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Opinión Jurídica

Print version ISSN 1692-2530

Opin. jurid. vol.14 no.28 Medellín July/Dec. 2015

 

ARTÍCULOS

 

O fundamento ético da regulação econômica e seus limites no âmbito do estado constitucional*

El fundamento ético de la regulación económica y sus limites en el ámbito constitucional

 

 

Renato Braz Mehanna Khamis**

 

** Advogado, é Mestre e Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Brasil), e também é professor de Direito na Universidade Santa Cecília (Brasil) e na Universidade Católica de Santos (Brasil).E–mail: renato@mehanna.adv.br

 

Recibido: noviembre de 2014
Evaluado: abril de 2015
Aprobado: agosto de 2015

 


RESUMO

O presente trabalho tem por escopo investigar as bases epistemológicas que fundamentam a regulação estatal no âmbito da economia de livre mercado a partir das ideias do laissez–faire partilhadas pela escola de Viena. Nesta perspectiva, buscaremos identificar os seus fundamentos dentro de uma perspectiva ética, assim comoos seus limites, os quais serão analisadoscom base em alguns casos concretos. Ao final, buscaremos enquadrar o fundamento e os limites éticos da regulação econômica ao papel exercido pelo Estado Constitucional no âmbito econômico.

PALAVRAS–CHAVE: regulação econômica; ética; fundamento; limites; Estado Constitucional.


RESUMEN

El presente trabajo tiene como objetivo investigar las bases epistemológicas que fundamentan la regulación estatal en el ámbito de la economía libre de mercado a partir de las ideas del laissez–faire impartidas por la escuela de Viena. Desde esta perspectiva, buscaremos identificar los fundamentos dentro de una perspectiva ética, al igual que sus limites, los cuales serán analizados con base en algunos casos concretos. Al final, buscaremos enmarar en fundamento y los limites éticos de la regulación económica al papel ejercido por el Estado Constitucional en el ámbito económico.

PALABRAS CLAVE: Regulación económica, ética; fundamento; limites; Estado Constitucional.


 

 

INTRODUÇÃO

A questão atinente a regulação econômica é altamente controversa. As diversas doutrinas econômicas existentes apresentam as mais variadas posições no que diz respeito a regulação. Para uns toda a atividade econômica deve ser regulada e planejada pelo Estado. Já outros defendem a livre iniciativa como algo absoluto, afastando totalmente a interferência estatal. Há ainda aqueles que buscam um meio termo, cotejando a livre iniciativa com certo controle e algum planejamento por parte do Estado, havendo dissenso entre eles quanto aos limites desta regulação.

Não obstante a controvérsia existente, chama a atenção o fato de que muitas destas doutrinas apresentam suas posições sem o devido embasamento teórico e metodológico, o que dificulta uma análise mais aprofundada desuas proposições. Isto ocorre porque muitas delas se pautam empremissasestritamenteempíricas, que mudam com o tempo, carecendo, pois, de maior substrato episte– mológico.

Todavia, o enfoque desse trabalho não consiste em analisar a cientificidade de cada uma delas, mas sim em estudar cientificamente a regulação estatal sob uma perspectiva epistemológica robusta, buscando encontrar seu fundamento e seus limites.

Com base nisso, excluímos as correntes que defendem a total intervenção e planejamento estatal da economia por serem incompatíveis com o propósito desteestudo, na medida em que, para elas, economia é sinônimo de regulação integral e ilimitada dos bens de produção por parte do Estado.Assim, para estas correntes a discussão aqui proposta é infértil, pois elas se fundam em premissas político–ideológicas incompatíveis com nosso objeto de estudo, na medida em que a livre iniciativa é amplamente reduzida por uma economia de Estado.

