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Revista Latinoamericana de Bioética

Print version ISSN 1657-4702

rev.latinoam.bioet. vol.14 no.2 Bogotá July/Dec. 2014

 

ARTÍCULO ORIGINAL

HEIDEGGER PARA A BIOÉTICA

HEIDEGGER SOBRE LA BIOÉTICA

HEIDEGGER ON BIOETHICS

Julio Cabreraa
Mercedes Cecilia Salamanob

a Doutor em Filosofia, professor titular no Departamento de Filosofia, UnB (Universidade de Brasília), Brasil. kabra7@gmail.com.
b Máster em Ciências Políticas e Sociologia. Aluna do Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Bioética UnB (Universidade de Brasília) Brasil. Recebe Bolsa Estudantil pela CAPES denominada Demanda Social - Decanato de Pesquisa e Pós-Graduação - Universidade de Brasília. msalamano@hotmail.com.

Fecha de recepción: 9 de abril de 2014
Fecha de evaluación: 8 de mayo de 2014
Fecha de aceptación: 9 de junio de 2014


RESUMO

Dentro do atual panorama de crise global, tenta-se colocar em discussão a proposta do filósofo Martin Heidegger, que pode modificar a formulação de uma boa parte das questões bioéticas. O filósofo alemão apresenta uma nova noção do humano, não mais como "pessoa" ou "agente racional", mas como Dasein, como existente, mostrando seu confronto contra o paradigma baconiano-cartesiano, que tem norteado a atual visão tecnológica e capitalista do mundo. Heidegger sustenta que o perigo inicia-se desde uma visão do mundo como objeto de exploração, norteada pela metafísica como constante esquecimento da finitude, criando estruturas fixas de pensar. Segundo ele, a Modernidade foi construída em torno a três ideias: o sujeito como centro e fundamento, a ciência como critério único de verdade e o progresso e sua consequente tecnificação do mundo; haveria que liberar um espaço para outro tipo de criação que não exclua a técnica, mas que também não a enobreça a um ponto que o resto desapareça. Num plano mais próximo da Bioética, Heidegger pode ser extremamente instigante na questão da distinção saúde-doença e problemas como a medicalização, na tentativa de obter uma noção existencial destes conceitos, superando a sua visão metafísica tradicional. A saúde deixa de ser um acontecimento objetivo para transformar-se em projeto existencial.

Palavras-Chave:

Bioética, Heidegger, humanidade tecnologizada , saúde/doença, medicalização.


RESUMEN

Dentro del actual panorama de crisis global, se intenta poner en discusión la propuesta del filósofo Martin Heidegger, que puede modificar la formulación de una buena parte de las cuestiones bioéticas. El filósofo presenta una nueva noción de lo humano, no solo como "persona" o "agente racional". Según el concepto del Dasein, la modernidad fue construida en torno a tres ideas: el sujeto como centro y fundamento, la ciencia como criterio único de verdad en el progreso y su consecuente tecnificación del mundo; habría que liberar un espacio para otro tipo de creación que no excluya la técnica, pero que tampoco la exalte hasta el punto de que lo demás desaparezca. Heidegger puede ser extremadamente instigante en cuanto a la distinción salud-enfermedad y problemas como la medicalización, en el intento de obtener una noción existencial de estos conceptos, superando su visión metafísica tradicional. La salud entonces deja de ser un acontecimiento objetivo para transformarse en un proyecto existencial.

Palabras clave

Bioética, humanidad tecnogilizada, salud/enfermedad, medicalización.


ABSTRACT

Within the present global crisis, we discuss some proposals of the philosopher Martin Heidegger concerning the human being that could sensibly modify the formulation of a good portion of bioethical questions. He introduces a new concept of human, not as a person or rational agent. According to Dasein modernity was built around three main ideas: the subject as a center, science as the sole criterion of truth and progress and the consequent technification of the world. There would have to liberate a place for another kind of creation that doesn't excludes the technical and neither stands out it to the point to make everything else disappear. Heidegger can be extremely useful on the issue of health-illness distinction and medicalization, in an attempt to obtain an existential notion of these concepts surpassing the traditional metaphysical view. Health is no longer a fact, but an existential project.

