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Opinión Jurídica

versión impresa ISSN 1692-2530

Opin. jurid. vol.14 no.28 Medellín jul./dic. 2015

 

ARTIGOS

 

O avesso do sujeito: provocações de foucault para pensar os direitos humanos*

El reverso del sujeto: provocaciones de Foucault para pensar en derechos humanos

 

 

Gabriela Maia Rebouças**

 

** Doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e líder do grupo de pesquisa Acesso à justiça, direitos humanos e resolução e conflitos, cadastrado no CNPq. Atualmente é docente do Mestrado em Direitos Humanos da Universidade Tiradentes (UNIT/SE) e pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Pós–Graduação da FITS/AL. Brasil. Endereço eletrônico: gabrielamaiar@gmail.com; gabriela.maia@pq.cnpq.br.

 

Recibido: agosto de 2014
Evaluado: abril de 2015
Aprobado: agosto de 2015

 


RESUMO

Este ensaio pretende discutir os modos de subjetivação propostos por Michel Foucault e os direitos humanos. Tomando as implicações Foucaultianas do cuidado de si e de uma estilização da existência na constituição de nossas vidas, é possível substituir o apelo ao universal e ao essencial por formas mais dissonantes de subjetivação, significativamente mais singulares. O corpus deste ensaio concentrou–se num referencial bibliográfico que contempla obras de Foucault e sobre o autor, sobre direitos humanos, sem perder de vista as implicações práticas e as experiências do campo jurídico. Mais ainda, a percepção das insuficiências da teoria tradicional dos direitos humanos de encarar as diferenciações da subjetividade e de promover a autonomia e a emancipação dos sujeitos evidencia o motivo pelo qual buscamos elementos novos da subjetividade na filosofia de Foucault e em uma teoria crítica dos direitos humanos.

PALAVRAS–CHAVE: Direitos humanos, Michel Foucault, subjetividades, teoria crítica.


RESUMEN

Este ensayo pretende discutir los modos de subjetivación propuestos por Michel Foucault y los derechos humanos. Tomando esas implicaciones Faucaultianas del cuidado de sí mismo y de una estilización de la existencia de la constitución en nuestras vidas, es posible substituir el llamado a lo universal y lo esencial por formas más disonantes de subjetivación, significativamente más singulares. Este ensayo se enfocó en un referencial bibliográfico que contempla obras de Foucault y obras sobre el autor, sobre derechos humanos, sin perder de vista las implicaciones practicas y las experiencias del campo jurídico. Sin embargo, la percepción de las insuficiencias de la teoría tradicional de los derechos humanos de encarar las diferencias de la subjetividad y de promover la autonomía y la emancipación de los sujetos, evidencia el motivo por el cual buscamos elementos nuevos de la subjetividad en la filosofía de Foucault y en una teoría critica de los derechos humanos.

PALABRAS CLAVE: Derechos humanos, Michel Foucault, subjetividades, teoría critica.


 

 

Introdução: em torno da problemática do sujeito

Este ensaio foi construído a partir dos estudos sobre subjetividades e as implicações para os direitos humanos. O foco não é a subjetividade do intérprete ou da interpretação. A pergunta principal é: qual a concepção de sujeito/subjetividade a partir da qual os direitos humanos se estruturam? Os obstáculos atuais na luta por direitos humanos apontam para a necessidade de pensar outras concepções de subjetividade, empreendida aqui com base nas provocações foucaultianas que desnudaram esse sujeito em seus interditos: loucura, delinquência e sexualidade.

Há, portanto, duas linhas que se cruzam neste ensaio, transversalmente alinhavadas pela questão do sujeito universal: De um lado, a legitimação filosófica dos direitos humanos atrelada à modernidade, concentrando–se na retórica de uma imagem de homem superior e racional que sufoca formas dissonantes de subjetividades e legitima uma prática hegemônica de vida, (neo)liberal e eurocêntrica. Por outro lado, as provocações de Foucault que, apontando o sujeito universal como um demiurgo, 'um rosto de areia na orla do tempo'1, um discurso recente próprio a uma episteme em vias de cisão, apresenta em suas várias pesquisas os avessos desse sujeito na figura do louco, do criminoso e do sujeito de desejo.

Não há outro caminho para a questão: se nos incomoda a hiperinflação de discursos sobre direitos humanos, esvaziados, sobretudo, da capacidade de transformação social e emancipação dos sujeitos envolvidos, negando–se nas condições concretas de existência, à maior parte dos sujeitos, qualquer identificação com elementos deste discurso de direitos e de condição humana, é preciso enfrentar os fundamentos deste paradoxo e problematizar de que sujeito se fala e que sujeito se deseja constituir quando se trata de enunciar direitos humanos.

Além de uma multiplicação dissonante de discursos sobre direitos humanos, as dificuldades de lidar com um campo de direitos que se realiza simultaneamente na ordem internacional e nacional faz com que, pari passu, seja incrementada a teorização dos direitos fundamentais, acentuando os critérios de racionalidade e sistema, na configuração de uma ordem nacional alinhada a uma ordem ocidentalizada em proporções mundiais.

Com efeito, concentrar–se na produção jurídica a partir da concretização de direitos pelos tribunais mundo afora tem relegado a discussão dos direitos humanos para fora das arenas da teoria e filosofia jurídica, tendo em vista um certo consenso em reconhecer que a teorização dos direitos fundamentais atenderia a apelos mais pragmáticos de concretização de direitos, ainda que limitados pelas contingências dos Estados (necessariamente alinhados a um mercado global, em tempos de neoliberalismo).

