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Bitácora Urbano Territorial

Print version ISSN 0124-7913On-line version ISSN 2027-145X

Bitácora Urbano Territorial vol.32 no.1 Bogotá Jan./Apr. 2022  Epub July 11, 2022

https://doi.org/10.15446/bitacora.v32n1.87530 

Artículos

Invisibilidade social em aterro metropolitano. O caso de Jardim Gramacho (RJ), Brasil.[1]

Invisibilidad social y espacial en vertedero metropolitano. El caso de Jardim Gramacho (RJ), Brasil.

Social and spatial invisibility in metropolitan landfill. The case of Jardim Gramacho (RJ), Brazil.

Invisibilité sociale et spatiale dans la décharge métropolitaine. Le cas de Jardim Gramacho (RJ), Brésil.

Yasmin Anefalos de Oliveira1 
http://orcid.org/0000-0002-9870-5169

Denise B. Pinheiro Machado2 
http://orcid.org/0000-0002-2326-6202

1 Universidade de São Paulo yasmin.anefalos@gmail.com

2 PROURB-FAU/UFRJ denisepm10@gmail.com


Resumo

Este artigo retrata a invisibilidade social e espacial no caso do Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho (AMJG), localizado em Duque de Caxias (RJ), Brasil. Tem como objetivo relacionar os agentes responsáveis pelo processo de invisibilidade social e espacial do AMJG. Especificamente, pretende-se analisar os efeitos de seu funcionamento no território. A partir de análises empíricas e documentais, foram identificadas injustiças ambientais e 'negligências urbanísticas' por parte de agentes públicos, privados e do mercado imobiliário em todo o processo de implantação, funcionamento e encerramento do AMJG. Mesmo com a repercussão internacional deste caso extremo, constatou-se que não foram implementadas soluções efetivas para minimizar aspectos de exclusão social, pobreza e contaminação até hoje. Desta forma, as contribuições deste artigo evidenciam a omissão dos agentes responsáveis pela atual situação de degradação ambiental, precariedade e insalubridade, e alertam sobre a necessidade de desenvolver planos eficazes para a recuperação adequada da área.

Palavras-chave: degradação ambiental; exclusão social; urbanização; resíduos

Resumen

Este artículo retrata la invisibilidad social y espacial en el caso del Vertedero Metropolitano de Jardim Gramacho (VMJG), ubicado en Duque de Caxias (RJ), Brasil. Su objetivo es relacionar los agentes responsables por el proceso de invisibilidad social y espacial del VMJG. Especificamente, se pretende analizar los efectos de su funcionamiento en el territorio. Con base en análisis empíricos y documentales, fueron identificadas injusticias ambientales y 'negligencias urbanas' de agentes públicos, privados y del mercado inmobiliario en todo el proceso de implementación, operación y cierre del VMJG. Aún con la repercusión internacional de este caso extremo, se constató que no han sido implementadas soluciones efectivas para minimizar aspectos de exclusión social, pobreza y contaminación hasta hoy. De esta forma, las contribuciones de este artículo evidencian la omisión de los agentes responsables por la actual situación de degradación ambiental, precariedad e insalubridad, y advierten sobre la necesidad de desarrollar planes eficazes para la recuperación adecuada del área.

Palabras clave: deterioro ambiental; exclusión social; urbanización; desperdicio

Abstract

This article portrays the social and spatial invisibility in the case of the Metropolitan Landfill of Jardim Gramacho (MLJG), located in Duque de Caxias (RJ), Brazil. Its objective is to relate the responsible agents for MLJG's social and spatial invisibility process. Specifically, it aims to analyze the effects of its operation on the territory. Based on empirical and documentary analysis, environmental injustices and 'urban negligence' were identified by public, private and real estate agents in the entire process of implementation, operation and closure of MLJG. Even with the international repercussion of this extreme case, it was observed that effective solutions to minimize aspects of social exclusion, poverty and contamination have not been implemented until today. Therefore, the contributions of this article demonstrate the omission of the responsible agents for the current situation of environmental degradation, precarity and unhealthy conditions, and warn about the need to develop effective plans for the appropriate reclamation of the area.

Keywords: environmental degradation; social exclusion; urbanization; wastes

Résumé

Cet article dépeint l'invisibilité sociale et spatiale sur le cas de la Décharge Métropolitaine de Jardim Gramacho (DMJG), situé à Duque de Caxias (RJ), Brésil. Il a pour objectif de relier les acteurs responsables du processus d'invisibilité sociale et spatiale de la DMJG. Spécifiquement, il s'agit d'analyser les effets de son fonctionnement sur le territoire. À partir d'analyses empiriques et documentaires, des injustices environnementales et 'négligences urbanistiques' ont été identifiées par des acteurs publics, privés et du marché immobilier dans l'ensemble du processus de déploiement, de fonctionnement et de fermeture de la DMJG. Même avec la répercussion internationale de ce cas extrême, il a été constaté que des solutions efficaces pour minimiser les aspects de l'exclusion sociale, de la pauvreté et de la contamination à ce jour-là n'ont pas été mises en oeuvre. Ainsi, les contributions de cet article montrent l'omission des acteurs responsables de la situation actuelle de dégradation de l'environnement, de précarité et d'insalubrité, et avertissent la nécessité d'élaborer des plans efficaces pour la réhabilitation adéquate de la zone.

Mots-clés: dégradation de l'environnement; exclusion sociale; urbanisation; déchet

A desigualdade entre as condições de destinação final de resíduos sólidos entre países centrais e periféricos se torna evidente ao comparar o volume acomodado em lixões, os quais são considerados ambientalmente inadequados.