Keywords

Bioethics, tecnologized humanity, health/illness, medicalization.


INTRODUÇÃO: A NOÇÃO DE HUMANO, DA PESSOA PARA O DASEIN

A ideia de trazer o pensamento de Martin Heidegger para o âmbito da bioética apareceu inicialmente num texto que Julio Cabrera apresentou numa reunião de Bioética em Montevidéu em 2004, publicado em espanhol e português no ano 2006. O texto chamava-se "A questão ético-metafísica: valor e desvalor da vida humana no registro da diferença ontológica", sendo esta última já uma categoria heideggeriana. Neste artigo sustenta-se uma tese polêmica: que seria vantajoso para a Bioética substituir a sobre utilizada (e frequentemente vaga) noção de "pessoa" pela noção de "existente" (Dasein), no sentido do filósofo alemão (1). A noção de "pessoa" está ligada com a filosofia tradicional de raiz metafísica, precisamente a tradição criticada por Heidegger, ligada com o paradigma cartesiano-baconiano e com a noção do humano como agente racional que depois gera a atual visão tecnológica e capitalista do mundo. Era aqui a própria noção de "humano" o que estava em jogo, assunto central não apenas para este ou aquele problema bioético particular, mas para a noção mesma de Bioética como área interdisciplinar de estudo. De acordo com Heidegger (na reconstrução de Cabrera 2006), há na filosofia a tentativa de definir o ser humano a partir das suas propriedades, no que alguns seguidores do filósofo costumam se referir como "metafísica das propriedades".

Nesta perspectiva é que Peter Singer, por exemplo, em "Ética Prática", seguindo o teólogo Joseph Fletcher, chama "indicadores de humanidade". Todo o humanismo clássico e moderno depende dessa metafísica de propriedades que tenta definir a essência do homem por meio da racionalidade e a personalidade. Entre estes "indicadores de humanidade" temos a consciência de si, o autocontrole, o senso do futuro e do passado, a capacidade de relacionar-se com os outros, etc. (Singer, 1994, p. 94). Este tipo de indicador racionalista cartesiano de humanidade tem o impacto imediato de, por exemplo, deixar as crianças muito pequenas (não digamos já fetos) despojadas da sua humanidade (o que configura uma visão do humano potencialmente capaz de justificar o infanticídio, como, de fato, acontece em autores como Michael Tooley e o próprio Singer).

Heidegger propõe outra noção de humano, como sendo Dasein. Aqui o humano não é a pessoa da racionalidade científica, mas um ser jogado às suas possibilidades; não jogado num mundo previamente dado, mas sim um ser-no-mundo em unidade profunda com um mundo que ele mesmo "mundaniza" e faz ser. O humano é visualizado aqui como um ser "sem ser", que tem de empenhar-se para constituir seu próprio ser, para procurar, inevitavelmente, fazer a si mesmo desde o nada de suas possibilidades radicais sob a sua completa responsabilidade (visão do humano que será depois exacerbada na obra de Jean-Paul Sartre). Isto significa que -no viés heideggeriano- o humano não tem nenhuma essência (nem racional nem moral), é puro projeto de fazer-se. Esta concepção do humano é exposta -numa linguagem nada simples- já na obra seminal "Ser e Tempo", publicada em 1928.

Na segunda fase de seu pensamento, Heidegger desenvolverá a ideia da situação do humano no mundo como uma espécie de morar, de habitar, mais do que como um projeto plenamente racional e consciente de ser (na linha dos "indicadores de humanidade"). O Dasein é um modo de ser finito e indeterminado, fundamentalmente temporal e histórico; significa uma abertura para o ser a través de numerosos existenciais (as "categorias" da existência, termo que Heidegger prefere evitar para não ser sugado novamente pela posição metafísica que critica), tais como compreender, estar-aí, ser para a morte, angústia, etc. É na base destes existenciais que o humano pode, mais tarde, ser racional, lingüístico, autoconsciente, autocontrolado, ter senso do futuro, etc., não como constituindo uma espécie de essência fixa, mas como desdobramentos do seu existir originário lançado, gratuito e auto-constituinte.

