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Revista Latinoamericana de Bioética

Print version ISSN 1657-4702

rev.latinoam.bioet. vol.14 no.1 Bogotá Jan./June 2014

 

ARTÍCULO ORIGINAL

REFLEXÕES BIOÉTICAS SOBRE A EMPRESA BRASILEIRA DE SERVIÇOS HOSPITALARES (EBSERH)

REFLEXIONES BIOÉTICAS EN LA EMPRESA BRASILEÑA DE SERVICIOS HOSPITALARIOS (EBSERH)

BIOETHICAL REFLEXIONS ABOUT THE BRAZILIAN COMPANY OF HOSPITAL SERVICES (EBSERH)

Dario Palharesa
Antônio Carlos Rodrigues da Cunhab

a Médico. Doutor em Botânica. Doutorando em Bioética pela Universidade de Brasília. Autor correspondente: dariompm@unb.br. SQS 408 bl C ap. 307 Asa Sul 70257-030 Brasília, DF, Brasil.
b Médico. Doutor em Ciências da Saúde. Ex-chefe da DASA, Hospital Universitário de Brasília.

Fecha de recepción: Enero 13 de 2014
Fecha de evaluación: Marzo 18 de 2014
Fecha de aceptación: Mayo 09 de 2014


RESUMEN

Es inherente a cada ser humano la necesidad de atención de salud de las personas en algún momento de la vida. El mayor conflicto bioético radica en la categorización de la salud como un derecho, como bueno o como una mercancía. El Gobierno brasileño considera que la salud es un derecho. Para ejercer este derecho, es necesario un movimiento económico del trabajo humano y de insumos industriales. El NHS deben tratar los métodos de financiación y de gestión para alcanzar los objetivos que se propone alcanzar. En la actualidad, la gestión financiera del SUS se ha hecho principalmente por agencias gubernamentales y fundaciones, que reciben presupuesto anual y acabar el año en cero. Una estructura de negocio es diferente de la posibilidad de ganancia, permitiendo teóricamente reinversiones continuas relacionadas con la atención de la salud. Como práctica experimental en un suplemento sector - Hospitales Universitarios - es posible que la Compañía se ha convertido en los paradigmas de manejo de la atención hospitalaria en el SNS.

Palabras clave

Empresa pública, el déficit fiscal, la asistencia sanitaria de financiación, los hospitales universitarios


SUMMARY

Every human being will need health assistance at some moments throughout the life. The major bioethical conflict relies in the definition if health assistance is a right, a good or merchandise. The Brazilian State considers that Health is a right. For the execution of this right, it is necessary a great financial movement of workforce and industrial resources. SUS should try alternative modes of sponsoring and administration to reach the goals it has proposed. Up to the present moment, the financial administration of SUS has been done mostly by foundations and autarchies that receive the annual budget and end the year at zero. The structure of a company is different due to the possibility of profits, theoretically allowing to continuous re-investments related to health assistance. As an experimental practice in a complementary sector - the University Hospital - it is possible that the Company transforms paradigms in the conduction of the hospital assistance of SUS.

Key words

Public company, fiscal deficit, health finances, university hospitals.


RESUMO

É inerente a todo ser humano a necessidade de atendimento à saúde em algum momento da vida. O maior conflito bioético reside na categorização de saúde como direito, como bem ou como mercadoria. O Estado brasileiro considera que saúde é um direito. Para o exercício desse direito, é necessária uma movimentação econômica de trabalho humano e de insumos industriais. O SUS deve tentar modos de financiamento e de administração para atingir os objetivos a que se propõe. Atualmente, a gestão financeira do SUS tem sido feita essencialmente por autarquias e fundações, que recebem a verba anual e terminam o ano no zero. Uma estrutura empresarial é diferente pela possibilidade de lucro, teoricamente permitindo reinvestimentos contínuos relacionados à assistência em saúde. Como prática experimental em um setor complementar - os Hospitais Universitários - é possível que a Empresa transforme paradigmas na condução da assistência hospitalar no âmbito do SUS.