Os desdobramentos históricos de uma fragmentação entre direitos humanos e direitos fundamentais, vinculando os primeiros a uma positivação internacional e os segundos a uma positivação nacional (e garantida constitucionalmente) distancia ainda mais a teorização dos direitos humanos das lutas locais de emancipação e construção de novas formas de vida.

Portanto, desde seu nascedouro a teorização dos direitos humanos precisa enfrentar sérios problemas relativos à normatividade e ao campo de ação, nacional ou internacional. Mas não é só: precisa enfrentar também o distanciamento concreto do seu potencial emancipador e criativo e se perguntar quais sujeitos protege, e em que medida consegue garantir uma vida digna, empoderando e viabilizando subjetividades.

O ensaio é a forma metodológica (Rebouças, 2008) para este texto no campo da filosofia e teoria do direito. Partindo de Adorno (1986) e de Foucault2 (1984A) compreende–se o ensaio como uma atitude, uma verve orientada para a crítica, para a perspectiva de um sujeito, de um autor que lança mão de suas impressões e desafia o conhecimento dado, mas que não faz sentido desconectado deste conhecimento, guardando preocupações estéticas, críticas e constituindo, a um só tempo, compromissos com a realidade e com a invenção do novo. "O ensaio não é um gênero literário, mas é um 'gênero do intervalo' entre o ficcional e o não–ficcional, é um gênero da passagem" (Pinto, 1998, p. 89). A propriedade de se pensar pelo ensaio não é uma escolha aleatória, eletiva, mas uma forma de empreender uma dobra sobre si, e de se assumir na franqueza do dito: falar de sujeitos e subjetividades é falar de mim mesma, sujeito que sou, não de um objeto. Falar a partir de Foucault é assumir uma preocupação com o status da fala, com a estética da fala e com a invenção do pensamento.

As preocupações em torno dos atores –aqui pensados como subjetividades– denunciam os paradoxos de uma concepção posta de direitos humanos: moderna e liberal, esvaziada de seu potencial emancipador e criativo (ou seja, humano!) e reduzida aos direitos fundamentais, para explorar outras cartografias na construção de uma legitimação para o direito que repense, reinvente e liberte potenciais e práticas humanitárias adormecidas. A aposta é explorar Foucault para refletir as insuficiências deste sujeito universal como fundamento dos direitos humanos e para pensar, diferentemente, a partir de subjetividades plurais e nômades.

 

1. Provocações de Foucault: a constituição do sujeito e seu avesso

É somente no curso L'Herméneutique du sujet (Foucault, 2001A), já no início dos anos oitenta, que Foucault coloca o problema da constituição do sujeito literalmente em evidência – no título. Mas a questão já permeava toda sua obra, para além das relações de poder e controle. Ao olhar novamente para esses escritos é possível enxergar que, afinal, os sujeitos estão lá, nas relações de poder, nos corpos disciplinados, nos gestos da loucura, vigiando e punindo. Um escrito de 1982 sobre as tecnologias de si3 torna mais evidente esta questão: "Perhaps I've insisted too much in the technology of domination and power. I am more and more interested in the interaction between oneself and others and in the technologies of individual domination, the history of how an individual acts upon himself, in the technology of self" (Foucault, 1988, p.19).

Por outro lado, a obra de Foucault está completamente espiralada, e a crítica à constituição do sujeito moderno inicia pela exploração arqueológica da loucura. O gesto da loucura é captado pelas conexões historicamente situadas com o determinismo de uma razão natural, mas que, com muita ambiguidade, impõe como processo transformador a punição moral, o castigo. A loucura, embora tratada no espaço social de uma moral que a associa ao pecado e ao erro, é objetiva e positivamente identificada como uma patologia.

O controle do indivíduo louco se insere no contexto mais ampliado do regramento de uma sociedade, historicamente dada, cuja liberdade e razão fazem parte de uma natureza do homem, não de sua ética, como se pode detectar na sociedade ocidental clássica. "A loucura não pode ser encontrada no estado selvagem. A loucura só existe em uma sociedade, ela não existe fora das normas de sensibilidade que a isolam e das formas de repulsa que a excluem ou a capturam" (Foucault, 2006, p. 163).

A história daria conta de várias formas de loucura, não necessariamente situadas na episteme de uma doença mental, já que tanto na Idade Média quanto no Renascimento, a loucura está presente de forma estética ou cotidiana, como manifestação e revelação (do bobo da corte à loucura lúcida de Lady Macbeth de Shakespeare). Em seguida, atravessa um período de silêncio, de exclusão, com a internação no século XVII, para no século XVIII ser a loucura reduzida a um fenômeno natural, ligada à verdade do mundo, num ato de posse positivista (Foucault, 2006, p. 163).

Assim, a História da loucura (Foucault, 2005) é a arqueologia, a escavação dos arquivos que permitem visualizar e perceber o status, a mudança e o espaço de inscrição da loucura na sociedade ocidental. Perceber as rupturas líricas e aproximações patológicas de uma ação, antropologicamente falando, que confronta a razão, em seu nascedouro, como razão moderna. E aproximações que permitem, a um só tempo, inscrever esta ação no espaço da punição moral, do castigo, da disciplina, da normalização e do controle. Loucura domesticada: identidade, o ser mesmo da razão.

