisada através da revisão do Plano nos anos de 2014 e 2015.

O ideário do Plano Diretor e a inserção da participação popular no planejamento urbano no Brasil

Em 1988, a Constituição Federal traz um capítulo sobre a Política Urbana, composto por dois artigos. O artigo 183 trata da possibilidade de usucapião, facilitando a regularização de posse sobre imóveis ocupados. Já o artigo 182 dispõe sobre a Política de Desenvolvimento Urbano a ser executada pelo Poder Público Municipal, buscando garantir as funções sociais da cidade e o desenvolvimento para os cidadãos. Segundo Rolnik e Klink (2011: 90), a política urbana estruturada em torno da noção de função social da cidade e da propriedade, e a incorporação direta dos cidadãos aos processos decisórios sobre esta política, significaram "anos de avanços no campo do direito à moradia e direito à cidade".

Para Costa (2004: 7) "a Constituição de 1988 aponta para uma nova maneira de governança urbana", em que "a consolidação de uma democracia política e social avança a partir daí e se manifesta mais visivelmente na escala local", regulamentada em 2001 pelo Estatuto da Cidade. Segundo Reis e Venâncio (2016), o Estatuto visa assegurar um planejamento apropriado das políticas urbanas, como forma de garantir a observância dessa gestão eficiente da cidade, dispondo sobre diversos instrumentos hábeis a concretizar o desenvolvimento sustentável do meio urbano. O Estatuto reúne um conjunto de instrumentos urbanísticos destinados a induzir as formas de uso e ocupação do solo, ampliar a possibilidade de regularização das posses urbanas, definir bases para a elaboração dos Planos Diretores municipais, prevendo uma nova estratégia de gestão que incorpora a ideia de participação direta do cidadão em processos de decisão sobre o destino da cidade, através da construção do Plano Diretor. Assim, de acordo com Barros, Carvalho e Montandon (2010), o plano não deve ser entendido apenas como uma peça técnica de planejamento urbano, e sim como um processo político de tomada de decisões sobre a gestão do território municipal, que envolva toda a sociedade.

Crespo-Sanchez define a participação popular como um modelo pelo qual "el gobierno facilita el proceso para que la comunidad, con sustento en sus propios recursos y desarrolle las soluciones que satisfagan sus necesidades a través de decisiones compartidas." (2019: 105).

As formas de participação popular previstas no Estatuto se dão através de debates, audiências e consultas públicas. O artigo 45 faz menção à participação da população e de associações representativas de vários segmentos da sociedade, de modo a garantir o controle direto de suas atividades e o pleno exercício da cidadania. Para Reis e Venâncio (2016: 1221) as audiências públicas "garantem a gestão democrática da cidade, direcionando a atuação da Administração Pública, por meio da participação popular, na estrita observação dos anseios sociais." Barros, Carvalho e Montandon (2010) avaliam que a participação democrática prevista abre uma possibilidade de participação da população, inclusive a de baixa renda, usualmente excluída do processo participativo das cidades, nas decisões sobre a regulação do solo e ocupação do território e na destinação dos investimentos públicos, como tentativa de impedir que as cidades sejam guiadas por um modelo desejado apenas por uma parcela que detém o poder econômico.

Os resultados alcançados são questionados por Crespo-Sanchez (2019: 105), ao afirmar que tais processos estabelecem o consenso como objetivo final. O autor questiona ainda os níveis de autonomia nos processos institucionais de participação popular, afirmando que a busca pelo consenso "dissuelve las diferencias de opinión para posar sobre ellas uma supuesta voluntad general o de interés común, una consitución simbólica de la unidad que, en teoría, representa a la totalidad". Outra questão, apontada por Oliveira Filho e Vasconcellos (2011: 6), "diz respeito à questão dos recursos e capacidades dos atores sociais para se engajar nessas práticas", uma vez que "pessoas e grupos sociais com menos recursos tenderiam a participar menos, o que influi na composição das instâncias participativas", apontando ainda, para "a ampliação do interesse de certos grupos empresarias nos fóruns participativos [...] em razão do adensamento construtivo e a valorização dos estoques imobiliários".