Palavras-Chave:

Empresa pública, défice fiscal, financiamento à saúde, hospitais universitários


INTRODUÇÃO

Nem todos os Governos do mundo garantem com a lei o atendimento aos problemas de saúde da população. Por muitos anos, o Brasil seguiu esse paradigma, no qual a assistência à saúde era apenas um serviço dentro da Seguridade Social, a qual não incluía a população nãocontribuinte, para quem a assistência médica somente era acessível como uma caridade. No Brasil, a Saúde tornou-se um direito intrínseco a todo cidadão somente após a Constituição de 1988 e a Lei 8080, que trata do Sistema Único de Saúde - SUS. O SUS, dessa forma, vinculou de forma indissociável a democracia à saúde (Alonso et al., 2010).

A administração da complexa tarefa de criar, manter e expandir o SUS é baseada na descentralização e na municipalização dos serviços, além de instituições estaduais e federais. Dentre as instituições federais, estão os Hospitais Universitários das Universidades Federais (HU). Os HUs usualmente integram a estrutura do SUS fornecendo serviços de média e alta complexidade, formando recursos humanos tanto em nível de graduação como de pós-graduação e realizando pesquisas científicas. Entretanto, não há provisão legal a respeito de um mínimo quantitativo de recursos financeiros a serem destinados à manutenção e expansão da rede de HUs. Disso resulta que os HUs, diante de tão variadas e complexas tarefas, encontram-se cronicamente subfinanciados, com dívidas junto a fornecedores, perpassando por recorrente falta de recursos humanos e materiais. Como já explicara Palhares (1999), ao se expandir a assistência dos HUs, expandem-se também os seus gastos.

Também, os HUs, embora contem com o trabalho do corpo docente das Universidades, necessitam da contratação de profissionais assistentes, os quais são vinculados seja mediante concursos públicos, seja mediante contratação direta de serviços. Nesse sentido, a manutenção dos recursos humanos necessários ao funcionamento e à excelência dos HUs tem consumido boa parte da verba repassada pelo SUS. Diante das especificidades e da complexidade das tarefas dos HUs, o Governo Federal criou uma empresa pública, a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares com a proposta de gerenciar os HUs. Em linhas gerais, a EBSERH é uma empresa que congrega os HUs. As Universidades decidem se vão se aderir ou não à Empresa, havendo marcos regulatórios descrevendo a co-participação das Universidades na administração e na direção dos HUs.

É a primeira vez no Brasil que uma empresa pública é criada com a missão direta de administrar e prestar serviços assistenciais em saúde. Até o presente momento, o SUS foi gerido por fundações e autarquias. Algumas empresas públicas brasileiras, como o Banco do Brasil, chegam a atuar no setor de serviços de saúde, mas apenas mediante convênios que remuneram a iniciativa privada. Considerando que a função de toda empresa é, em última instância, gerar lucro, o presente trabalho tem por objetivo refletir e analisar, dentro da Bioética, as possíveis implicações de uma empresa pública na área de assistência à saúde; sobretudo no que tange ao financiamento/venda de produtos e serviços em saúde por uma empresa estatal.

ASSISTÊNCIA À SAÚDE: DIREITO X MERCADORIA

A demanda por algum tipo de assistência à saúde é inerente a todo ser humano, em algum momento da vida; afinal; a morte é inexorável e, salvo situações de acidentes ou mortes súbitas, a morte é o evento final de um processo de decrepitude. Como bem falara Rachel de Queiroz (2002), se é nosso destino, é melhor morrermos doentes e incapazes do que cheios de energia e vigor. Na França, a Abadia de Rouen, origem do atual hospital universitário dessa cidade, já trazia, no século XVII, a máxima: "o modo que uma sociedade trata seus doentes mede o grau de civilidade dessa sociedade". Ou seja, se a doença, o sofrimento e a morte são para todos, então, a maneira como os vivos e os saudáveis tratam os enfermos reflete profundos valores morais de uma dada sociedade; a tal ponto que há uma estreita relação entre os indicadores populacionais de saúde e as condições sócio-econômicas gerais de uma população (Brasil: Ministério da Saúde, 2002).