O itinerário inscrito na História da loucura (Foucault, 2005) ressalta a construção dos limites de uma subjetividade –aquela moderna– e das profundezas desta mesma subjetividade, ligada a uma tradição filosófica, religiosa e moral. O cérebro como o lugar da razão é também o lugar da consciência, do pecado, da falta, do ilícito. E lá, onde falta razão, reforça–se a punição. Mas a falta de razão não isentaria o sujeito de seus pecados? É de um misto, portanto, de razão e desrazão que a loucura vai ser construída. Ela não pode em todo o seu significado ser a ausência completa da razão. Ela precisa ser, de algum modo, conectada e avaliada pela razão, precisa preservar a possibilidade de julgamento externo. O sujeito louco, que oscila entre a inocência e a monstruosidade, entre a desrazão e a demência, vai ser constituído neste cruzamento paradoxal4.

Mas não basta definir o sujeito pelo binômio normal/anormal, são/louco. É preciso avançar sobre o sujeito que, embora não seja louco, não se submete às interdições normativas da maneira desejada pelas instituições e dispositivos de poder. É preciso definir para o sujeito outro avesso – o criminoso, e constituir sobre ele não apenas controle e disciplina, mas sua própria positividade e interdição. É preciso vigiar e punir.

Uma pausa epistemológica é necessária: a espiral que está sendo construída não tem nenhuma pretensão de ser uma síntese ou resumo da obra de Foucault, e uma perspectiva muito mais aprofundada da constituição do sujeito em Foucault pode ser encontrada em Fonseca (1995) ou ainda, nas implicações desta constituição para o direito em Rebouças (2012). O que se deseja, por agora, é aproveitar as intensas reflexões de Foucault para pensar no sujeito e mais além, pensar no sujeito que fundamenta os direitos humanos.

Logo no início de Vigiar e Punir, Foucault explicita como objetivo da obra "uma genealogia5 do atual complexo científico Judiciário onde o poder de punir se apóia, recebe suas justificações e suas regras, estende seus efeitos e mascara sua exorbitante singularidade" (Foucault, 2004A, p. 23).

Vigiar e punir está dividido em quatro partes. O suplício, a primeira, ressalta o ritual e o corpo do condenado. Em seguida a punição, compreendendo a mitigação das penas e a punição generalizada. A terceira parte concentra–se na disciplina, é a maior e mais detalhada: estão em evidência os corpos dóceis, adestrados, a vigilância e o panoptismo. A quarta e última parte é dedicada à Prisão, como instituição completa e austera, explicitando a relação ente ilegalidade e delinquência e guardando uma observação especial sobre o papel do carcerário.

Foucault então percebe que, de um padrão de punição que significava o suplício do corpo, cruel e sanguinolento, para uma privação da liberdade, medida e limitada no tempo, há mais do que um movimento de humanização das penas ou do sistema penal. O que se pretende, não é mais expiar a culpa pelo flagelo da dor, punir simplesmente, mas corrigir e vigiar. "O essencial da pena que nós, juízes, infligimos não creiais que consista em punir; o essencial é procurar corrigir, reeducar, 'curar"' (Foucault, 2004A, p. 10).

No seio das instituições panópticas, os dispositivos disciplinares recompõem o corpo numa nova mecânica do poder: não para exercer sobre eles dominação, pura e simples, mas para sobre os corpos exercer poder e com isso, controlar os indivíduos. Importa não simplesmente que o tempo se passe na clausura, é preciso remodelar esse indivíduo em corpo dócil e adaptado ao sistema: um corpo que, em primeiro lugar, se submete ao regime de verdade que lhe obriga a confessar, a expor sua alma, sua intenção, dolo e culpa; depois, um corpo remodelado para o trabalho, trabalho braçal, físico, subalterno; ainda, um corpo que reza, busca a salvação; enfim monástico, celibatário, reprimido em sua sexualidade, um corpo esvaziado, portanto, em sua potência de liberdade e domesticado, até as últimas entranhas, pelo e para o sistema e suas engrenagens.

O corpo que é supliciado, a alma cujas representações são manipuladas, o corpo que é treinado; temos aí três séries de elementos que caracterizam os três dispositivos que se defrontam na última metade do século XVIII. Não podemos reduzi–los nem a teorias de direito (se bem que eles lhe sejam paralelos) nem identificá–los a aparelhos ou instituições (se bem que se apóiem sobre estes), nem fazê–los derivar de escolhas morais (se bem que nelas encontrem eles suas justificações). São modalidades de acordo com as quais se exerce o poder de punir. Três tecnologias de poder (Foucault, 2004A, p. 106).

As proximidades com as demais instituições de formação e cura são inevitáveis, e na microfísica6 do poder, os dispositivos de controle são cambiáveis: punir, curar, educar, salvar, produzir torna aterrorizantemente semelhantes instituições como escola, hospitais, mosteiros, prisões e fábricas. A prática disciplinar atravessa toda a sociedade.

A prisão e seus desdobramentos não descuidam de, independente de domesticar 'para o sistema', tatuar os indivíduos com a marca indelével do criminoso, esse avesso do sujeito de direito, esse contra–lei, desordeiro, a pedir a correção, o castigo. E se a loucura, enquanto desrazão e doença, permite o contorno do sujeito racional e são, a delinquência reforça as instituições jurídicas, a lei como interdição, a negatividade do mal para constituir a virtude ética do homem de bem. O sujeito moderno está quase completo: normal7, racional, livre, porque pode escolher, necessitando apenas ressaltar sua virtude, moderando os desejos e submetendo sua natureza ao controle moral. O alvo agora é a sexualidade8.

