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Revista Latinoamericana de Bioética

Print version ISSN 1657-4702

rev.latinoam.bioet. vol.13 no.1 Bogotá Jan./June 2013

 

ARTÍCULO ORIGINAL

A SOCIEDADE E A SEXUALIDADE DA PESSOA CEGA: PRECONCEITO, CURIOSIDADE, INDIFERENÇA OU FALTA DE CONHECIMENTO?

THE SOCIETY AND SEXUALITY OF BLIND PEOPLE: PREJUDICE, CURIOSITY, INDIFFERENCE OR LACK OF KNOWLEDGE?

LA SOCIEDAD Y LA SEXUALIDAD DE PERSONAS INVIDENTES: PREJUICIO, CURIOSIDAD, INDIFERENCIA O FALTA DE CONOCIMIENTO?

Dalva Nazaré Ornelas França a

a Mestre em Educação Especial pelo CELAEE /Cuba, Doutoranda em Ciência da Saúde pela Universidade Federal da Bahia, professora de Sexualidade Humana da Universidade Estadual de Feira de Santana - Bahia, Departamento de Ciências Biológicas. Endereço de e-mail: dnfranca@gmail.com.

Fecha de recepción: 15 de abril de 2013
Fecha de evaluación: 15 de abril de 2013
Fecha de aceptación: 20 de junio de 2013


RESUMEN

Este estudio tiene como objetivo identificar y analizar cómo las personas ciegas definen la percepción de las no ciegas con respecto a su sexualidad. Participaron once (11) personas con ceguera congénita de ambos sexos, con edades comprendidas entre los 22 y 54 años y nivel educativo entre primaria a superior incompleta. Se realizaron entrevistas semi-estructuradas y sesiones de grupos focales con una grabadora. Las entrevistas y sesiones de grupos focales fueron transcritas en su totalidad y se analizaron cualitativamente, a la luz de la dialéctica hermenéutica, en busca de una relación entre lo empírico y lo teórico. Emergieron dos categorías: 1) Una persona ciega vista como asexual; 2) La falta de conocimiento como generadora de curiosidad e indiferencia. Las entrevistas y sesiones de grupo revelaron que la sociedad les considera como asexuadas, carentes de deseos sexuales e incapaces de manejar sus propias vidas; que la falta de conocimiento sobre la ceguera lleva a la sociedad a ver la sexualidad del ciego como curiosidad, indiscreción, desconfianza o simplemente invisibilidad. Las personas ciegas reconocen algunos cambios en la sociedad en el sentido de la inclusión en varios aspectos, pero estiman que el prejuicio en relación a la sexualidad es muy grande. Se concluye que las actitudes de discriminación y prejuicio de la sociedad hacia la sexualidad de las personas ciegas es resultado de una construcción histórica-social de segregación hacia las personas con discapacidad. Se destaca la necesidad de buscar nuevos paradigmas para que pueda brindarse a estas personas respeto por la diferencia, autonomía, dignidad y derechos fundamentales.

Palabras Clave: Sexualidad, Ceguera, Sociedad, Derechos Humanos.


SUMMARY

This study aims to identify and analyze how blind people define the perception of not blind to their sexuality. Participated eleven (11) blind people of both genders, aged between 22 and 54 years, educational level from elementary to upper incomplete. Interviews were conducted semi-structured and focus group sessions with a tape recorder. The interviews and focus group sessions were transcribed in full and analyzed qualitatively in the light of hermeneutic dialectic, seeking a link between the empirical and the theoretical. Two categories emerged: 1) A blind person seen as asexual; 2) Lack of knowledge as a generator of curiosity and indifference. The interviews and group sessions revealed: that blind people realize that society considers them as asexual devoid of sexual desires and unable to manage their own lives, that the lack of knowledge about blindness leads society to see their sexuality as curiosity, reaching the indiscretion and mistrust or simply invisibility, blind people already recognize changes have occurred in society in the sense of inclusion in many ways, but evaluate the prejudice against sexuality is still great. We conclude that the attitudes of discrimination and prejudice in society towards sexuality of blind people, is the result of a socio historical segregation of people with disabilities. We point to the need to seek new paradigms, to give to those people, respect to differences, autonomy, dignity and fundamental rights.