Introdução

A produção de resíduos sólidos se intensifica com a urbanização, o consumo excessivo de bens materiais e o aumento populacional. Com a destinação dos resíduos sólidos para áreas cada vez mais distantes dos grandes centros urbanos, em defesa do progresso e da salubridade, houve também a dissociação entre o descarte final e o consumo (Strasser, 1999). Esse distanciamento cria a invisibilidade do processo de disposição dos resíduos sólidos, com consequências para as relações sociais de trabalhadores e moradores, bem como para a interação com o restante da cidade e o meio ambiente.

A relevância desse tema em escala nacional e internacional mostra que uma solução efetiva para o tratamento dos resíduos sólidos se faz necessária, no intuito de melhorar a situação socioeconómica da população local e de recuperar o ambiente degradado. No entanto, seu tratamento se difere entre países centrais e periféricos, produzindo condições sociais e ambientais díspares nos locais de destinação final de resíduos sólidos. Essa diferenciação ocorre, principalmente, devido às profundas desigualdades socioeconómicas, que limitam a institucionalização e o cumprimento de políticas efetivas de proteção ambiental, além de permitir o recebimento de riscos ambientais de outros países (Rocha, 2003).

A desigualdade entre as condições de destinação final de resíduos sólidos entre países centrais e periféricos se torna evidente ao comparar o volume acomodado em lixões, os quais são considerados ambientalmente inadequados. Em países da África, Ásia e América Latina, a porcentagem de resíduos sólidos destinados a lixões varia entre 18-75% do total produzido em cada localidade, enquanto em países da Europa e América do Norte, esse intervalo é de 0-25,6% (Kaza et al., 2018).

Este trabalho analisa um caso extremo de abandono e contaminação ambiental: o antigo Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho (AMJG), localizado em Duque de Caxias, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), Brasil. O objetivo deste artigo é relacionar os agentes responsáveis pelo processo de invisibilidade social e espacial do AMJG. Especificamente, pretende-se analisar os efeitos de seu funcionamento no território.

Com base na abordagem empírica e documental, esta pesquisa investiga a instalação, funcionamento, manutenção e encerramento do AMJG ao longo do tempo, a partir da evolução urbana da região. Para esta construção teórica, foram utilizadas fontes bibliográficas, documentos públicos e visitas in loco.

O fenómeno urbano se constitui pela sobreposição de processos em um dado território, através de elementos mutáveis e dinâmicos. Esses elementos caracterizam a ação dos agentes sociais, os quais representam indivíduos, grupos, organizações e instituições. Logo, o espaço se transforma a partir de negociações e reivindicações desses agentes sociais, resultando em diferentes formas de controle e de apropriação do espaço. Em contraposição, as perdas no controle e na apropriação do espaço representam falhas nas negociações para a elaboração de um plano exequível, criando um descolamento entre as ações dos agentes sociais e a capacidade de transformação do espaço (Habraken, 2000).

O início do funcionamento do AMJG, na década de 70, foi marcado por esforços de planejamento e investimentos no tratamento correto de resíduos sólidos. No entanto, a implantação inadequada do aterro metropolitano em região de mangue e sua subsequente manutenção, comprometida por inconsistências no controle e na gestão dos resíduos sólidos, provocaram um processo contínuo de degradação ambiental. A omissão e negligência dos agentes responsáveis pelo acúmulo de contaminantes ao longo dos anos resultou em sua desativação em 2012 e, ainda assim, os reflexos desse descaso são percebidos até hoje pela degradação ambiental e a exclusão social que atingem a área.

A Expansão Metropolitana do Rio de Janeiro e suas Repercussões Sociais e Ambientais

A expansão urbana da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ) ocorreu em função, primordialmente, dos vetores rodoviário e ferroviário, que conduziram à ocupação de novas localidades em direção à Baixada Fluminense, durante as décadas de 1940 e 1950. Com base nesses vetores de transporte, áreas cada vez mais afastadas dos grandes centros urbanos foram anexadas, devido ao baixo custo dos terrenos e aos incentivos fiscais do Estado. As indústrias foram pioneiras na abertura dessas fronteiras, sendo direcionadas de forma tentacular, a partir do centro da metrópole - o município do Rio de Janeiro - para os demais municípios da RMRJ. Associadas à instalação de indústrias, as habitações também seguiram a ocupação dessas novas áreas de expansão. Entretanto, situaram-se distantes dos vetores de indução, almejando lotes mais baratos e, portanto, áreas menos valorizadas (Abreu, 1987).

Essa sequência de ações caracteriza o fenómeno de 'periferização', comumente verificado no contexto brasileiro e latino-americano como consequência de ações diretas do Estado. Esse fenómeno provoca, de forma simultânea, o distanciamento de novas localidades do centro metropolitano e o entrave ao consumo de bens e serviços. Por consequência, segregam-se social e espacialmente as classes mais baixas, em detrimento da viabilização do capital imobiliário nos centros urbanos e da influência das classes dominantes no processo decisório público, de acordo com seus próprios interesses. Historicamente, a urbanização do Rio de Janeiro é marcada por interesses do capital imobiliário, empreiteiro e concessionário de serviços cole-tivos (Corrêa, 1989; Ribeiro, 2015). Abreu (1987) descreve esse processo de estratificação espacial a seguir:

A imagem resultante é de supercongestionamento no núcleo (onde, em certas áreas, os índices de uso do solo e de ocupação do espaço atingem os limites do suportável) e progressiva deterioração das periferias, abrigando diferentes padrões de atividades e de usos do espaço informais, tanto mais precários quanto mais se afastam do núcleo, até chegar a variações sutis em cima do nada urbanístico (ausência de redes de infraestrutura, equipamentos básicos, de transporte etc.) (p.18).