Além delas excluímos de nossa análise também as correntes que advogam o meio termo. Isto porque buscamos estudar os fundamentos e os limites da regulação estatal e, nesta perspectiva, nossa analise deve começar necessariamente pelo seu oposto, isto é, pela ausência de regulação, para que não sejamos influenciados pelo discurso proferido por qualquer das correntes defensoras do meio termo.Ademais, somente iniciando nossa investigação pela desregulação é que teremos condições de aferir epistemologicamente a existência ou nãode umfundamento –que não a mera fórmula matemática proveniente da relação entre demanda global, desemprego e inflação (keynesianismo)– e deeventuais limites à regulação estatal.

Isso posto, tendo em vista que nossa investigação almeja estabelecer uma análise epistemológica da regulação econômica, optamos pela análise da doutrina econômica baseada na desregulação estatal – e defensora ferrenha do laissez–faire– que nos parece ser a mais bem fundamentada cientificamente, qual seja, a escola econômica de Viena.

Uma vez analisada a escola econômica de Viena passaremos ao estudo da regulação econômica estatal, cujo fundamento repousa na necessidade de se encontrar um ponto de equilíbrio na tensão permanentemente existente entre liberdade e igualdade, o que por vezes demanda a atuação do Estado.

Encerrada essa etapa, passaremos à análise do papel exercido pelo Estado Constitucional na manutenção do supracitado equilíbrio, uma vez que a Constituição é a fonte irradiadora de juridicidade para todas as normas do ordenamento jurídico, tendo suas normas dotadas de coercibilidade. Para tanto, tomaremos como objeto de estudo a Constituição econômica brasileira (Brasil, 1988), utilizando, também, algumas normasinfraconstitucionais que integram a ordem jurídico–econômica do mesmo país, as quais foram pontualmente escolhidas devido à sua aplicabilidade aos casos concretos aqui analisados.

Ao final, a partir do binômio liberdade/igualdade, verificaremos de que forma o fundamento ético da regulação econômica embasa a atuação do Estado Constitucional na qualidade de agente da regulação econômica, o que será feito à partir de situações concretas particularmente escolhidas devido às suas peculiaridades.

 

I. A ESCOLA ECONÔMICA DE VIENA

A escola de Viena é, dentre as escolas econômicas, aquela que se apega mais fortemente aos ideais do laissez–faire, repudiando qualquer espécie de regulação e/ou intervenção estatal na economia – inclusive no que tange a políticas antitruste e antimonopolistas, traço este que a distingue da escola de Chicago. Seu principal expoente foi Ludwig Von Mises.

As premissas metodológicas e filosóficas sobre as quais foi erigida esta escola são extremamente interessantes. Afinal, ao contrário das demais, a escola de Viena não trata a economia como ciência empírica. Em sua obra Ludwig Von Mises almeja justamente o contrário, isto é, ele busca estabelecer a diferença entre ciência econômica e ciências empíricas (Von, 2010, pp. 24 ss.). Para tanto, ele mergulha na epistemologia kantiana visando encontrar os alicerces desta diferenciação.

Em sua crítica da razão pura Immanuel Kant estabelece que todas as proposições podem ser estabelecidas de duas maneiras: analíticas ou sintéticas e a priori ou a posteriori. Proposições analíticas são aquelas cuja veracidade pode ser constatada apenas pela lógica formal, enquanto as sintéticas demandam outros elementos para sua verificação. Por outro lado, as proposições a priori independem de observação para a constatação de sua veracidade, sendo que para as proposições a posteriori será sempre necessária a observação. Com base nisso Immanuel Kant reconhece a existência de proposições sintéticas a priori, isto é, que independem de observação, mas que demandam outros elementos de verificação que não apenas a lógica formal –elencandoentre elas a matemática e a geometria (Kant, 2001, p. 72). Nestes termos se pode afirmar que "o que caracteriza a filosofia kantiana é a reivindicação de que proposições sintéticas a priori existem– e é porque Mises concorda com esta ideia que ele pode ser chamado de kantiano" (Hope, 2010, p. 16).