Keywords: Sexuality, Blindness Society, Human Rights.


RESUMO

Este estudo teve por objetivo analisar como as pessoas cegas definem a percepção dos não cegos em relação a sua sexualidade. Participaram 11 (onze) pessoas com cegueira congênita de ambos os gêneros, com idades entre 22 e 54 anos e nível educacional do fundamental ao superior incompleto. Foram realizadas entrevistas semi estruturadas e sessões de grupo focal, com uso de gravador. As entrevistas e as sessões de grupo focal foram transcritas na integra e analisadas qualitativamente, à luz da hermenêutica dialética, buscando uma articulação entre os dados empíricos e os referenciais teóricos. Emergiram duas categorias: 1) A pessoa cega vista como assexuada; 2) Falta de conhecimento como gerador de curiosidade e indiferença. Os depoimentos e as sessões grupais evidenciaram: que as pessoas cegas percebem que a sociedade as considera como assexuadas destituídas de desejos sexuais e incapazes de gerir a própria vida; que a falta de conhecimento sobre a cegueira leva a sociedade a ver a sexualidade dos cegos como curiosidade, indiscrição, desconfiança ou simplesmente invisibilidade. As pessoas cegas reconhecem já ter ocorrido mudanças na sociedade no sentido da inclusão sob vários aspectos, mas avaliam que o preconceito em relação à sexualidade ainda é grande. Concluímos que as atitudes de discriminação e preconceito da sociedade, em relação à sexualidade das pessoas cegas, é resultado de uma construção histórica social de segregação das pessoas com deficiência. Apontamos para necessidade de construir novos paradigmas, para que possa proporcionar a essas pessoas, o respeito às diferenças, a autonomia, a dignidade e a seus direitos fundamentais.

Palavras-Chave: Sexualidade, Cegueira, Sociedade, Direitos Humanos.


INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas do século XX, intensificaramse os movimentos no sentido de fazer com que grupos minoritários e excluídos da sociedade pudessem usufruir seus direitos, resgatando a Declaração Universal dos Direitos Humanos promulgada em 1948 pela ONU, que preconiza no artigo 1º: "Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade". Destes grupos destacamos a luta das pessoas com deficiência, que depois de muito empenho conquistaram a então Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficientes, texto aprovado como Protocolo Facultativo, assinado em Nova Iorque, em 30 de março de 2007 (ONU), e ratificada no Brasil pelo Congresso Nacional com equivalência de emenda constitucional em 2008 sob o decreto Legislativo n. 186.

Esta Convenção não cria novos direitos para as pessoas com deficiência, apenas fortalece os seus direitos constitucionais e introduz um conceito de deficiência mais amplo e agora caracterizado como conceito legal: "Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com as diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas". (Art. 1º). No dizer de Ribeiro (2010, p. 26), esse conceito estabelece uma "interrelação entre a pessoa com deficiência, as barreiras atitudinais (preconceito) e o ambiente, que impedem a plena e efetiva participação da pessoa na sociedade em igualdade de condições".

Neste inicio da segunda década do século XXI, podemos visualizar alguns avanços contidos em leis, documentos e decretos, e o esforço da sociedade em lidar com as diferenças na tentativa de efetivar uma política de inclusão social das pessoas com deficiência. Contudo, percebemos que as barreiras atitudinais ainda permanecem quando se trata de alguns temas relacionados e essas pessoas, como por exemplo, o binômio sexualidade e deficiência.

Compreendemos a sexualidade humana como algo abrangente, considerando sua influencia sobre todos os aspectos da vida, desde a concepção até a morte, manifestandose em todas as fases da vida, sem distinção de raça, cor, sexo, deficiência. E sendo influenciada pelo contexto sócio-historico-cultural (França, Azevedo, 2002).

De acordo como Gomes (2007), a sexualidade é um tabu para toda sociedade, independente de ter ou não deficiência; quando juntamos os temas, sexualidade e deficiência temos o tabu em dobro. A mesma autora alerta para a desinformação quanto aos diretos e possibilidades reais da pessoa com deficiência de ter uma vida sexual, reprodutiva, sadia como qualquer pessoa.

