SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.31 issue3Instruments for vacant land management in Argentinian cities.Planned communities: Utopia and socio-spatial segregation in Florianópolis, Brazil. author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

Related links

  • On index processCited by Google
  • Have no similar articlesSimilars in SciELO
  • On index processSimilars in Google

Share


Bitácora Urbano Territorial

Print version ISSN 0124-7913On-line version ISSN 2027-145X

Bitácora Urbano Territorial vol.31 no.3 Bogotá Sep./Dec. 2021  Epub Sep 23, 2021

https://doi.org/10.15446/bitacora.v31n3.87377 

Artigos

Coalizões público-privadas na produção do espaço urbano e a dinâmica do mercado imobiliário: uma análise a partir de uma cidade pequena do litoral brasileiro[1]

Coaliciones público-privadas en la producción de espacios urbanos y la dinámica del mercado inmobiliario: un análisis de una pequeña ciudad en la costa brasileña

Public-private coalitions in the production of urban space and the dynamics of the real estate market: an analysis from a small town on the Brazilian coast

Coalitions public-privé dans la production d'espace urbain et la dynamique du marché immobilier: une analyse d'une petite ville de la côte brésilienne

Rafael Rossetto Ribeiro1 
http://orcid.org/0000-0003-0934-7425

Beatriz Fleury e Silva2 
http://orcid.org/0000-0001-5906-0559

1Universidade Estadual de Maringá rafaelrossetto.arq.urb@gmail.com https://orcid.org/0000-0003-0934-7425

2Universidade Estadual de Maringá bfsilva@uem.br https://orcid.org/0000-0001-5906-0559


Resumo

Este artigo analisa a dinâmica da produção imobiliária nas transformações do espaço urbano em cidades litorâneas brasileiras de pequeno porte. Para tanto, toma-se a cidade de Itapoá (Santa Catarina) como estudo de caso, a qual tem sua força-motriz em dois grandes atrativos dentro da lógica capitalista: a praia e a atividade portuária. Metodologicamente, o artigo se desenvolve a partir do levantamento da produção imobiliária estabelecida entre 1950 e 2019, os agentes sociais envolvidos, as alterações nas legislações urbanas na esfera nacional e local e, por fim, análise. A partir do estudo, nota-se que historicamente o setor imobiliário, em movimento de coalizões público-privadas com a municipalidade, tem buscado estratégias de divulgação da cidade aos consumidores através da criação de valores culturais e "necessidades sociais" sintonizadas com o contexto de cada época. Assim, até então verificáveis nos grandes centros urbanos, sob essa lógica, as articulações do mercado imobiliário local em pequenos municípios também geram escassez de espaços, valorizações e desvalorizações, de modo que façam o solo urbano, como mercadoria, circular e recircular na roda da economia.

Palavras-Chaves: urbanização; cidade pequena; porto; praia

Abstract

This paper analyzes the dynamics of real estate production in the transformation of urban space in small coastal cities in Brazil. For this purpose, the case of the city of Itapoá (Santa Catarina) which has its matrix in two major interests in the capitalist logic: the beach and the port activity. Methodologically, the paper develops from the survey of real estate production established between 1950 and 2019, its social agents involved, changes in urban legislation on national and local context, and finally, analysis. From this study case, it is noted that historically, the real estate sector together with the municipality, sought strategies to publicize the city to consumers, through the creation of cultural values and "social needs" in tune with the context of each era. Therefore, until then verifiable in large urban centers, the articulations of the local real estate market in small municipalities also generate scarcity of spaces, valuations and devaluations, so they can make the urban plots, as merchandise, rounded and recirculate in the wheel of the economy.

Keywords: urbanization; small city; port; beach

Resumen

Este artículo analiza la dinámica de la producción inmobiliaria en la transformación del espacio urbano en pequeñas ciudades costeras de Brasil. Con este fin, se aborda el caso de la ciudad de Itapoá (Santa Catarina) que tiene su sede en dos intereses principales en la lógica capitalista: la playa y la actividad portuaria. Metodológicamente, el artículo se desarrolla a partir de la encuesta de producción inmobiliaria establecida entre 1950 y 2019, sus agentes sociales involucrados, los cambios en la legislación urbana y, finalmente, el análisis. Del estudio, se puede ver que históricamente, el sector inmobiliario junto con el municipio, buscaron estrategias para dar a conocer la ciudad a los consumidores, a través de la creación de valores culturales y "necesidades sociales" en sintonía con el contexto de cada época. Así, hasta entonces verificable en grandes centros urbanos, las articulaciones del mercado inmobiliario local en pequeños municipios también generan escasez de espacios, valoraciones y devaluaciones, por lo que hacen que el suelo urbano, como mercancía, sea circular y recircula en la rueda de la economía.

Palabras clave: urbanización; ciudad pequeña; puerto; playa

Résumé

Cet article analyse la dynamique de la production immobilière dans la transformation de l'espace urbain dans les petites villes côtières du Brésil. A cet effet, le cas de la ville d'Itapoá (Santa Catarina) qui a sa matrice dans deux intérêts majeurs dans la logique capitaliste: la plage et l'activité portuaire logistique. Méthodologiquement, l'article se développe à partir de l'enquête sur la production immobilière établie entre 1950 et 2019, de ses acteurs sociaux impliqués, des évolutions de la législation urbaine sur le contexte national et local, et enfin de l'analyse. À partir de ce cas d'étude, il est noté que, historiquement, le secteur immobilier en collaboration avec la municipalité, a cherché des stratégies pour faire connaître la ville aux consommateurs, à travers la création de valeurs culturelles et de «besoins sociaux» en phase avec le contexte de chaque époque. Par conséquent, jusque-là vérifiable dans les grands centres urbains, les articulations du marché immobilier local dans les petites communes génèrent également rareté des espaces, valorisations et dévaluations, afin qu'elles puissent rendre les parcelles urbaines, comme marchandise, circulaires et recirculer dans la roue du économie

Mots-clés: urbanisation; petite ville; port; plage.

Estas estruturas, em conjunto com os arranjos produtivos do espaço urbano não geram so- mente impactos no quadro econômico, mas também no território envolvido, sendo capaz de modificá-lo significativamente, ao longo do tempo. Assim, o mercado imobiliário atua como um dos principais vetores de estruturação do espaço urbano, através de suas di- retrizes para comercialização do solo urbano.