Racionalmente, a assistência aos doentes de uma sociedade não seria problema: sob uma idéia idílica, os humanos se reuniriam e dariam assistência a seus enfermos e seriam assistidos reciprocamente quando chegassem as respectivas vezes para eles. Se Aristóteles descrevia o homem como um animal político, Karl Marx acrescenta que o homem não é apenas um animal econômico, mas como o Capital também é uma força social que orienta o modo de vida e a ocupação dos territórios no mundo. Assim, ao invés de ser o objetivo humano o de garantir uma sobrevivência digna para todas as pessoas, na verdade as sociedades apresentam a expansão do Capital como razão de ser e sua motivação de trabalho; tanto que a própria ocupação geográfica segue rotas comerciais, o que explica inclusive a ocupação de terras inóspitas com expressivos contingentes populacionais devido a fatores diversos que favoreçam o Capital. Na complexa dinâmica de expansão do Capital, a grande massa das pessoas conta apenas com a venda de sua força de trabalho para obter uma parcela dos produtos sociais e, com isso, conseguir sobreviver. Se por um lado, o lucro representa a extração da mais-valia do trabalhador, por outro, a falta de trabalho é ainda mais cruel e desesperadora, já que sem algum tipo de trabalho, o indivíduo ao não gerar produtos para a sociedade, nada recebe dela em troca.

Sendo assim, a pessoa enferma-se por se encontrar impossibilitada de trabalhar, representando triplamente que: a) é uma pessoa que não gera mais-valia; b) é uma pessoa que consome recursos e c) é uma pessoa que atravanca a expansão do Capital. A compreensão do Capital como verdadeira força motriz social explica do por que a assistência ao enfermo não é tão natural e óbvia às sociedades humanas. A Abadia de Rouen percebeu há séculos atrás que somente a partir de um grau mínimo de civilidade e de humanidade é que as sociedades conseguem domar a força do Capital, modulando-a e canalizando-a, tornando-a menos selvagem, em nome de uma ética social que renasce como um dos pilares do SUS (Alonso et al. 2010).

Com o desenvolvimento tecnológico, a dicotomia entre Capital e enfermidade tornou-se ainda mais complexa. Por um lado, o doente continua consumindo recursos. Por outro lado, a própria assistência ao enfermo transformou-se em um modo de geração de Capital: não apenas por regenerar a capacidade laboral do doente, mas também porque a assistência à saúde tornou-se um enorme e complexo investimento de recursos humanos, materiais e tecnológicos; um grande complexo industrial (Gadelha, 2003) que não apenas atua sobre o indivíduo enfermo, mas também sobre o próprio ambiente construído e habitado pelo homem.

Nesse ponto, Volnei & Porto (2003) colocam como discussão ética essencial se a Saúde é um direito, um bem ou uma mercadoria. Nessa discussão existe o conflito entre a sociedade ideal e a realidade da economia. Se eticamente a Saúde é um direito, ela representa custos, investimentos, retornos financeiros, necessitando tanto de profissionais qualificados para o atendimento ao enfermo como também para a produção, estoque, armazenamento e distribuição de insumos e produtos. Em termos mais realistas, estima-se que a cadeia produtiva da assistência à saúde (estabelecimentos de saúde, laboratórios farmacêuticos, indústria de instrumentos, etc.), além de toda a logística necessária (meios de transporte, energia elétrica, etc.); responda por 8 a 15% do PIB de um país industrializado (Portugal, 2010), e no caso do Brasil, cerca de 6% do PIB (Andreazzi e Kornis, 2008). O gigantismo do setor da saúde fica ainda mais evidente quando se considera o número de profissionais registrados nos Conselhos Profissionais das áreas de saúde (medicina, enfermagem, fisioterapia, farmácia, nutrição, psicologia, educação física, etc.), que no Brasil resulta em uma população próxima a 5 milhões de pessoas, afora os empregos diretos não-especializados que são gerados.