A cegueira é considerada uma deficiência visual que de acordo com o Conselho Internacional de Oftalmologia - ICO (2002) se caracteriza pela perda total da visão nos dois olhos e que o individuo necessita de auxilio especial para substituir as suas habilidades visuais.

A concepção do senso comum em relação à pessoa cega fica tão restrita à limitação visual, que a pessoa deixa de ser vista como um ser humano integral e passa a ser percebida, freqüentemente, como um ser imperfeito e faltante. No entanto, a pessoa cega ainda que com um sentido prejudicado, tem capacidade de desenvolvimento como qualquer pessoa, desde que lhe sejam dadas as condições adequadas para tal. Isto é, é necessário que o ambiente onde ela viva seja adaptado para sua limitação e lhe possibilite o acesso às informações visuais por outras vias. (Nunes, Lomônaco, 2008)

Apesar dos impedimentos visuais, as pessoas cegas têm preservadas todas as suas outras funções, inclusive as sexuais e reprodutivas, ao contrário do que pensa a sociedade, que de forma preconceituosa, generaliza essa limitação. Para Maia (2008), essas pessoas têm as mesmas condições para sentirem desejo sexual, excitação e orgasmo, porque a deficiência sensorial não compromete, necessariamente, a resposta sexual.

A expressão da sexualidade é um direito conquistado pelo ser humano, por isso se torna necessário a busca de conhecimento sobre a sexualidade da pessoa cega, no caso com cegueira congênita, a partir da reflexão bioética que ajuda a consolidar ações com base na dignidade e nos direitos fundamentais dessa pessoas. Hoje as pessoas com deficiência, em nosso país, têm buscado junto às autoridades governamentais respostas para a violação de seus direitos em geral, e em relação à violação dos direitos sexuais e reprodutivos que tem afetado os deficientes da sociedade.

Diante do exposto, este estudo teve como objetivo: analisar como as pessoas cegas definem a percepção dos não cegos em relação a sua sexualidade, ancorado em estudos que contemplam as concepções teóricas da deficiência e da sexualidade como construto social apoiado na bioética e nos direitos humanos.

METODOLOGIA

Os participantes da pesquisa foram 6 (seis) homens e 5 (cinco) mulheres com cegueira congênita, com idades entre 22 e 54 anos. Os critérios de inclusão no estudo foram: pessoas cegas com diagnóstico de cegueira total até dois (2) anos de idade; não apresentar outra deficiência associada à cegueira; e maiores de 18 anos e menores que 65 anos que frequentam ou frequentaram o Centro de Apoio ao Deficiente Visual da Fundação Jonathas Teles de Carvalho e a Associação Feirense dos Deficientes Visuais, ambos no Município de Feira de Santana, Bahia, Brasil.

A coleta de dados ocorreu mediante entrevista semi estruturada com a questão norteadora: Como você sente a reação das pessoas (sociedade) em relação à expressão da sexualidade dos cegos? Foi realizada também sessão de grupo focal como estratégia complementar. As entrevistas e as sessões do grupo focal foram gravadas, mediante consentimento dos participantes. O contato com as pessoas aconteceu por meio das instituições mencionadas. A cada participante foi explicado sobre os procedimentos do estudo e convidado através do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (em Braile) para participarem da pesquisa.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Feira de Santana, com protocolo n. 119/2011. As instituições envolvidas também emitiram parecer favorável à realização da pesquisa.

Para identificação dos participantes utilizaremos termos referentes à sexualidade, de escolha dos mesmos, como: Elegante, Amorosa, Sensual, Carinhoso, Sedutor, Belo, Delicado, Comunicativa, afetuosa, Apaixonada, Coração.