O ponto chave das proposições sintéticas a priori, segundo Immanuel Kant, reside no fato de que sua verdade é deduzida a partir de axiomas materiais autoevidentes – e não de verdadeiros princípios –, os quais são encontrados através da intuição (Kant, 2001, p. 74). No entanto, Ludwig Von Mises vai um passo além e acrescenta mais um elemento à equação: a ação. Como afirma Hans–Hermann Hope, "temos que reconhecer que estas verdades necessárias não são simplesmente categorias de nossa mente, mas também levar em conta o fato de que nossa mente está incorporada em pessoas que agem" (Hope, 2010, p. 18). Portanto, as categorias mentais são baseadas fundamentalmente nas categorias da ação, o que leva Ludwig Von Mises a conceber a ação humana como um dado irredutível (Von, 2010, pp. 41–43).

Pois bem, uma vez constatado que a ação humana ocupa uma posição de destaque na epistemologia, Ludwig Von Mises enquadra a ciência econômica como sendo parte de uma ciência geral mais ampla chamada praxeologia(Von, 2010, pp. 23–24). Neste diapasão, a praxeologia seria o gênero científico que trata das proposições sintéticas a priori na perspectiva da ação (praxis). Consequentemente, em sendo a ciência econômica uma de suas espécies,"todas as proposições econômicas que reivindicam ser verdadeiras devem ser demonstravelmente dedutíveis através da lógica formal do conhecimento material incontestavelmente verdadeiro relativo ao significado de ação" (Hope, 2010, p. 22). Assim, as leis da troca, a lei da utilidade marginal, a lei da associação ricardiana, a lei dos controles de preço e a teoria quantitativa da moeda podem ser derivadas logicamente deste axioma.

Pautado nessas premissas Ludwig Von Mises defende o não intervencionismo do Estado na economia, bem como a desregulação estatal. Isto porque, sob a perspectiva teórica adotada pela escola de Viena, tanto o intervencionismo quanto a regulação estatal da economia não conseguem se enquadrar como proposições econômicas válidas quando submetidas ao crivo da dedução lógica formal própria da praxeologia. Trata–se, pois, de intervenção indevida do Estado na economia, pois contrária aos parâmetros epistemológicos próprios da ciência econômica. Tanto é assim que Ludwig Von Mises afirma que "quando falamos de intervencionismo, referimo–nos ao desejo que experimenta o governo de fazer mais que impedir assaltos e fraudes"(Von, 2009, p. 47). E continua, pontuando que "o intervencionismo significa que o governo não somente fracassa em proteger o funcionamento harmonioso da economia de mercado, como também interfere em vários fenômenos de mercado: interfere nos preços, nos padrões salariais, nas taxas de juro e de lucro" (Von, p. 47).

Ademais, é importante frisar a lucidez da noção de intervenção apresentada por Ludwig Von Mises. Segundo pontua "a intervenção é sempre um decreto emitido, direta ou indiretamente, pela autoridade responsável pelo aparato administrativo de coerção e compulsão que força os empresários e os capitalistas a empregarem alguns dos fatores de produção de maneira diferente daquela que o fariam se estivessem obedecendo apenas aos ditames do mercado" (Von, 2010, p. 818). Este decreto –em sentido amplo– pode determinar tanto um fazer (atuação positiva)quanto um não fazer (atuação negativa). Alémdisto, é preciso entender que, para a escola de Viena, a noção de intervenção contempla tanto a atuação do Estado diretamente como agenteno domínio econômico quanto a regulação da economia exercida através do aparato de coerção estatal.Isto posto, uma vez que o intervencionismo não encontra respaldo na praxeologia–já que não pode ser deduzido nos parâmetros da lógica formal que lhe é própria–,a escola de Viena defende o laissez–faire por ser decorrência lógica da ciência econômica.