Introdução

O espaço urbano é o resultado materializado de uma relação simbiótica entre a sociedade e o território, sob a influência de seus diferentes vieses culturais e econômicos. Dessa maneira, ao longo do tempo a ação da sociedade como um todo e, em especial, a de determinados agentes, modelaram e continuam a engendrar as cidades sob a lógica do espaço como produto. No sistema capitalista, o mercado imobiliário e o Estado são os principais agentes a atuarem sobre o território. Cada um desses agentes possui uma função e um interesse específico sobre o território, elementos que ora podem ser harmônicos, ora podem ser conflituosos e opostos. Portanto, diante de conflitos e coalizões, a produção do espaço urbano ocorre a partir de ações isoladas, e/ou em conjunto, desses agentes modeladores (Lefebvre, 1999; 2001; Corrêa, 2004; Villaça, 2012).

No território brasileiro, o alinhamento histórico entre o mercado imobiliário e o Estado tem determinado a lógica da produção do espaço das cidades brasileiras e tem suas bases na gênese nacional (Maricato, 1995). O que se nota é que a atuação em conjunto desses agentes, sobre o território, é apoiada pela existência do que Logan e Molotch (1987) denominam de "coalizão de crescimento". Para os autores, dentro da teoria da máquina de crescimento urbano (growth machine), as alianças entre os agentes produtores do espaço urbano apoiam-se na lógica do desenvolvimento econômico atrelado à rentabilidade sobre o solo. Isso ocorre a partir de estratégias criadas sobre renovações de áreas urbanas, e criação de novas localizações/centralidades e produtos que atraiam o mercado consumidor. Através de uma lógica pró-desenvolvimento garante-se o apoio consensual da população local, enquanto se assegura a predominância dos interesses particulares perante as necessidades coletivas, na construção das cidades.

Entre os locais que mais despertaram os interesses econômicos da sociedade ocidental-capitalista pela mercantilização da terra foram as cidades litorâneas. De acordo com Corbin (1989) este interesse pelos espaços litorâneos emerge a partir do final do século XIX, quando o mar como valor cênico e a praia como espaço de lazer são incorporados ao imaginário urbano, sendo, estes, impulsionadores para o desenvolvimento de uma atividade econômica específica para atender tais demandas. Nesse sentido, o turismo surge como uma atividade econômica indutora e produtora dos territórios à beira-mar.

No Brasil, apesar de o processo da formação histórica das cidades surgir a partir da costa marítima, com a ocupação portuguesa no século XVI, foi somente no início do século XX que a produção do espaço urbano se direcionou para vilegiatura marítima. Em termos gerais, a ocupação do litoral brasileiro, derivada do turismo de veraneio, decorreu de processos de expansão das cidades existentes, quase sempre cidades de origem colonial, como é o caso do bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, e de Boa Viagem, em Recife, e através do crescimento de pequenos núcleos urbanos que, situados em meio a um ambiente ainda rústico e de difícil acesso, são aparelhados para receber contingentes de veranistas (Macedo, 1998; Macedo, 1999).

Por outro lado, além dessas intervenções turísticas no espaço-costeiro brasileiro, com o avanço da neoliberalização na economia nacional, durante a década de 1990, institui-se a Lei de Modernização dos Portos (Lei 8.630/1993) que, entre outras medidas, autorizou a instalação e o uso da atividade portuária pela iniciativa privada. Como resultado, ocorreu a implantação de uma série de novos terminais portuários pela costa litorânea brasileira. Nesse sentido, surgiu o que se denomina "novas cidades portuárias", ou seja, refere-se aqui à perspectiva das cidades que não são associadas a atividade portuária desde sua gênese, recebendo equipamentos portuários anos após a sua formação (Ribeiro & Beloto, 2019).

Para Campos (2004), identificam-se implicações com a privatização portuária tanto em áreas urbanas já consolidadas como naquelas em expansão, pois além dos efeitos socioeconômicos a atividade portuária tem também relevante influência no meio urbano através de alterações no espaço intraurbano, assim como direciona a expansão urbana. Portanto, a presença da atividade portuária impacta sobre o território urbano e o mercado imobiliário utiliza-se de tais impactos, muitas vezes, a favor de seus próprios interesses, com a criação de novos produtos e tipologias sintonizadas com o novo contexto urbano-regional.

Com bases nessas considerações, pode-se afirmar que as transformações do espaço urbano no litoral brasileiro são fruto, em muitos casos, de dois grandes atrativos: a praia e a atividade portuária. Assim, este artigo analisa a relação entre esses interesses e a produção do espaço urbano em cidades litorâneas de pequeno porte[2] brasileiras, sob a perspectiva da dinâmica do mercado imobiliário. Para tanto, tem-se Itapoá, no litoral do Estado de Santa Catarina, como estudo de caso, uma vez que, idealizada como um novo balneário de veraneio nos anos finais da década de 1950, esta teve seu processo de urbanização potencializado exponencialmente pela implantação de um terminal portuário a partir da década de 1990.

O estudo de caso se baseou em pesquisa documental e dados secundários, e se estruturou em uma análise correlational do cenário nacional - econômico e legislativo - com a produção imobiliária local. Tal estrutura buscou a identificação das permissividades legislativas que engendraram o modo de produção urbana, assim como os agentes envolvidos e quais as tendências de produção imobiliária derivadas da recente dinâmica econômica pós-implantação portuária.

Para tanto, o artigo se organiza em três seções complementares. Nas duas primeiras trata-se sobre a produção do espaço urbano em Itapoá, antes e após a implantação portuária. Na terceira parte correlaciona-se o caso apresentado de Itapoá com a dinâmica de produção do espaço urbano litorâneo brasileiro, especificando como os diferentes estágios do âmbito nacional influenciaram na produção imobiliária local.