Há de se ressaltar que o Estatuto da Cidade, apesar de prever a obrigatoriedade de participação popular e consequentemente a realização de audiências públicas, não disciplina procedimentos a serem observados quando da realização dessas audiências. Como tentativa de esclarecer essa questão, em 2005, no bojo da Campanha Nacional do Plano Diretor, o Ministério das Cidades emite a Resolução 25 (com caráter de recomendação), que dispõe sobre o procedimento a ser adotado para concretizar a participação da população nos processos de elaboração e fiscalização do Plano Diretor, prevendo a forma de ampla divulgação à população sobre a realização das audiências, bem como a publicação de seus resultados (REIS e VENÂNCIO, 2016).

O Plano Diretor em Curitiba: legitimação do discurso técnico, distante do controle social e da participação popular

Conforme já exposto, o município de Curitiba permeia o imaginário popular como exemplo de planejamento urbano. A cultura técnica do planejamento em Curitiba ganhou força na década de 1940, com a apresentação do primeiro Plano de Desenvolvimento, elaborado por Alfred Agache, entre os anos de 1941 e 1943. O Plano Agache foi revisto a partir de 1958, com a criação do Departamento de Urbanismo e da Comissão de Planejamento de Curitiba, embrião do IPPUC, resultando no primeiro Plano Diretor, instituído em 1966.

Garcia (1997) expõe que o projeto de modernização urbana de Curitiba teve início em 1965, através de um concurso público cujo vencedor foi o consórcio das empresas Sociedade Serete de Estudos e Projetos e Jorge Wilheim Arquitetos Associados, e da criação do IPPUC pela Lei 2.660/1965. Assim, nos anos iniciais do SERFHAU, e também do governo militar (1964-1985), foi elaborado em Curitiba o Plano Diretor, aprovado em 1966. A implementação do Plano Diretor coube ao IPPUC, órgão criado para coordenar a execução do Plano. "Para a implementação do projeto foi necessária a crescente incorporação pelo aparelho institucional criado" (GARCIA, 1997). Formou-se assim, uma elite técnica burocrática, que se responsabilizava pela gestão do plano, e se legitimava pelas ações midiáticas alcançadas inclusive em âmbito nacional, e que era legitimado pelo governo central, uma vez que:

A destruição do estado democrático de direito perpetrada pelo golpe de 1964, acabou por devastar estruturalmente a política e a formação de quadros e despolitizar as relações políticas no Brasil. O regime autoritário de vinte anos desmantelou a esfera política, o espaço público, as bases democráticas, destituindo de fala e direitos, e mesmo inviabilizando, as forças populares nos centros de decisão.

[...]

O arbítrio e a brutalidade desarticularam a construção da cidadania [...] provocaram o ocaso das arenas e dos espaços de concertação e de diálogos. Impediu a formação de lideranças e de novos quadros políticos e despolitizou permanentemente a sociedade brasileira. (BRANDÃO: 2016: 1106).

Desde então se adotou, através do IPPUC, uma cultura tecnocrática, distanciada da realidade social e de permanente revisão e aprimoramento do plano. Em meio a um período em que ocorriam a "prática de planejamento tecnocrático do Estado centralista e autoritário" e a incorporação da ideia da neutralidade da ação planejadora, a implementação do Plano Diretor em Curitiba encontrou "a mais concreta expressão dos projetos de desenvolvimento capitalista pretendidos para o país" (SANTOS, 1986 apud GARCIA, 1997).

A primeira grande revisão do plano ocorreu em 1985, no período de arrefecimento do regime militar. Em 2004, já sob vigência do Estatuto da Cidade, um novo processo de revisão foi realizado, e em 2014 ocorreu a última revisão.

Assim, o atual Plano Diretor (Lei 14.771/2015) é resultado do processo de revisão da Lei 11.266/2004. Embora o processo de revisão realizado no referido ano se tenha dado no âmbito da Campanha Nacional do Plano Diretor, e em busca de adequação da legislação urbanística de Curitiba ao Estatuto, a percepção sobre a mobilização da participação popular e o envolvimento da população não é tão nítida quanto no processo de revisão da Lei em 2014.

A Campanha Nacional do Plano Diretor também orientou a promulgação da Lei estadual 15.229/2006, que criou o Conselho Estadual das Cidades e impôs a obrigatoriedade na elaboração do Plano Diretor a todos os municípios paranaenses, condicionando a existência do plano à celebração de convênios e repasses de verbas do governo estadual para as cidades.