FINANCIAMENTO DA ASSISTÊNCIA À SAÚDE

O Estado brasileiro reconhece, constitucionalmente, que a assistência à saúde por meio de um sistema estatal é garantido para todos os cidadãos brasileiros. A implementação desse direito, contudo, depende tanto da existência de reservas financeiras como da gestão desses recursos.

Na complexa cadeia de remuneração pelos serviços assistenciais, o prestador de serviço, seja pessoa física, seja pessoa jurídica, pode ser remunerado mediante quantia fixa ou então somente após a prestação de algum serviço (Andreazzi, 2003). Em um modelo exclusivamente de profissional liberal, a remuneração é feita pós-pagamento, ou seja, o profissional recebe após prestar um serviço. E a remuneração pré-pagamento diz respeito a profissionais assalariados ou então a serviços de saúde que recebam uma verba fixa para ser gerida ao longo, por exemplo, de um ano (Andreazzi, 2003).

Se o serviço de assistência à saúde deve ser remunerado de alguma forma, é preciso então analisar o inverso, ou seja, como é que o usuário pagará pelos serviços. A reserva financeira a ser destinada ao pagamento de serviços e insumos de saúde pode ser realizada de três maneiras:

a) Constituição de um patrimônio pessoal/familiar próprio (poupança, investimentos)

b) Constituição de um patrimônio gerido por empresários (planos privados de saúde)

c) Constituição de um patrimônio gerido pelo Estado

Ou, em outras palavras, o doente pode ser assistido como 'particular', como 'plano de saúde' ou como 'sistema público de saúde'. O enfermo assistido como 'particular' é o mais antigo de toda a prática médica, e restrito a uma pequena elite socioeconômica. Os planos privados de saúde constituem um grupo heterogêneo de estruturas de mercado que captam clientes, os quais pagam uma taxa periódica em troca de assistência à sua saúde, cuja liberdade de escolha varia conforme os contratos. E o Estado brasileiro entra tanto regulando o setor de planos de saúde como arrecadando impostos de todos os cidadãos para a gestão de serviços de saúde (Viana e Elias, 2007).

A acumulação e a gestão dos recursos estão em meio à grave disparidade social que caracteriza ao Brasil. (Brasil: Ministério do Planejamento, 2000). A riqueza do Brasil deixa para nós a impressão de que a existência de reservas financeiras a serem destinadas à saúde não seriam um fator limitante. Uma visão mais simplista é que o problema seria, a princípio, apenas a problemática da gestão de recursos (Viana e Elias, 2007; Vianna, 2002), começando pela insuficiência do orçamento destinado ao sistema público da saúde, mas perpassando pela falta de profissionalismo na administração dos recursos (o que dependeria apenas de treinamento profissional), em meio a inúmeras denúncias de desvios de verba (o que dependeria de um sistema de controle eficaz).

Esses aspectos citados fazem parte do cotidiano. Mas ainda assim, há muitos bons exemplos de municípios com sistemas de atendimento à saúde bem administrados e estruturados. Uma das grandes conquistas sociais do SUS é justamente a de oferecer serviços do assim chamado Atendimento Primário em praticamente todos os municípios, embora haja pequenos municípios sem qualquer tipo de assistência.