Do éden à cidade: a coalizão público-privada no estopim da produção imobiliária local (1950-1990)

Em sua origem, enquanto povoado, Itapoá estava vinculado politicamente, como distrito, ao município de São Francisco do Sul, e posteriormente ao município de Garuva. Até a metade do século XX sua ocupação estava relacionada às vilas de pescadores, em um território de mata fechada e com difíceis acessos terrestres. Somente a partir da idealização de um novo balneário de veraneio, em 1957, que atendesse principalmente aos moradores de Joinville (SC), a 75 km de distância, e Curitiba (PR), a 140 km de distância, é que se iniciou a efetiva ocupação urbana nesta porção do território do norte catarinense (Paese, 2012).

O projeto do núcleo urbano é de autoria do corpo técnico da Sociedade Imobiliária, Agrícola e Pastoril (SIAP). Sua gênese foi ligada à comercialização dos lotes urbanos com enfoque na praia como espaço de lazer. Dentro desse contexto, a propaganda tornou-se uma ferramenta essencial para a rentabilidade dos investimentos no balneário. Para tanto, na época, a SIAP produziu um documentário cinematográfico para apresentar a orla, o projeto do balneário e as infraestruturas que estavam provendo ao local. Intitulado de "Maravilhas e Riquezas do Litoral Catarinense", o cerne estava na construção de um imaginário cultural que ligava a praia de Itapoá a uma espécie de "lugar paradisíaco", com infraestruturas voltadas ao estabelecimento de loteamentos de segunda residência.

Para Tulik (1995, p. 21) a segunda residência consiste em: "um alojamento turístico particular, utilizado temporariamente, nos momentos de lazer, por pessoas que têm seu domicílio permanente em outro lugar". Logo, o uso desse tipo de domicílio está presente na relação de tempo, custo e distância, uma vez que seus usuários precisam estabelecer certa regularidade entre saídas, chegadas e retornos às cidades de origem e destino.

Assim, os 32 quilômetros de faixa litorânea que a localidade dispunha foram a matriz para a ocupação do seu território pelo mercado imobiliário. Esses lote-amentos se organizavam, basicamente, em função de uma via principal de acesso que corre paralelamente à praia; a malha urbana era comumente a quadrícula xadrez, e os lotes eram retangulares, com uma área média de 480 m2 (Itapoá, 2016). Essa padronização nos loteamentos urbanos aprovados evidencia características correlacionadas ao interesse do mercado imobiliário em atingir o seu público alvo. Por seu foco se tratar da comercialização de segundas-residências, o tamanho dos lotes é formatado para permitir aos consumidores a aquisição de um terreno no qual possam construir de acordo com padrões urbanísticos que raramente são obtidos em sua primeira residência, ou seja, são valorizadas as figuras do jardim e do quintal. Logo, o foco está nas qualidades intra-lotes e o espaço urbano, isto é, o extra lote é apenas um apoio a uma temporada de lazer, situação que reduz drasticamente a exigência de serviços e infraestruturas urbanas (Macedo, 1998).

Nesse sentido, Macedo (1998) afirma que os loteamentos de caráter específico de segunda-residência, ou o que se pode chamar de "subúrbio de férias", não permitem a construção de um todo urbano coeso, formando enclaves alheios à municipalidade em que se situam. Ademais, frequentemente as autoridades municipais não exercem um efetivo controle do uso da terra, permitindo aos agentes privados urbanizar grandes áreas, com fins comerciais e até especulativos e que, sob o pretexto de gerarem benefícios como empregos e impostos, são apoiados localmente. Contudo, raramente essas benesses são revertidas para o interesse da população local.

Destaca-se que até 1964, Itapoá, com Garuva, eram distritos da comarca de São Francisco do Sul. Com a emancipação política de Garuva, à qual Itapoá incorporou-se como distrito, o primeiro prefeito eleito, Dórico Paese (1966-1970), era um dos sócios-proprietários da SIAP, empresa privada responsável pela implantação do primeiro balneário na localidade. Assim, mesmo não possuindo autonomia político-administrativa, Itapoá possuía destaque nas ações do Executivo e Legislativo Local, o que permitiu a rápida aprovação de loteamentos urbanos em seu território.

Conforme ilustra a figura 1, não há uma hegemonia, sendo até diversa a quantidade de agentes envolvidos na produção do espaço urbano. O primeiro loteamento teve sua aprovação em 1957, e logo na década seguinte, antes mesmo da consolidação dos primeiros loteamentos, 19 novos parcelamentos foram aprovados. Esse ritmo acelerado se manteve na década de 1970, que teve o maior quantitativo de aprovações de parcelamentos do solo urbano, contabilizando 46% do total aprovado, até hoje, em território itapoaense (Itapoá, 2016).

Nesse panorama algumas informações se destacam: primeiro, a existência de uma série de loteamentos em cujos registros de imóvel não constam os proprietários, embora sejam regularizados; segundo, a presença de duas áreas, ao norte da cidade, de loteamentos irregulares, que estão altamente ocupados, mas que não apresentam registros legais; e, terceiro, a atuação da Imobiliária Carvalho Ltda. que possui um total de 6 loteamentos, distribuídos ao longo da orla e aprovados entre os anos de 1966 e 1972. Essas informações exemplificam tanto a intenção do mercado de aproveitar ao máximo, desde o início do balneário, toda a extensão litorânea, como também apontam para a ausência, em certos momentos, de uma fiscalização urbanística da administração local para ocupações irregulares e/ou de origens misteriosas.

Entretanto, cabe aqui destacar que somente no final da década de 1970, com a Lei Federal n° 6.766/1979, é que foram estabelecidas normas regulamentadoras relativas ao parcelamento do solo urbano no território brasileiro. E, mesmo diante de sua aprovação, muitos municípios, principalmente os de pequeno porte ou interioranos, foram omissos na aplicação das diretrizes legislativas em seus territórios, como é o caso da cidade em análise. Apesar disso, embora ocorresse um alinhamento favorável para a mercantilização do litoral local, ao contrastar a série diacrônica da aprovação de loteamentos da cidade com a linha temporal de ocupação do espaço urbano, percebe-se que estas apresentam grandes diferenças.

Um dos motivos consiste nas características ambientais do território, que à época do estopim urbano, início da década de 1960, ainda preservava uma grande área de mata Atlântica. Aliada a isso, havia uma certa dificuldade de acessá-lo pela via terrestre. Isto resultou em um processo de ocupação que priorizava as áreas que tinham fácil acesso pelas vias que conectavam o balneário à região e pelas infraestruturas ali encontradas (Ribeiro & Beloto, 2019).