A reconstrução da cidade como espaço político: antecedentes à Constituinte e ao Estatuto da Cidade

Com o enfraquecimento do governo militar, no início dos anos 1980, e frente à vitória eleitoral da oposição, para o governo estadual (1982), ocorre uma inflexão na gestão municipal de Curitiba[2]. Com o retorno das eleições diretas para as prefeituras das capitais (em 1985), a última gestão nomeada indiretamente pelo governador teve continuidade com a eleição do sucessor em 1985, mantendo distanciamento político em relação ao grupo anterior (alinhados ao regime militar e adeptos do planejamento tecnocrático), até a eleição de 1988. Entre os anos de 1983 e 1985, o IPPUC realizou, a pedido da gestão, uma avaliação sobre o crescimento da cidade, que levou à necessidade de o poder público alterar a escala de atuação do Plano, reconhecendo novas territorialidades urbanas. Porém, ainda que sob ares democráticos, o trabalho se restringiu à análise dos técnicos e gestores municipais, alijando a população do processo de tomada de decisão, fato que pode ser explicado por Rolnik, (2015: 268) ao expor que

A transição da ditadura para a democracia não significou a derrocada das forças políticas que estavam no poder. Por mais que novos atores - como movimentos sociais urbanos (entre eles os de moradia) e o novo movimento sindical - tenham entrado em cena por meio de novos partidos e participado cada vez mais nos órgãos legislativos e executivos no nível local, os líderes dos antigos partidos e das antigas oligarquias ainda detinham grande influência e controle político.

O relatório de 1985 seguiu a mesma metodologia que tratava o planejamento como assunto técnico, culminou com uma avaliação global do crescimento da cidade e constatou a necessidade de mudar a escala do Plano Diretor, a fim de garantir novas áreas para a expansão do capital imobiliário. Segundo Garcia (1997), o IPPUC propôs o Plano Municipal de Desenvolvimento Urbano (PMDU), expandindo a ideia do modelo linear, acrescentando aos subcentros já existentes outros centros secundários, reconhecendo regiões que cresceram no município e que não apareciam no Plano de 1966, implantando ainda um novo trinário viário, que se somou às quatro outras vias já' existentes (estruturais Norte, Sul, Leste e Oeste), mudando a escala do Plano Diretor, antes limitado pela Rodovia Federal BR 116, que passou a abranger novas áreas de expansão urbana, esta ocorrida nas décadas de 1970 e 1980.

Além do PMDU (1985) foram elaborados, na época (e apresentados em 1984 pelo IPPUC), oito planos de ação, voltados à habitação, ao disciplinamento da informação (publicidade no espaço público) e mobiliário urbano, ao disciplinamento do comércio ambulante, ao abastecimento alimentar (que trazia um diagnóstico sobre a produção agrícola no município), ao atendimento às crianças e adolescentes carentes, à promoção da cultura e ao lazer e, ainda, um plano de ação para a educação.

Em 2004, já sob vigência do Estatuto da Cidade, a gestão municipal solicitou ao IPPUC a adaptação do Plano Diretor ao Estatuto. De acordo com Souza (2015), além de adequações previstas no Estatuto, com Diretrizes e Normas sobre a Política de Desenvolvimento Urbano, especificamente para a Política Urbanística-Ambiental e para a Política Social e Econômica, o plano trouxe a definição sobre os instrumentos de política urbana e procedimentos necessários para sua aplicação. Além disso, esta revisão foi feita sob vigência da Campanha Nacional do Plano Diretor, promovida pelo Ministério da Cidade, fazendo menção a uma maior participação do cidadão na gestão da cidade. Apesar da ressalva de Oliveira Filho e Vasconcellos (2011: 6) sobre a participação majoritária de "representantes governamentais e classistas, especialmente os [...] ligados ao setor imobiliário", nos conselhos, pode-se apontar a criação do Conselho da Cidade de Curitiba (CONCITIBA), em 2007, como um avanço para a participação popular, alcançado a partir de uma sugestão trazida em palestras e debates realizados nas universidades do município, em eventos sobre a revisão do Plano Diretor de 2004. O CONCITIBA foi criado pela Lei 12.579/2007, com a finalidade de atuar na formulação, elaboração e acompanhamento da Política Urbana Municipal, visando a uma gestão democrática da cidade.