A expansão tentacular da metrópole se desdobrou tanto no espraiamento da urbanização, para além de seus limites territoriais, quanto na constituição de novos espaços dependentes. Submetidas às especificidades apresentadas em cada área periférica, muitos espaços tiveram sua ocupação sem plano urbanístico e impulsionada pela implantação de um projeto de infraestrutura que não estabelece relação com o contexto preexistente. Deste modo, o espaço se constitui com pouca ou nenhuma coesão formal e de forma fragmentada, o que amplia as rupturas urbanas. Assim, o próprio espaço atua como mecanismo de segregação, excluindo as classes de baixa renda das metrópoles e permitindo que, com elas, se aloquem os riscos ambientais (Farias, 2012; Villaça, 2001).

Segundo Abreu (1987), a 'periferia intermediária', área pela qual a metrópole se expandiu, obteve as maiores taxas de crescimento populacional na RMRJ entre as décadas de 1960 e 1970. Ela cresceu em função de fluxos migratórios provenientes do núcleo ou da 'periferia imediata' e pelo deslocamento de pessoas de fora da região metropolitana, uma vez que detém os terrenos mais baratos do mercado metropolitano. Inserido nessa categoria, destaca-se o subgrupo 'subúrbio periférico', que inclui os municípios de Duque de Caxias, Nilópolis, Nova Iguaçu e São João de Meriti. Esses municípios são constituídos por núcleos que nasceram como subúrbios, cresceram inicialmente a partir do vetor ferroviário - e, posteriormente, do vetor rodoviário - e não atingiram uma condição de cidade condizente com o seu número de habitantes, uma vez que ainda estão submetidos à organização e segregação da metrópole (Villaça, 2001).

A intensificação dos fluxos migratórios para estes municípios ocorreu, principalmente, em função da implantação da rodovia Washington Luís (Rio-Petró-polis), obra realizada em 1928[2]. Além de estabelecer conexão direta entre a Baixada Fluminense e a metrópole, a rodovia possibilitou novos investimentos do Estado, visando a expansão industrial. Os terrenos no entorno da rodovia foram destinados aos órgãos governamentais e não podiam ser loteados, forçando as novas ocupações para o interior do município. Desta forma, diversos conjuntos habitacionais foram implantados, destinados à moradia popular (Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade [IETS], 2011; Rodrigues, 2019).

Inerente à ocupação da 'periferia intermediária', Duque de Caxias demonstrou elevado desenvolvimento urbano entre os municípios do subúrbio periférico. Em função do fácil acesso à metrópole e da proximidade com a Baía de Guanabara, que já representava uma área de risco ambiental[3], dispunha de diversos terrenos de baixo custo. Obteve, portanto, benefício em aplicações de investimentos e novos empreendimentos, tornando-se destino constante de luxos migratórios, indústrias e serviços.

Com o baixo enfoque para as questões ambientais durante a década de 70, no governo militar, o município se beneficiou de seu desempenho no contexto metropolitano para viabilizar um dos maiores empreendimentos da região, atraindo empregos, transportes e resíduos sólidos urbanos: o Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho. Apesar do destaque metropolitano, esta decisão destinou um risco ambiental desproporcional para uma área periférica e marginalizada de baixa renda, sem ao menos consultar a população local, o que, segundo Acselrad et al. (2004), se configura como um caso de injustiça ambiental.

O Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho

Planejamento do AMJG

Em 1975, em meio à expansão urbana da RMRJ, foi criada a Fundação para o Desenvolvimento da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (FUNDREM), com o objetivo de viabilizar o desenvolvimento metropolitano integrado. Um dos principais projetos para esta época foi a criação de um aterro metropolitano. À vista disso, coube à FUNDREM o planejamento para a construção do aterro metropolitano, o que incluiu a coordenação entre os agentes responsáveis por sua implantação e manutenção (Gondim, 1991).

O aterro metropolitano pretendia servir à disposição de resíduos sólidos dos municípios do Rio de Janeiro, Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Nilópolis e São João de Meriti, futuramente incluindo Queimados e Belford Roxo, como constata-se nas Figuras 1 e 2. A administração do aterro foi designada à Companhia Municipal de Limpeza do Rio de Janeiro (COMLURB), associada à Prefeitura do Rio de Janeiro, devido à sua capacidade técnica e competência institucional, no que tange a gestão de resíduos sólidos. Era de competência da COMLURB conduzir as atividades necessárias para seu funcionamento adequado, o que incluía a distribuição, controle, aterra-mento e tratamento dos resíduos sólidos. Para isso, os municípios envolvidos na disposição de resíduos sólidos deveriam realizar um pagamento à companhia, correspondente a esses serviços (IETS, 2011).

Fonte: Elaboração própria, com base em mapas da Câmara Metropolitana do Rio de Janeiro e do Google Earth.

Figura 1 Localização do AMJG com os fluxos de resíduos sólidos advindos dos municípios da RMRJ. 

Fonte: Rolnik (2012).

Figura 2 Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho.  

Para a escolha do terreno, foram levados em consideração critérios económicos e logísticos. O terreno almejado deveria ter o menor custo possível ou ser público -o que facilitaria a aquisição da terra- e possuir grande metragem quadrada. Para auxiliar o transporte de resíduos sólidos, o terreno deveria se localizar num ponto equidistante entre os municípios inicialmente envolvidos no acordo[4]. Além disso, a proximidade à uma via de escoamento rápido, fácil acesso e abrangência metropolitana também foi considerada como ponto relevante para esta escolha.