Um dos corolários mais interessantes deste entendimento existencial do humano para a ética e para a bioética, é que a verdade e a falsidade deixam de ser os parâmetros fundamentais de uma vida humana, para serem substituídos pela autenticidade e inautenticidade da existência. Assim, uma vida cheia de entes gratificantes (familiares, profissionais, etc.) pode ser, apesar disso, existencialmente falsa ou vazia. Esta visão das coisas pode ser extremamente influente na abordagem de questões bioéticas fundamentais. Como não é possível desenvolver aqui toda a riqueza desta proposta, apenas nos limitaremos a dois eixos fundamentais: a questão da técnica e a questão da distinção entre saúde e doença.

HEIDEGGER E A QUESTÃO DA TÉCNICA

A ideia básica consiste, pois, em perguntar-se qual seria o impacto na Bioética caso passássemos de conceber o humano como pessoa plenamente racional, deliberativo e consciente, etc, a concebê-lo num viés heideggeriano, como um existente. Quais seriam as contribuições conceituais que nos ofereceria a analítica existencial heideggeriana para pensar a Bioética e seus insistentes problemas com a igualdade, a justiça, a convivência e a sobrevivência, mas agora entendendo estas questões fora do contexto metafísico onde foram tradicionalmente concebidas. Heidegger pensa que o arcabouço da moderna ciência tecnológica é fundamentalmente metafísico (um desdobramento tardio do platonismo). Sobre este assunto, Heidegger escreveria um famoso texto, "A questão da técnica" (1953). Habitualmente os diagnósticos da crise da modernidade e de seu tratamento bioético se fazem para um humano pensado como pessoa racional, num referencial cartesiano, como se os humanos fossem completos, sem a angústia do fazer-se, sem um ser para a morte para viver, etc. Em seu artigo sobre a técnica, Heidegger pressupõe que seus leitores conhecem a concepção do humano tal como exposta em "Ser e Tempo".

Neste texto crucial, Heidegger entende que, no mundo atual, não é tão simples questionar a técnica sem mais, na medida em que a tecnologia ocupa um lugar central na vida cotidiana dos indivíduos; não se trata - como leitores estilo Adorno fizeram - de ver as considerações heideggerianas acerca da técnica apenas como um conjunto de críticas românticas que cairiam numa espécie de apologia do mundo natural ou do ecologismo. A idéia é abordar a técnica como um perigo para o pensamento, mas a través de um questionamento hermenêutico da mesma: "A essência da técnica também não é de modo algum algo técnico", afirma Heidegger (1997, p.43). Deste modo, Heidegger não se pergunta pela técnica em si mesma senão por sua essência, que tem a ver com a sua ocorrência dentro da história do ser. Neste sentido, a essência da técnica descansa, segundo ele, numa estrutura chamada "fundo fixo acumulado" ou "estrutura de emprazamento" (Ge-stell), uma espécie de arcabouço tirânico onde tudo se transforma em ente disponível para o manuseio e a organização.

É necessário entender que para Heidegger a Modernidade não configura simplesmente um período determinado da historia da humanidade, senão um modo de ocorrer o ser, e é aqui onde se dá o domínio técnico do mundo, ou seja, o esplendor da razão instrumental e da metafísica consumada. Ao dizer de Heidegger, a metafísica tem sido caracterizada pelo esquecimento constante da finitude, criando estruturas fixas que predeterminam modos de pensar. Estes traços da Modernidade foram construídos em torno a três ideias: o sujeito como centro e fundamento, a ciência como critério único de verdade e o progresso e sua consequente tecnificação do mundo.