Porém, a partir das publicações oficiais, constata-se que a participação do cidadão na gestão da cidade, durante a revisão do plano em 2004, restringiu-se aos quadros de servidores públicos municipais. Conforme exposto pelo IPPUC (2004: 3), "o processo de adequação do Plano Diretor de Curitiba ao Estatuto da Cidade teve continuidade com a participação de todos os setores da Prefeitura envolvidos diretamente com o Desenvolvimento Urbano." Para tanto, "foram constituídos três grupos de estudo, contando cada um com técnicos das diferentes instituições municipais, todos eles sob a coordenação do IPPUC, por intermédio de sua assessoria jurídica".

A publicação oficial do IPPUC destaca ainda que "os estudos para adequar o Plano Diretor ao Estatuto da Cidade foram iniciados no próprio ano de 2001, imediatamente após a promulgação da nova lei federal", e se deu sob três modalidades: "a participação dos técnicos municipais em eventos sobre o tema, realizados pela [...] Caixa Econômica Federal, a Universidade Livre do Meio Ambiente (UNILIVRE) e a Secretaria de Desenvolvimento Urbano da presidência da República", além da organização de "palestras, conferências e eventos internos, por iniciativa da Prefeitura e da Câmara Municipal, em parcerias com outras entidades, para a apreciação dos diversos aspectos da nova lei". Após dois anos de estudos dos técnicos e representantes do poder público, foram produzidos pareceres técnicos, disponibilizados a toda a população em 2003, através do site da prefeitura municipal. A partir daí, foram realizadas nove audiências públicas para apresentação do projeto de lei[3] , que foi encaminhado à Câmara Municipal, obtendo sua aprovação em 2004, através da Lei 11.266/2004.

Além da criação do CONCITIBA em 2007, o processo de adequação do Plano Diretor ao Estatuto da Cidade (esta ocorrida na gestão de 2001-2004), resultou na aprovação da Lei 11.266/2004 - o Plano Diretor revisado -, na revisão da Lei 9.800/2000 e dos decretos que tratam do zoneamento urbano e disciplinam o uso e a ocupação do solo, e na incorporação dos instrumentos jurídicos: do parcelamento edificação ou utilização compulsórios; do direito de preempção; da outorga onerosa do direito de construir; da transferência do direito de construir; do estudo de impacto de vizinhança; e da Operação Urbana Consorciada aplicada no Setor Histórico, no Parolin, no Rebouças e na Rodovia BR 476 (antiga BR 116) - que resultou mais tarde na Operação Urbana Linha Verde.

Mais do que atender ao preceito constitucional de revisão decenal do Plano Diretor, previsto na Constituição Federal, é possível analisar o alinhamento político ideológico existente no período. Durante a década de 1970, no auge do governo militar, Curitiba alcançou o status de "cidade planejada", propagandeando as realizações de caráter tecnocrático do IPPUC. Tais aspectos foram mantidos mesmo após a redemocratização do país e a promulgação da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Cidade. Na revisão de 2004 não se constata o alinhamento político no processo, ainda que o Ministério das Cidades realizasse, desde 2003, a campanha nacional do Plano Diretor, fomentando a participação popular neste processo. O que se verifica em Curitiba é que, embora o plano tenha incorporado alguns dos instrumentos jurídicos trazidos pelo Estatuto da Cidade, predominou no processo de revisão o discurso do planejamento enquanto questão técnica, restrita a um seleto círculo de especialistas e ao próprio quadro de servidores técnicos municipais.

A revisão do Plano Diretor em 2014: legitimação, replicação ou ensaio para a participação popular?

A legislação federal prevê que os Planos Diretores sejam revistos a cada dez anos. Dessa forma, em 2013, sob uma nova gestão, foi iniciado o processo para a revisão do Plano Diretor de Curitiba. A eleição municipal de 2012 permitiu a ascensão de prefeitos alinhados ao governo central da época, em várias capitais, entre elas Curitiba, que elegeu um expositor ao governo federal, numa aliança com o partido do governo central e em oposição ao candidato do então governador paranaense, seu antigo aliado de partido. Porém, a ascensão de Gustavo Fruet à prefeitura de Curitiba não significou uma ruptura política com as forças tradicionais da cidade e do estado, visto que seu pai, Maurício Fruet, havia governado a capital paranaense no período de 1983-1985, tendo sido o último prefeito nomeado pelo governador José Richa, interrompendo um ciclo de gestões alinhadas ao regime militar.