Os dados foram analisados a partir da hermenêuticadialética, que segundo Minayo (2010 p. 347), "uma análise compreensiva ancorada na hermenêutica dialética busca apreender a prática social empírica dos indivíduos em sociedade em seu movimento contraditório". A análise aconteceu em três etapas: Na primeira etapa fizemos uma leitura compreensiva buscando ter uma visão conjunta e apreender as particularidades das entrevistas e do material gerado no grupo focal, identificando os temas expressos nos depoimentos; Na segunda etapa realizamos recortes de trechos dos depoimentos, lançados em um quadro para fazer a leitura horizontal buscando identificar as idéias convergentes e diferentes dos participantes , e depois a leitura vertical para analisar como cada participante se manifestou frente aos temas que emergiram, evidenciando o que mais se repetia (expressões, palavras, e frases) que indicava conceitos e expressões teóricas sobre a sociedade e a sexualidade da pessoa cega. Na terceira etapa foi realizado um confronto dos depoimentos individuais com os depoimentos do grupo. E finalmente realizamos a articulação entre o material empírico (entrevistas e grupo focal) e os referenciais teóricos da pesquisa, buscando responder a questão norteadora, baseada nos objetivos propostos. Emergindo assim duas categorias: 1. A pessoa cega vista como assexuada; 2. Falta de conhecimento como gerador de curiosidade e indiferença.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

A pessoa cega vista como assexuada

Conceber as pessoas cegas como assexuadas significa admitir que estas pessoas são destituídas de sentimentos, de desejos, incapazes de amar e de constituir família, características incompatíveis com a criatura humana e uma forma desumana e preconceituosa de ver as pessoas deficientes.

Alguns participantes apontam para essa tendência da sociedade de considerar as pessoas cegas como assexuadas ou incapazes, como demonstram os depoimentos a seguir:

(...) Eles acham que as pessoas cegas não fazem sexo, sei lá é uma vida assim difícil (...) (Sedutor).

(...) as pessoas acham assim que cego não deve casar, acham que por ser deficiente não tem necessidade sexual (...) (Elegante).

Para nossa família o cego não precisa de sexo não (risos)... cego é uma mesa uma cadeira, nem todos é claro tem a exceção, minha sogra que por amor ao filho dela, aceitou, mas tem família que nem por amor aceita, prefere que o parente sofra e até morra mas não quer, não pode (Comunicativa).

Apesar de hoje em dia ter assim liberado a escola e o cego participar mais da sociedade, o preconceito ainda não acabou, sobre sexualidade não acabou, acham que a pessoa cega não pode isso, não pode aquilo. Isso interfere na vida da pessoa cega, ela fica achando que não pode através do povo falar. (Amorosa)

(...) o que povo acha da sexualidade do cego? que vai ter um bocado de filho e dar trabalho (...) (Apaixonada).

Entendemos que esse pensamento da sociedade, de que os cegos são assexuados, não se caracteriza inerente a esse grupo de pessoas, pois os deficientes, de maneira geral, são vistos pela sociedade como seres assexuados, desinteressantes, incapazes, pouco atraentes e outras denominações.

Lebedeff (1994) investigou a sexualidade de pessoas adultas com deficiência visual e observou entre outros aspectos a introjecção de preconceito, por parte do individuo e da família sobre a crença da assexualidade das pessoas com deficiência.

Cordeiro e Pinto (2008) ao se referirem ao comportamento da sociedade em relação à sexualidade dos deficientes, argumentam que "Erotismo e deficiência são termos que parecem não combinar", pois ainda existem pessoas que acreditam que um corpo com alguma marca/estigma é incapaz de sentir e de dar prazer.

Nesta perspectiva Pinel (1993), argumenta que:

um dos mitos mais comuns é pensar que as pessoas deficientes são assexuadas. Esta idéia geralmente surge a partir de uma combinação entre a limitada definição de sexualidade e a noção de que o deficiente é neutro, não tem as mesmas necessidades, desejos e capacidades do não-deficiente. (p. 310)

Comumente os mitos podem reforçar posturas discriminatórias e sentimentos preconceituosos. A limitação quanto ao entendimento da sexualidade, focada apenas nos aspectos biológicos (sexo), sem incluir as relações amorosas, o prazer, o afeto, o erotismo, podem contribuir para sustentação social de que as pessoas cegas são assexuadas.

Notamos nos depoimentos que apesar da sociedade considerar as pessoas cegas como assexuadas, há uma contradição: como pode ser assexuada, a pessoa cega, e ao mesmo tempo suscitar preocupação com uma possível gravidez? Fica implícito que o mito da assexualidade é falho e que só contribui para fortalecer o preconceito em relação a esse grupo minoritário, mas sujeitos de direito.