O lugar do "Eu" na Modernidade racionalista é um sujeito que não necessita do mundo para ser. O real torna-se pura representação do sujeito em seu poder de afirmar esse real em toda sua certeza e verdade. Ao dizer de Heidegger, a filosofia assume aqui o modelo de racionalidade técnicocientífica e afirma que a metafísica descreve uma estrutura do ser que qualifica como objetivamente verdadeira. O ser convertido em ente é o pré-suposto da fundamentação metafísica, e a sua ilimitada manipulação é a configuração especificamente técnica da metafísica. Neste sentido, o esquecimento do ser a favor do ente é o modo no qual se dá a técnica moderna (o atual modo do esquecimento do ser, que já fora esquecido de outras maneiras ao longo da história). Logo, se o sujeito da Modernidade é aquele que demanda sempre mais da natureza através da técnica, chega o tempo no qual os papéis se invertem e o ente demandante se converte no ente demandado. Nesta situação, para nos salvar, somente podemos arriscar pensar o ser não já como fundamento senão como evento. Esta é uma temática que não está tratada em "Ser e Tempo", mas em obras posteriores de Heidegger (2).

Aqui aparece uma ponte entre a técnica e a hermenêutica, entendida a primeira como perigo e a segunda como salvadora. Heidegger diz em "A virada" (Die Kehre) que o perigo não é o desenvolvimento tecnológico nem a destruição do planeta, senão que é o ser mesmo que está em perigo (Heidegger, 2008, p.13). Se o perigo está no próprio ser, igualmente perigosa é a "abertura ao ser" e, nesse sentido, o inicio do perigo se inicia já desde o nosso pensar - que foi reduzido a ser a razão do racionalismo- e procurou a perfeição do sistema e o atraso da reflexão. Pois ninguém vá negar que foi precisamente a técnica a que nos permitiu desenvolver nossas possibilidades mais criativas, mas o perigo está em que tal criatividade transitou por um caminho somente (aquele da metafísica) promovendo uma visão do mundo como objeto de exploração e uma visão de nós mesmos apenas como meros sujeitos exploradores.

Seguindo Heidegger, a técnica fechou as portas de praticamente todo outro modo de pensar, de criar e de revelar o ser. Haveria que liberar um espaço para outro tipo de criação que não excluísse a técnica, mas que também não a enobrece a um ponto que o resto desapareça; uma dessas vias alternativas seria, por exemplo, a revelação como acontece na poesia e nas artes. Ele vai dizer que ao interior do perigo cresce o que salva, já que nosso pensar e nossas possibilidades poéticas são capazes de mostrar uma nova abertura ao ser, uma fonte de multiplicidade e não de univocidade (Heidegger, 1997, p. 91). O termo "salvar" significa lançar, libertar, cuidar, resguardar, pensar o ser já não como fundamento senão como acontecer. Heidegger diz que o único lugar no qual o ser pode se mostrar como ocorrer, é na linguagem. Então, a linguagem é para Heidegger criação, poieis, advento e fundação do ser pela palavra, linguagem como interpretação sempre inacabada, como hermenêutica capaz de interpretar a palavra sem esgotá-la, sem reduzila a uma estrutura única.

Nesse sentido, podemos afirmar que a fundação de um saber hermenêutico como proposto por Heidegger abre para nós um modo distinto de pensar, outro modo de relacionarmos com o mundo, técnico e não técnico. A hermenêutica, assim compreendida, é um modo de filosofar que assume o finito da existência e pensa o ser como evento, com múltiples interpretações e perspectivas, que são históricas, cambiantes, não definitivas nem definitórias, labirinto infinito e pluridimensional, que podem modificar substancialmente a nossa maneira de conceber o âmbito da bioética, na medida em que seus problemas estão afetados pela visão e a linguagem da técnica. Trata-se de uma hermenêutica que, à margem da racionalidade instrumental, possa-se abrir a distintas experiências, frágeis e contingentes, sem ser interpretado como conhecimento consumado; uma hermenêutica que afirme o devir, a mobilidade do ir e do vir, o vaivém na criação de sentidos (Rivero Weber, 2003, p. 12).