A história da sexualidade nos três volumes publicados é mais do que a tentativa de historiografar o conjunto de práticas e escolhas morais em torno do sexo empreendido pelo ocidente. Em seu primeiro volume, Foucault percebe mais uma vez que ao tempo em que se constituiu a prisão e o manicômio como uma instituição disciplinar, uma moral sexual, uma econômica e higiênica prescrição pretendeu distinguir quais escolhas deveriam constituir o campo da normalidade, controlando o desejo ao limite do produtivo: nem a ausência nem o exagero eram produtivos quando se tratava de desejo. Mas, diferente das demais interdições, que tinham suas instituições centrais, a sexualidade deveria ser controlada a um só tempo por todas elas e, sobretudo, pelo próprio indivíduo. E não somente do ponto de vista do corpo, mas fundamentalmente do ponto de vista da alma. Seria o caso de "proporcionar uma sexualidade economicamente útil e politicamente conservadora?"9.

Por isso, os discursos sobre a sexualidade10 não estavam dirigidos a todos, indistintamente, pretendiam distinguir com certa estirpe a burguesia. Foucault identifica um corte de classe na constituição de uma moral sexual, tanto para caracterizar positivamente a burguesia, a elite, quanto para resgatar uma certa superioridade, uma nobreza, em relação às massas. Mas os dispositivos de sexualidade, que incluem desde a histerização do corpo da mulher, a pedagogização do sexo das crianças, a socialização das condutas de procriação até a psiquiatrização do prazer perverso tem a função também de constituir um regime de verdade sobre os indivíduos e obrigá–los a expor suas subjetividades ao controle dos padrões de normalidade.

Foucault vai tornando claro que o poder se expressava não apenas como poder disciplinar, mas também como biopoder: não apenas o controle pelo não, mas também o controle pelo sim, interdição versus incitação. Para atingir as populações, não apenas os indivíduos, o biopoder elege não a norma jurídica como instrumento de controle, mas a normalidade. Com o surgimento do biopoder – poder sobre a vida, não mais sobre o nascimento, mas sobre a natalidade; não mais sobre a doença, mas sobre a saúde; a prevenção, antes da cura, os processos de subjetivação ganham proporções globais, em busca de padrões de normalização. E a sexualidade pode ser este elo essencial que nos liga a uma natureza, instintiva, corpórea e animal, alojada na interioridade da alma. A multiplicação de discursos sobre a sexualidade faz do sujeito seu próprio vigia e carrasco, seu médico e líder religioso. No final das contas, a partir do diagnóstico de Foucault, o dispositivo da sexualidade nos condena a papéis desejáveis e produtivos.

As conclusões deste primeiro volume da história da sexualidade – La Volonté de Savoir (Foucault, 1976), obrigam Foucault a rever seu projeto e a buscar, nos volumes seguintes, que só saíram oito anos depois, a compreensão da criação deste dispositivo da sexualidade, onde a confissão da verdade implica na renúncia do sujeito.

L'Usage des Plaisirs (Foucault, 1984A) e Le Souci de Soi (1984B) pretendem retomar às práticas antigas para perceber a constituição do sujeito num quadro mais geral de práticas que, com implicações éticas e políticas, prestavam–se a empoderar os sujeitos e modelar subjetividades, antes que a racionalidade moderna e as interdições cristãs tivessem dominado na criação dos dispositivos da sexualidade tal qual vistos no primeiro volume. Já estamos nos primeiros anos da década de oitenta do século passado, que correspondem aos últimos de vida de Foucault. Os últimos cursos proferidos no Collège de France também enfrentam esta temática, sobretudo L'Herméneutique du sujet.

A subjetividade é tomada, a partir de Foucault, "como a maneira pela qual o sujeito faz a experiência de si mesmo em um jogo de verdade, no qual ele se relaciona consigo mesmo" (Foucault, 2004C, p. 236). Portanto, situada no campo da ação, do cuidado de si, no campo da experiência.

A emergência do sujeito ganha a dimensão de uma estética da existência, quando em relação ao uso dos prazeres na Antiguidade grega, ou um cuidado de si, no período romano. Nesta perspectiva, Foucault tenta resgatar formas de subjetivação antes da hegemonia de um sujeito universal, antes que a razão cartesiana pudesse separar a razão do próprio sujeito para defini–lo.

Neste ponto, as práticas gregas antigas mostram que o conhecimento de si é uma parte de uma experiência maior que é a espiritualidade, ainda entendida como sabedoria e prática de uma vida boa. E o cuidado de si não apenas prepara o indivíduo para governar, para a vida pública, mas para a vida toda, a velhice, a morte, a completude.

O que chama a atenção de Foucault, especialmente, é que os registros filosóficos da antiguidade não se apressam em eleger um critério que possa definir o sujeito. O que ele encontra é um apanhado de práticas, exercícios com o corpo e com a alma, com os sentidos e com a razão, do sujeito com os outros e com ele mesmo. Não havia um modelo de subjetividade que definisse o sujeito, mas modos de viver que implicavam em subjetivações e subjetividades diferentes. Ou seja, haveriam formas plurais de subjetivação que permitem uma originalidade, inédita e precária, de maneiras de construir a existência. Contra a experiência de um sujeito universal, desse sujeito e seu avesso, é possível encontrar, na história do ocidente, formas diferentes.

Enfim, os itinerários de Foucault nos levam a perceber que, se o sujeito moderno é uma criação recente e atrelada aos dispositivos de controle, muito próprio e adequado à produção e à reprodução dos valores de uma classe, a burguesia, é preciso investigar os efeitos de situa–lo nos fundamentos dos direitos humanos e enfrentar os paradoxos de um discurso sempre mais e mais inflacionado de direitos que se realiza cada vez menos para as massas.