Fonte: Elaboração própria com base em Ribeiro & Beloto (2019); Plano Diretor de Itapoá (2016).

Legenda: em preto, loteamentos aprovados na década em destaque; em cinza, loteamentos aprovados em décadas passadas.

Figura 1 Localização da cidade de Itapoá e linha do tempo da dinâmica imobiliária: acima loteamentos aprovados e abaixo lotea-mentos implantados sobre o território. 

Outro fator, para explicar a defasagem entre a forma urbana idealizada, composta pelos loteamentos urbanos aprovados, e a forma urbana implantada, constituída pela efetiva ocupação dos lotes urbanos, é o efeito da especulação imobiliária sobre o solo urbano. Campos Filho (1992, p.20) aponta que esse é um fenômeno recorrente, nas cidades brasileiras, "[... ] uma forma pela qual os proprietários de terra recebem uma renda transferida dos outros setores produtivos da economia, especialmente através de investimentos públicos na infraestrutura e serviços urbanos".

Nessa perspectiva, os custos de "melhoria" do espaço urbano são coletivos, mas os ganhos derivados dessas ações são privados, pertencem àqueles que detêm a posse da terra. Assim, o caso de Itapoá evidencia uma prática comum no Brasil, em que áreas desprovidas de infraestruturas urbanas, ou ainda aguardando a chegada de algum investimento, ficam inertes à ocupação para que se valorizem com a chegada dos possíveis investimentos públicos ou privados, de modo que os preços dessas propriedades alcancem valores superiores referentes aos de seus próprios investimentos iniciais. Em Itapoá, ao idealizar loteamentos urbanos em toda a costa, com seu ápice na década de 1980, o mercado imobiliário assegurava sua posse e hegemonia na exploração do solo litorâneo local.

Por este mesmo lado, a partir da década de 1960, as cidades do norte de Santa Catarina passaram por uma crescente expansão econômica e urbana. Potencializada pela rodovia BR 101, que interliga a costa marítima brasileira de norte a sul, e pela industrialização das cidades de Joinville, Brusque, Itajaí e Jara-guá do Sul, a expansão dos núcleos urbanos situados na faixa litorânea catarinense foi impulsionada pelo crescimento econômico dessas localidades próximas, e pela fácil mobilidade propiciada com o advento e popularização do transporte rodoviário no Brasil. O exemplo mais notório desse período é a ascensão urbana e econômica do Balneário Camboriú como destino turístico (Pereira, 2011).

Por fim, a massiva aprovação de loteamentos em Itapoá durante este período (1950 - 1990) atuou, de certa maneira, como um próprio movimento de "independência" do então distrito. Sob a justificativa do crescimento urbano, a autonomia político-administrativa tornava-se um importante instrumento para a organização do espaço urbano que se construía e se modificava rápida e localmente, impulsionado pelas transformações em toda a região norte do litoral do estado de Santa Catarina.

A produção imobiliária recente: dos marcos urbanísticos regulatórios na esfera nacional à cidade-mercado na escala local (1990-2019)

Na década de 1990, principalmente em sua segunda metade, com a estabilização econômica pós-crise e as alterações político-econômicas, ocorre a promoção de um novo dinamismo imobiliário no Brasil (Shimbo, 2010). Contudo, ao contrário desse cenário nacional, nota-se o arrefecimento da aprovação de novos lotea-mentos em Itapoá. De certa forma, o mercado imobiliário local já havia saturado as áreas de interesse ao público consumidor, no caso, a orla marítima. Assim, o foco do mercado imobiliário local se concentrou na produção das unidades habitacionais, na venda dos lotes ainda disponíveis e na própria materialização dos loteamentos aprovados em décadas passadas que, localizados em um território ainda de mata Atlântica, lentamente abriam clareiras para a abertura das vias e para a ocupação dos lotes.

Este período também marca a emancipação política-administrativa de Itapoá. Desta maneira, ao longo da década de 1990, o legislativo local aprovou uma série de leis voltadas à gestão territorial, tais como código de obras (Lei Municipal n.° 072/1990) e delimitação do perímetro urbano (Lei Municipal n.° 072/1999). Destaca-se que uma das primeiras leis aprovadas pela gestão local, a Lei Municipal n.° 085/1991, autoriza o Executivo Municipal a desapropriar, indenizar e doar áreas de terra localizadas no município para empresas que venham a se estabelecer e que gerem empregos aos munícipes. Assim, concomitantes a este processo de organização legislativa local e de incentivos às instalações que alavancassem a economia municipal, iniciaram-se estudos sobre a implantação de um terminal portuário pela iniciativa privada. Em 1994, buscas por uma localidade que estivesse apta para receber tal empreendimento logístico centralizou-se na porção sul do município (Cabral, 2011).

A área de instalação do terminal portuário é contígua a uma antiga vila de pescadores. Em 1996, a municipalidade aprovou a Lei n.° 139/1996, declarando essa porção do território como "área de vocação portuária" e, posteriormente, a Lei n.° 115/1998, declarando a porção contígua a esta área portuária como "zona de vocação industrial".

De acordo com Gomes (2013), a escolha da localidade para a instalação do terminal portuário gerou conflitos entre os residentes, gestores municipais e iniciativa privada. Tal conflito pode ser explicado pela expressiva especulação imobiliária na cidade; pelo aumento de fluxo de veículos pela malha urbana; pelos possíveis impactos ambientais que a atividade portuária traria à faixa de praia da cidade; e, principalmente, pela eliminação da tradicional vila de pescadores locais. Essa nova realidade provocou nos antigos residentes a sensação de uma relação exploratória estabelecida pelos agentes portuários, desprezando-se a identidade, as preexistências e as memórias da cidade e dos seus habitantes.

Embora o projeto portuário partisse da iniciativa privada, para uso e gestão de movimentação de cargas privadas, a infraestruturação do território teve amplo apoio governamental, em todas as escalas: municipal, estadual e federal; com a destinação de verbas públicas para grandes obras de infraestrutura logística. As obras se concentraram principalmente na melhoria do acesso viário ao porto e ao abastecimento de energia elétrica (Cabral, 2011).