Ora, se pensarmos que o Atendimento Primário seja presente nos municípios, então seria de esperar que restasse à iniciativa privada os casos mais graves e mais complexos (Barjas e DiGiovani, 2001). Contudo, dentro da dinâmica capitalista, a iniciativa privada cria maneiras de conquistar clientes e com isso acumular um montante significativo de lucros. Na iniciativa privada, já não basta uma assistência médica efetiva, mas atraem-se clientes mediante ambientes requintados, serviços com hora marcada, etc. A assistência à saúde já não é apenas vencer a doença, mas toda uma indústria de estética, de exames 'preventivos', de procedimentos que atendem a uma demanda de mercado (Vianna, 2002; Siqueira-Batista, 2010). Se a espera por um procedimento eletivo no serviço público chega a algumas semanas, na iniciativa privada isso é inadmissível. Em boa parte dos casos, obter um exame de sangue chega a exigir três viagens ao laboratório público entre marcar, colher o sangue e ter resultado em mãos, enquanto a iniciativa privada necessita de somente uma ida ao laboratório e conexão via internet para os resultados (Siqueira-Batista, 2010).

Por que, então, na prática, a beleza e o luxo das clínicas privadas contrastam com a decrepitude, a desorganização, o excesso de demanda, a falta de insumos básicos dos hospitais públicos? Se o serviço é o mesmo, e se o SUS é gratuito, quais estruturas econômicas sustentam tal discrepância? Na assistência médica privada, paradoxalmente, ocorre um curioso fenômeno empresarial. Poucas, talvez nenhuma, empresa privada se declara bem remunerada pelos convênios, os quais entraram como intermediários obrigatórios entre os pacientes e as empresas de assistência à saúde. No entanto, uma prática bastante comum a essas mesmas empresas é a adoção de uma estratégia de cobrar mais dos 'particulares', isto é, dos pacientes que não dispõem de um convênio. Um serviço 'x' que é pago por um plano de saúde no prazo de várias semanas chega a ser cobrado '3x' de um particular que paga à vista! Essa inversão de valores empresarial deveria ser objeto de estudo mais aprofundado: por que isso ocorre justamente no setor saúde? A empresa em saúde é talvez a única que cobra (muito) mais caro por um serviço pago à vista e de forma imediata. As implicações bioéticas da distinção de preços entre 'convênio' e 'particular', com nítido desfavorecimento deste, também deveriam ser objeto de reflexões mais detalhadas.

O contexto tecnológico da assistência à saúde se caracteriza por custos globais crescentes (Gadelha, 2003). Nota-se uma inflação nos custos de atendimento tanto dos procedimentos de Assistência Básica como para a cobertura de casos mais complexos, a qual se depara com insumos cada vez mais refinados, especializados e que em seu conjunto oneram a assistência de forma um tanto quanto desproporcional. A inflação nos custos de assistência básica decorre de movimentos complexos de concentração de atividades, nas quais a evolução tecnológica termina por exigir altos investimentos iniciais, o que inibe o surgimento de prestadores de serviço na concorrência do mercado (Andreazzi e Kornis, 2008). Nesse sentido, o avanço tecnológico rumo aos casos mais especializados necessita de um contínuo e bem estruturado programa de ciência e tecnologia junto ao complexo industrial da saúde (Gadelha, 2003). A regra de Pareto poderia modelar um sistema de assistência à saúde onde o atendimento a 20% dos casos mais graves consumisse 80% dos recursos econômicos (Pereira, 2011). Não obstante, o custo do atendimento de casos complexos chega a ser inalcançável para 'particulares' e até mesmo para empresas de planos de saúde, os quais, então, recorrem ao Estado para o atendimento.

