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Colombia Médica

On-line version ISSN 1657-9534

Colomb. Med. vol.42 no.2 suppl.1 Cali June 2011

 

As pesquisas etnográficas em enfermagem nas sociedades complexas

The nursing ethnographic research into complex societies

Maria Helena Lenardt, PhD1, Tatiane Michel, Enf2, Lucas Pereira De Melo, MSc3

1Professora Sênior, Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Líder do Grupo Multiprofissional de Pesquisa sobre Idosos, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Brasil.
e-mail: curitiba.helena@gmail.com
2Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, bolsista REUNI/UFPR, membro do GMPI, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Brasil. e-mail: tatiane.michel@uol.com.br
3Professor,Faculdade Anhanguera de Campinas, doutorando do Programa Interunidades de Doutoramento da Universidade de São Paulo, bolsista CNPq, Campinas, Brasil.
e-mail: lucasenf@yahoo.com.br

Recebido para publicaçãojaneiro 20, 2011Aceito para publicação abril 29, 2011


RESUMO

Introdução: As sociedades multiculturais do mundo pós-moderno caracterizam-se pela complexidade de sua estrutura, organização e funcionamento. Nessas sociedades, há um conjunto de atores sociais heterogêneos que experimentam uma variedade de fenômenos no seu cotidiano nas cidades. Nesse contexto desenvolvem-se os cuidados profissionais em Enfermagem e nos últimos anos os enfermeiros têm recorrido à etnografia como ferramenta para conhecer a realidade sócio-cultural e a experiência dos fenômenos na perspectiva de quem os vivencia. Trata-se de estudo teórico com o objetivo de refletir sobre a aplicação da abordagem etnográfica nas pesquisas brasileiras em Enfermagem nas sociedades complexas.
Etnografia nas pesquisas brasileiras em enfermagem nas sociedades complexas: Os enfermeiros brasileiros têm se apropriado dos recursos metodológicos e das teorias antropológicas e da Enfermagem para desenvolver estudos sobre as vivências, experiências e significados atribuídos ao processo saúde-doença, influência cultural sobre os comportamentos relacionados à saúde e a avaliação e gerenciamento dos processos de trabalho. Ressalta-se ainda, estudos que buscam teorizar e refletir a respeito da construção metodológica nessas pesquisas. Esse movimento evidencia uma mudança de enfoque nas pesquisas e práticas da Enfermagem, para uma visão mais integrativa e complexa dos seres humanos e da realidade. O método etnográfico possibilita apreender elementos da cultura de uma realidade e, como resultado, obter novas perspectivas de conhecimento destes fenômenos.
Reflexão final: Considera-se que os conhecimentos antropológicos ampliam a visão do enfermeiro sobre os sujeitos aos quais destina a sua prática, refinando-a. A aproximação na vivência e experiência dos sujeitos permite a percepção dos fenômenos na perspectiva dos atores envolvidos, oferecendo ao profissional um olhar diferenciado para as necessidades e resultados do cuidado de Enfermagem.

Palavras chave: Cultura; Pesquisa em enfermagem; Antropologia cultural.


SUMMARY

Introduction: Multicultural societies of the postmodern world are characterized by the complexity of their structure, organization, and operation. In such societies, there is a heterogeneous set of social players who experience a variety of phenomena in their daily lives in cities. Within this context, nursing care has developed and nurses in recent years have turned to ethnography as a tool in understanding socio-cultural reality and experience from the perspective of those living these experiences. This is a theoretical study seeking to reflect upon the application of an ethnographic approach in Brazilian nursing research in complex societies.
Ethnography in Brazilian nursing research in complex societies: Brazilian nurses have appropriated the methodological tools and theories of nursing and anthropological studies to investigate the experiences and meanings attributed to health-disease process, cultural influence on health-related behaviors, as well as to evaluate and manage work processes. Further studies are emphasized to attempt to theorize and reflect upon the methodological construction of this research. This move highlights a shift in focus on nursing research and practice for a more integrative and complex view of human beings and reality. Ethnography helps us learn about a given reality and, as a result, we obtain new insights for understanding the phenomena.
Reflection: It is considered that anthropological knowledge extends the nurses’ views on the subject about which they devote their practice, refining it. Being closer to the lives and experience of subjects, permits the perception of phenomena from the perspective of the players involved, offering professionals a different view on the needs and outcomes of nursing care.