No que toca ao laissez–faire, Ludwig Von Mises frisa que, ao contrário do que advogam os defensores do planejamento estatal, isto não significa em absoluto falta de planejamento, mas sim que o planejamento será determinado pelos consumidores e não pelo Estado (Von, 2010, pp. 830–831). Desta forma, a discussão entre os defensores do laissez–faire –os liberais– e os planejadores não é uma contenda sobre necessidade ou desnecessidade de planejamento econômico, mas sim um dissenso sobre quem deverá determinar os seus termos: se o Estado, através do seu aparato de coerção, ou os indivíduos, no âmbito de sua liberdade e autonomia privada.

Nisso consistem, sinteticamente, a epistemologia e o ideal econômico da escola de Viena.

 

II. O CARÁTER ÉTICO DA REGULAÇÃO ECONÔMICA

A estruturação epistemológica que fundamenta o arcabouço teórico da escola de Viena possui caráter eminentemente racionalista, tendo em vista a forte influência recebida da filosofia kantiana. A questão é que o racionalismo kantiano serve como base para a construção de uma influente filosofia moral, a qual se funda essencialmente na noção de liberdade. Contudo, para Immanuel Kant liberdade possui um significado muito específico, pois agir livremente significa agir de acordo com um imperativo categórico, isto é, uma lei incondicional eválida universalmente, criada pela razão e aceita livremente pelo próprio agente (Kant, 2001, p. 346). Por outro lado, sempre que a ação humana visa um objetivo ou interesse externo, ou seja, é utilizada como meio para atingir determinada coisa, estamos diante de um imperativo hipotético e, portanto, não se pode dizer que a ação é livre, pois condicionada por fatores externos à razão – necessidades circunstanciais, vontades ou desejos eventualmente existentes(Kant, pp. 166 ss.).

Diante da postulação apresentada pela moral kantiana nos parece correto afirmar que, sempre que o consumidor age comprando ou deixando de comprar determinado produto, o que é encarado por Ludwig Von Mises como planejamento de mercado, ele o faz com vistas às suas necessidades circunstanciais, vontades e/ou desejos. Quando alguém compra arroz e feijão o faz tendo em vista a necessidade fisiológica de alimentação. Já quando alguém adquire uma bomba de chocolate certamente não faz isso por um impulso racional, mas para satisfazer um desejo. Ambas as escolhas, segundo o racionalismo kantiano, não são livres, pois condicionadas por fatores externos, tratando–se, portanto, de ações decorrentes de um imperativo hipotético.

Ao trazemos esse raciocínio para o âmbito do laissez–faire vemos que, dentro da perspectiva kantiana, não estamos diante da liberdade de ação. Isto porque existe uma tensão constante entre os agentes econômicos. Afinal, os produtores produzem os seus produtos com o intuito de obter lucro, e estabelecem suas políticas de produção, emprego e distribuição visando maximizá–lo. Por outro lado os consumidores adquirem os produtos visando atender suas necessidades e desejos, mas estão sempre limitados pelas suas possibilidades fáticas e financeiras. Indo além, as ações realizadas pelos produtores nas suas relações uns com os outros também irão variar de acordo com suas vontades e interesses, podendo ir de uma relação cooperativa ao estabelecimento de uma concorrência voraz. E o mesmo raciocínio se estende aos consumidores, haja vista que, por estarem difundidos pela sociedade, somente em raras ocasiões uma parcela deles consegue identificar uma unidade de desígnios e, consequentemente, estabelecer um plano comum de ação.

Isso posto, o laissez–faire não pode ser concebido como um instrumento de liberdade dentro das premissas epistemológicas do racionalismo kantiano. Se muito pode ser visto como uma liberdade –emsentido comum– condicionada de ação, pois decorrente das necessidades e vontades individuais de cada produtor/fornecedor e consumidor.

Uma vez que essa liberdade é condicionada por fatores externos deve–se reconhecer a possibilidade de desequilíbrio entre os agentes envolvidos na relação econômica. Este desequilíbrio, contudo, é reconhecido e aceito pela doutrina econômica, na medida em que ela entende que a tensão existente entre produtores/fornecedores e consumidores –em que pese a desigualdade de suas posições– leva invariavelmente a estabilização das relações econômicas. Mas isto levanta duas importantes questões: a busca por este ponto de equilíbrio justifica situações moralmente questionáveis ao longo do processo? E qual a garantia de que,atingido o equilíbrio,todos os agentes estarão em posição moralmente aceitável?