A implantação do aterro metropolitano foi conduzida, também, pela ação do mercado imobiliário. A valorização e especulação imobiliária de terrenos na metrópole, influenciadas pelas classes dominantes, afastaram os riscos ambientais das elites económicas, destinando-os para áreas menos valorizadas e de ocupação de baixa renda. Segundo Gould (2004), a distribuição de poder político e de locação residencial estão diretamente relacionadas, e têm como base, a classe social da população. O poder é, portanto, espacialmente distribuído, como as injustiças ambientais. Elas são contextualizadas no Brasil por Acselrad et al. (2004), inclusive, como uma forma de espacialização das desigualdades sociais:

As gigantescas injustiças sociais brasileiras encobrem e naturalizam um conjunto de situações caracterizadas pela desigual distribuição de poder sobre a base material da vida social e do desenvolvimento. A injustiça e a discriminação, portanto, aparecem na apropriação elitista do território e dos recursos naturais, na concentração dos benefícios usufruídos do meio ambiente e na exposição desigual da população à poluição e aos custos ambientais do desenvolvimento (p. 10).

A escolha da localização do aterro metropolitano foi, portanto, reflexo desta lógica de distanciamento da metrópole e consequência direta da expansão da 'periferia intermediária'. O terreno escolhido cumpria todos os critérios anteriormente elencados. Era propriedade da União e localizava-se próximo ao km 4.5 da Rodovia Washington Luís, no bairro de Jardim Gramacho[5] do município de Duque de Caxias e às margens da Baía de Guanabara, como pode ser observado na Figura 3.

Fonte: Elaboração própria, com base em mapa do Google Earth de 2005 e dados do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Económicas (IBASE, 2005).

Figura 3 Localização do aterro metropolitano. 

No entanto, a proximidade com a Baía de Guanabara e corpos hídricos e as frágeis condições do solo foram desconsiderados nesta tomada de decisão. Segundo o relatório técnico da Alta Geotecnia Ambiental (2018), essa área de mangue, apesar de ter solo argiloso, possui um coeficiente de permeabilidade baixo, limitando a infiltração de contaminantes no terreno. Entretanto, as atividades de disposição de resíduos sólidos não se limitavam à possibilidade de contaminação do solo, atingindo, também, a fauna e flora do manguezal, o que denota a incompatibilidade deste empreendimento com o sítio físico escolhido pelos municípios envolvidos no acordo e pela COMLURB. Representa, portanto, uma forma de 'negligência urbanística', o que, segundo Barandier (2015), "se situa entre a insensibilidade e a indiferença em relação ao espaço urbano, à cidade e ao processo de urbanização" (p. 12).

No fim de 1975, o terreno foi cedido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), em função da solicitação de uso da terra pela COMLURB. A Coordenadoria Regional Leste Meridional viabilizou esta transação, determinando a ocupação pela COMLURB, com a finalidade de instalar um aterro sanitário metropolitano para receber os resíduos sólidos do Rio de Janeiro e da Baixada Fluminense (Bastos, 2008).

Dentre as opções viáveis de disposição de resíduos sólidos, o aterro sanitário foi indicado como a alternativa mais segura por permitir o confinamento controlado dos resíduos depositados e apresentar riscos reduzidos de poluição e contaminação ambiental. O projeto de execução foi concebido por meio de técnicas de engenharia específicas e seguiu as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT, 1992): o solo foi preparado a partir de um processo de impermeabilização antes do funcionamento do aterro; sistemas de drenagem de águas superficiais, de chorume e de gás foram instalados; e foi proposto o tratamento do chorume e de resíduos sólidos durante seu funcionamento, para que não acumulassem ao longo do tempo. Entretanto, essas medidas não impediam completamente o extravasamento de chorume e escorregamento de resíduos sólidos para o entorno e os corpos hídricos adjacentes, indicando falhas na execução do aterro sanitário (Alta Geotecnia Ambiental, 2018).

Funcionamento do AMJG

O Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho (AMJG) iniciou seu funcionamento entre 1976 e 1978[6] e, na época, já era considerado o maior da América Latina, ocupando 1.3 milhão de m2. Sua inserção no bairro de Jardim Gramacho foi vista de forma positiva pela população local, por representar um centro económico para a região. As atividades de catação e comercialização de materiais recicláveis, desempenhadas no AMJG, atraíram diversos trabalhadores da região e da Baixada Fluminense. Em função da presença desses catadores, o bairro passou a receber maior contingente de moradores e consumidores. Consequentemente, o setor de comércio e serviços se desenvolveu para atender à essa população crescente (IBASE, 2005; IETS, 2011).

No entanto, a inauguração coincidiu com uma grave crise económica, enfrentada pelo país entre as décadas de 1970 e 1980. Nesse cenário de déficit orçamentário, a COMLURB e os municípios responsáveis pelo despejo de lixo no AMJG, os quais eram, também, encarregados pelos gastos de gestão e manutenção do mesmo, não dispuseram recursos necessários para seu funcionamento adequado. A falta de manutenção, corpo técnico e manejo efetivo dos resíduos sólidos conduziram rapidamente o AMJG à deterioração.