Quadro 1 Comparativo da evolução populacional do Estado de Santa Catarina e do município de Itapoá. 

Fonte: Elaboração própria com base nos dados do Censo demográfico 1950, 1960, 1970, 1980, 1991, 2000, 2010 e estimativa IBGE 2018.

Essa infraestruturação do território local favoreceu tanto a implantação da atividade portuária como a sua produção imobiliária, pois com as novas estruturas de acesso ao município elevou-se o interesse dos consumidores veranistas pelas praias de Itapoá. Isso certamente ocorreu porque a distância e a temporalidade são fatores determinantes para a aquisição de residências sazonais no litoral brasileiro, conforme afirma Tulik (1995). Logo, a facilidade de acessos permitiu uma maior exploração do mercado imobiliário para os loteamentos direcionados às segundas-residências.

Outro fator que impulsionou a produção imobiliária local foi o próprio aumento populacional da cidade, com a migração estimulada pelo aumento da disponibilidade de empregos ligados à atividade logística, como indústrias de transformações de bens, armazenamento, entre outros (Junior & Martins, 2019). Como se pode observar na tabela 01, o crescimento demográfico do município superou as taxas de crescimento do próprio Estado de Santa Catarina, no período pós-implantação portuária.

Entretanto, mesmo com o expressivo aumento populacional não houve aprovação de novos loteamentos, mas sim a consolidação dos parcelamentos urbanos aprovados em décadas passadas, com suas efetivas implantações (figura 2). A partir da construção do terminal portuário na porção sul da cidade, elevou-se a ocupação dos loteamentos nessa porção, até então menos ocupada, se comparada com outras porções do município. Observa-se também, principalmente no período entre 2011 a 2019, a interiorização do espaço urbano. Isso ocorreu tanto pela instalação de empreendimentos industriais, que se utilizam dos novos eixos rodoviários para sua implantação, como pelo novo perfil do público consumidor, agora constituído expressivamente também por residentes. Estes, por não estarem diretamente vinculados ao lazer sazonal, apropriam-se das bordas da cidade e não da faixa mais próxima à praia, que se manteve destinada para o mercado turístico (Ribeiro & Beloto, 2019).

Fonte: Elaboração própria com base em Ribeiro & Beloto (2019); Plano Diretor de Itapoá (2016) e Riviera Santa Maria (2013).

Legenda: em preto, loteamentos aprovados na década em destaque; em cinza, loteamentos aprovados em décadas passadas.

Figura 2 Linha do tempo: acima loteamentos aprovados e abaixo loteamentos implantados sobre o território. Destaque para a proposta de Lerner para a cidade (2013). 

As recentes dinâmicas territoriais estabeleceram variações nos padrões morfológicos existentes. Se anteriormente havia a predominância de residências unifamiliares e a valorização dos espaços livres intralotes, já no período pós-implantação portuária há a subdivisão dos antigos lotes, o aparecimento de condomínios horizontais ao longo da orla e a verticalização, através de residências multifamiliares.

Desde 2008, a lei de zoneamento permite, em toda a cidade, a edificação com altura. Segundo a lei municipal 204/2008, a altura máxima das edificações deve seguir uma linha imaginária traçada no sentido leste-oeste a partir do ponto de linha da costa, em um ângulo de 20 graus. Como consequência, o que se nota atualmente, na cidade, é a inserção dessas tipologias verticalizadas pulverizadas na paisagem urbana, alterando a predominância de edificações unifamiliares para edificações multifamiliares.

No cenário nacional, com a promulgação do Estatuto da Cidade, Lei Federal n.° 10.257/2001, são estabelecidas diretrizes gerais da política urbana para as cidades brasileiras. Esta tem como objetivo a garantia do direito à cidade, e entre seus instrumentos institui às cidades o dever de demarcar zonas especiais de interesse social (ZEIS). Em Itapoá, as intervenções relacionadas a este mecanismo legislativo alteraram gradativamente o caráter das localidades, principalmente pela sua inclusão nas pautas urbanísticas municipais de 2008 e 2013. Contudo, nota-se que os investimentos públicos realizados na requalificação dessas áreas resultaram na transformação das antigas áreas, predominantemente de habitação de interesse social, em pousadas, restaurantes ou até mesmo em casas para aluguel por temporada, para os veranistas. Portanto, a regularização fundiária realizada potencializou a inserção destas dentro da lógica turística do mercado imobiliário local, ao invés de promover o direito à cidade para a população local.

Com o impulso econômico da atividade portuária no território, e fortalecendo os arranjos de poder em torno da produção e da apropriação do espaço urbano, em 2013, sob o ânimo da estabilidade econômica nacional, uma incorporadora imobiliária local convidou o escritório coordenado pelo renomado arquiteto curitibano Jaime Lerner para propor um novo loteamento para uma área central da cidade. A área de intervenção, de propriedade privada, constitui-se como um vazio urbano e um grande remanescente florestado ainda preservado, devido à especulação imobiliária, em meio ao espaço urbano.

Denominado de Riviera Santa Maria, o referido projeto é descrito por seus idealizadores como um empreendimento que tem o intuito de gerar uma nova identidade para Itapoá, proporcionando a integração entre moradia, praia, esporte, natureza e cultura. Para tanto, os incorporadores destacaram o "momento" vivenciado na cidade: expansão econômica e urbana. Sob a conjugação desses fatores, o espaço urbano itapoaense passa pelo que Arantes (2013) denomina de image-making, ou seja, o que está em promoção é um produto inédito, a própria cidade, e que devidamente dotada de um plano estratégico pode gerar respostas competitivas aos olhos do mercado.

O lançamento do projeto, inovador para a cidade e para a região, teve o potencial de animar relações locais e regionais de caráter econômico, com uma forte valorização no preço do solo local. Entretanto, 7 anos após sua idealização suas obras ainda não se iniciaram, e isso faz com que se questionem as reais intenções de materialização do projeto, ou se só fora planejado para criar um imaginário urbano que revalorizasse Itapoá perante sua recente conjuntura socioeconômica. Em contrapartida, a demora na liberação de licenças ambientais, obtidas somente em março de 2020, aliada à recessão na economia nacional vivenciada a partir da metade da década de 2010, foram fatores determinantes para seu lento processo de implantação.