Como dito há pouco, antes de mais nada a filosofia kantiana é uma filosofia moral. Isto significa que o estabelecimento de premissas econômicas pautadas em sua epistemologia, mas que sejam totalmente alheias às questões de ordem moral, culmina em uma contradição metodológica. Desta forma, é preciso responder às questões acima formuladas com vista ao panorama ético (concebendo a ética como a ciência que estuda a moral)1.

No que toca à primeira questão, qual seja, se a busca pelo ponto de equilíbrio justifica situações moralmente questionáveis ao longo do processo, apresentamos a questão da degradação ambiental. Não é novidade para ninguém que, durante o processo de desenvolvimento econômico pouco se pensava na proteção do meio ambiente. A simples busca pelo lucro e por sua constante maximização é que pautava as atividades econômicas humanas, sejam elas agrárias ou industriais. Sob o pretexto de promover o desenvolvimento econômico e gerar empregos desmatava–se áreas nativas sem qualquer preocupação com os espécimes ali existentes, assim como lançava–se dejetos industriais altamente poluentes na natureza sem qualquer tratamento. Um dos casos mais emblemáticos ocorreu no município de Cubatão, no Estado de São Paulo. Como consequência da instalação do polo industrial aquela cidade paulista atingiu índices recordes de poluição ambiental, chegando ao extremo de contaminar a maioria absoluta da população local com agentes químicos altamente nocivos à saúde. A consequência deste cenário foi o surgimento de regulação estatal estabelecendo regras rígidas para o controle da emissão de poluentes, inclusive obrigando as indústrias a solucionar o passivo ambiental existente antes do advento da regulação. Desta feita, o surgimento do marco regulatório levou a um salto positivo na qualidade de vida da população local, bem como da fauna e da flora ali existentes2.

Temos plena ciência de que a degradação ambiental desenfreada levou ao estabelecimento de um marco legal em defesa do meio ambiente –seja numa perspectiva dialético–hegeliana, ou mesmo pautado numa relação puramente de causa e consequência. Que o resultado deste processo foi moralmente positivo não temos dúvida. Contudo, o período em que a desregulação ambiental vigorou não pode ser eticamente justificado– por mais que tenha permitido posteriormente a defesa, pela via coercitiva, dos valores ambientais, pois durante todo o período em que esteve vigente os valores ambientais foram sistematicamente ofendidos. Isto posto, a imoralidade –ainda que temporária– não pode ser eticamente justificada, mesmo que tenha levado ao estabelecimento de um novo status quo, agora ético. Afinal, ao contrário do que se abstrai da obra de Nicolau Maquiavel, sob a perspectiva da ética os fins não justificam os meios.

Já no que diz respeito a segunda, isto é, qual a garantia de que, atingido o equilíbrio, todos os agentes estarão em posição moralmente aceitável,trazemos à luz ocaso da escravidão branca. O trabalho rural sempre foi muito comum em certas regiões do Brasil. Ocorre que diversas fazendas estavam situadas a distâncias enormes de qualquer traço de civilização, levando os trabalhadores rurais a viver exclusivamente dentro delas. Neste contexto os fazendeiros abriam pequenos comércios chamados "vendas" dentro de sua propriedadee ali vendiam aos seus empregados diversos bens de consumo, os quais não eram acessíveisaos trabalhadores tendo em vista a distância existente entre as fazendas e a cidade mais próxima, onde poderiam encontrar um mercado. O problema é que, com base na lei da oferta e da demanda, os fazendeiros cobravam preços abusivos pelos bens de consumo vendidos, criando, assim, uma situação que levava os trabalhadores a, no fim do mês, deverem ao fazendeiro um valor maior do que o que teriam a receber como salário, isto é, ao invés de serem credores do patrão viravam seus devedores. Esta situação típica do coronelismo brasileiro –chamadade escravidão branca–passou a ser combatida pela regulação estatal, pois por meio de leis o Estado começou a intervir nas relações de trabalho, que são relações essencialmente privadas. Com o advento da intervenção estatal esta prática foi proibida, estando até hoje sujeita à fiscalização e, se constatada, enseja a aplicação de sanção.