Omote (1994) argumenta que as reações das pessoas comuns em relação às deficiências e aos deficientes não estão sempre relacionadas às características de uma determinada deficiência, mas em interpretações ou estereótipos que são construídos. Ainda o mesmo autor sugere que a "deficiência não é algo que emerge com o nascimento de alguém ou com a enfermidade que alguém contrai, mas é produzida e mantida por um grupo social na medida em que interpreta e trata como desvantagens certas diferenças apresentadas por determinadas pessoas." Então a deficiência e suas formas de discriminação são construídas pela sociedade.

Assim tornase necessário o entendimento de que as pessoas com cegueira devem ser compreendidas no sentido da sua dignidade, respeitando a sua autonomia. A este respeito, à Convenção sobre os Direitos das pessoas com Deficiência (Brasil, 2008), no artigo 8 alínea "a" e "b" adverte que é necessário:

a) "Conscientizar toda a sociedade, inclusive as famílias, sobre as condições das pessoas com deficiência e fomentar o respeito pelos direitos e pela dignidade das pessoas com deficiência"; e

b) "Combater estereótipos, preconceitos e práticas nocivas em relação a pessoa com deficiência, inclusive aquelas relacionadas a sexo e idade, em todas as áreas da vida".

Assim, este documento, a Convenção, visa "promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente'' (Brasil, 2008). Então resta à sociedade fazer valer essas prerrogativas, buscando minimizar o preconceito em relação a essas pessoas.

No confronto entre as vozes individuais e do grupo fica evidente que os participantes da pesquisa sentem que a sociedade os vê como pessoas assexuadas, sem necessidade sexual e incapazes de gerir suas próprias vidas. Complementam ainda dizendo que as pessoas que convivem com eles já estão acostumadas e sabem de suas capacidades. E afirmam que cada um tem sua individualidade.

Podemos inferir que essas atitudes e comportamentos da sociedade em relação à sexualidade da pessoa cega, se caracterizam como heterônomas, que, segundo a leitura kantiana, a heteronomia é a sujeição do individuo à vontade de terceiros, ou à vontade de uma coletividade, não pertencentes à razão e às leis morais (Freitas; Seidl, 2011, p 122). Entendemos que a reflexão bioética poderá contribuir no sentido de buscar um caminho de transformação dessas heteronomia para uma autonomia, de forma que essas pessoas possam ser incluídas na sociedade com o direito de se autodeterminar e de considerar que o outro faça o mesmo. Pois, segundo Reinaldo (2004), autonomia não existe sem senso de reciprocidade, e sua aplicação representa respeito pela outra pessoa.

O que se busca de fato é a consolidação de uma sociedade inclusiva, onde possamos conviver mais com as diferenças, conhecer suas reais capacidades e potencialidades, respeitando sua autonomia.

Falta de conhecimento como gerador de curiosidade e indiferença

A sociedade manifesta comportamentos, crenças e sentimentos diversos em relação à sexualidade das pessoas com deficiências, no caso os cegos. Os participantes da pesquisa elencaram alguns destas manifestações vivenciadas por eles; entre elas estão: curiosidade, indiferença e falta de conhecimento, como retrata os depoimentos:

(...) curiosidade né "olhe pra li o ceguinho namorando! Rapaz... são danados" o povo quando vê um casal de cegos fica na curiosidade... poxa eles também... passam a ver... eles também são gente, namoram(...) (Delicado).

(...) na rua tem gente que fica falando assim: como ela teve filho se não enxerga? Oh! meu Deus como é que ela tem filho? Não enxerga como é... e pergunta como é que cuida do filho?... Isso não me incomoda, já é normal. (Afetuosa).

(...) eu acho que as pessoas não cegas ficam com certa duvida assim... como será que acontece?... algumas pessoas perguntam como é? como namora? como transa? Tinha uma menina lá que perguntava "você é virgem?" (Coração).