A revisão foi iniciada sob essa gestão, com a realização da 5â. Conferência da Cidade de Curitiba (COMCuritiba) que, seguindo métodos do planejamento participativo, através de atividades lúdicas, na busca de que os participantes retratassem seus bairros, discutiu o tema "A Cidade que queremos". Conforme previsto na lei de criação do CONCITIBA (Lei 12.579/2007), a Conferência também elegeu os conselheiros do Conselho da Cidade, que acompan haram a revisão do Plano Diretor, agora realizada em parceria com o IPPUC e não somente pelo instituto, convocando-se a Audiência Pública Inaugural de Revisão do Plano Diretor para o dia 28 de março de 2014. Segundo a Convocatória, a Audiência tinha como objetivo divulgar informações a respeito do processo de revisão do Plano, "tais como a metodologia adotada, os trabalhos que envolvem as análises técnicas, os temas abordados, as oportunidades de participação da comunidade a as datas dos principais eventos" que seriam realizados pelo Município. O mesmo ato de convocação comunicava que o período de 12 de abril a 15 de agosto de 2014 destinava-se à apresentação de questionamentos, críticas e sugestões para a revisão do Plano Diretor.

Para aproximar o poder público à realidade social da população, a cidade estava dividida em nove regionais e durante o processo passou para dez regiões (figura 1), com a criação da regional do Tatuquara[4] . A tabela 1 aponta para uma amostragem da quantidade de habitantes em cada uma das regionais.

Fonte: Elaborado por el autor con base con base en Velásquez y González (2003) y Fernández (2012)

Figura 1 Mapa ilustrativo da divisão com as administrações regionais de Curitiba. 

Tabela 1 Distribuição da População do Município de Curitiba nas Regional 

Regional Número de Habitantes % no Município
Bairro Novo 145.433 8,3
Boa Vista 248.698 14,3
Boqueirão 197.346 11,2
Cajuru 215.503 12,3
CIC 171.480 9,8
Matriz 205.722 11,7
Pinheirinho 168.425 9,6
Portão 243.506 13,9
Santa Felicidade 155.794 8,9
Total de Habitantes 1.751.907 100,0

Fonte: Levantamento do número de habitantes distribuídos nas diferentes regionais de Curitiba, conforme o Censo de 2010 do IBGE. Fonte: Elaborado pelos autores a partir do Censo do IBGE (2010), disponível em: https://www.curitibaemdados.ippuc.org.br/Curitiba_em_dados_Pesquisa.htm (2020)

A metodologia de participação permite a compreensão dos processos estruturais na construção do espaço urbano, analisando-se as articulações e as relações sociais no espaço. Foram estabelecidas cinco etapas para o processo de revisão, sendo: uma primeira audiência pública, marcando o início do processo de revisão e as oficinas realizadas nas nove regionais e no Tatuquara, tendo como objetivo principal orientar a comunidade sobre o que é o Plano Diretor e, também, buscar a colaboração da população com o diagnóstico da cidade, ajudando a identificar as propostas para a "cidade que queremos". A segunda etapa consistiu nas consultas populares, realizadas em nove regionais (segunda à décima Audiência), buscando responder aos questionamentos obtidos junto às oficinas de diagnósticos realizadas na etapa anterior. A terceira etapa foi marcada pela realização do "III Seminário Curitiba do Amanhã", ocorrido em 15 de agosto de 2014. A quarta etapa consistiu nas audiências públicas a 19â.), visando apresentar para a população as propostas coletadas nas oficinas e seminários realizados ao longo do processo. A última etapa apresentou a minuta para o projeto de lei, e sua validação através da Conferência da Revisão do Plano Diretor, realizada em fevereiro de 2015. Houve ainda, a realização de outras cinco oficinas nas universidades do município.

Durante a quarta etapa, a Prefeitura distribuiu material com a síntese das propostas e informações sobre a validação da metodologia para elaboração da minuta do projeto de lei, e informou sobre a consulta pública para encaminhamentos de propostas, críticas e demais sugestões para a revisão do Plano, através do portal da prefeitura, que seguiu acessível até 30 de novembro de 2014.