A questão da técnica se apresenta, pois, como uma forma de aceder ao ser de nosso tempo, porque a técnica é predominante na relação humana com o mundo. Vivemos no mundo da tecnosfera, tudo quanto materialmente nos circunda remete à tecnologia e ela virou-se inerente a nossa condição de vida e a nossa condição existencial. De acordo com Heidegger, a nossa era é "técnica" não porque existam máquinas senão porque "o modo de pensar se tornou técnico". O mérito da referência heideggeriana consiste em não ter por objetivo apenas uma historia da tecnologia, mas propor uma visão ontológica, avançando uma denuncia do homem de hoje vivendo sob a dominação da técnica, mas esclarecendo que o fato de fazer essa crítica não significa ficar contra o fenômeno mesmo. Ele quer resgatar o sentido originário e livre da relação entre o homem e a técnica. "A técnica é o destino da nossa época" (Heidegger,1997, p. 75).

A questão da técnica pode ser um dos momentos em que vale a pena trazer o pensamento de Heidegger para a Bioética, na medida em que as próprias questões bioéticas se tornaram técnicas, por exemplo, no furor de um principialismo reducionista em sua aplicação "técnica" na resolução rápida de situações extremamente complexas, através de tecnologias médicas. Mesmo valores supremos como igualdade, convivência e justiça se tornaram técnicos dentro da armação (Gestell) do disponível e organizado. Tratar-se-ia de repensar estes valores agora à luz da concepção existencial do humano. Nestes tempos sombrios, só poder-nos-á salvar a nossa própria capacidade de reflexão, aumentada pela sensibilidade, de modo que o mundo possa deixar de ser algo que fica aí para ser usado, armazenado, consumido ou rejeitado.

Via Heidegger, deveriam, pois, ser analisadas as relações do ser com a técnica moderna, que constantemente provoca a natureza (por exemplo, a agricultura passa a ser vista apenas como mera indústria da alimentação, o ar convocado apenas como entrega de nitrogênio, o solo como fornecedor de minerais, urânio e energia). Na mesma medida em que considerarmos a técnica como algo neutro, mais estaremos inclinados a render-lhe um tributo cego.

HEIDEGGER, A QUESTÃO DA SAÚDE/DOENÇA E A MEDICALIZAÇÃO

Nesta trilha da tecnologização do âmbito das questões bioéticas, Heidegger pode ser extremamente instigante na questão específica, fundamental na Bioética, da distinção saúde-doença, e em fenômenos correlatos tais como a medicalização, na tentativa de obter, no primeiro momento, uma noção existencial destes conceitos, superando a visão metafísica tradicional. A saúde deixa de ser um fato objetivo para transformar-se em projeto existencial.

O termo "medicalização" é proposto por vários autores de destaque - desde Michel Foucault e Illich até Kishore, Rosenberg, Conrad, Navarro, entre outros, que convergem em alguns aspectos apesar de virem de visões muito diferentes. Trata-se de um processo no qual a medicina moderna se expande e coloniza situações que até o momento não eram consideradas patógenas pelas instituições médicas; um fenômeno a través do qual a vida cotidiana é expropriada pela medicina em um processo de expansão, controle e até de destruição do potencial cultural de pessoas e comunidades, e onde os medicamentos podem preceder as doenças e contribuir a produzi-las.

Heidegger fala que os conceitos de saúde e doença formulados pela tradição ficam presentes de maneira imperceptível e determinam os limites e os modos de interpretação; portanto é necessário voltar para eles com outro olhar, não para livrarmos desses termos senão para chegar a uma reapropriação dos mesmos. Nesse caminho achamos que Heidegger escaparia tanto das caracterizações estáticas e substancialistas de saúde e doença quanto das definições dinâmicas da Modernidade, através de uma postura extremamente original que levaria a uma espécie de indefinição essencial destas categorias. Vejamos isto melhor.

Em muitos de seus livros (por exemplo, "O que significa pensar?"), Heidegger tem-se perguntado se o método cientifico estaria em condições de dizer o que a natureza é. Quando se trata de perguntas fundamentais, o método científico fica muito longe de provas e verificações efetivas e, no caso do fenômeno da natureza, onde seu ser é desentranhado como causalidade, logo desta derivase o mero cálculo e mais tarde a dominação da natureza a través de métodos redutivos. Está muito claro que no sentido heideggeriano a posição existencial da dualidade saúde-doença se enfrenta ao paradigma baconianocartesiano ainda predominante nas ciências da saúde. Heidegger não escreveu especificamente sobre o assunto, mas a partir de seus textos podemos inferir que, para ele, a doença nunca poderia ser algo produzido causalmente, mas um fenômeno existencialmente motivado.

O filósofo nos propõe ir além dos conceitos usuais de organismo e de vida propostos pelo mecanicismo e pelo vitalismo, motivando-nos a inventar um conceito novo do modo de ser do vivente enquanto tal. Não há objetos ou coisas no mundo que "causem" linearmente doenças sem que o existente humano (o Dasein) tenha aceitado esses objetos ou coisas como causas, através da mediação de um projeto existencial. Nos termos de Sartre, a doença é escolha (embora nem sempre escolha livre).

Dentro de uma noção existencial da distinção saúde/ doença, o humano tenta de fazer para si mesmo um ser que não está ali, um ser fugidio, mediante escolhas angustiadas de si mesmo; Heidegger veria a saúde como parte deste empreendimento existencial de fazerse; nesse processo, o Dasein poderia escolher livre e dramaticamente a doença, talvez mais autêntica do que a saúde. Lembremos que o valor máximo dentro da analítica existencial não é a verdade objetiva ou a adequação do humano ao mundo, mas sim a autenticidade da existência, o que Heidegger chama de "propriedade". Para o autor, a questão da doença como estado, a medicina como salvação e, ainda o processo de medicalização, seriam construções tipicamente metafísicas.

Os denominados "Seminários de Zollikon", encontros periódicos de Heidegger com Medard Boss e um grupo de psicólogos e psiquiatras; encontros que aconteceram entre 1959 e 1969 aproximadamente, vão mostrar os três modos de relação de Heidegger com a medicina e com os profissionais da saúde. O primeiro apartado dessa obra está constituída pelas sessões onde estão presentes todos os participantes (seminários propriamente ditos); no segundo relatam-se os diálogos entre Heidegger e o psiquiatra Medard Boss, que resultam num pequeno dicionário esclarecedor. A última parte do livro contém fragmentos das cartas entre Heidegger e Boss em uma espécie de aventura dialógica. Os seminários resultam iluminadores em vários sentidos; fala-se do tempo, a natureza, a angústia, o corpo, as doenças psicossomáticas, a esquizofrenia, o estresse, a transferência, entre outros.

Nesta obra Heidegger vai mostrar como o dogmatismo da ciência positiva e disposicional inibe a capacidade de assombro diante do ser e do humano. Ele vai dizer que a mesma ciência, inserida na dinâmica do progresso, tornouse cega. Por exemplo, os psicólogos naturalistas continuam vendo os humanos como depósitos de doenças, em lugar de vê-los como Dasein, para quem a doença é sempre e inevitavelmente um processo histórico.

Na ciência contemporânea encontramos o querer dispor da natureza, o tornar útil, o poder calcular antecipadamente, o predeterminar como o processo da natureza deve-se desenrolar para que eu possa agir com segurança perante ele. A segurança e a certeza são importantes. Exige-se uma certeza no querer controlar. O que se pode calcular de antemão, antecipadamente, o que pode ser medido é real e apenas isso. Até onde isto nos leva perante uma pessoa doente? Fracassamos! O princípio de causalidade tem efetividade na Física, e ainda assim só limitadamente. (Heidegger, 2007, p. 47)

É pertinente trazer Heidegger para a Bioética ao refletir sobre o porquê as pessoas parecem deixarse enganar de maneira tão fácil, caindo nas garras da medicalização e da politização da saúde. Respostas meramente sociológicas ou políticas deste fenômeno vão frisar a situação da saúde num contexto de capitalismo tardio, neoliberalismo e mercantilização do corpo; mas Heidegger pode ajudar a descobrir também alguns motivos ontológico-existenciais desses fenômenos de auto-engano. No fenômeno da medicalização, que interfere tão profundamente com a vida diária das pessoas, ainda mais, patrocinada pelo poderoso aparato de propaganda, é possível fazer que inúmeros Dasein passem a ter projetos que por si só jamais teriam.