No que toca a escravidão branca, fica claro que o ponto de equilíbrio encontrado dentro das premissas da não intervenção estabeleceu–se dentro do patamar de uma desequiparação moralmente inaceitável. Isto porque, a proposição aristotélica amplamente difundida, segundo a qual se deve tratar igualmente os iguais, mas desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade, está amparada por limites éticos que não permitem o estabelecimento de uma relação de desigualdade separada das noções de virtude e justiça (Aristóteles, 1985, pp. 101 ss.).Algo semelhante ocorre na perspectiva kantiana, mas aqui o que não se admite é a concepção de uma noção de liberdadedissociada da ideia segundo a qualtodo o ser humano é dotado de dignidade (Kant, 2007, p. 77). Desta forma, não basta que se encontre um ponto de equilíbrio. É necessário também que o ponto de equilíbrio seja moralmente aceitável ou, em outra perspectiva, que seja justo.

Todavia, alguém poderia objetar afirmando que os casos aqui apresentados de fato possuem conotação ética, mas que existiriam espécies de regulação cuja natureza seria puramente econômica, sem qualquer influência de ordem moral. Dentre elas estariam,v. g., as regulações antidumping, antitruste e anticartel. Ocorre que a afirmação não procede, na medida em que não existe regulação puramente econômica. O fato é que, mesmo nas hipóteses acima elencadas, existe uma conotação ética embasando a regulação estatal.

O dumping consiste na prática de preços inferiores ao seu valor justo por um certo período de tempo –muitas vezes sem margem de lucro ou até mesmo com prejuízo– visando inviabilizar a concorrência e, consequentemente, dar o domínio futuro daquele mercado para o agente econômico que o praticou. Trata–se, portanto, de hipótese de abuso de poder econômico, na medida em que dominará o mercado aquele que tiver maior capacidade financeira de sobreviver operando sem lucro ou em prejuízo. A consequência da aniquilação da concorrência é o estabelecimento de uma relação de dependência entre o mercado consumidor e o único produtor/fornecedor daquele bem de consumo, colocando este último em posição de superioridade. Como se percebe, a causa do dumping –abuso do poder econômico– já é por si só uma hipótese de desigualdade eticamente inconcebível, na medida em que inviabiliza a liberdade dos demais agentes econômicos atuarem em igualdade de condições naquele mercado. Além disto, sua consequência também é eticamente condenável, pois cria uma situação de dependência baseada na lei da oferta e da demanda que deixa o mercado consumidor refém daquele único produtor/fornecedor–resultado muito semelhante àquele demonstrado no caso da escravidão branca–, estabelecendo, assim, uma desigualdade inadmissível.

Por outro lado o truste consiste na fusão e/ou aquisição de várias empresas levando a formação de um monopólio cujo intuito é dominar determinado mercado. Note–se que mais uma vez estamos diante de situação que tem como consequência a dominação de um certo mercado, o que torna o consumidor refém do produtor/fornecedor. Significa, portanto, que estamos diante de desigualdade não aceitável, na medida em que subjuga os consumidores ao arbítrio do produtor/fornecedor, o qual se encontra em posição de superioridade com base na lei da oferta e da demanda. Atente–se, contudo, que a causa –fusão e aquisição de empresas– não encontra qualquer impedimento de ordem moral. No entanto, a consequência é eticamente inconcebível.