Keywords: Culture; Nursing research; Anthropology cultural.


A pesquisa social qualitativa parte de uma perspectiva que foge ao rigor matemático, ao propor o estudo de fenômenos notadamente particulares no que diz respeito à experiência, percepção e representação do sujeito social ou grupo que o vivencia. Nesse sentido, caracteriza-se por uma abordagem integrativa, na qual os instrumentos próprios da perspectiva quantitativa são/estão integrados e não polarizados antagonicamente. Dentre os vários referenciais teórico-metodológicos da pesquisa qualitativa, destaca-se aqui a etnografia, conforme a tradição antropológica moderna.

O método etnográfico de pesquisa conduz a uma descrição densa do contexto no qual desenvolvem-se os acontecimentos sociais e os comportamentos e assim descreve a cultura. A cultura indica «um padrão de significados transmitidos historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida»1. Os estudos antropológicos interpretativos buscam explorar esses significados utilizando para isso o método etnográfico.

Os significados da experiência humana são encontrados no convívio com as pessoas e fatos e representados em formas simbólicas, como as palavras e comportamentos1. Considerando que a cultura é o elemento essencial para a condição de humanidade, por meio da qual os sujeitos sociais captam, interpretam e respondem aos estímulos do meio ambiente, podemos inferir que os agentes, entre eles os profissionais de Enfermagem e as instituições de cura, estão inseridos em um espaço cultural que dá sentido e organiza, em última instância, os aspectos técnicos e científicos da sua produção e reprodução2.

Há algum tempo a noção do que era «cultural» estava atrelado às sociedades ditas primitivas ou aos comportamentos que destoavam dos padrões de homogeneidade ditados pelo contexto da modernidade racionalista; fato que a antropologia moderna e demais ciências sociais têm contribuído para paulatinamente desconstruir. Entretanto, nos dias atuais, estamos cada vez mais diante de realidades e problemas polidisciplinares, transversais, multidimensionais, transnacionais, globais, planetários3. A sociedade pós-moderna é, por essas e outras características, complexa em sua organização, estrutura e funcionamento.

Diante disso, a etnografia é uma ferramenta fundamental para compreender as sociedades multiculturais do mundo pós-moderno, além de servir às suas necessidades, pois trata-se de um método de pesquisa aberto à realidade sócio-cultural, que pretende olhar para um determinado cenário com o interesse de interpretar os significados das ações e dos eventos a partir do ponto de vista de quem os vive. Por isso, não consiste, simplesmente, em descrever uma cultura revelando «uma perspectiva social totalitária e rígida, incapaz de lidar com dimensões importantes da realidade social, como a mudança, o conflito e a criatividade individual e grupal»4.

Partindo desse pressuposto, os estudos etnográficos fornecem aos profissionais da saúde a possibilidade de compreender a saúde e a doença sob os diversos pontos de vista dos usuários dos serviços de saúde5. No tocante à enfermagem, há necessidade em valorizar a subjetividade dos seres humanos, o ponto de vista deles e as condições sociais nas quais se desenvolve o fenômeno do cuidado. Portanto, os estudos culturais na área da enfermagem proporcionam benefícios para a humanização e qualidade dos serviços prestados.

Os estudos sobre os métodos de pesquisa em Enfermagem que descrevem o contexto sócio-cultural dos sujeitos sociais buscam a adequação das ações dos profissionais às necessidades de saúde e expectativas reveladas. Pode-se dizer que uma das grandes contribuições que tais estudos têm agregado ao campo da saúde é o combate às posturas e atitudes etnocêntricas, fator impactante em um cenário plural de assistência à saúde como os das sociedades complexas. O etnocentrismo, na prática do profissional da saúde, caracteriza-se pela tendência destes atores sociais em impor a sua própria cultura (hegemônica e elitista) aos usuários dos serviços de saúde, por entendê-la como a mais apropriada6. Essas situações conduzem a insatisfação destes indivíduos, não adesão aos planos terapêuticos, estresse, problemas éticos, além de limitarem o bem-estar.