A palavra curiosidade vem do latim curiositate que pode significar: 1. O desejo de ver, saber, informarse, desvendar. 2. O desejo irreprimível de conhecer os segredos, os negócios alheios, bisbilhotice, indiscrição. (Ferreira, 1986). De acordo com os depoimentos, podemos inferir que a curiosidades da sociedade, em relação à sexualidade do cego, pode se encaixar nas duas definições, em algumas situações, como no caso dos profissionais que buscam informações para melhorar os atendimentos e serviços para essas pessoas, que seria na primeira definição (1), e na outra situação, no sentido de conhecer o fenômeno, questionandose por exemplo "como uma pessoa que não enxerga faz tudo, inclusive expressar sua sexualidade". Principalmente para uma sociedade que entende que a expressão da sexualidade é um privilegio para os ditos "normais".

Também emerge nessas falas o sentimento de que a sociedade percebe as pessoas cegas como incapazes, portanto não tem condições de gerir suas vidas, como por exemplo, cuidar do filho, de onde surge a dúvida e a curiosidade: como transa? Como cuida do filho? Tudo isso resulta da falta de conhecimento sobre as deficiências. Como aponta os participantes a seguir:

(...) É que o povo acha que cego além de ser cego é doido é maluco, é mudo é surdo entendeu? Porque também o povo na realidade eles não sabem o que quer dizer cada coisa não, sabe por quê? também a sociedade não dá tanta importância para explicar para o povo o que é cada deficiência (...) (Belo).

O fato em si de ser cego faz com que as pessoas não se aproximem (...) o fato de não conhecer sobre o assunto eu acho que acaba afastando muita gente, a pessoa só vai conhecer com a convivência... por que o fato de ser cego incomoda a pessoa ao lado (...) (Sensual).

Como podemos evidenciar nestes depoimentos, parece ser este um grande problema, a falta de conhecimento sobre a cegueira, pois ocasiona uma generalização inadequada que não corresponde à realidade, alem de não contribuir para inclusão dessas pessoas. Pesquisa realizada por Franco e Denari (2000) com pessoas cegas, foi evidenciado por todos os participantes que "a sociedade deve conhecer mais sobre a cegueira, para possibilitar uma diminuição da exclusão social". Amaral (1994), esclarece que a falta de informação é a base na qual se estruturam os preconceitos.

Para Goffman (2008), nós, os ditos normais, tendemos a inferir uma serie de imperfeições as pessoas com algum estigma, a partir da imperfeição original, "e ao mesmo tempo, a imputar ao interessado alguns atributos desejáveis, mas não desejado". De acordo com Gowman, citado por Goffman (2008, p.15):

Alguns podem hesitar em tocar ou guiar o cego, enquanto outros generalizam a deficiência de visão sob a forma de um gestalt de incapacidade, de tal modo que o individuo grita com o cego como se ele fosse surdo ou tenta erguêlo como se ele fosse aleijado. Aqueles que estão diante de um cego podem ter uma gama enorme de crenças ligadas ao estereótipo. Por exemplo, podem pensar que estão sujeitos a um tipo único de avaliação, supondo que o individuo cego recorre a canais específicos de informações não disponíveis para os outros.

Além da falta de informação e da curiosidade, os participantes apresentaram idéias convergentes no sentido de que percebem que a sociedade não se interessa muito pela sexualidade do cego, como revelam os depoimentos a seguir:

(...) eu não sei, acho que as pessoas não se interessam pelo assunto, não se; não se interessam pala sexualidade do cego (Sensual).

(...) eu acho que as pessoas da sociedade vêem a sexualidade do cego com certa... é assim....é digamos assim, não vê com bons olhos, na verdade não vê (Sedutor).

(...) a sociedade vê com indiferença a expressão da sexualidade do cego (...) (Coração).

Essa postura da sociedade, revelada pelos cegos, denuncia que essas pessoas estão sendo tratadas com indignidade e que seus direitos como cidadãos não estão sendo respeitados.