Entretanto, o que se evidencia com o lançamento desse projeto urbano é a tentativa, por parte do mercado imobiliário local, de se "reinventar". Nota-se que o setor imobiliário reorganizou sua produção pós-implantação portuária, destacando o convite de um renomado arquiteto e urbanista que pudesse, através do seu projeto, colocar a cidade no holofote nacional/ internacional. Outra ação foi a de renegar o modelo de ocupação urbana vigente na cidade, colocando-o como antigo e obsoleto, o que leva a um contrassenso, tendo em vista que se trata do modelo que fora implantado, nas décadas passadas, pelos mesmos agentes imobiliários que agora vendem um novo conceito de "habitar o litoral".

Nesse sentido, pode-se considerar que o protagonismo continua no perfil turístico, que somente se utiliza do espaço urbano local em função da balneabilidade do litoral, e que, segundo dados da Prefeitura Municipal de Itapoá (2016), tem uma população flutuante em torno de 200 mil veranistas durante os meses de alta temporada. Assim, a economia local é pautada no comércio e serviço, representando 75,62% do PIB municipal, sendo o restante subdivido em outras atividades econômicas, como a indústria (15,38%) e a agropecuária (7,7%).

A recente postura adotada pelo mercado imobiliário local está em consenso com o modelo de intervenção urbana dominante nas últimas décadas do século XX. Nesse modelo o conjunto de elementos necessários para garantir a manutenção do marketing urbano contemporâneo se configura pela construção de um novo skyline na cidade, pela implantação de edifícios contemporâneos projetados por arquitetos renomados, pela exacerbação dos atributos socioculturais e geográficos da localidade, como culinária e natureza local, aliado às intervenções de mobilidade, segurança, entre outros (Valença, 2016). Essas características são evidentes na proposta de Lerner para Itapoá, e evidenciam um cenário tendencial nas futuras produções do espaço urbano local.

Entretanto, embora o discurso seja de uma pujança econômica e de alta demanda habitacional, a cidade ainda se constitui, em grande parte, por vazios urbanos (figura 3). Os loteamentos massivamente aprovados na trajetória urbana do balneário, em alguns casos, em especial os mais distantes da praia, estão vazios. De tal modo, sua existência, enquanto parcelamento urbano, é marcada somente pela abertura das vias e pela distribuição de placas indicando a venda dos lotes em meio a uma grande área florestada, descumprindo as funções sociais do solo urbano. Esse cenário configura um retrato, em Itapoá, do efeito especulativo sobre a produção do espaço urbano litorâneo, e deixa claro que o processo imobiliário visto até hoje tende a continuar, com as mesmas características e/ou com outras roupagens, mas com o mesmo ideário do sobrelucro na produção do espaço urbano.

Fonte: Elaboração própria com base em imagem Google Earth (2019) e fotos de acervo dos autores.

Figura 3 Exemplificação da lógica da especulação imobiliária local. 

Do local ao nacional: correlações na dinâmica de produção do espaço urbano litorâneo brasileiro com base na trajetória de Itapoá, Santa Catarina

A partir do exposto, percebe-se que historicamente a produção do mercado imobiliário de Itapoá tem sido direcionada para a habitação destinada ao lazer e ao turismo de veraneio. A apropriação do espaço urbano litorâneo releva-se para poucos, ou seja, para quem pode assumir uma residência secundária e usufruir das benesses da orla marítima. Apesar do grande volume de loteamentos aprovados com a finalidade da construção de uma cidade-balneário, foi somente com a implantação da atividade portuária na década de 1990, e a consequente infraestruturação territorial, que a ocupação urbana, tanto para residentes como para veranistas, expandiu-se e se consolidou (figura 4).

Fonte: Elaboração própria com base em Ribeiro & Beloto (2019); Plano Diretor de Itapoá (2016).

Figura 4 Comparação entre o ritmo de aprovação dos parcelamentos com a efetiva ocupação do solo urbano, e as legislações e acontecimentos de âmbito nacional e local que engendraram a cadência desses movimentos. 

Desde sua origem, na década de 1950, até o final da década de 1970, registra-se uma série de loteamentos aprovados (51 loteamentos, representando 76% do total parcelado até hoje), impulsionados pelo cenário regional de exploração turística da costa marítima. Com a promulgação da Lei Federal n.° 6.766 em 1979, e a crise econômica enfrentada no cenário nacional ao longo da década de 1980, ocorre o arrefecimento do mercado imobiliário local. Por outro lado, o ritmo da ocupação do solo urbano manteve-se em crescimento constante, ao longo das décadas. Essa constância se deve à gradativa abertura dos loteamentos os quais, embora aprovados rapidamente, foram sendo realmente implementados à medida que se promovia a lenta infraestruturação local.

Em contrapartida, se em um primeiro momento o ritmo dos parcelamentos urbanos era superior ao ritmo da ocupação do solo urbano, este movimento se alterou a partir dos anos de 1990. Com a estabilização da economia nacional através da consolidação do Plano Real (1994), a emancipação política local, a instalação da atividade portuária e a consequente infraestruturação do território itapoaense, há uma crescente dinâmica de ocupação dos loteamentos aprovados em décadas passadas. Por outro lado, o número de novos parcelamentos urbanos estagnou-se entre os anos 2000 e 2010. Essa estagnação deve-se à consolidação de uma legislação urbana local mais ativa, se comparada à omissão legislativa das décadas iniciais, consubstanciada pelas diretrizes e instrumentos do Estatuto da Cidade na esfera nacional, que coibiu parcialmente a propagação dos modelos urbanísticos utilizados, historicamente, pelos agentes imobiliários.

Para Harvey (2006), a economia capitalista tem como premissa a necessidade de circulação de mercadorias. Sendo o solo urbano um produto, o mercado imobiliário inventa e reinventa o espaço urbano conforme seus anseios (Lefebvre, 1999). Para tanto, de modo espontâneo, mas principalmente induzido, as articulações da indústria civil geram escassez de espaços, valorizações e desvalorizações, de modo que façam o solo urbano, como mercadoria, circular e recircular na roda da economia. Em Itapoá, isso foi percebido recentemente, e o ponto de inflexão para (re) acelerar o ritmo da ocupação do solo urbano é através da reconfiguração do modelo de parcelamento do uso do solo, vigente, ou seja, abandonam-se os tradicionais loteamentos com a lenta venda de lotes unifamiliares situados em áreas com poucas infraestruturas, e direciona-se para grandes projetos urbanos, criando paisagens urbanas singulares, orquestradas por um marketing urbano e pela criação de "novas necessidades" para o público-alvo.