 

2. Direitos humanos e subjetividade(s): entre o posto e a (re)invenção

Neste tópico, o que estará em jogo é a articulação que o direito vai engendrar com esta perspectiva solipsista da subjetividade na construção da categoria dos direitos humanos. Apesar de se vislumbrar a modificação conceitual entre direitos subjetivos (entendidos como naturais e/ou racionais), direitos humanos e direitos fundamentais, o que permanece como fio condutor é a perspectiva filosófica de uma subjetividade que confere ao homem uma posição não só singular, como também superior na ordem das coisas, cujo substrato é tão forte que permite, a partir deste homem, supor conteúdos da razão ou da natureza humana, e daí derivar normas e conteúdos jurídicos. É a força do argumento da segurança e da verdade no mundo jurídico que nos seduz com a ilusão de uma igualdade irrealizável, como legitimadora e redentora.

A modernidade constrói–se sob o signo do individualismo antropológico e solipsista de um homem superior, ao qual é reconhecida uma dada subjetividade, tal qual denunciada por Foucault. A subjetividade pode ser, na perspectiva moderna, esta realização da própria razão como interiorização de um modo de pensar e exteriorização da moral como um modo de agir.

Como interiorização, vimos de que maneira os avessos do sujeito empreendem o controle sobre o indivíduo, sua alma, seu desejo, seu corpo natural. Como exteriorização, caberá ao direito a explicitação dos modos de agir de maneira privilegiada nos Estados modernos e contemporâneos.

Os direitos subjetivos serão, inicialmente, o foco de realização desta subjetividade moderna no sistema jurídico. Legitimando a subjetividade moderna, caberá ao direito garantir–lhe a força, poderes e direitos na construção de uma sociedade ordeira e livre, 'apenas' sujeita ao Estado, sendo esta lógica determinante para o nascedouro do discurso sobre direitos humanos que se estabelece no séc. XIX e XX e permanece em muita evidência atualmente.

Vários diplomas legais e políticos vão responder pelo que o Ocidente vem, historicamente, denominando direitos humanos. A primeira fase de internacionalização (Comparato, 2003) destes direitos tem início na segunda metade do séc. XIX e se prolonga até a segunda grande guerra mundial, marco histórico que delimita a segunda fase de internacionalização, cujo símbolo é a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).

Partindo de uma natureza humana centrada na ideia de dignidade, e tendo em vista a união dos povos (estabelecida definitivamente como valor após a segunda grande guerra), os direitos humanos aparecem inicialmente com um sentido político preponderante sobre o próprio sentido jurídico. Não obstante a importância histórica e política, o lastro de subjetividade que tais direitos preservam ainda se circunscreve numa perspectiva de construção de um super–homem irrealizável, reforçando os antagonismos entre discursos e práticas e evidenciando as vantagens pragmáticas de um discurso de direitos fundamentais11.

O que se pretende mostrar, por ora, é que o direito, sendo um dos pilares deste projeto de modernidade, e nela tendo uma posição central, sustenta–a a qualquer custo. Aproveitando e reforçando a noção de subjetividade moderna o direito vai se firmar como um sistema racional, alicerçado em conceitos como direito subjetivo, autonomia da vontade e obediência à lei.

Nesse sentido, os direitos subjetivos, no qual se baseia a teoria dos direitos humanos hegemônica, presta um vigoroso auxílio na articulação de uma subordinação da política à moral para a construção de um imaginário burguês. E, com isso, reforçaríamos a perspectiva de uma projeção ideal e metafísica do sujeito.

Por outro lado, é perceptível que a discussão de direitos humanos surgida em um solo filosófico típico da modernidade, ganha uma funcionalidade mais política do que jurídica (acontece o inverso no discurso dos direitos fundamentais), portanto adjacente à legitimação como direitos. É como se o discurso de direitos humanos funcionasse como uma válvula redentora ou legitimadora da concretização do Estado liberal sem, contudo, aliviar as tensões conflituosas dentro dele.

Ao mesmo tempo, as perspectivas teóricas postas de direitos humanos bebem das concepções de direitos subjetivos, reforçando os atributos de universalização. Direitos humanos viram, nesta perspectiva, normatização, pautas e standards da subjetividade moderna, instâncias contrafáticas de sua própria realização. Neste sentido, os direitos humanos são frágeis instrumentos de concretização do direito de muitos.

Por isso, quando David Sánchez Rubio propõe repensar os direitos humanos, ele parte da perspectiva que se encontram os direitos humanos hoje, tanto em sua prática quanto em sua construção teórica, anestesiados. Rubio chama a atenção para o fato de que "em la época actual, y dentro del contexto de la cultura occidental, el imaginário sobre el cual se fundamenta y se asienta nuestra manera de entender derechos humanos es insuficiente, bastante reducido y demasiado estrecho" (Rubio, 2007, p. 11).

Seu itinerário será aquele de pensar imagens, cegueiras, espelhos e obscuridades sobre os direitos humanos, passando pela análise das intervenções humanitárias violentas em nome dos direitos humanos, a chegar aos paradoxos do universal para propor, enfim, que na confluência entre ficção e ciência, se possa repensar os direitos humanos para além da modernidade, reconstruindo a própria característica do humano a partir de um referencial de subjetividades nômades (Rubio, 2007, p. 11).

A ideia de subjetividades mutantes, nômades, trazida por Rubio se conecta com o uso que Rosi Braidotti (2002) propõe ao defender uma perspectiva feminista, não simplória, da relação entre diversidade cultural e gênero. Braidotti (2002) discute a propriedade da adjetivação nômade para significar esta outra perspectiva da subjetividade, que privilegia a diferença, que privilegia o movimento de deslocar o olhar histórico e reinventar a existência, e não mais a identidade, o mesmo e o progresso. Abandonando a subjetividade moderna, "a renúncia a isto tudo seria uma posição mais confortável, em favor de uma visão descentralizada e multi–dimensionada do sujeito como entidade dinâmica e mutante, situada em um contexto, em transformação constante" (Braidotti, pp.9–10).

Inserida no caldeirão da discussão da pós–modernidade, a subjetividade nômade "tem a ver com a simultaneidade de identidades complexas e multi–dimensionadas. (...) O sujeito nômade é um mito, ou ficção política, que me permite pensar sobre e mover–me através de categorias estabelecidas e níveis de experiência" (Braidotti, 2002, p.10).

No sentido aqui proposto, Rubio compartilha a crítica de se reduzir os direitos humanos aos direitos fundamentais constitucionalmente previstos, como um elemento de esvaziamento do potencial transformador dos sujeitos envolvidos, acirrando o abismo entre normatividade e efetividade de tais direitos. "Pese a existir um reconocimento de la importancia de los derechos fundamentales o derechos humanos constitucionalizados, los mecanismos de no aplicabilidade y la ausencia de garantías convincentes estarían a la orden de todos los días" (Rubio, 2007, p. 23).

A construção de uma identidade a partir da qual a subjetividade é pensada como lastro para os direitos humanos e, por conseguinte, para os direitos fundamentais, de onde se extrai critérios para classificar gênero, sexo, raça, classe, etnia, religião, são critérios a um só tempo para a igualdade formal discursiva como para a desigualdade material concretizada. Para enfrentar esta anestesia paradoxal, torna–se fundamental compreender a democracia entendida como um modo de vida e os direitos humanos "como procesos de creación continua de tramas sociales de reconocimiento y subjetividades a timpo completo y em todo lugar" (Rubio, 2007, p. 27).

Assim, repensar os direitos humanos importa em explorar a ciência–ficção na construção de um imaginário social e de uma prática emancipatória por novas formas de dignidade humana, sinestésicas, de grupos e coletividades que enfrentam a luta, resistem e repensam sua existência, na criação de relações humanas que superem as condições atuais de exclusão, exploração, dominação, marginalização e as transformem em relações de inclusão e participação, horizontais e solidárias (Rubio, 2007, p. 119).

Esta perspectiva mitigada dos direitos humanos que denunciamos é tanto castradora das diferenças quanto inaudita para as lutas e sofrimentos de populações inteiras excluídas das sociedades ocidentais em suas bandeiras universalizantes. É preciso (re)inventar novas práticas e legitimar esta outra perspectiva sinestésica dos direitos humanos. Importa, então, explorar o imaginário de Joaquin Herrera Flores (2009A).

Flores situa inicialmente os direitos humanos como "a afirmação da luta do ser humano para ver cumpridos seus desejos e necessidades nos contextos vitais em que está situado" (Flores, 2009A, p. 25). Por isso, opõe–se a categorizar os direitos humanos como privilégios, declarações de intenções ou postulados metafísicos apriorísticos. Contrapõe–se a identificar o universal como transcendência ou racionalidade lógico–dedutiva. Antes, o universal dos direitos humanos deve ser compreendido na imanência do fortalecimento de indivíduos, grupos e organizações que buscam acesso a bens que "fazem com que a vida seja digna de ser vivida" (Flores, p. 25).

Para tanto, é preciso superar o discurso dos direitos inalienáveis, de uma concepção clássica de direitos humanos como o direito de ter direitos, que em ambos os casos, encerram a discussão dos direitos humanos num catálogo ou plataforma de direitos reconhecidos formalmente ou normativamente. Mas, se esses direitos não são transformados em empoderamento dos sujeitos envolvidos nos processos de luta, o que adianta vê–los reconhecidos retoricamente em diplomas legais ou textos jurídicos? Este simplismo de visão sobre os direitos humanos é denunciado por Flores (2009A, p. 33) como um círculo vicioso, paralisante.

Reconhece Flores (2009A) que, para (re)inventar os direitos humanos, é preciso enfrentar a complexidade cultural, empírica, jurídica, científica, filosófica, política e econômica que os envolve, isso porque toda cultura está contaminada por muitas culturas e racionalidades. Daí a necessidade de se propor a interdisciplinaridade, a interculturalidade e completude dos direitos humanos, no seu incessante processo de construção, desconstrução e reconstrução de conceitos.

Esta complexidade multifacetada só poderá ser enfrentada com uma teoria crítica e realista dos direitos humanos, que envolva uma perspectiva integradora e contextualizada em práticas sociais emancipadoras. Ou seja, para ser realista, importa saber onde estamos e que caminhos podem ser propostos, olhando a vida em sua imanência, em suas condições concretas.

Por outro lado, para ativar uma teoria crítica, é preciso reconhecê–la como atitude de resistência e combate das condições dadas, como capacidade para elaborar uma visão alternativa do mundo, para além de suas atuais contingências. Portanto, o pensamento crítico e realista é também um pensamento criativo e propositivo, e é preciso abrir a possibilidade das pessoas se defenderem de acordo com os seus próprios critérios de dignidade humana, conforme o contexto cultural, ético, político e social. A teoria crítica dos direitos humanos não fundamenta nem se serve, portanto, de um sujeito universal.