A este respeito, Amor Pan (2003, p.165) nos esclarece que:

Devese reconhecer que em nossa sociedade subsistem formas de pensar e agir que tendem a marginalizar as pessoas diferentes, ainda que paralelamente se proclame com toda solenidade a dignidade de todos os seres humanos. É certo que num plano material há grandes diferenças entre os indivíduos: Há pessoas mais espertas do que outras, ou mais bonitas, ou mais habilidosas, com ou sem defeitos físicos. Mas a questão consiste em saber se essas diferenças propiciam, por seu turno, uma dignidade humana diferenciada, se existem dois grupos de humanos bem definidos, o dos normais e o dos deficientes. Essa fronteira não existe nem pode existir, porque a dignidade humana não decorre desses fatores, não se vê diminuída ou aumentada em função de sua maior ou menor presença, mas acompanha o individuo independentemente das limitações físicas ou psíquicas de que seja vitima.

A dignidade é considera como um valor intrínseco da pessoa independe da sua condição se deficiente ou não. A idéia de dignidade da pessoa está na base do reconhecimento dos direitos humanos fundamentais, promulgada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1942).

No confronto das falas individuais e do grupo, ficou evidente que as pessoas cegas sentem que a sociedade vê sua sexualidade com curiosidade fazendo muitas perguntas, chegando às vezes a indiscrição; também é vista com indiferença. Porém, eles complementam alertando que a falta de conhecimento, por parte da sociedade sobre as deficiências, leva a comportamentos de discriminação e despreparo para lidar com o cego. E que é importante que as pessoas cegas busquem participar mais da sociedade, exercendo seu direito de cidadania, se fazendo presente para que as pessoas possam conhecê-los e respeitá-lo como cidadãos de direito e assim minimizar o preconceito.

Gostaríamos de alertar, ainda, para necessidade de conhecer mais sobre a sexualidade das pessoas cegas, pois a sua invisibilidade pode também torná-las invisíveis aos olhos da prevenção da IST/AIDS, portanto vulnerais. Estudo realizado por Cerqueira e França (2011) evidenciou que o nível de informação dos participantes cegos foi mediano, informações imprescindíveis para a proteção e prevenção da IST e HIV/AIDS não são suficientemente conhecidas por essas pessoas. As autoras entendem que um nível mediano não se faz suficiente, e sim um nível ótimo ou excelente de conhecimento para de fato ocorrer uma mudança de comportamento e conseqüentemente a prevenção, diminuindo assim a vulnerabilidade dessas pessoas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do estudo realizado com pessoas com cegueira congênita, com o objetivo de analisar como as pessoas cegas definem a percepção dos não cegos em relação a sua sexualidade chegamos às seguintes conclusões:

• As pessoas cegas percebem que a sociedade as considera como assexuadas destituídas de desejos sexuais e incapazes, o que caracteriza estigmatização da sexualidade dessas pessoas, não as respeitando em sua dignidade e autonomia;

• Que as pessoas cegas reconhecem que já ocorreram mudanças na sociedade no sentido da incluso sob vários aspectos, mas avaliam que o preconceito em relação à sexualidade ainda é grande;

• Que a falta de conhecimento sobre a cegueira leva a sociedade a ver sua sexualidade como curiosidade, chegando à indiscrição e a desconfiança ou simplesmente a invisibilidade. O desconhecimento gera concepções distorcidas, privando os cegos de uma vida sexual prazerosa;

• Que a invisibilidade da sexualidade dos cegos, pela sociedade pode torná-las invisíveis aos serviços e políticas publicas de prevenção da IST/HIV/AIDS, potencializado assim a vulnerabilidade dessas pessoas.

As atitudes de discriminação e preconceito da sociedade, em relação às pessoas cegas, é resultado de uma construção sócio histórica de segregação das pessoas com deficiência. Porem hoje, a sociedade pode e deve buscar reescrever a historia, pautando suas atitudes em novos paradigmas, proporcionando aos grupos minoritários, aqui nos referindo as pessoas cegas, respeito às diferenças, a autonomia, dignidade e seus direitos fundamentais.

Finalizamos com a reflexão de Garrafa e Porto (2002) que "somente por meio do reconhecimento das diferenças e das necessidades diversas dos sujeitos sociais que se pode alcançar a igualdade"; e, portanto, minimizar a exclusão social a que a pessoa cega é exposta no seu dia a dia.

AGRADECIMENTO

À minha orientadora Dra. Eliane S. Azevêdo pela leitura e comentários ao presente trabalho.


REFERENCIAS

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