Num outro momento, poderíamos falar também, à luz do pensamento de Heidegger, da compreensão dos limites entre responsabilidade e incumbência da medicina cientifica a respeito de seus pressupostos existenciais. Não é obrigação de o cientista obedecer a um modo de pesquisar que deliberadamente esquecese de seus próprios pressupostos. A exigência da abordagem existencial fica no patamar de pensamento não apenas reflexivo, mas de um pensar histórico que coloca perguntas cruciais que demandam respostas variadas, visando salvar-nos do maior perigo: perder a capacidade de assombro que vem com a abertura ao ser, privilégio do Dasein.

Na filosofia heideggeriana do humano, a questão da linguagem sempre foi fundamental. Nesta direção, é importante destacar que, dentro do problema da medicalização, existe também uma medicalização da linguagem, que pode ser enfrentada mediante a ideia de Heidegger da linguagem como um habitar. A tese fundamental é que o Dasein apresenta, na sua estrutura existencial ou mundana, uma referência ao ser como linguagem, não uma referência meramente cognitiva que pudesse ser obtida por considerações epistemológicas ou linguísticas, mas uma referência existencial ou de "habitação" no ser-linguagem, de "viver em" e não apenas de um tomar conhecimento ou de um "estar cientes" ou de um usar a linguagem como mero instrumento. Esta "habitância" ou moradia do Dasein no ser, esta ligação fundamental do ser-no-mundo com o ser, é vista por Heidegger como linguagem e mais especificamente como fala, como acontecer histórico da fala e do falar (incluindo dimensões como a escuta e o silêncio).

Daí que ser, ser-no-mundo (Dasein) e fala, desde o começo se correspondam. Perpassa toda a análise existencial de "Ser e Tempo", esse contraste entre uma consideração puramente epistemológico-objetiva do mundo em sentido meramente espacial, ligada à interpretação do ser e do homem como mera presença, e a consideração existencial no sentido da referencia ao Dasein. É dentro deste novo contexto que a questão da saúde deverá ser colocada: a medicalização da linguagem é possível apenas como uma dimensão degradada da fala (embora não apenas num sentido moral, mas ontológico), como uma vicissitude do ser-linguagem.

Na perspectiva heideggeriana da linguagem como "habitância", não há nem pode haver controle da linguagem ou, como se diz, "domínio" (no "dominar uma língua"), mas o fato da linguagem acontecer como um evento existencial entre dois seres viventes corporais fazendo que a significação e a comunicação aconteçam. Valor expressivo, valor de verdade, diferenças de significação e imprevisibilidade constituem o caráter não meramente representacional das significações. Podese falar de características imprevisíveis da linguagem, de uma fenomenologia da linguagem com elementos hermenêuticos em um movimento estruturado e estruturante (Cabrera, 2006, p. 131-133). A saúde pode ser submetida à medicalização -incluindo a medicalização da linguagem- porque estar são e estar doente são já dimensões existenciais da fala; a doença pode ser vista como uma espécie do calar, e a cura como uma espécie de escuta. Há toda uma gama de possibilidades de pesquisas futuras sobre estas possíveis contribuições heideggerianas para a questão da saúde/doença.

À luz das categorias heideggerianas, a questão da medicalização parece ser possível graças a três condições existenciais que poderiam ter suas contrapartidas psicológicas:

(a) A capacidade que alguém pode ter de mudar a sua visão de uma situação diante de um grupo de humanos; por exemplo, a habilidade do doutor Knock, na célebre peça de Jules Romais, para inserir uma pessoa numa visão (poderíamos dizer, numa Gestalt) de "doença", quando, no dia anterior, essa mesma pessoa estava inserida numa Gestalt de "pessoa sadia". Illich corrobora esta afirmação quando diz que em 1920 só os ricos e os membros das elites pensavam na necessidade de consultar um médico quando tinham febre; mas o aparecimento dos antibióticos ajudaram a criar o "papel de doente" e a conduta que dele se espera nessas condições: ir ao médico passou a ser uma obrigação de cidadão. Logo, uma segunda mutação das necessidades de saúde ocorre quando os testes de avaliação preventiva são rotinizados: nesse momento, toda pessoa passa a ser suspeita de ser doente até que prove o contrário.