Portanto, no espaço urbano de Itapoá ocorrem constantes transformações, estabelecendo-se novas funções e configurações, a ponto de se perder sua coesão antes mesmo de seus gestores conseguirem estabelecer diretrizes norteadoras para seu desenvolvimento adequado. De qualquer modo, a produção imobiliária local é resultante de uma coalizão histórica entre os agentes privados e a administração pública. Essa aliança vai desde investimentos públicos na infraestruturação de loteamentos habitacionais de empresas privadas, evidenciado pelo caso do desvirtuamento da ZEIS - que deveria atuar como um instrumento urbanístico de promoção de direito à cidade e à moradia digna para a população de menor renda, mas que no fim parece subverter a lógica do mercado imobiliário-turístico - até ao incentivo às ações de corporações imobiliárias que desejam, sob o pretexto de fazer girar a roda da economia local, impor novos padrões, mais rentáveis ao mercado atual, de ocupação sobre o território.

O exemplo em estudo ilustra uma dinâmica de produção do espaço urbano semelhante à das demais cidades do litoral brasileiro. De norte a sul, os modelos de uso e ocupação das praias, na costa marítima nacional, assemelham-se ao ponto de nos confundir sobre a localização exata das imagens das cidades, substituindo particularidades territoriais através de uma intervenção massiva e padronizada do mercado imobiliário. Conforme enfatiza Macedo (1999), a urbanização na zona costeira brasileira tem sido a causadora de danos irreversíveis na dinâmica dos ecossistemas litorâneos, da mesma maneira que geram danos significativos na dimensão sociocultural das populações locais.

A produção imobiliária no litoral brasileiro tem sofrido influência direta e acelerada das transformações do cenário econômico nacional, com a estabilização da economia e a seguridade legislativa, principalmente a partir da década de 1990, o que permitiu investimentos por grande parte da população em segundas-residências destinadas ao usufruto sazonal, e que imprimiram transformações urbanas, ambientais e sociais significativas no espaço costeiro brasileiro. Assim, a trajetória da produção do espaço em Itapoá demonstra que o espaço litorâneo brasileiro se apresenta como condição, meio e produto para ser transformado, adaptado e ressignificado, com o objetivo de produzir espaços urbanos para atividades de lazer, turismo e de ordem logística portuária através da natureza especulativa do mercado imobiliário

Conclusão

As cidades são engendradas, em grande parte, com base na comercialização do solo urbano, considerando-o como um produto (Lefebvre, 1999). Obviamente, outras características do território como estruturas naturais, eixos rodoferroviários e grandes equipamentos urbano-regionais, como portos, aeroportos e shopping centers, potencializam e direcionam o desenho da expansão urbana nos territórios em que se inserem (Panerai, 2006). Estas estruturas, em conjunto com os arranjos produtivos do espaço urbano não geram somente impactos no quadro econômico, mas também no território envolvido, sendo capaz de modificá-lo significativamente, ao longo do tempo. Assim, o mercado imobiliário atua como um dos principais vetores de estruturação do espaço urbano, através de suas diretrizes para comercialização do solo urbano.

De fato, as dinâmicas do mercado imobiliário criam valorizações e obsolescências na produção do espaço urbano, e não são práticas recentes (Lefebvre, 1999; Harvey, 2006). Entretanto, o que se nota a partir do estudo aqui apresentado é que esses efeitos não estão restritos aos grandes centros urbanos, mas também aos pequenos municípios, desde que neles exista algum interesse pertinente aos agentes que os inventam, os reinventam, e que deles se beneficiam economicamente. É o caso dos núcleos urbanos da costa marítima brasileira, em que a praia se tornou uma "mercadoria" de atração nacional. Nestes, devido à ausência de uma efetiva legislação urbana, os agentes produtores possuem os instrumentos e o território adequado para uma corrida acelerada de parcelamentos especulativos.

No entanto, a formação desse desenho espacial é fruto de uma participação conjunta do Estado com o capital imobiliário. Através de coalizões com o Estado, formado por uma rede regulatória interconectada que varia da escala federal à estadual e municipal, o processo de produção do espaço urbano por esses agentes privados tem embasamento legal para protegê-los e fomentá-los. A estratégia utilizada vai além da simples comercialização de lotes urbanos, mas visa ao controle da organização territorial, através da centralização da informação e das decisões no processo produtivo em suas diferentes instâncias. O estudo aqui apresentado é um exemplo, em microescala, da liberalização econômico-territorial ocorrida por todo o Brasil, e de seu vínculo essencial com o Estado. Assim, os instrumentos presentes na legislação urbana muitas vezes são desvirtuados para o interesse de poucos, enquanto deveriam ser utilizados para o acesso igualitário à cidade pelos cidadãos que realmente a constroem.

Referencias

ARANTES, O.B.F. (2013). Uma estratégia fatal: a cultura nas novas gestões urbanas. Em Arantes, O.B.F, Vainer, C.B & Maricato, E (Eds), A cidade do pensamento único: desmanchando consensos (pp. 1174). Petrópolis: Editora Vozes. [ Links ]

CABRAL, E.B. (2011). Estudo geográfico do porto de São Francisco do Sul e do terminal de Itapoá -SC . Dissertação de mestrado em Geografia. Universidade Federal de Santa Catarina. [ Links ]

CAMPOS FILHO, C.M. (1992). Cidades brasileiras: seu controle ou o caos . São Paulo: Studio Nobel. [ Links ]

CAMPOS, M.M. (2004). Vazios operativos da cidade: Territórios interurbanos na Grande Vitória (ES). Tese de doutoramento em Comunicação e Semiótica. Pontifícia Católica de São Paulo. [ Links ]

CORBIN, A. (1989). Território do Vazio: A praia e o imaginário ocidental . São Paulo: Companhia das Letras. [ Links ]