Surgem então os cinco deveres básicos para os que pretendem (re)inventar com Herrera (Flores, 2009A, pp. 67–69) os direitos humanos: a partir de uma plataforma de compromissos e deveres para construir zonas de contato emancipadoras, importa em Reconhecimento, Respeito, Reciprocidade, Responsabilidade e Redistribuição. Com isso, seria possível construir uma nova cultura dos direitos humanos que contempla a abertura social triplamente caracterizada: abertura epistemológica, intercultural e política (para a democracia participativa), atualizando a esperança na condução da ação humana.

Por outro lado, para uma compreensão definitiva das contribuições de uma teoria crítica dos direitos humanos, é preciso evidenciar a ética da alteridade de que fala Dussel (1995), na construção de sua filosofia da libertação. A condição primeira da alteridade, que é o encarar o outro em sua singularidade, exige uma ética, no sentido de que viver é conviver. E vai além: significa compreender as condições imanentes dos excluídos, a dor em sua exclusão, na superação da intolerância de ver o outro como o oposto de si, o inimigo; significa não criminalizar o diferente, reduzindo–o sempre ao mesmo; significa sim, tomar consciência da história e dos diferentes protagonistas da história, compreendendo as lutas por emancipação como âmago de uma sociedade libertária e democrática.

Neste mesmo sentido, quando Santos (2013) confronta a luta dos direitos humanos com as religiões, encontra o cinismo das concepções hegemônicas de direitos humanos, e propõe uma concepção pós–secularista dos direitos humanos que alia as lutas contra–hegemônicas por direitos às teologias progressistas, tal qual a teologia da libertação, de Freire, Boff e Dussel. "Se Deus fosse um ativista de direitos humanos, ele ou ela estariam definitivamente em busca de uma concepção contra–hegemônica dos direitos humanos e de uma prática coerente com ela" (Santos, p. 142).

Enfim, é preciso garantir aos sujeitos que os modos de subjetivação propostos por Foucault, as tecnologias de si, possam ativar não apenas o outro do sujeito, mas diferentes sujeitos, nômades, mutantes, dissonantes, sujeitos empoderados que criam e lutam por suas condições de vida digna. Os direitos humanos, enfim, não podem estar a serviço do opressor ou apenas como instrumento pós–violatório, precisam constituir a ação transformadora das sujeições e opressões. Tem que servir, como Foucault (2001B) pensou em relação ao Anti–édipo de Guatarri e Deleuze, para constituir uma vida não fascista, liberando a ação política de toda forma de paranoia unitária e totalizante, fazendo crescer a ação, o pensamento e os desejos por proliferação, justaposição e disjunção, liberando–se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, a castração, a falta, a lacuna), ligando o desejo com a realidade, utilizando a prática política como um intensificador do pensamento, e não exigindo da ação política que ela restabeleça os "direitos" do indivíduo, superando uma perspectiva tradicional de direitos humanos pela poética de uma crítica.

 

3. Considerações finais: ou ativar a crítica para realizar direitos humanos

A perspectiva de uma subjetividade moderna que criticamos reside no fato de se estruturar a partir da razão, mantendo a universalização e naturalização de uma forma de vida, sujeitada ao Estado. Esta perspectiva da subjetividade moderna sufoca a liberdade e cria um acento muito forte em uma identidade padrão. Nesta linha, é possível perceber como pode significar, ao contrário de liberar o indivíduo, sujeitá–lo cada vez mais aos controles do Estado, sejam na esfera de uma microfísica disciplinar, seja na perspectiva macro de um biopoder que incide sobre as populações.

A partir da crítica a esta imagem de sujeito denunciada que sustenta uma parte substancial dos discursos e concepções de direitos humanos, aponta–se para a ideia de subjetividades nômades, transitórias, libertas, na construção de uma ethos que implique em uma dimensão política e ética, uma dimensão da própria liberdade. O direito, incluindo os direitos humanos, no entanto, ainda é um campo demasiadamente apegado à racionalidade moderna, o que reforça os elementos dessa subjetividade criticável, que se apresenta como universal, essencial e identitária.

As teorias do direito na contemporaneidade precisam enfrentar a crítica aos aspectos exageradamente formais ou instrumentais desta racionalidade. Os estudos em torno dos direitos humanos apontam para uma prevalência hegemônica de uma visão tradicional, normativa e pós–violatória, pouco sensível às modulações da subjetividade. É em parte porque direcionado a um sujeito universal que os direitos humanos se tornam insensíveis às dores e contextos regionais, e pouco efetivos em relação às lutas sociais.

As críticas dirigidas ao discurso dos direitos humanos implicariam em pensar para além do modelo de subjetividade posto. Pensar em subjetividades, no plural, como formas de constituir aquilo que somos, técnicas e maneiras de modularmos a existência, criando um repertório de possibilidades de si, vai obrigar o direito a repensar seus fundamentos, e a recolocar para o sujeito o problema da diferença, de uma alteridade que compartilhamos, e não apenas toleramos.

No debate discursivo e ideológico, a teoria crítica dos direitos humanos, com sua ênfase na emancipação e resistência dos grupos oprimidos em constituir as condições para uma vida melhor e mais digna, encontra nas denúncias e escavações de Foucault sobre a subjetividade um reforço aos seus fundamentos, colocando para os direitos humanos o desafio de experimentar uma dimensão ética e política diferente, comprometida no campo da imanência, da ação, da vida, e não mais no campo puramente normativo. Porque os direitos humanos podem ser, para além de cartas e tratados, a realização de vidas emancipadas.