A utilização da abordagem etnográfica nas pesquisas em Enfermagem denota novos achados para o desenvolvimento do cuidado em saúde relacionado à totalidade dos modos de vida humanos, levando a um deslocamento do foco da atenção, no qual os sujeitos sociais são resgatados em suas concretudes, contextos e historicidades, promovendo sua autonomia e liberdade, enfocando a promoção da saúde, a produção social do processo saúde-doença e a crítica às posturas verticalizadoras. Este estudo teórico tem como objetivo refletir sobre a aplicação da abordagem etnográfica nas pesquisas da Enfermagem brasileira nas sociedades complexas.

METODOLOGIA

Trata-se de estudo teórico no qual os autores apresentam reflexões a respeito da etnografia, seus limites e potencialidades de utilização atual nas investigações no campo da enfermagem. São abordados o desenvolvimento histórico do método, sua estreita relação com a antropologia e destacam-se aspectos teórico-metodológicos em estudos etnográficos realizados por enfermeiros brasileiros.

Para fundamentar as reflexões, foram selecionados estudos publicados em periódicos nacionais e/ou provenientes de teses e dissertações, que se destacam pela originalidade e relevância para a enfermagem, bem como pela expressividade dos autores no cenário brasileiro das pesquisas etnográficas. No intuito de buscar a aproximação com as temáticas que têm sido desenvolvidas por meio da aplicação do método etnográfico, as mesmas foram categorizadas por semelhança, sem esgotar o número e variedade de estudos que podem ser encontrados na literatura referentes a essas categorias.

A ANTROPOLOGIA E O MÉTODO ETNOGRÁFICO

A etnografia, etmologicamente, é o estudo descritivo (graphos) da cultura de uma comunidade (ethnos) ou de alguns de seus aspectos fundamentais numa perspectiva de compreensão global da mesma7. Os etnógrafos buscam conhecer as histórias populares, símbolos, rituais e expressões artísticas de um grupo ou comunidade. Outras características da estrutura social como a política, religião, leis, educação, além de fatores tecnológicos são estudados para definir como eles influenciam os padrões gerais de vida das pessoas.

Esse método de pesquisa foi primeiramente desenvolvido e utilizado por antropólogos como Franz Boas, Bronislaw Malinowski e Margaret Mead para revelar fatos desconhecidos, investigar como as pessoas vivem em um dado tempo e como se comunicam e interagem uns com os outros.

Para os antropólogos, a etnografia constitui a primeira etapa da investigação cultural, seu processo engloba o trabalho de campo no qual a observação participante exerce papel-chave e seu produto será uma monografia etnográfica. Na etnologia são realizadas comparações das diversas descrições etnográficas. A antropologia se situa na terceira etapa da investigação cultural e formula modelos teóricos de conhecimento para compreender as culturas humanas e torná-las aplicáveis no desenvolvimento humano7.

Embora tradicionalmente os estudos antropológicos tenham-se voltado às sociedades não-industrializadas, a partir da década de 1970, diversos etnógrafos direcionaram seus focos de estudos e análises às sociedades complexas que têm como ícones as grandes cidades. Tais contextos têm se constituído no objeto de estudo da antropologia urbana, primordialmente, e de outros campos da antropologia.

É bem verdade que esta disciplina, como se sabe, elaborou seus métodos de investigação a partir, principalmente, do estudo de sociedades não-industriais; por conseguinte, as estratégias da pesquisa etnográfica, à primeira vista, não atenderiam às necessidades de estudo das sociedades complexas, imersa no sistema globalizado. Entretanto, é também consenso que a antropologia não se define por um objeto determinado: mais do que uma disciplina voltada para o estudo dos povos primitivos ela envolve uma maneira de pensar a respeito do ‘outro’ e exige nossa própria transformação8.