CORRÊA, R.L. (2004). O espaço urbano . São Paulo: Ática. [ Links ]

GOMES, A.M. (2013). O porto de Itapoá como instrumento de desenvolvimento do município de Itapoá (SC) . Dissertação de mestrado em Desenvolvimento Regional. Universidade Regional de Blumenau. [ Links ]

HARVEY, D. (2006). A produção capitalista do Espaço . São Paulo: Annablume. [ Links ]

ITAPOÁ, P.M. Plano Diretor do Município de Itapoá 2016 . Recuperado 05 de junho de 2019 de: Recuperado 05 de junho de 2019 de: https://www.itapoa.sc.gov.br/Links ]

JUNIOR, L., & MARTINS, R. (2019). Evolução sócio espacial do município de Itapoá- SC. Geosul, 34(70), 220-238. https://doi.org/10.5007/2177-5230.2019v34n70p220Links ]

LEFEBVRE, H. (1999). A revolução urbana . Belo Horizonte: Editora UFMG. [ Links ]

LEFEBVRE, H. (2001). O direito à cidade . São Paulo: Centauro. [ Links ]

LOGAN, J.R & MOLOTOCH, H. (1987) Urban Fortunes: The political economy of place. Londres: University of California Press. [ Links ]

MACEDO, S. (1998). Paisagem, modelos urbanísticos e as áreas habitacionais de primeira e segunda residência. Paisagem E Ambiente, (11), 131-202. https://doi.org/10.11606/issn.2359-5361.v0i11p131-202Links ]

MACEDO, S. (1999). Litoral Urbanização Ambientes e seus Ecossistemas Frágeis. Paisagem E Ambiente, (12), 151-232. https://doi.org/10.11606/issn.2359-5361.v0i12p151-232Links ]

MARICATO, E.T. (2005). Metrópole na periferia do capitalismo: ilegalidade, desigualdade e violência. São Paulo: Hucitec. [ Links ]

PAESE, V.L. (2012). Itapoá Garuva: Memórias Históricas de Itapoá e Garuva. Curitiba [ Links ]

PANERAI, P. (2006). Análise urbana (1 ed., Vol. 1). Brasília: EdUnB. [ Links ]

PEREIRA, R.M.F.A. (2011). Expansão urbana e turismo no litoral de Santa Catarina: o caso das microrregiões de Itajaí e Florianópolis. Interações (Campo Grande), 12(1), 101-111. https://doi.org/10.1590/S1518-70122011000100010Links ]

RIBEIRO, R.R. & BELOTO, G.E. (2019). A configuração da forma urbana em novas cidades portuárias brasileiras. XXIII Congresso Arquisur: a produção da cidade contemporânea no Cone Sul: desafios e perspectivas da Arquitetura e do Urbanismo. Anais [...]. Belo Horizonte: UFMG. [ Links ]

RIVIERA SANTA MARIA. Uma proposta de desenvolvimento urbano que valoriza o homem e o meio ambiente . Recuperado 27 de outubro de 2019 em: http://rivierasantamaria.com.br/riviera-santa-maria/Links ]

SHIMBO, L. (2010). Habitação Social, Habitação de Mercado: a confluência entre Estado, empresas construtoras e capital financeiro . Tese de doutoramento. Escola de Engenharia de São Carlos. [ Links ]

TULIK, O. (2001). Turismo e meios de hospedagem: casas de temporada . São Paulo: Roca. [ Links ]

VALENÇA, M. M. (2016). Arquitetura de grife na cidade contemporânea. Tudo igual, mas diferente. Rio de Janeiro, Mauad. [ Links ]

VILLAÇA, F. (2012). Reflexões sobre as cidades brasileiras . São Paulo: Studio Nobel . [ Links ]

[1]Este artigo é resultado da disciplina "Cidade e habitação de interesse social no Brasil" ofertado no Programa Associado UEM/UEL de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo e foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

[2]No Brasil, utiliza-se a definição do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que classifica como: pequeno porte até 100 mil habitantes; médio porte de 100 mil até 500 mil; e grande porte mais de 500 mil habitantes.

Cómo citar este artículo: Rossetto Ribeiro, R. y Fleury e Silva, B. (2021). Coalizões público-privadas na produção do espaço urbano e a dinâmica do mercado imobiliário: uma análise a partir de uma cidade pequena do litoral brasileiro. Bitácora Urbano Territorial, 31(III): 123-138. https://doi.org/10.15446/bitacora.v31n3.87377

Autora

Rafael Rossetto Ribeiro Arquiteto e Urbanista pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mestrando em Arquitetura e Urbanismo no Programa Associado UEM/UEL de Pós-Graduação (2019-2021). Foi bolsista vinculado a CAPES no programa de graduação sanduíche Ciência Sem Fronteiras na Technology University of Dublin, na Irlanda. Membro do Laboratório de Urbanismo Regional (LURe) onde desenvolve pesquisas relacionando a forma das cidades brasileiras com equipamentos urbano-regionais, com ênfase em cidades portuárias.

Beatriz Fleury e Silva Professora Adjunta do curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Maringá - UEM. Membro do Programa Associado de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo - PPU UEM/UEL. Doutora em Habitat pela FAU/USP (2015) e Mestre em Engenharia Urbana pela UFSCar (2000). Coordenadora acadêmica do curso de Arquitetura e Urbanismo da UEM na gestão 2007/2008 , 2009/2010 e 2015/2018. Membro do Conselho Municipal de Planejamento e Gestão Territorial de Maringá gestão 2007-2009 e atualmente gestão 2018/2020. Conselheira Consultiva da Ouvidoria Externa da Defensoria Pública do Estado do Paraná. Pesquisadora do INCT/Observatório das Metrópoles - Núcleo Região Metropolitana de Maringá de 2006 a 2018. Líder do grupo de pesquisa LAPHA - Laboratório de Pesquisa em Habitação e Assentamentos Humanos (UEM) desde 2011. Coordenadora do núcleo Maringá do BRCidades . Possui experiência na área de planejamento urbano e regional, atuando principalmente nos seguintes temas: política urbana, política habitacional e mercado imobiliário.

Recebido: 18 de Maio de 2020; Aceito: 24 de Junho de 2020

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons