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Universitas Psychologica
versão impressa ISSN 1657-9267
Univ. Psychol. v.8 n.3 Bogotá set./dez. 2009
Afetar e ser afetado: corpo e cognição entre deficientes visuais*
Affect and being affected: body and cognition among people with visual disabilities
MÁRCIA MORAES**
Universidade Federal Fluminense, Brasil
CAROLINA CARDOSO-MANSO
Universidade Estácio de Sá, Brasil
ÁNA CLAUDIA LIMA-MONTEIRO
Universidade Estácio de Sá, Brasil
* Artigo de investigação. Trabalho realizado desde 2004 com o apoio do Cnpq e da Faperj no Brasil. Ao longo destes anos os seguintes alunos de graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense estiveram ligados a esta pesquisa: Aline Alves de Lima (Cnpq/IC - 2004-2007), Carolina Cardoso Manso (Faperj/IC - 2004-2008), Júlia Neves (Faperj/IC 2008 até a presente data), Thadeu Gonçalves (Faperj/IC 2008 até a presente data), Josselem Conti (Cnpq/IC 2008 até a presente data), Isabela Prince (Cnpq/IC 2007-2008). O projeto recebeu também o apoio da Pro-Reitoria de Extensão da Univesidade Federal Fluminense, na modalidade de bolsa de extensão universitária concedida à Luciana Franco (UFF/Proex 2006-2007), Luara Fernandes (UFF/Proex 2008 até a presente data). Agradecemos a todos os profissionais do Instituto Benjamin Constant que nos receberam naquela instituição onde realizamos a pesquisa.
** Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense. E-mail: mmoraes@vm.uff.br
Recibido: febrero 3 de 2009 | Revisado: marzo 29 de 2009 | Aceptado: abril 4 de 2009
RESUMO
O objetivo deste trabalho é apresentar os resultados da pesquisa intervenção realizada com um grupo de jovens deficientes visuais que visa promover diferentes articulações entre corpo e cognição. Baseados na teoria ator-rede, consideramos que ter um corpo é aprender a ser afetado por atores díspares e heterogêneos, tanto humanos quanto não humanos. O trabalho de campo é realizado através de atividades de expressão corporal que têm por finalidade promover conexões, articulações entre o corpo e materiais tão heterogêneos quanto um elástico, uma lixa, uma música, um colega. As intervenções são realizadas em grupo e são negociadas e pactuadas com os sujeitos que participam da pesquisa, de tal modo que há uma relação de construção recíproca entre o pesquisador e o pesquisado. As experimentações corporais realizadas têm produzido novos modos de conhecer entre os jovens com deficiencia visual. Neste sentido, consideramos que a cognição é efeito de tais experimentações corporais, cognição coletiva, híbrida, que se produz em rede. Por esta via, somos levados a tecer considerações sobre o papel da psicologia numa instituição voltada para a educação dos deficientes visuais.
Palavras chave autores Corpo, cognição, deficiência visual.
Palavras chave Educación de ciegos, cognición y cultura.
ABSTRACT
This paper presents the results of the intervention research performed with a group of visually disabled youths aimed at promoting different articulations between body and cognition. Based on the actor-network theory, we considered that to have a body means to learn how one is affected by heterogeneous and differing actors, human or non human. The field research was performed using body language aiming at promoting connections/ articulations between body and materials as heterogeneous as an elastic, a nail file, a song, a classmate. Interventions were performed in group and were negotiated and agreed by the subjects of the research, so that there be a reciprocal constructive relationship between researcher and researched. The body experiences performed produced new ways of knowing amongst the visually impaired youths. Therefore, we consider that cognition be the effect of such body experiences, hybrid collective cognition, produced by the network. Thus, we elaborate about the role of psychology in an institution for the visually disabled.
Key works authors Body, Cogniton, Visual Disability.
Key works plus Blind Education, Cognition and Culture.
Introdução: o histórico da pesquisa
Arlequim é múltiplo e diverso, ondulante e plural (...) a ciência fala de órgãos, de funções, de células e de moléculas, para finalmente confessar: faz tempo não se fala mais de vida nos laboratórios; mas ela nunca se refere à carne (...) a mistura, (...) que mescla aquilo que o saber pertinente analisa.
Serres, 1993, p.4-5
Este trabalho tem o objetivo de apresentar alguns resultados da pesquisa que desenvolvemos com um grupo de jovens com deficiência visual, matriculados numa escola de Educação Especial, o Instituto Benjamin Constant [IBC], situada no Rio de Janeiro, Brasil. Esta Instituição é um centro de referência nacional no campo da deficiência visual. Com mais de 150 anos de existência o IBC desenvolve diversas ações no campo da deficiência visual: atendimentos oftalmológicos, atividades de reabilitação, aulas de Braille, capacitação de profissionais de educação, entre outras.
A investigação no campo da deficiência visual começou há cinco anos atrás, quando coordenávamos uma Oficina de Expressão Corporal vinculada à Oficina de Teatro da Escola do IBC. Naquela ocasião, nosso trabalho consistia em promover experiências corporais diversas a fim de levar os jovens deficientes visuais a elaborarem os personagens que interpretariam numa peça, que seria encenada na escola, ao final do ano letivo. A encenação da peça era uma forma de celebrar o final do ano e, para isso, os alunos ensaiavam durante todo o ano. Entre os alunos que faziam a Oficina de Teatro, havia condições visuais diversas: alguns eram cegos congênitos, outros tinham cegueira adquirida e outros tinham baixa visão, com graus de visão distintos. O desafio da Oficina de Expressão Corporal era fazer com que aqueles jovens com deficiência visual encarnassem os personagens que representariam na peça, ou seja, nosso trabalho era fazer com que os jovens desenvolvessem as posturas corporais, os gestos, os modos de falar dos seus personagens. Durante a execução deste trabalho nos demos conta da importância das experiências corporais para a construção da cognição naquele grupo de pessoas. Pudemos observar que muitas vezes os jovens cegos repetiam palavras sem no entanto, de fato, encarnar o sentido que elas tinham. Em outras ocasiões observamos que as instruções "meramente verbais" da professora de teatro1 não eram compreendidas. Por exemplo: a professora dizia para uma menina cega de nascença que o personagem dela, uma bailarina, devia rodopiar com leveza pelo palco2. A menina não tinha nenhuma referência do que significava "rodopiar com leveza" e fazia movimentos que pareciam estranhos àqueles que tinham baixa visão ou aos videntes3. Tal estranheza era manifestada pelos alunos na forma de comentários, observações acerca da postura "correta" da bailarina, demonstrações de posturas corporais imitadas a partir da observação de programas de televisão ou outras situações vividas pelos sujeitos.
O que estava em jogo neste contexto era uma polêmica que dizia respeito às fronteiras entre o ver e o não ver. De um lado, havia os alunos com baixa visão que, de um modo ou de outro, tinham um referencial visual de uma bailarina; de outro lado, a menina cega congênita que não dispunha destes mesmos referenciais4. Nosso trabalho de pesquisa foi orientado por estas questões e o que nos interessava era investigar os modos pelos quais uma pessoa cega conhece o mundo a sua volta. Inspirados pelas pesquisas de Masini (1994), buscávamos intervir de modo imanente, isto é, tendo em consideração os referenciais que aquele grupo de sujeitos utilizava para conhecer o mundo a sua volta.
Foi neste contexto que em 2006 demos inicio a uma pesquisa intervenção que tem como função investigar os seguintes problemas: quais as relações entre corpo e cognição num grupo de pessoas com deficiência visual? De que modo promover experiências corporais articuladas a modos de conhecer o outro, o espaço e a si mesmo? Em suma, como produzir modos de conhecer a partir das experiências corporais? Estas são as principais questões que, desde então, orientam nossa pesquisa. O trabalho de campo continou sendo realizado através de Oficinas de Expressão Corporal. Mas as atividades da Oficina passaram a ser oferecidas aos alunos da escola do IBC, estivessem eles fazendo aulas de teatro ou não. Atualmente, participam da Oficina 11 jovens, com idades entre 11 e 16 anos, sendo 1 cego congênito, 2 jovens com cegueira adquirida e os demais com baixa visão. As atividades da Oficina são oferecidas uma vez por semana, com duração de uma hora e meia cada encontro.
No trabalho que ora apresentamos, interessanos discutir dois pontos: um de natureza teórica, outro ligado às discussões metodológicas. Assim:
• Teoricamente perguntamos: como podemos definir as relações entre corpo e cognição entre jovens deficientes visuais? Como esta relação ocorre nas práticas escolares de um grupo de jovens com deficiência visual?
• Metodologicamente: buscamos uma metodologia de investigação e de intervenção que opere longe das tradicionais metodologias de pesquisa em psicologia que separam sujeito e objeto. Dito de outro modo, buscamos um referencial metodológico que nos permita intervir de modo imanente, construindo com os sujeitos as intervenções realizadas. Ou seja, o que nos orienta metodologicamente é a aposta de que sujeito e objeto do conhecimento são co-construidos. Assim, nossas intervenções com aquele grupo de pessoas estão articuladas aos modos pelos quais essas pessoas se articulam com a pesquisa, aos modos pelos quais elas são afetadas por aquilo que lhes é proposto. Por esta via entendemos que pesquisar é conhecer com o outro e não conhecer sobre o outro.
Afetar e ser afetado: o corpo que nós fazemos
Seguindo as pistas de Latour (1999), Mol (2002) e, Mol e Law (2003) consideramos que quando falamos em corpo não nos referimos a um objeto dado, isolado. Não nos referimos a uma substância na qual habita uma alma imaterial. Para estes autores "existem muitos modos diferentes de fazer (enact) um corpo" (Mol & Law, 2003). Ou seja, para estes autores, o corpo não está dado, fechado, isolado, ao contrário o corpo possui fronteiras permeáveis. Ele é feito (enacted); efetuado e construido através de múltiplas e heterogêneas conexões entre humanos e não humanos. Mol e Law (2003) colocam no centro de suas investigações a noção do "corpo-que-nós-fazemos" ("the-body-we-do") para afirmar o sentido de corpo com o qual trabalham. Trata-se de colocar em primeiro plano as práticas através das quais o corpo é articulado, trata-se, portanto de investigar o corpo em ação. Nas palavras de Bruno Latour (1999) encontramos uma definição de corpo que concorda com o que Mol e Law (2003) propõem. Para o autor o corpo é:
uma interface que se torna mais e mais descritivel quando aprende a ser afetada por mais elementos. O corpo é então não uma residência provisória de algo superior - uma alma imortal, o universal ou o pensamento - mas o que deixa uma trajetória dinâmica pela qual nós aprendemos a registrar e a nos tornar sensíveis para aquilo de que o mundo é feito. Tal é a grande virtude desta definição: não há sentido em definir o corpo diretamente, mas apenas tornando o corpo sensível ao que estes outros elementos são. Ao focar o corpo, estamos imediatamente - ou melhor, mediatamente - dirigidos para aquilo que sensibilizou o corpo. (p. 1)
Assim sendo, para Latour (1999) não há corpo sem afecção. O corpo se constitui na afecção. Dizer que não há sentido em falar do corpo, a não ser pela relação que este estabelece com o mundo a partir de sua sensibilidade, é dizer que, sem afecção, não há corpo propriamente dito.
Neste sentido, a "aquisição" do corpo não é dada por pré-disposições a priori, mas, antes, por possibilidades múltiplas de ser afetado. Latour (1999) não pretende afirmar que existem no corpo capacidades pre-definidas de afetação. Ao contrário, o que é afirmado é a maleabilidade e a multiplicidade do corpo, num certo sentido, o que é afirmado é variabilidade da "aquisição" do corpo. Logo, um corpo não se resume a relações pre-arranjadas, mas se constroi através das conexões e afecções com o mundo As afecções, ao invés de determinarem os encontros possíveis, geram, efetivamente os encontros. São as afecções que constroem um corpo na medida em que a constituição dos corpos se apresenta, desde sempre mesclada, matizada, tatuada pelas afecções.
A afecção é aquilo que produz efeito nos corpos: efeitos recíprocos que simultaneamente produzem uma interioridade e uma exterioridade. Tal é a tese de Latour (1999) acerca do corpo. E neste ponto podemos afirmar que a perspectiva latouriana vai ao encontro da filosofia de Serres (2001).
No enfoque deste filósofo o tato é o mais importante dos sentidos, aquele por meio do qual primeiro mantemos contato com o mundo. Para Serres (2001, 2004) fazer um corpo é deixar-se tatuar pelo mundo, é constituir-se a partir das mediações com o mundo, das afecções. O corpo se constitui como relação, como conexão. Assim, nossos contatos com o mundo são estabelecidos a partir de uma superfície tênue: nossa pele. São estes contatos que fabricam o corpo e, ao mesmo tempo, a cognição.
Portanto, o sentido "primeiro", que nos permite nos reconhecer como um corpo é o tato. Antes que possamos ver ou ouvir, sentimos o contato e, tal contato nos delimita, nos impõe um limite, ao mesmo tempo em que nos lança no mundo, que nos relaciona com as coisas. Para Serres (2001) todos os nossos sentidos são posteriores ao tato, como podemos perceber em suas narrativas sobre as tapeçarias da Idade Média A Dama e o Licorne. Ele nos diz: "O tato parece predominar, reunir o sentido comum, soma dos cinco sentidos, com que tece a tenda"5 (Serres, 2001, p. 49). Neste trecho,há uma bonita analogia entre o tecido e a pele que vale ser aprofundado.
Serres (2001) fala sobre as tapeçarias da Idade Média não apenas para nos trazer a reflexão sobre os sentidos, mas para que esta reflexão se apresente, efetivamente atrelada a uma tapeçaria. Não é por acaso que é colocada esta relação. A própria tapeçaria já se apresenta como textura, como forma de apresentação dos sentidos do tato. O toque da tapeçaria já apresenta a pele conectada à ele de uma maneira própria. O corpo que consegue sentir a suavidade da textura já é um corpo produzido pela tapeçaria. Os sentidos não se distinguem do que sentem, portanto, a tapeçaria forma um corpo, da mesma maneira que o sentido comum -apresentado na sexta tapeçaria como a tenda- forma a conexão dos cinco sentidos, e dá à dama o seu corpo. No mar de sensações, apresentado nas tapeçarias, encontramos sempre a textura dos tapetes, o entrelaçamento de seus fios e os nós de suas conexões. Da mesma forma, quando admiramos os quadros de Bonnard6, não vemos apenas uma tela, pintada para enganar os sentidos, mas, o que vemos são texturas que formam sentidos:
Generalizando esta hipótese, diríamos que o tecido, o têxtil, o estofo dão excelentes modelos de conhecimento, excelentes objetos quase abstratos, primeiras variedades: o mundo é um amontoado de panos. A mulher, pelo conhecimento, estava há muito tempo à frente do macho. Mulher nua de Bonnard, deusa com a ave, moça com o licorne ou pobretona de sapatinhas. (Serres, 2001, p. 79)
Assim, parecenos possível afirmar que para Se -rres (2001, 1993), Latour (1994, 1999), Mol e Law (2003) a cognição não é o atributo de um sujeito dado, mas sim o efeito das afetações entre corpo e mundo. Conhecemos a partir de nossos engajamentos práticos, de nossos contatos com o mundo.
A este respeito, encontramos em Latour (1999), um exemplo interessante: a aquisição de "um nariz" a partir das experiências realizadas com o que ele. denomina "Malettes à odeurs". De início, ao usar a "Malettes à odeurs" o aprendiz não é capaz de distinguir os odores. É o contato com este dispositivo, o engajamento prático com ele, que permite ao aprendiz definir, cada vez de forma mais apurada, os odores, mesmo que estes estejam misturados ou ocultos em outros odores. Adquirir "um nariz", na concepção de Latour (1999) significa, portanto, ser capaz de diferenciar os odores:
Então, as partes do corpo são progressivamente adquiridas ao mesmo tempo que as 'partes-contadas do mundo' são registradas de uma nova maneira. Adquirir um corpo é então um empreendimento progressivo que produz, de uma só vez, um meio sensor e um mundo sensitivo. (p. 2)
Deste modo, o mundo não se apresenta como algo "já dado", pronto, e, por outro lado, o próprio sujeito não pode ser pensado como algo que se apresenta como uma essência. Para Latour (1999), partir do pressuposto de que as coisas são objetivas e os sujeitos subjetivos, nos impede pensar a produção do corpo:
Eu pretendo contrapor isso com outro modelo que espero evitar, a todo custo, este risco que parasita minha descrição: num tal modelo, existe um corpo, que significa um sujeito; existe um mundo, que significa objetos; e existe um intermediário, que significa a linguagem que estabelece as conexões entre o mundo e o sujeito. Se nós usarmos este modelo, acharemos muito difícil explicar o aprendizado por meio da dinâmica do corpo: o sujeito está "dentro" como uma essência definida, e aprender não é essencial para este vir a ser; o mundo está fora, e afetar os outros não é fundamental para a sua essência. Como para os intermediários - linguagem, kit de odores - que desaparecem uma vez que as conexões tenham sido estabelecidas, já que eles não fazem nada mais importante do que conduzir a ligação. (p. 15)
Como contraponto, podemos pensar que todos os elementos envolvidos na própria aprendizagem de "se tornar um nariz" é o que possibilita a constituição de um corpo. É por mediações que nos tornamos nós mesmos e não o contrário. Sobre tal questão, Michel Serres (1974, 1993) nos traz algumas reflexões importantes. Sabemos que a questão da mediação é trabalhada de forma mais profunda em dois livros: Hermès III, la traduction, e Filosofia Mestiça, no qual ele nos traz a bela história de Ar-lequim, que, ao visitar todos os lugares do mundo diz não haver nada diferente em lugar nenhum - em contraste com seu manto, absolutamente multicolorido, diverso, descontínuo, composto por retalhos desaranjados. Arlequim só é Arle-quim a partir do seu manto furta-cor, ao retirá-lo, o que encontramos é outro manto até chegarmos à pele-tatuada, mesclada, mestiça, hermafrodita, ambidestra. Tornarse um corpo significa afastar-se de si mesmo, deixar-se tatuar, marcar os caminhos percorridos pelas afecções:
Eis assim descrito o terceiro instruído, cuja instrução não pára: pela sua natureza e pelas suas experiências, acaba de entrar no tempo; abandonou o seu lugar, o seu ser e o próprio estar aí, a sua terra de origem, viu-se excluído do paraíso, atravessou vários rios, com todos os seus riscos e perigos. (Serres, 1993, p. 27)
Num mundo em que as coisas são constituídas por relações, nas quais os efeitos e afecções não são dados previamente, há uma constituição constante do corpo a partir das mediações. O corpo se constitui como relação7, como conexão, torna-se, cada vez mais sensível ao mundo que o cerca. Não há autenticidade sem mistura, originalidade sem cópia, o que há é uma constante produção que ocorre a partir de um afastamento de si mesmo que, ao invés de produzir um enfraquecimento de si é o que nos possibilita dizer "eu".
Logo, quando falamos da relação entre corpo e cognição entre jovens deficientes visuais, interessa-nos colocar em primeiro plano os engajamentos práticos nos quais o corpo é encenado, performado. Teorica e filosoficamente embasamos este trabalho naquilo que Mol (2002) chama de praxiografia: na medida em que os engajamentos práticos de fazer um corpo são parte da estória, ela é uma estória sobre práticas. Logo, para nós, assim como para Mol (2002) o conhecimento não é uma questão de referência, mas sim de manipulaçao (Mol, 2002, p. 5). A questão central não é "o que é um corpo?" mas antes "como um corpo é efetuado?"
Do ponto de vista metodológico, como dissemos, dois pontos são relevantes:
• seguir as trajetórias dinâmicas das conexões que produzem, ao mesmo tempo, o corpo e a cognição.
• através da Oficina de Expressão Corporal propor intervenções que sensibilizem e afetem o corpo, isto é, que transformem o corpo, inaugurando assim, um campo cognitivo inédito, distante daquele das repetições verbais vazias que pudemos observar no início de nosso trabalho. Neste ponto, destacamos que metodogicamente defendemos uma intervenção contextualizada, situada, no sentido proposto por Haraway (1998). Isto é, longe de afirmar uma intervenção que se defina como um a priori, como uma norma a ser seguida, afirmamos como princípio metodológico a pactuação, a negociação das intervenções com o grupo. Dito de outro modo, pensamos nossa intervenção no grupo como um processo imanente, sempre atravessado pelas questões que marcam aquele coletivo com o qual lidamos. Assim, cada ação proposta na Oficina é pactuada e negociada com o grupo, ela tem como solo de fundação os problemas que afetam aquele grupo. Desse modo, metodologicamente o trabalho afirma uma relação de construção recíproca entre pesquisador e pesquisado: as ações são proposições, no sentido afirmado por Latour (1999), isto é, valem na medida em que são retomadas, refeitas pelos outros. Cada intervenção visa, assim, intervir naquele grupo ampliando as articulações entre o corpo e os mais diversos elementos: visamos alargar as conexões do corpo com o mundo, criar novas e inéditas oportunidades de afetação entre corpo e mundo. Ao mesmo tempo, enquanto pesquisadores, somos afetados por estas intervenções na medida em que elas também nos transformam, fazem variar os nossos modos de conhecer e de intervir naquele grupo. Assim, entendemos que o processo de produzir conhecimento implica uma afetação recíproca: transformamos o outro e somos por ele transformados.
Arlequim e Colombina: o corpo em ação
O trabalho de campo é um tecido rico de tramas, de narrativas que se conectam, de histórias de corpos que se modificam, universos cognitivos que se produzem. Para esta apresentação escolhemos um dos fios que compõem esta trama. Para fazer falar o campo de pesquisa utilizaremos nomes ficticios para os sujeitos da pesquisa. Eles serão aqui nomeados como os personagens da comédia dellarte italiana: Arlequim e Colombina. Escolhemos estes nomes tanto em função do papel questionador de Arlequim na comédida dellarte quanto pelo sentido que Serres (1993) dá este personagem em seus livros. Para este filósofo, como dissemos acima, Arlequim é o mestiço, é aquilo que, de algum modo, resiste ao pensamento analítico, quantificador e objetivista. No contexto deste trabalho, Arlequim, em sua fala não aceita os limites que lhe são colocados. Ao contrário, Arlequim afirma um modo de existir possível em sua diferença e singularidade. O que será apresentado a seguir foi gravado e posteriormente transcrito. Além deste registro, as pesquisadoras tomaram notas em um diário de campo do que se passou na Oficina de Expressão Corporal.8