Esses fatores têm suscitado diversas discussões no meio acadêmico no que concerne à relação sujeito/objeto, ao colocar-se no lugar do outro, ao dar voz ao nativo etc. Contudo, cabe destacar que «o método etnográfico não se confunde nem se reduz a uma técnica; pode usar ou servir-se de várias, conforme as circunstâncias da pesquisa; ele é, antes, um modo de acercamento e apreensão, do que um conjunto de procedimentos»8.

O método etnográfico requer uma flexibilidade por parte do pesquisador; um ingrediente incomum às ciências da saúde, notadamente à enfermagem, por terem suas trajetórias histórico-sociais e acadêmicas construídas em bases sólidas, rígidas, caracterizadas por uma herança de influência militar e pelos pressupostos do paradigma biomédico cartesiano que lhes dá sustentação e que, mesmo hoje, está presente na prática dos profissionais e docentes9. As descrições culturais não podem repousar na rigidez com que elas se mantêm ou na segurança com que são argumentadas1. Para este autor «nada contribuiu mais para desacreditar a análise cultural do que a construção de representações impecáveis de ordem formal, em cuja existência verdadeira praticamente ninguém pode acreditar»1.

Dito isto, em suma, considera-se que a natureza da explicação pela via etnográfica tem como base um insight que permite reorganizar dados percebidos como fragmentários, informações ainda dispersas, indícios soltos, num novo arranjo que não é mais o arranjo nativo (mas que parte dele, leva-o em conta, foi suscitado por ele) nem aquele com o qual o pesquisador iniciou a pesquisa. Este novo arranjo carrega as marcas de ambos: mais geral do que a explicação nativa, presa às particularidades de seu contexto, pode ser aplicado a outras ocorrências; no entanto, é mais denso que o esquema teórico inicial do pesquisador, pois tem agora como referente o «concreto vivido»8.

Nessa perspectiva, a busca etnográfica tem algo de errante. As tentativas abordadas, os erros cometidos no campo, constituem informações que o pesquisador deve levar em conta, bem como o encontro que surge frequentemente com o imprevisto, o evento que ocorre quando não esperávamos. Assim, a etnografia é antes a experiência de uma imersão total, consistindo em uma verdadeira aculturação invertida, na qual, longe de compreender uma sociedade apenas em suas manifestações «exteriores», deve-se interiorizá-la nas significações que os próprios indivíduos atribuem a seus comportamentos10.

Um dos desafios para os etnógrafos nas sociedades complexas é o fato de eles próprios serem membros dessa sociedade. Diante disso, propõe-se uma perspectiva «de perto e de dentro» em contrapartida àquela que posiciona-se «de fora e de longe». Em tal exposição, o autor argumenta para além da ilusão do «indivíduo só, em meio à multidão», fortemente disseminada nos contextos sociais das grandes cidades. A perspectiva «de perto e de dentro» é capaz de apreender os padrões de comportamento, não de indivíduos atomizados, mas dos múltiplos, variados e heterogêneos conjuntos de atores sociais cuja vida cotidiana transcorre na paisagem da cidade e depende de seus equipamentos8.

Inserido no seu campo de pesquisa, o etnógrafo por meio de interações diretas com os sujeitos sociais participa das práticas cotidianas daquela realidade social, agindo e sentindo como eles, mas sem ser um deles! São nesses movimentos de aproximação/imersão e distanciamento/estranhamento que vão sendo engendradas os inúmeros entrelaçamentos que, por fim, darão origem ao texto antropológico.

São notórios os desafios aos quais o etnógrafo está exposto ao lançar-se numa investigação tendo como campo as diversas instâncias territoriais, geográficas, institucionais, relacionais que compõem as sociedades complexas, sobretudo, em tempo pós-modernos. O sujeito contemporâneo experimenta a confluência de elementos da modernidade, pós-modernidade, complexidade, tecnologias diversas, individualismo, movimentos acelerados de comunicação e reflexão, fragmentação do conhecimento e dos sujeitos, fazer irreflexivo e absolutismo da técnica em detrimento do sujeito, processos de singularização, vazio de sentido, quedas, rupturas, capturas e modismos11.