 


NOTAS:

* Reflexões que partem dos estudos da tese de doutorado, publicada como livro pela Lumen Juris em 2012, sob o título "Tramas entre subjetividades e direito: a constituição do sujeito em Michel Foucault e os sistemas de resolução de conflitos", com as discussões dos projetos desenvolvidos pelo Grupo de Pesquisa no CNPq "Acesso à justiça, direitos humanos e resolução de conflitos", nos anos de 2012/2014, e as orientações junto ao Mestrado em Direitos Humanos da UNIT/SE, Brasil.

1 Esta metáfora encerra a obra 'As palavras e as coisas' (Foucault, 1981, p. 404). Deve–se concordar com Merquior (1985) que esta frase final tem um tom quase apocalíptico, meio vidente, exagerado. Exatamente por isso, talvez, tenha sido tão divulgada, seja tão significativa de sua investida contra o homem moderno, ao mesmo tempo construído e objeto dos saberes que se nomeiam ciências humanas.

2 "L"'essai" – qu'il faut entendre comme épreuve modificatrice de soi–même dans le jeu de la vérité et non comme appropriation simplificatrice d'autrui à des fins de communication – est le corps vivant de la philosophie, si du moins celle–ci est encore maintenant ce qu'elle était autrefois, c'est–à–dire une "ascèse", un exercice de soi, dans la pensée" (Foucault, 1984A, p.16).

3 He must understand that there are four major types of these "technologies," each a matrix of practical reason: "(1) technologies of production, which permit us to produce, transform, or manipulate things; (2) technologies of sign systems, which permit us to use signs, meanings, symbols, or signification; (3) technologies of power, which determine the conduct of individuals and submit them to certain ends or domination, an objectivizing of the subject; (4) technologies of the self, which permit individuals to effect by their own means or with the help of others a certain number of operations on their own bodies and souls, thoughts, conduct, and way of being, so as to transform themselves in order to attain a certain state of happiness, purity, wisdom, perfection, or immortality" (Foucault, 1988, p.18).

4 "Um homem corpo, biológico, dissecado, talhado, meticulosamente medido, de seus vapores à suas entranhas, descrito pelo olhar médico, vigiado pelo olhar médico, punido pelo olhar médico. Um homem alma, espírito, desrazão, loucura, degenerescência, tratado pela terapêutica dos sentidos, da dor, dos banhos e também das correções morais, da penitência, do flagelo, da exclusão e do silêncio. A clínica médica consagra, assim, a possibilidade de se construir um discurso científico sobre o sujeito, objetificante de sua natureza, mas cujo domínio prende–o a um conjunto de determinações morais, de julgamentos e de interdições que condicionam a sua existência, suas escolhas subjetivas e possibilidades de ser. Ela se inscreve no espaço de normalização do normal, do indivíduo saudável e mantém, pelo simbólico do olhar, do vigia e da verticalização produzida pelo saber, uma estreita relação com a normalização da loucura" (Rebouças, 2012, p. 42).

5 A genealogia parte de uma descrição de como os saberes surgem e se relacionam na configuração de uma episteme, também as implicações de poder que tais saberes produzem. A genealogia repudia as metanarrativas, a ordem do discurso, para fazer emergir a singularidade dos acontecimentos e das relações de poder (Revel, 2005, pp. 52–53).

6 É sempre bom lembrar ao leitor não familiarizado de Foucault que este não é um livro seu, mas uma coletânea de textos organizada por Roberto Machado que só tem edição em língua portuguesa. Cf. Foucault (1979).

7 A norma não se reduz à lei, mas se soma à natureza, funde arbitrário e necessário, prescrição e constituição. O normal junto ao anormal constitui um campo de normalidade, e somente dentro deste campo podem se diferenciar. Então, quanto mais o discurso sobre esta subjetividade padrão do homem moderno se mostra neutro, natural, necessário, correto, mais contraste produz com as desigualdades reais, sufocando, pelos dois lados, as possibilidades de diferenciação do sujeito. A noção de norma que Foucault usa não é aquela do juízo hipotético, do dever–ser. O normal delineia reciprocamente o patológico. Para uma abordagem das perspectivas de Foucault sobre o direito, Cf. Fonseca (2002) y Ewald (2000).

8 "O empreendimento de uma sociedade de controle sobre os indivíduos, sobre as populações não seria tão bem sucedido se não se pudesse encerrar, no cotidiano de qualquer indivíduo, e não só do louco ou do delinquente, o elo permanente com a culpa e a normalização" (Rebouças, 2012, p. 51).

9 No original: "bréf aménager une sexualité économiquement utile et politiquement conservatrice?" (Foucault, 1976, p. 51).

10 Sobre a sexualidade: "C'est le nom qu'on peut donner à un dispositif historique: non pas réalité d'en dessous sur laquelle on exercerait des prises difficiles, mais grand réseau de surface où la stimulation des corps, l'intensification des plaisirs, l'incitation renforcement des contrôles et des résistances, s'enchaînet les avec les autres, selon quelques grandes estratégies de savoir et de pouvoir" (Foucault, 1976, p. 139).

11 Muitos autores falam até em direito humano fundamental (cf. Ferreira, 2000), construindo uma simbiose, a nosso ver negativa, entre direitos humanos e direitos fundamentais, ou criando uma redundância desnecessária. Em geral, quem adota esta linha acaba por restringir a discussão jurídica dos direitos em tela ao espaço nacional, reforçando as dicotomias clássicas entre ordem nacional e internacional, e destaca as instituições de justiça como guardiões desses direitos. Assim, aqueles indivíduos e grupos que, da parte da sociedade civil, lutam construindo um protagonismo que quebra o status quo, acabam por ter sua luta criminalizada, sempre recebida pelo poder instituído como contraordem.


 

Referências

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