Os dados sobre o processo de revisão seguem disponíveis no endereço eletrônico da prefeitura, sendo possível verificar as listas de presenças, e atas com as propostas trazidas pelos moradores nas oficinas realizadas. Desta forma, aponta-se que 268 pessoas compareceram à Audiência inaugural, 789 pessoas participaram das dez oficinas (conforme demonstrado na Tabela 2), 1.654 pessoas participaram da etapa de consultas (Tabela 3) e 1.346 pessoas participaram das audiências destinadas à apresentação das propostas (Tabela 4), alcançando, assim, pouco mais de 4.000 pessoas envolvidas no processo de diagnóstico, apresentação de propostas e de sugestões para a revisão do Plano Diretor de Curitiba.

Tabela 2 Número de participantes nas oficinas, por região 

Região Data da Oficina Número de Participantes
Bairro Novo 26/03/2014 85
Boa Vista 27/03/2014 75
Boqueirão 18/03/2014 58
Cajuru 24/03/2014 67
CIO 20/03/2014 70
Matriz 19/03/2014 65
Pinheirinho 02/04/2014 72
Portão 25/03/2014 91
Santa Felicidade 17/03/2014 113
Tatuquara 03/04/2014 93
Total de Participantes 789

Fonte: Número de participantes e datas de realização das oficinas de diagnósticos coordenadas pela Prefeitura nas 10 regionais da cidade. Fonte: Elaborada pelos autores a partir das listas de assinaturas consultadas junto ao site do IPPUC, disponível em: https://www.curitiba.pr.gov.br/conteudo/o-que-e/1614 (2019).

Tabela 3 Consultas Públicas realizadas pelo Poder Executivo Municipal 

Consultas Públicas Região Data da Audiência Número de Participantes
2". Audiência CIC 26/05/2014 221
3". Audiência Cajuru 27/05/2014 235
4a. Audiência Pinheirinho 28/05/2014 161
5°. Audiência Bairro Novo 29/05/2014 146
6a, Audiência Matriz 02/06/2014 183
7". Audiência Boqueirão 03/06/2014 181
8a. Audiência Boa Vista 04/0672014 147
9". Audiência Santa Felicidade 05/06/2014 154
10a, Audiência Portão 09/0672014 188
Total de Participante, 1.654

Fonte: Datas das Consultas Públicas realizadas nas regiões instituídas pelo IPPUC e número de participantes em conformidade com as listas de presença. Fonte: Elaborada pelos autores a partir das listas de assinaturas consultadas junto ao site do IPPUC, disponível em: https://www.curitiba.pr.gov.br/conteudo/o-que-e/1614 (2019).

Porém, de acordo com as listas de assinaturas referentes às oficinas nas regionais, observa-se significativo número de servidores públicos municipais participantes do processo[5] . Esta participação dos agentes públicos não esclarece se os mesmos se vinculavam aos trabalhos de revisão do Plano Diretor - delegando-se, portanto, a estes, a função de coordenar e apoiar os moradores, nas oficinas - ou se estes participavam apenas como representantes de seus bairros.

Após a realização das audiências, ocorreu a Plenária Expandida do CONCITIBA (aberta a toda a população, porém com direito a voto somente os 64 delegados eleitos na Conferência e 18 delegados territoriais eleitos nas regionais)[6] , com a divisão em quatro eixos temáticos (Habitação e Paisagem Urbana; Estruturação Urbana e Ambiental; Política Econômica e Social; e Mobilidade e Transporte), para discussão e aprovação de emendas que passaram a compor o anteprojeto de lei enviado à Câmara Municipal, em fevereiro de 2015. Na Câmara Municipal ocorreram mais oito audiências públicas, com o objetivo de ouvir sugestões da população. E, em 06 de outubro do mesmo ano, o projeto foi aprovado pelo Legislativo.