No caso das investigações que têm como objetos de estudos os fenômenos do processo saúde-doença-cuidado, nos últimos anos tem sido mais frequente a utilização do método etnográfico. Impulsionados pela necessidade de uma «leitura» ou «(re) leitura» de tais fenômenos sob uma luz teórica e metodológica que os abarcassem em profundidade, os pesquisadores buscam retratar seu caráter essencialmente experiencial e vivencial, sua inscrição nas múltiplas dimensões e a possibilidade da construção de um cuidado que produz subjetividades e é, fundamentalmente, carregado de símbolos e significados.

Nas pesquisas etnográficas em Enfermagem, observa-se principalmente os estudos caracterizados como focalizados ou mini-etnografia, os quais destinam-se a investigar um aspecto da vida dos atores envolvidos. O limite de abrangência de uma etnografia pode ser definido por uma única instituição social enfocando várias situações sociais relacionadas ou, por outro lado, apenas uma única situação social. A macro-etnografia requer muitos anos de investigação e geralmente envolve vários etnógrafos na tentativa de descrever a cultura de uma sociedade complexa composta por múltiplas comunidades5.

Podemos observar nas sociedades complexas(referindo-se às grandes cidades) a existência de grupos, redes, sistemas de troca, pontos de encontro, instituições como os serviços de saúde, arranjos, trajetos e muitas outras mediações por meio das quais, aquela entidade abstrata do indivíduo participa efetivamente, em seu cotidiano, da cidade8. Nesse contexto, as sociedades complexas têm constituído os principais espaços nos quais os estudos antropológicos na área da saúde têm sido levados a cabo. Por conseguinte, os pesquisadores que tecem suas trajetórias acadêmicas nesse campo interdisciplinar, são dialeticamente afetados pelas características próprias dessas realidades sociais e pelos desafios que se lhes impõem.

A PESQUISA ETNOGRÁFICA E A PRODUÇÃOCIENTÍFICA DA ENFERMAGEM BRASILEIRA

O ponto de ancoragem entre Antropologia e Enfermagem foi proposto na década de 50 quando a enfermeira norte-americana Madeleine Leininger, trabalhava em um lar de orientação infantil com crianças portadoras de transtornos mentais de grupos culturais diversos, no meio-oeste dos Estados Unidos. Leininger comparou os comportamentos e concluiu que estes eram influenciados pela cultura de cada criança, afirmando a importância da dimensão cultural do cuidado. Este fato a fez procurar um doutorado em Antropologia na University of Washington em 1959, sendo a primeira enfermeira do mundo a obter o título de doutor em Antropologia em 1965. Em seguida, Leininger criou o sub-campo da Enfermagem Transcultural e o primeiro método de pesquisa qualitativa genuinamente da Enfermagem, a Etnoenfermagem12.

Nos últimos anos, enfermeiros brasileiros têm se apropriado desses recursos metodológicos e das teorias antropológicas e da Enfermagem para desenvolver estudos sobre a compreensão do cuidar/cuidado e das vivências e significados do processo saúde-doença em diversas áreas da Enfermagem. Este movimento evidencia uma mudança de enfoque nas pesquisas e prática de Enfermagem, deslocando-se de um eixo centrado no modelo biomédico para uma visão mais integrativa e complexa da realidade, possibilitando novas leituras e novos olhares.

Tal perspectiva reconhece que a vivência do processo saúde-doença pelos indivíduos de cada sociedade está fundamentada nos valores, crenças, práticas, representações sociais, imaginários, significados e em experiências individuais e coletivas, reafirmando o caráter sociocultural dos fenômenos compreendidos neste processo, além, é claro, de fatores psicobiológicos nele envolvidos13. Nesse sentido, a Antropologia da Saúde que «com seus estudos mais localizados, micro-analíticos e críticos das concepções naturalizadas que cercam o modelo biomédico, admite e se interessa por todas as respostas às aflições em geral da vida, incluídas e consolidadas nas tradições, nos sistemas religiosos ou nos sistemas naturalista e em outras racionalidades médicas»14.

A importância desta disciplina para o desenvolvimento de estudos sobre saberes e práticas de curas, assim como as concepções e representações sobre saúde, doença e corpo no Brasil, tem sido reconhecida por autores que têm estudado suas contribuições na área de saúde e em pesquisas que descrevem sua produção científica nas décadas anteriores, para enumerarmos algumas.

O método etnográfico possibilita apreender elementos da cultura de uma realidade e, como resultado, obter novas perspectivas de conhecimento dos fenômenos estudados. A construção da trajetória investigativa ocorre ao longo do desenvolvimento do trabalho etnográfico, por meio de vivências no campo, reflexões e aprofundamento teórico. Na Enfermagem, os conhecimentos produzidos podem conduzir a práticas mais adequadas aos contextos e populações diversas.

Dentre as inúmeras pesquisas etnográficas recentes produzidas no campo da Enfermagem, discute-se algumas nesse texto apresentadas na Quadro 1, sem a pretensão de esgotar a diversidade dessa produção. Há um considerável volume de estudos que abordam aspectos concernentes às vivências, significados e experiências do processo saúde-doença; como os estudos que focalizaram as cenas culturais dos eventos ocorridos na trajetória da hospitalização de adultos e idosos em uma enfermaria cirúrgica15, e os modos de inserção das famílias no cenário institucional de unidades de internação, considerando a experiência subjetiva dos familiares frente às normas e valores da cultura familiar e institucional16.

Já com relação à influência da cultura em comportamentos e atitudes relacionadas à saúde e doença, podemos citar alguns estudos etnográficos, entre outros que podem ser encontrados na literatura: determinantes sócio-culturais e históricos das práticas de prevenção e cura de doenças adotados por um grupo cultural, discutindo, principalmente, as relações entre os sistemas de assistência à saúde presentes em sociedades complexas17; o processo de liminaridade vivenciado por indivíduos portadores de câncer, tendo como balizadores da análise o pressuposto da construção sociocultural da doença e do corpo e a simbologia agre-gada ao câncer18.

No tocante às pesquisas enfocando a avaliação e gerenciamento de serviços e processos de trabalho em Enfermagem, a utilização do método etnográfico e suas variações têm mostrado contribuições para a construção dos conhecimentos na área. Destaca-se a etnografia no ambiente hospitalar, mais especificamente na enfermaria cirúrgica de um hospital universitário em Campinas, abordando as noções de estrutura, anti-estrutura, communitas e liminaridade relacionadas a temas como ritos de passagem entre categorias profissionais, significados das interações sociais no espaço físico da sala de café da enfermaria, bem como as formas de subjetivar a experiência do trabalho em saúde, reafirmando o caráter cultural das instituições de cura da medicina oficial e a crise do paradigma positivista que lhe dá fundamentação9.

Além dessas categorias apontadas, pode-se observar uma preocupação por parte dos enfermeiros em teorizar e refletir sobre os referenciais metodológicos empregados em suas pesquisas. Nesse sentido, tem sido considerável o número de publicações discutindo os diversos aspectos que permeiam a construção metodológica de estudos etnográficos no campo da enfermagem no Brasil19.

Há crescente número de publicações científicas de estudos utilizando o método etnográfico na Enfermagem, realizados em diferentes cenários culturais e refletindo a perspectiva êmica (isto é, as maneiras próprias de expressarem sua cultura) dos atores envolvidos, sejam eles os usuários dos serviços de saúde ou os próprios profissionais da área. A descrição das experiências humanas representa a realidade vivenciada no cotidiano das situações de vida e emerge como estratégia para a aproximação das ações profissionais que consideram a complexidade do cuidado aos seres humanos.

É igualmente relevante apontar a dimensão ética das pesquisas envolvendo seres humanos. De acordo com tais princípios, a utilização dos achados deve servir aos interesses dos sujeitos participantes do estudo. A compreensão dos significados, símbolos e práticas de determinada cultura conduz a novas práticas de cuidado em saúde, através de uma visão holística dos seres humanos, sua saúde, maneiras de viver e os fatores influenciadores nesse contexto6.