No encontro da Oficina de Expressão Corporal que será narrado, as atividades propostas diziam respeito às possíveis conexões entre variados movimentos do corpo e sons os mais diversos e díspares possíveis. A cada som proposto pelas pesquisadoras, os sujeitos inventavam movimentos corporais que lhe eram correspondentes. Assim, por exemplo, a um som agudo, cada um dos participantes da Oficina criava um movimento de corpo. Depois, para outro som, dessa vez, mais grave, outros movimentos corporais eram criados. Os sons eram apresentados sequencialmente, de início de modo lento, e em seguida, num ritmo mais acelarado. A articulação entre os sons propostos e os movimentos dos corpos dos sujeitos acabava por resultar numa espécie de dança, formada pela articulação de todos os movimentos que os sujeitos criaram. Ao mesmo tempo, o espaço da sala era explorado, investigado através da dança, dos sons, dos corpos que se afetavam e se tatuavam por tais experimentações. No contexto destas ações, o som de um guizo disparou uma controvérsia: Ar-lequim e Colombina, protoganistas desta história, discordavam. Pode um cego jogar queimado? Para Colombina, cego joga queimado se for guiado por uma pessoa que vê. Para Arlequim, cego joga queimado sem ser guiado por alguém que vê. Em última instância ambos perguntavam: o que pode o corpo de um cego?
Arlequim tem 14 anos, ficou cego há dois anos em decorrência de uma doença progressiva que o acompanhou deste muito criança. Colombina tem 17 anos e tem baixa visão. Ambos participam da Oficina de Expressão Corporal há mais de 3 anos.
Eis a polêmica:
Colombina diz: "Cego só joga queimado com a ajuda de alguém que vê. Cego tem que ser guiado". Arlequim: "Quem disse isso? Cego tem um jeito de jogar queimado sim".
Colombina diz: "Para o cego jogar tem que ter alguém batendo palma, chamando pelo nome dele". Arlequim: "Mas e o guizo? Serve para que? A gente escuta o guizo da bola e aprende a se mexer rápido. Eu não quero ser guiado o tempo todo, quero me mexer mais sozinho, tenho que aprender isso". Colombina: "Se não for guiado o cego vai sempre perder no jogo, vai sempre levar bolada. Com o que eu vejo consigo me desviar da bola, por isso, acho que se eu jogar com um cego vou ganhar sempre, vai ser injusto com o cego".
Arlequim: "Injusto? Que nada! Você acha isso porque não sabe se ligar no som do guizo, você só liga no jogo porque vê a bola, eu me ligo no jogo porque ouço o barulho do guizo. Vamos marcar um jogo de queimado de cegos com quem tem baixa visão?" (Falas transcritas do diário de campo).
Considerações Finais
Qual é a questão da polêmica? O que está sendo colocado em debate por Arlequim? Em nosso diário de campo anotamos os efeitos que tal controvérsia produziu naquele grupo. Destacamos dois efeitos:
1. o primeiro, diz respeito aos modos de efetuar o corpo;
2. o segundo efeito está ligado às discussões metodológicas.
Seguindo as pistas de Arlequim, somos levados a pensar a cegueira longe do paradigma moderno segundo o qual a cegueira era articulada ao corpo entendido a partir de uma normalidade visual. Dito de outro modo, o enfoque moderno é biomédico e faz da cegueira uma falta, um desvio por relação à normalidade visual. Tal enfoque marcou, segundo Martins (2006) algumas pesquisas e práticas voltadas para as pessoas com deficiência visual. Diferentemente disso, a cegueira, tal como é efetuada por Arlequim, é uma forma variável que se articula com os mais diversos e heterogêneos elementos: o guizo da bola, a gritaria, os colegas do jogo.