Tabela 4 Audiências Públicas realizadas pelo Poder Executivo Municipal 

Audiência Pública Região Data da Audiência Número de Participante*
11 a. Audiência Pinheirinho 10/11/2014 113
12 a. Audiência Santa Felicidade 11/11/2014 127
13 a. Audiência Matriz 12/11/2014 167
14 a. Audiência Boqueirão 13.11/2014 159
15 a. Audiência CIC 17/L1/2014 217
16 a. Audiência Cajuru 18/11/2014 187
17 a. Audiência Boa Vista 19.11/2014 111
18 a. Audiência Bairro Novo 20/11/2014 162
19 a. Audiencia Portão 21/11/2014 103
Total de Participantes 1-346

Fonte: Datas das Audiências realizadas nas regiões instituídas pelo IPPUC e número de participantes em conformidade com as listas de presença. Fonte: Elaborada pelos autores a partir das listas de assinaturas consultadas junto ao site do IPPUC, disponível em: https://www.curitiba.pr.gov.br/conteudo/o-que-e/1614 (2019).

É importante observar que, além dos eventos institucionais mencionados, que permitiram a participação da população, na página eletrônica da prefeitura foi disponibilizado um canal de contribuições a serem encaminhadas para tratar a revisão do plano (SANTANA, 2014). As informações sobre tais contribuições permanecem disponíveis na página onde há, também, a resposta ou o protocolo de encaminhamento a cada proposta.

De acordo com dados da prefeitura, em todo o processo de elaboração da revisão do Plano Diretor foram realizados 146 eventos externos, com a participação de 6.305 pessoas (CURITIBA, 2014), entre oficinas, seminários, audiências públicas, plenária expandida do CONCITIBA e as audiências realizadas pela Câmara Municipal, que legitimaram o processo de aprovação do projeto de lei. Cabe ressaltar que o número disponibilizado pela municipalidade é resultado da somatória de participantes em cada um dos eventos. Verificando as listas de presença, constata-se tanto a repetição de nomes em mais de uma oficina da mesma etapa, quanto em etapas sucessivas.

Considerações Finais: permanências no resultado alcançado após um ensaio para a participação popular

Os municípios são os locais mais próximos para população usufruir de políticas públicas, e o Plano Diretor pode funcionar como uma ligação para que as necessidades e os interesses dos cidadãos cheguem até os gestores. Assim, considerando a forma como ocorreu o processo de revisão do Plano Diretor de Curitiba, em 2014, pode-se constatar pouco avanço com o rompimento da cultura tecnicista e distante do controle social - que perdura há décadas no planejamento de Curitiba - pelo que foi tratado neste texto como um ensaio para a participação popular, reconhecendo que a mesma se deu de forma tardia. Entende-se que a prefeitura ofereceu mecanismos para ouvir a população e envolvê-la nas discussões sobre o tema do desenvolvimento urbano, buscando cumprir a premissa da participação popular na revisão do Plano, conforme diretriz do Estatuto da Cidade, porém isso trouxe resultados pouco expressivos em relação à autonomia dos movimentos sociais.

Desta forma, este trabalho contribui para uma reflexão sobre os avanços e impasses presentes na implementação da política urbana no Brasil, verificando possíveis inflexões no processo do planejamento de Curitiba - no que tange à participação popular e ao controle social sobre o planejamento urbano - analisando a última revisão do Plano Diretor, visto que a Constituição Federal e a política de desenvolvimento urbano no Brasil apregoam, há cerca de trinta anos, a necessidade de inserção da participação popular no processo de planejamento da cidade.

De fato, conforme Randolph (2007) há de se questionar a efetividade de participação popular no processo de revisão do Plano e autonomia da população em relação ao poder público. Ao analisar os processos participativos para o desenvolvimento urbano, Crespo-Sanchez (2019), por sua vez, levando em conta as negociações entre o poder público, cidadãos e diferentes interesses, questiona a ideia de construção do consenso como finalidade de qualquer manifestação de participação.

Neste sentido aponta-se que, embora o processo tenha contado com a participação da população desde a CONCuritiba, é possível questionar, frente à metodologia adotada pela prefeitura, a efetiva participação da população na tomada de decisões, verificando se as propostas apresentadas foram incorporadas à lei e, de fato, implementadas pelo Plano. Pode-se discutir, assim, a correlação de forças envolvidas no processo. De um lado, os interesses econômicos de grupos hegemônicos que direcionam investimentos e vetores de crescimento da cidade e, de outro, boa parte da população que necessita de habitação, saneamento básico, transporte coletivo, enfim, demandas que só serão alcançadas quando cumprida a função social da cidade, tema que perpassa a questão da propriedade e o acesso à terra.