As pesquisas etnográficas na área da enfermagem têm conduzido para abordagens mais abrangentes e aprofundadas dos seres humanos, a partir da perspectiva antropológica. Ao buscar a aplicação desses resultados na prática do cuidado, os profissionais estarão atentos às crenças e valores construídos ao longo da vida, podendo respeitá-los e minimizar os conflitos culturais.

Ao conhecer outro contexto cultural em que as pessoas encontram-se inseridas, conduz a reflexões a respeito da prática de enfermagem. Na avaliação de nossos próprios valores e crenças, tendemos a reconhecer e respeitar a diferença com os demais. Isso facilita a comunicação com os diversos atores sociais e permite oferecer um cuidado mais sensível à cultura a que pertencem as famílias20.

O conhecimento dos aspectos culturais de uma população ou grupo torna-se uma etapa para atingir um cuidado efetivo. As ações planejadas e desenvolvidas em conjunto com os clientes, valorizando sua experiência, modificam o enfoque na relação profissional-cliente e aproximam ao cuidado sustentável e emancipável21. Nessa relação, as ações de cuidado são definidas a partir da interação e há possibilidade de as pessoas tornarem-se sujeitas no processo de cuidado da sua própria saúde.

O comprometimento dos profissionais com os avanços dos conhecimentos da enfermagem leva-os a recorrer a métodos de pesquisa que possam gerar novas perspectivas quanto ao cuidado aos seres humanos. Os conhecimentos antropológicos podem ampliar a visão do enfermeiro sobre os sujeitos aos quais destina a sua prática, refinando-a. Com isso, o cuidado passa a ser pensado com um enfoque multidimensional, considerando a complexidade dos seres humanos e de suas relações. Tomado nesta perspectiva, o cuidado relaciona-se constantemente com a Antropologia, sendo esta, parte indispensável a ser considerada na prática da Enfermagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A interpretação da perspectiva êmica dos sujeitos reflete os significados próprios, suas crenças e modos de viver e possibilita respeitar o ponto de vista deles. É possível desenvolver a prática dos cuidados de saúde valorizando os sistemas culturais, o que favorece a satisfação do usuário com o serviço de saúde e o seu relacionamento com os profissionais.

A busca da compreensão da realidade cultural dos seres humanos reflete o desafio dos profissionais de enfermagem em cuidar considerando a multiplicidade e complexidade dos fatores interrelacionados neste processo. A aproximação com a vivência e a experiência dos sujeitos permite a percepção dos fenômenos sob o ponto de vista dos atores envolvidos oferecendo ao profissional um olhar diferenciado para as necessidades e resultados do cuidado de enfermagem.

Tendo em vista a importância do reconhecimento da situação cultural para o cuidado significativo, os achados etnográficos contribuem no sentido de fornecer a descrição de uma realidade local. A utilização do método etnográfico nas pesquisas em enfermagem tem proporcionado a revelação de aspectos profundos e significativos dos seres humanos envolvidos em contextos sócio-culturais diversos. Da mesma forma, a compreensão de fenômenos relacionados ao cuidado e a influência cultural sobre esse, proporcionam novos insights para a implementação de estratégias em contextos semelhantes e para o desenvolvimento de outros estudos relacionados à temática.

Por fim, reiteramos a importância do desenvolvimento desta zona de interação interdisciplinar, pois a antropologia, por meio dos seus referenciais teórico-metodológicos, tem oferecido à enfermagem possibilidades de compreender as minúcias que permeiam as entrelinhas do fenômeno do cuidar/cuidado que os enfermeiros ritualizam ao interagir com os indivíduos, famílias ou comunidades no exercício de sua profissão. No entanto, estas zonas de interação não devem parar na Antropologia, mas continuar a multiplicar-se entre todas as áreas do saber, estabelecendo relações e promovendo assim o crescimento da enfermagem como ciência do cuidar humano e elencando elementos que possam instrumentalizar o enfermeiro na sua prática cotidiana.


Conflitos de interesse. Nenhum dos autores possui conflitos de interesse relacionados a esse estudo.


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