Sem a manutenção regular da COMLURB, o trabalho dos catadores de materiais recicláveis, o qual surgiu com o funcionamento do AMJG, foi essencial para a redução do volume de resíduos e a minimização da contaminação. Eles atuavam no garimpo de materiais recicláveis nas áreas de vazamento de resíduos sólidos, separando-os para serem vendidos nos depósitos. Instalados dentro do aterro, os depósitos coletavam os reciclados que, posteriormente, seriam vendidos como matéria-prima para indústrias. Muitos desses catadores atuavam de forma autónoma, em situações precárias de trabalho - sem infraestrutura adequada para realizar as atividades de catação e separação dos materiais recicláveis (Bastos, 2008).

Na época, não foi possível determinar o nível de contaminação do solo, nem sua abrangência. Os estudos de impacto ambiental ainda eram pouco difundidos no Brasil e de pouco interesse do governo vigente, e por isso, não haviam se tornado exigências legais para o monitoramento da contaminação em aterros. Entretanto, sabia-se que, sem o tratamento de chorume e resíduos sólidos, os demais sistemas de drenagem e o próprio solo ficariam comprometidos. De acordo com o diagnóstico socioeconómico de Jardim Grama-cho, produzido posteriormente pelo Instituto de Estudos do Trabalho e da Sociedade (IETS, 2011), identifi-cou-se que a poluição atingia não somente o solo, que já indicava rupturas por não ter seguido o recobrimen-to contínuo dos resíduos sólidos, mas também os corpos hídricos. O chorume produzido alcançava os rios adjacentes, como o Rio Iguaçu e Sarapuí, bem como a Baía de Guanabara, trazendo consequências devastadoras para a flora e fauna do manguezal.

Apesar de ter sido inicialmente implantado como aterro sanitário, seguindo as normativas da ABNT (1992), a irregularidade na manutenção e no controle de contaminantes prejudicaram o funcionamento dos sistemas de drenagem e danificaram a impermeabilização do solo. Segundo o Manual de Gerenciamento Integrado (Compromisso Empresarial para Reciclagem [CEMPRE], 2018), o lixão representa a forma menos recomendável de disposição de resíduos sólidos, uma vez que não há nenhum controle do tipo de resíduos depositados ou tratamento dos mesmos, causando múltiplos danos ao meio ambiente e à saúde pública.

Sendo assim, conclui-se que o AMJG funcionou como lixão desde sua inauguração. A omissão da COMLURB e dos municípios responsáveis pelo despejo de resíduos sólidos no AMJG resultaram na falta de manutenção, descumprindo o acordo que havia sido firmado entre eles e divergindo das normas téc-nicas estabelecidas para o correto funcionamento do aterro metropolitano.

Mudanças nas dinâmicas do AMJG

A questão ambiental passou a obter destaque em âmbito mundial desde 1972, com a Conferência das Nações Unidas de Estocolmo. O ápice das iniciativas em prol do meio ambiente ocorreu na década de 90[7], atentando-se às diversas práticas prejudiciais, decorrentes de atividades humanas de exploração e descaso com a natureza (Pott e Estrela, 2017; Rocha, 2003).

Desde o início dos problemas de contaminação do AMJG, na década de 80, a degradação ambiental já vinha, paulatinamente, ganhando visibilidade no cenário nacional. Em meio à intensificação das discussões de conscientização ambiental e, principalmente, com a realização da ECO-92, em 1992, essa problemática ganhou outra dimensão. Como consequência direta desta conferência, o Ministério Público demandou ações imediatas de remediação por parte dos agentes responsáveis. Assim, a COMLURB e os municípios envolvidos no gerenciamento do AMJG foram pressionados a investir em iniciativas que reduzissem os danos ambientais que vinham, negligentemente, causando àquele ecossistema (Bastos, 2008; IETS, 2011).

Em acordo com as exigências legais, o AMJG passou a ser recuperado, a partir de 1996, sendo que as despesas e as responsabilidades operacionais foram divididas com diferentes empresas privadas ao longo dos anos, por meio de acordos de licitação. Ações de reme-diação da contaminação foram implementadas - tais como a melhoria dos sistemas de drenagem e coleta de chorume, de captação de gases, a conformação dos taludes, a cobertura dos resíduos sólidos e a recuperação do manguezal -, em conjunto com o contínuo trabalho dos catadores. Além das medidas de recuperação do aterro metropolitano, foram construídos equipamentos públicos e implementados programas sociais, a fim de melhorar as condições socioambientais do bairro (Alta Geotecnia Ambiental, 2018; IETS, 2011).

Desta forma, transformou-se em 'aterro controlado', que consiste em uma forma de acomodação de resíduos sólidos, em camadas intercaladas com terra.

O recobrimento permite a contenção dos resíduos, ainda que não haja o tratamento adequado do chorume e do gás gerado ou a impermeabilização do solo. Embora represente uma solução menos prejudicial ao meio ambiente que o lixão, continua suscetível a novas contaminações, a depender da manutenção regular e do confinamento dos resíduos sólidos durante as atividades de disposição (CEMPRE, 2018).

Essa transformação foi possível devido à associação de três fatores que permitiram o controle e a reestruturação do AMJG. Segundo Habraken (2000), são mecanismos que desempenham diferentes níveis de controle no ambiente: ordem física, territorial e cultural. A primeira se expressa através do controle pela forma, ou seja, pela organização física do aterro metropolitano, refletindo em mudanças práticas de recuperação do solo, recobrimento dos resíduos sólidos e instalação de galpões destinados à separação de materiais recicláveis. Foram também implantados sistemas de drenagem, tratamento de águas pluviais e chorume e coleta e queima de biogás.