Assim, afirmamos que o corpo-que-eu-faço, o corpo-em-ação nunca é um todo, nem é fragmentado: ele é uma configuração complexa, da qual fazem parte elementos díspares. Logo, quando dizemos que nós temos um corpo, esta afirmação oculta o trabalho de fabricação deste corpo. E este trabalho cada um tem que fazer, inclusive o cego. Manter o corpo como um todo é um trabalho, não é algo dado, mas alcançado, construido. O corpo-que-eu-faço é atravessado por tensões, forças, conexões que devem ser levadas em conta. Neste cenário prático o corpo cego está longe de se marcar como um desvio, ele é antes, potência, diferença em ação. Com a polêmica entre Arlequim e Colombina é possível acompanharmos os modos pelos quais a própria concepção de cegueira varia quando seguida em ação, quando tomada não como uma essência,mas como prática. Para Arlequim, o corpo cego é afetado pelo mundo de um modo que Colombina desconhece. Para ela a articulação entre o corpo e o guizo da bola é uma articulação fraca, no sentido de que não permite que o cego jogue queimado. Arlequim, ao contrário, faz existir o corpo cego longe do referencial do déficit. Esta controvérsia produziu outros efeitos nos encontros seguintes da Oficina, muitos outros membros do grupo foram afetados por esta polêmica9.
Do ponto de vista metodológico consideramos que o processo de conhecimento implica um vetor de risco e de indeterminação. Se, como dissemos, tomamos nossas intervenções como proposições, temos que considerar que elas existem na medida em que são transformadas e retomadas por aqueles com quem trabalhamos. Os sujeitos da pesquisa não são passivos e submetidos às nossas ações, eles são agentes, produzem efeitos e variações que transformam nossos modos de conhecer. Quando propusemos as ações de articulação entre sons e movimentos do corpo não antecipamos todos os efeitos que estas ações produziriam. Como pesquisadores fomos surpreendidos pela controvérsia entre Arlequim e Colombina. Mas, na exata medida em que apostamos numa metodologia marcada pela imprevisibilidade, optamos por seguir as conexões que nossa ações produziram naquele contexto. E foram esas conexões que nos mostraram que a cegueira, longe de ser uma marca natural, essencial, é uma forma que varia, que produz modos diversos de conhecer e de subjetivar o mundo. Desse modo, afirmamos as intervenções em psicologia como meios possíveis de desestabilizar formas que pareciam estáveis, de fazer proliferar a diferença. Em última instância, apostamos numa psicologia não moderna.
1 Professora Marlíria Cunha, a quem agradecemos pela possibilidade de iniciarmos o trabalho de campo da pesquisa.
2 A peça a ser encenada era A loja da Alegria, texto e direção de Marlíria Cunha.
3 Vidente é o termo utilizado para fazer referência às pessoas que não possuem deficiência visual.
4 Os resultados deste trabalho podem ser lidos em Moraes (2006, 2007).
5 A tenda a que Serres se refere aparece na sexta tapeçaria, das seis expostas no Museu da Idade Média, em Paris, denominadas A Dama e o Licorne. Nesta sexta tapeçaria, encontramos características únicas, diferentes das anteriores: é a única que possui a tenda citada e inscrições em seu topo que dizem: "UNICAMENTE MEU DESEJO". Para Serres esta tapeçaria representa o sentido interno: "Definida pelo fechamento do espaço, fechada sobre si, a tenda, um pouco aberta, descobre-se a si mesma, o corpo pode escrever ou dizer: MEU" (Serres, 2001, p. 52).
6 Pierre Bonnard, pintor francês, 1867-1947
7 Vale lembrar que o que estamos chamando aqui de relação diz respeito ao conceito de mediação, muito mais do que ao conceito de intermediário. Para esta distinção ver Latour, 1994.
8 O registro destes dados foi autorizado tanto pelo IBC quanto pelos responsáveis através da assinatura do termo de consentimento.
9 Não apresentaremos estes efeitos porque isso escapa ao nosso objetivo neste texto.
Bibliografia
Haraway, D. (1998). The persistence of vision. In N. Mirzoeff (Org), The visual culture reader (pp. 677684). London: Routledge. [ Links ]
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