FORMAS DE CAPITALIZAÇÃO DO ESTADO PARA O FINANCIAMENTO DA ASSISTÊNCIA À SAÚDE

Em alguns Governos, o financiamento estatal da assistência à saúde é feita nos moldes empresariais dos planos de saúde: o cidadão paga uma taxa e em troca dispõe de uma rede de serviços, os quais são remunerados conforme o número de procedimentos executados. No Brasil, a forma adotada é que a Saúde é financiada com parte dos impostos arrecadados (Amaral e Olenike, 2010). Ainda que o SUS execute boa parte do atendimento à saúde, ainda assim o Estado brasileiro tem agido como um grande financiador da iniciativa privada (Feliciello, 1992). Mesmo a existência do SUS não impediu que órgãos governamentais criassem planos de saúde para seus funcionários, ou seja, paradoxalmente os próprios funcionários públicos preferem a rede privada ao SUS. O Brasil tem inclusive exemplos, ainda que sobre questionamento judicial, de municípios que criaram seguros de saúde e obrigatoriamente descontam taxas no contracheque de seus funcionários. Não obstante, principalmente para serviços mais especializados, o SUS de diversos municípios contrata serviços da iniciativa privada (Barjas e DiGiovani, 2001).

Esse paradoxo entre a lucratividade e a musculatura financeira dos serviços privados comparativamente ao sistema público é por vezes abordado em uma visão simplista na qual o Estado, ao ser um agente político, estaria sujeito a ingerências de todo tipo. A ideologia liberal insiste que a administração estatal é necessariamente menos eficiente que a administração privada, e em alguns municípios tem havido experiências de gestão dos serviços assistenciais nas quais o Estado financia e fiscaliza e a iniciativa privada administra os serviços (Viana e Elias, 2007). Ainda assim, essa ideologia liberal não encontra respaldo nas experiências reais. A iniciativa privada não é necessariamente mais ágil que o Estado; pelo contrário, mais da metade das empresas morre no primeiro ano de existência (Brasil: Ministério do Planejamento, 2000). Algumas das organizações privadas financiadas pelo Estado sofreram desvios de verba e má gestão e praticamente faliram. Do ponto de vista estritamente administrativo, conclui-se que existem bons e maus administradores tanto no ambiente estatal como no ambiente privado. A administração estatal, tal como qualquer organização social, apresenta altos e baixos de eficiência, resultantes, em última análise, da capacidade gerencial do gestor de plantão e do ambiente político de um determinado período.

A maior diferença estrutural entre a iniciativa privada e a gestão estatal consiste na capacidade de criação de reserva financeira. As estruturas estatais (autarquias e fundações) recebem a dotação orçamentária anual, gastam tudo e terminam o ano fiscal no zero ou no negativo (Palhares, 1999) até que o Estado arrecade no próximo ano fiscal e novamente direcione verbas. Já a empresa recebe o investimento, gerencia o serviço e gera lucro ao final do ano, podendo reiniciar um novo ciclo de investimentos. Quer dizer, tanto faz que a administração da verba do SUS seja feita por autarquias ou por organizações privadas contratadas: em essência, há uma verba a ser esgotada ao final de um período orçamentário.

Existe, porém, uma outra estrutura estatal para a obtenção de reservas financeiras: a empresa pública. A empresa pública é uma entidade onde o lucro não é uma finalidade em si mesma, mas um meio de o Estado obter continuamente verbas para investimento e reinvestimento (Bastos, 1995). Historicamente, no Brasil, a empresa pública tem-se mostrado como a grande mola propulsora do Estado em (Palhares, 1999):

a) Atividades estratégicas, de segurança nacional: energia, petróleo, comunicações, navegação espacial.

b) Atividades que exijam planejamento e investimentos vultosos em pesquisas científicas de longo prazo

c) Atividades de inclusão social, geralmente grandes massas populacionais cujos indivíduos disponham de parcos recursos financeiros (ganho de escala): correios, saneamento básico, telefonia pública, agências bancárias.

Nesse sentido, o Atendimento Secundário e o Terciário à saúde se encaixam perfeitamente nesses quesitos: exigem investimentos em ciência e tecnologia, planejamento de médio a longo prazo, construção de infraestrutura e a população-alvo não dispõe de recursos privados suficientes.