A segunda corresponde ao controle do espaço, isto é, a inclusão ou exclusão de quem pertence ao espaço, determinando quem pode ou não atuar nele. Esta se-leção foi feita a partir da fiscalização de caminhões e catadores que acessavam o local. Isso permitiu a proibição do trabalho de catadores ilegais ou não cadastrados e a fiscalização da origem e tipo dos resíduos.

Por fim, a terceira é a representação dos agentes sociais. Por um lado, fortaleceram-se as empresas concessionárias, que contribuíram para a reorganização das dinâmicas internas. Por outro lado, os catadores foram beneficiados com melhores condições para exercer as atividades de catação e se organizar como categoria, com a criação da cooperativa Coopergra-macho em 1996 (IBASE, 2005). Logo, foi possível ampliar a vida útil do AMJG em até 10 anos.

Encerramento do AMJG

Apesar dessas mudanças, o AMJG manteve-se foco de diversas pressões externas relacionadas à questão ambiental. Embora algumas medidas de remediação tenham surtido efeito, a contaminação já demonstrava níveis profundamente nocivos ao ambiente e à saúde, e que somente reduziria quando não se acumulassem mais resíduos sólidos no terreno. A partir de 2004, a COMLURB e a Prefeitura do Rio de Janeiro iniciaram tentativas de desativação do aterro metropolitano, enquanto buscavam outro local oportuno para a disposição de resíduos sólidos. A Prefeitura de Duque de Caxias partilhou do mesmo objetivo, com o intuito de retirar sua responsabilidade pelo vazamento indevido de resíduos no local. Como forma de demonstrar sua insatisfação, a Prefeitura de Duque de Caxias fechou o AMJG temporariamente, sem sequer consultar os catadores ou os demais gestores (IETS, 2011).

Em meio às disputas políticas e administrativas do AMJG e na iminência de seu fechamento, em face do aumento do número de catadores[8], a cooperativa de catadores precisou se fortalecer. Ainda em 2004, foi criada a Associação dos Catadores do Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho (ACAMJG), com o propósito de garantir direitos trabalhistas aos catadores caso o AMJG encerrasse suas atividades, facilitar projetos comunitários, lutar por melhorias na qualidade de vida e de trabalho e defender a coleta seletiva no município (IBASE, 2005).

Com o objetivo de avaliar as condições de vida da população, bem como identificar seus anseios e desejos, algumas instituições deram início a estudos de diagnóstico social. Entre elas, o relatório do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Económicas (IBA-SE, 2005) apontou alguns problemas relacionados ao AMJG que afetavam os moradores do bairro como poeira, sujeira, mau cheiro, barulho, atividades de ca-tação realizadas por menores de idade, vazadouros clandestinos, violência, vetores de doenças, falta de saneamento, lazer e transporte público.

Entre tantas carências e adversidades, a principal preocupação foi a falta de opção de geração de renda e trabalho quando as atividades do AMJG fossem encerradas, dado que grande parte da população do bairro - entre catadores e comerciantes - obtinha sua renda mensal por meio das atividades desenvolvidas em torno desta dinâmica. Durante seu funcionamento, chegou a ter quinze mil trabalhadores atuando numa rede de serviços e comércio que atendia à população, além das atividades de catação, separação e venda de resíduos. Com isso, ressalta-se a importância do aterro metropolitano, tanto para os moradores quanto para os trabalhadores.

A partir de 2011, discussões relacionadas à Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), ocorrida em junho de 2012, corroboradas pelas novas exigências da Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei n° 12.305/10), colocaram em pauta o funcionamento inadequado do AMJG, como forma de pressionar seu fechamento (Silva et al., 2012).

Por um lado, membros da Organização das Nações Unidas (ONU) elaboraram propostas para o encerramento das atividades do aterro metropolitano, em defesa da proteção e da salubridade ambiental, que já vinha sofrendo com a agressiva contaminação e uma série de rachaduras no solo. Por outro lado, a ACAM-JG inseriu-se nesse debate, com o intuito de evidenciar a perspectiva dos catadores, que tiravam sustento daquele local e não tinham alternativas de trabalho. As discussões, levantadas em torno do possível fechamento do AMJG, contribuíram substancialmente para a mobilização dos catadores enquanto categoria pro-fissional[9], com a repercussão internacional de suas reivindicações (IETS, 2011).

Apesar disso, a situação se tornava cada vez mais insustentável, devido à insalubridade do aterro metropolitano, além da instabilidade e esgotamento do terreno. O AMJG, antes invisível para a grande maioria da sociedade urbana, a qual não tinha contato com as suas dinâmicas locais, passou a ganhar intensa visibilidade. Espacialmente, o talude de massa de resíduos sólidos[10] já podia ser avistado de pontos importantes, como da Rodovia Washington Luiz e do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro (Galeão/Tom Jobim); à medida que, socialmente, o AMJG vinha sendo alvo de intensas críticas em âmbito internacional.

Para se adequar às pressões externas e exigências legais, além de perceber a iminência do fim da vida útil do AMJG, a Prefeitura do Rio de Janeiro passou a investir na implantação de um aterro sanitário em Seropédica. Com a inauguração do novo aterro em 2011, iniciou-se processo de encerramento do AMJG, junto à empresa licitada Gás Verde (antiga Novo Gramacho). Embora os esforços dos catadores contra este processo tenham atingido discussões em nível internacional, comerciantes e moradores não haviam sido consultados ou informados sobre o real cenário. Muitos deles, inclusive, acreditavam que o fechamento do aterro metropolitano era um rumor que não iria se concretizar (Ribeiro e Carmo, 2013).