Embora o Estatuto da Cidade tenha trazido algum avanço em relação ao controle social sobre os Planos Diretores, a participação popular "serve mais para a validação e legitimação sob o selo democrático de práticas definidas como desejáveis por setores hegemônicos." (RANDOLPH, 2007: 7). Numa discussão sobre a política de desenvolvimento urbano, Rolnik e Klink (2011: 18) chamam a atenção para a falta de representação dos estados e municípios junto ao Conselho Curador de gestão do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), "principal fundo financiador do desenvolvimento urbano" no Brasil, cujo conselho é a "principal arena para definição das diretrizes e dos programas para alocação dos recursos" para obras de infraestrutura, financiamento de habitação e saneamento básico nos municípios. Avritzer (2013) corrobora com a ideia ao analisar a pouca atuação em fóruns de participação popular, nas instâncias que tratam da implantação de grandes obras de infraestrutura urbana.

Verifica-se que, embora possa ter sido notório o esforço da municipalidade na abertura para a discussão sobre o planejamento da cidade, o que pode ser considerado um importante ensaio para a participação popular - vide a publicidade realizada no período da revisão do Plano em 2014, o número de audiências realizadas e a abertura de canais para o encaminhamento de propostas - a tomada de decisão ainda é tratada sob forte teor técnico, utilizando justificativas e retóricas que visam esvaziar o debate político sobre a cidade, fato que expõe ainda mais o distanciamento da população em relação às esferas de decisões. Assim, a questão central do planejamento, ou seja, o efetivo cumprimento da função social da propriedade urbana, que poderia levar à função social da cidade e à justiça territorial, é preservado e pouco explorado, limitando-se a participação popular à discussão de questões setoriais e avançando-se pouco para um pacto territorial mais justo e democrático.

Referências

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[1]Este trabalho é resultado de pesquisa em andamento junto ao Laboratório de Habitação e Urbanismo da Universidade Federal do Paraná (LAHURB), sobre os processos participativos no planejamento urbano do município de Curitiba/PR.

[2]Na eleição direta de 1982 para os governos de estado, o Paraná elegeu governador José Richa, político opositor ao regime desde o início do golpe militar, cabendo a ele indicar o prefeito da capital no ano de 1983.

[3]As audiências públicas foram realizadas nos meses de outubro e novembro de 2003 e, conforme os documentos oficiais disponibilizados pelo IPPUC, alcançaram um total de 1.463 pessoas e receberam 142 sugestões ao Plano.

[4]A Regional do Tatuquara foi criada pela Lei 14.751/2015, que revisou a divisão regional da cidade e os limites territoriais das mesmas. A nova regional resulta do desmembramento de parte do território da Regional CIC e Pinheirinho.

[5]De acordo com as listas de participantes é possível constatar que 60% dos participantes nas oficinas realizadas no bairro Novo e no Boa Vista eram de funcionários públicos municipais.

[6]Além dos 18 delegados territoriais, os delegados eleitos na Concitiba foram divididos pelos segmentos: Poder Público, de Movimentos Populares, do Setor dos Trabalhadores, do Setor Produtivo, do Setor Profissional, de ONGs e do Setor Acadêmico.

Cómo citar este artículo: Cestaro, L. R. y Cestaro, L. (2021). En saios para a Participação Popular em Curitiba-PR: a revisão do Plano Diretor em 2014. Bitácora Urbano Territorial, 31(III): 67-80. https://doi.org/10.15446/bitacora.v31n3.86850

Autores

Lucas Ricardo Cestaro Arquiteto e Urbanista, mestre e doutor pelo Instituto de Arquitetura e Urbanismo - IAU/USP. Professor no Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Paraná. Pesquisador vinculado ao Laboratório de Habitação e Urbanismo da UFPR e a Rede Internacional de Economia Humana, sediada na Universidade do Centro Latino Americano de Economia Humana, no Uruguai.

Lilian Cestaro Cientista Social graduada pela Universidade Estadual de Campinas com habilitação em Antropologia (2005). Pós-Graduada em Administração Pública pela Universidade Candidato Mendes, onde estudou políticas públicas e processos particiipativos (2019). Pós-Graduada em Relações Exteriores no Programa de Pós-Graduação Lato Sensu da Faculdade de Artes do Paraná em Parceria com a Universidade Federal do Paraná (2011)

Recebido: 30 de Abril de 2020; Aceito: 30 de Junho de 2020

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