No Brasil, houve experiências históricas bem-sucedidas nesse campo. Embora não com a denominação de empresas públicas, mas com a denominação de fundações de apoio, hospitais terciários que adotaram uma estrutura empresarial para a captação de clientes e recursos. Sob a nomenclatura de Fundo de Pesquisas, o Instituto de Cardiologia de São Paulo, na década de 60, classificou os pacientes conforme o estrato social. Agiu como verdadeira empresa pública, onde os pacientes que pagavam 10%, 20%, 40%, 60% e o valor integral dos serviços financiavam a massa de 60% dos pacientes que não dispunham de recursos próprios. Também, na década de 70, o Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, adotou um modelo de empresa pública, financiado tanto pelo Inamps como pela iniciativa privada. Em ambos os casos, o resultado foram dois centros portentosos de pesquisa e de assistência à saúde (Jatene, 2010). Contudo, houve críticas de ordem moral contra essa estrutura, a qual geraria duas portas distintas e desiguais de acesso ao serviço: uma pública e outra privada. Essa crítica seria moralmente válida se ela fosse referente a todo o sistema; mas, racionalmente, em termos socioeconômicos, é melhor haver centros de excelência que de alguma forma atendam à população economicamente desfavorecida do que manter apenas unidades cronicamente falidas.

Os HUs são grandes consumidores de recursos financeiros, o que condiz com a múltipla natureza de seus propósitos: atendimento ao público, formação de recursos humanos, pesquisa, procedimentos de alta complexidade. O montante neles aplicado é considerável, e ainda assim é insuficiente para cobrir as despesas. No geral, tais hospitais ultrapassam o teto de repasses pelo SUS, atendendo a muito mais pacientes do que efetivamente são pagos. Por serem centros formadores de profissionais da saúde e por aglutinarem pessoal qualificado, terminam por estar no centro de debates quanto a seu papel e seu financiamento. De todo modo, embora os HUs prestem serviços ao SUS, não lhes cabe por princípio a gerência do SUS, a qual é, idealmente, de responsabilidade dos municípios. Os HUs representam um acréscimo, uma retaguarda ao sistema.

Se pudessem atuar como empresas, os HUs poderiam ser tratados como investimentos para as Universidades, ao poderem gerar lucro. Tendo reservas monetárias, poderiam financiar e criar estruturas para pesquisas (Gadelha, 2003) em saúde (e no que tange à inovação em saúde, o Brasil está muito defasado em relação ao Mundo). E, também, como faz a maioria das empresas públicas criadas no Brasil, poderiam se tornar agentes de inclusão social e atendimento à população que necessita de atendimentos complexos.

Palhares (1999) já propunha que as empresas públicas deveriam ser incluídas no rol de estruturas estatais para o atendimento à saúde. A presença de uma empresa pública não exclui a manutenção de fundações e autarquias, mas antes pode complementar, dentro de todo o Sistema, atuando em setores mais complexos. A percepção que caberia aos hospitais universitários essa tarefa é muito pertinente, dada as suas características peculiares. Evidentemente, faltam definir detalhes para o funcionamento da EBSERH, tais como: a inclusão dos estudantes dos cursos de saúde na estrutura dos hospitais, o destino e o gerenciamento das verbas arrecadadas, o percentual de pacientes pagos pelo SUS e o percentual de pacientes financiados pela iniciativa privada, o custo dos serviços e dos procedimentos, o destino das patentes geradas por suas futuras pesquisas, etc. Os hospitais universitários são muito heterogêneos, e tal heterogeneidade deve ser contemplada no delineamento organizacional.

Mas, em conclusão, a criação da EBSERH representa uma mudança de paradigmas da administração econômica do SUS. Existem experiências históricas que dão suporte a essa tentativa. Conforme Alonso et al. (2010) já apontavam processos de mudança, ainda mais quando significam quebra de paradigmas e construção de novos conceitos criam, em um primeiro momento, ações de resistência, que pretendem restabelecer a ordem e a zona de conforto existente (ou, ao menos, a zona de desconforto já conhecida).


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