Desconsiderando as reivindicações dos catadores, a Prefeitura do Rio de Janeiro fechou oficialmente o AMJG no dia 03 de junho de 2012, após mais de três décadas de funcionamento. Os catadores e a população local ficaram sem alternativas de geração de renda e trabalho ou soluções para a revitalização do bairro de Jardim Gramacho, que funcionava integralmente em torno das atividades do aterro metropolitano. Consequentemente, isso se refletiu na intensificação da situação de exclusão social e de pobreza da população (Magalhães, 2015; Ribeiro e Carmo, 2013).

Algumas políticas públicas de inclusão social foram implementadas, visando assistir essa população dependente da economia gerada pelo AMJG com capacitações profissionais e indenizações aos catadores. No entanto, segundo publicação da organização sem fins lucrativos TETO (2014), verificou-se que elas não foram eficientes. Muitos moradores e trabalhadores continuaram sem soluções efetivas de remanejo de atividades ou subsídio, gerando um esvaziamento do bairro de Jardim Gramacho.

Segundo pesquisa realizada por essa mesma organização em 2014, a renda média per capita dos moradores dos assentamentos mais precários do bairro era de R$ 233.70 ($105.27)[11]. Não há infraestrutu-ra mínima (energia elétrica, saneamento básico ou água encanada) nas favelas de ocupação mais recente, como a Avenida Rui Barbosa, Parque Planetário, Chatuba, Esqueleto, DICK, Juriti, Beco do Saci, Paz/ Maruim, Cidade de Deus, apresentadas na Figura 4. Como consequência, o empobrecimento da população, que não tinha condições de deixar aquele local, se traduziu espacialmente na ampliação das áreas de favela, comprometendo a própria qualidade de vida dos moradores e ampliando a segregação socioespa-cial (Cárcamo, 2013).

Fonte: Elaboração própria, com base em mapa do Google Earth de 2012, dados de Cárcamo (2013), IETS (2011) e Alta Geotecnia Ambiental (2018).

Figura 4 Situação espacial atual do AMJG e seu entorno. 

Além da ampliação e da formação de novas favelas, os riscos ambientais existentes na região somente se agravaram. Não foram previstas políticas efetivas de recuperação dessa área extremamente degradada, apesar das recomendações da ABNT (1992) para a manutenção integral da cobertura superficial, o mo-nitoramento da contaminação das águas subterrâneas e o manejo da produção de gás e chorume até 30 anos após o funcionamento do aterro.

Os lixões clandestinos nas áreas limítrofes ao AMJG se tornaram fontes de renda em substituição às ativi-dades ali desenvolvidas. Segundo o relatório técnico da Alta Geotecnia Ambiental (2018), representam um elevado potencial de contaminação na região, devido à disposição irregular dos resíduos sólidos. Assim, a degradação ambiental e a poluição ecossistêmica têm favorecido, progressivamente, a desvalorização da área.

O AMJG representa, portanto, um 'resíduo da globalização'. De acordo com Farias (2012), esse conceito determina um produto advindo do capitalismo e do consumo subsequente, onde o poder público falha e o privado não tem interesse em atuar ou não designam um plano efetivo para o desenvolvimento da área. Em meio ao descaso e à invisibilidade, torna-se alheio às boas práticas urbanas, um espaço de ninguém e para ninguém.

Desde o fim das atividades do aterro metropolitano, a área encontra-se em completo abandono, tornando-se cada vez mais invisível à esfera coletiva e aos demais municípios. A partir da análise documental ilustrada anteriormente, pôde-se identificar os agentes que provocaram injustiças ambientais e 'negligências urbanísticas' neste caso extremo de degradação em diferentes momentos: primeiro, do mercado imobiliário e do Estado, durante a implantação do aterro metropolitano e das ocupações irregulares subsequentes; segundo, da COMLURB e dos municípios responsáveis pela disposição de resíduos sólidos durante os primeiros anos de funcionamento do AMJG; e terceiro, das empresas privadas licitadas e a atual responsável Gás Verde, durante o período seguinte de funcionamento, encerramento e manutenção do AMJG.

Apesar de alguns esforços pontuais de remediação da contaminação, ainda há extensas áreas contaminadas e outras com suspeita de contaminação, refle-tindo diretamente no estabelecimento de ocupações precárias e insalubres e na perpetuação da degradação ambiental. Para reverter este cenário, faz-se necessário pensar em maneiras de conferir melhores condições de vida à essa população, tendo em vista a minimização dos aspectos de pobreza, exclusão social e contaminação.

Considerações finais

O fenómeno de 'periferização', identificado no contexto brasileiro e latino-americano, comumente resultante de ações do Estado, provoca a segregação social e espacial de classes mais baixas, em função da viabilização do capital imobiliário nos centros urbanos e da influência das classes dominantes nas tomadas de decisão públicas. Desta forma, o próprio espaço atua como mecanismo de segregação e de injustiça ambiental, permitindo que os riscos ambientais sejam alocados próximo às classes sociais mais baixas e marginalizadas.

Essa situação foi evidenciada ao longo deste artigo com o caso do antigo Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho. Implantado na década de 70, pela COMLURB e pelas prefeituras dos municípios do Rio de Janeiro, Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Nilópolis e São João de Meriti, em um bairro residencial precário da periferia metropolitana, o AMJG apresentou injustiças ambientais e 'negligências urbanísticas' pelo mercado imobiliário e pelo Estado desde sua implantação, uma vez que foi escolhida uma região de mangue para sua alocação e sem planejamento para a urbanização do bairro, resultando em ocupações irregulares e na contaminação do entorno.