(b) A capacidade de persuasão de alguém, que faz com que outra pessoa seja convencida de mudar de Gestalt (recursos retóricos de convencimento) Neste ponto, Nogueira diz que na segunda crítica social da saúde, a iatrogênese do corpo é um fenômeno contemporâneo que só pode ser compreendido através da história das mudanças operadas na matriz de percepção do corpo. Naturalmente, a mídia desempenha um papel muito proeminente nesta questão, pois serve de veículo de difusão a todas essas variadas formas normativas de cuidado do corpo (Nogueira, 2003, p. 60).

(c) Finalmente, tudo isso pressupõe que as pessoas estão ansiosas por serem enganadas, predispostas às ilusões, talvez porque o mundo se apresenta como demasiado assustador. Por um lado poderia se pensar que, culturalmente, o maior agente patógeno de hoje seria a busca de um corpo sadio, de maneira que essa percepção obsessiva de sua própria condição de saúde, na concepção de Nogueira, chamada de higiomanía, influenciaria sobre o que o leigo pensa ao respeito de saúde mais do que os próprios médicos. Nogueira utiliza o termo "higiomanía" para cobrir os significados da "iatrogênese do corpo" e "narcisismo do corpo sadio" nas expressões do Illich. Todos estes fenômenos aguardam a que suas bases ontológicoexistenciais sejam descobertas e devidamente expostas.

CONCLUSÕES

A Modernidade está movida por uma vontade de autonomia de existência, que procura chegar a uma promoção ilimitada do ser. Ao desaparecer a separação entre o homem e a sua práxis, a ciência e a técnica adquirem um novo estatuto e o campo de seu exercício começa a ser o sujeito mesmo. No entanto, o humano não abandonou a sua vocação de liberdade e segue associando sua concreção a uma vida amparada do perigo. Aquilo que a filosofia e a ciência têm regularmente feito foi colocar o mundo ao alcance da mão, da manipulação, do manuseio, sob a forma de um objeto do qual se possa sempre dispor. No universo que disponibiliza, nascem os úteis ou utensílios, objetos definidos pragmaticamente, mas Heidegger observa que na sua mesma manipulabilidade os úteis apontam desde sempre para uma dimensão que não é puramente manipulativa. Assim, Heidegger descobre uma conformidade no nível do mundo que deve sempre ser pressuposta para que existam, no geral, conformidades intramundanas, no sentido do útil e do utensílio. O conformar-se mundano é um deixar-ser.

Esse elemento de natureza compreensiva, como um coEsse elemento de natureza compreensiva, como um compreender originário que faz parte do ser-nomundo do Dasein, é apresentado como fundamento da interpretação hermenêutica do mundo e de todo compreender intramundano. Funda uma familiaridade com o mundo que não requer por necessidade "ver através" teoreticamente das relações que constituem o mundo como tal. Este "ver a través", que aparece de maneira recorrente em "Ser e Tempo", vincula-se com o perguntar sobre meios e fins, onde corriqueiramente certos fins são colocados de maneira a-histórica e apenas se estudam os meios apropriados para atingi-los (algo muito técnico comumente expresso, por exemplo, nos manuais de diagnósticos de doenças).

No mundo da total organização técnica do ente, o pensamento não tem outra coisa a fazer mais do que se dedicar inteiramente à tarefa do domínio técnico do mundo. O pensamento dá o último passo por este caminho pensando o ser como ser-representado, que depende totalmente de um sujeito representante. A principal contribuição de Heidegger para a bioética pode consistir em fornecer categorias de emergência para pensar na contramão dessa tendência destrutiva da humanidade tecnologizada que persistentemente conduz o humano para doenças pré-fabricadas e comercializadas.


REFERÊNCIAS

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