Durante seu funcionamento, essa situação se agravou com a omissão da COMLURB, dos municípios responsáveis pela disposição de resíduos sólidos no AMJG e das empresas privadas licitadas, bem como a atual responsável Gás Verde, na manutenção do aterro metropolitano, desencadeando um grave processo de degradação ambiental. Foram identificadas falhas na gestão de resíduos sólidos, que provocaram a contaminação de corpos hídricos e a redução da qualidade de vida da população local e trabalhadora.

Mesmo com o encerramento das atividades do AMJG, em 2012, essa negligência perpetuou um processo de invisibilidade espacial, com a ampliação de ocupações irregulares e insalubres, o esvaziamento das atividades do bairro e o aprofundamento da contaminação; bem como de invisibilidade social, com a retirada de empregos e rendas que funcionavam em torno das atividades do aterro metropolitano e o empobrecimento da população local.

Para que se reduzam os efeitos da exclusão social e da degradação ambiental, é necessário que essa área ganhe visibilidade e que ocorra a responsabilização dos agentes negligentes perante à disposição inadequada dos resíduos sólidos urbanos e à assistência da população local e trabalhadora. À vista disso, este artigo contribui com as discussões acerca desta problemática, do ponto de vista socioambiental, alertando sobre a necessidade de se discutir e elaborar planos efetivos de recuperação do solo e de reuso para a área, e de melhorar a situação socioeconômica da população local, evitando que a contaminação atinja um raio maior de abrangência.

[1] Esse artigo é fruto da pesquisa de dissertação de mestrado desenvolvida pela primeira autora no âmbito do Laboratório de Projetos Urbanos (LAPU), sob orientação da segunda autora e financiamento da FAPERJ, CNPq e CAPES.

[2]Na época, a rodovia foi implantada no município de Nova Iguaçu, o qual englobava as áreas dos atuais municípios de Duque de Caxias, São João de Meriti, Nilópolis e Nova Iguaçu. Somente em 1943, Duque de Caxias emancipou-se e foi reconhecido como município.

[3]Ver Alencar (2016).

[4]Rio de Janeiro, Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Nilópolis e São João de Meriti.

[5]Bairro residencial ocupado por população de baixa renda.

[6]Com base nas fontes consultadas, há divergências nas datas de abertura do aterro metropolitano.

[7]Alguns exemplos dessas iniciativas ambientais são: Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (ECO-92), no Rio de Janeiro, Brasil; Conferência Internacional Sobre População e Desenvolvimento, em Cairo, Egito; III Conferência das Partes e do Protocolo de Quioto, em Quioto, Japão; instituição do Licenciamento Ambiental e Lei dos Crimes Ambientais, no Brasil.

[8]Em 2004, foram identificados cerca de 1700 catadores por dia.

[9]A profissão dos catadores de materiais recicláveis foi regulamentada pelo Ministério do Trabalho em 2002, contribuindo significativamente para a retirada de materiais recicláveis de aterros e lixões e para o próprio processo de reciclagem.

[10]Na època, ultrapassava 40m de altura, o que corresponde a lOm além do limite estimado quando fora criado.

[11]Para elucidar o contexto económico em questão, o valor do salário mínimo em 2014 no Brasil era de R$724,00. Desta forma, a renda per capita de Jardim Gra-macho era quase três vezes mais baixa que a renda mínima nacional.

Cómo citar este artículo: Oliveira, Y. A., Machado, D. B. P. (2022). Invisibilidade social e espacial em aterro metropolitano. O caso de Jardim Gramacho (RJ), Brasil. Bitácora Urbano Territorial, 32(I): 163-176. https://doi.org/10.15446/bitacora.v32n1.87530

Autoras

Yasmin Anefalos de Oliveira Arquiteta e Urbanista (FAU-UFRJ), com intercâmbio académico em Arquitetura (TUM) na Alemanha. Mestre em Urbanismo (PROUR-B-UFRJ) com bolsas do CNPq e de mestrado NOTA-10 da FAPERJ e doutoranda em Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP), com publicações e pesquisas sobre urbanismo, paisagem, projeto urbano e áreas degradadas. Recebeu menção honrosa na categoria impacto metropolitano na 57a premiação anual do IAB-RJ. Participou do Laboratório de Projetos Urbanos (LAPU/PROURB-UFRJ) e, atual-mente, participa do Núcleo de Estudos da Paisagem (NEP/FAU--USP).

Denise B. Pinheiro Machado Professora Titular Faculdade de Arquitetura e Urbanismo UFRJ. Arquiteta, Doutora em Urbanismo. Université Paris XII. Pesquisadora 1C CNPq - Cientista do Nosso Estado FAPERJ. Diretora FAU/UFRJ (2010-2014). Coordenadora PROURB Programa de Pós-graduação em Urbanismo FAU/UFRJ (1993-1997/ 20032008 /2018-2021). Coordenadora da Área Arquitetura, Urbanismo e Design CAPES (1997-1999/2005-2007), atuando na consolidação da pós-graduação. Coordenadora de convénios de cooperação internacional com países latino-americanos e europeus. Consultora académica nacional e internacional. Ministrou palestras e cursos em várias universidades no país e no exterior. Atua na graduação e na pósgraduação. Orientadora de mestrado, doutorado e pós-doutorado. Publicações e pesquisas sobre projetos urbanos e urbanismo.

Recebido: 30 de Maio de 2020; Aceito: 17 de Novembro de 2020

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