De outra banda o cartel consiste no acordo –explícito ou implícito– celebrado entre concorrentes que visa frustrar a concorrência através de fixação de preços e/ou divisão de mercados, com o objetivo de maximizar os lucros além do que seria possível num ambiente de efetiva concorrência e/ou dominar parcela de determinado mercado. Neste caso o que se vê é a aniquilação da liberdade de escolha por parte dos consumidores atravésda imposição de preços previamente acordados, os quais certamente não seriam praticados num ambiente de efetiva concorrência3. Aqui também os consumidores ficam à mercê da vontade imposta pelo produtor/fornecedor, o que acarreta uma desigualdade eticamente inaceitável. A causa disto é um acordo de vontades cujo intuito sempre foi a obtenção de vantagens para si, impondo uma determinada situação econômica, a qual não deixa outra opção senão ser aceita pelo mercado desregulado. Assim, tanto a causa quanto a consequência são inaceitáveis sob o prisma da ética.

Isso demonstra que não existe regulação puramente econômica, mas que, por outro lado, toda a regulação econômica possui conotação ética4. Afinal, o aparato jurídico do Estado regula a atividade econômica sempre orientado por um fim, o qual, via de regra, é de cunho ético, na medida em que busca equilibrar a tensão existente entre liberdade e igualdade.

Entretanto, há que se atentar que em hipótese alguma a regulação estatal pode aniquilar a livre iniciativa e/ou a livre concorrência. Isto significa que ela deve sempre prezar pela manutenção da liberdade de atuação dos agentes econômicos e, simultaneamente, preservar a paridade de condições de participação no mercado.Diante disto, podemos constatar que a regulação estatal se baseia na tensão constante –existente no mercado– entre liberdade e igualdade5.

Não obstante isso, em que pese os exemplos até aqui trazidos tenham na sua maioria desequilibrado a balança em favor do produtor/fornecedor, é preciso ter em mente que o abuso da regulação também é um vício de ordem ética, o que, por sua vez, afeta a sua legitimidade. Isto significa que a regulação não se presta à favoritismos e/ou paternalismo estatal. Afinal, é dever do Estado garantir a liberdade dos agentes econômicos e, ao mesmo tempo, preservar a igualdade ou limitar a desigualdade entre os mesmos, sempre com vistas a moralsocial6.Isto quer dizer que, quando a regulação estatal extrapolar os limites éticos, afetando a livre iniciativa e a livre concorrência para além daquilo que é moralmente admitido–retirando, portanto, o equilíbrio da tensão entre liberdade e igualdade–, ela será ilegítima, devendo, pois, ser extirpada do aparato coercitivo do Estado, bem como ter sua aplicação negada ao caso concreto.

No que tange ao favoritismo, temos o caso do anatocismo bancário.O decreto n° 22.626 de 1933 –popularmente chamado de Lei da Usura– estabelece em seu art. 4° a proibição da capitalização de juros sobre juros, ou seja, do anatocismo – ressalvada a acumulação anual, permita na parte final do mesmo dispositivo normativo. Atente–se que a norma em questão não faz qualquer espécie de distinção no tocante a atividade exercida. Ocorre que a Medida Provisória n° 1963–18 de 2000, revogada e sucessivamente reeditada até o advento da Medida Provisória n° 2170–36 de 2001 –esta última atualmente em vigor–estabeleceu em seu artigo 5° a possibilidade de capitalização de juros sobre juros a qualquer tempo pelas instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional. Isto significa que,no Brasil, à exceção das instituições financeiras, nenhum agente econômico pode praticar anatocismo, senão anualmente.

Como se percebe a regulação estatal incide em gritante favoritismo às instituições financeiras, uma vez que veda determinada prática a todos os demais agentes econômicos, mas, por outro lado, permite apenas a um segmento específico a sua utilização. Se por um lado a proibição do anatocismo fora da anualidade busca preservar o equilíbrio da tensão entre liberdade e igualdade na relação existente entre produtor/fornecedor e consumidor, evitando que o primeiro goze de posição tão privilegiada a ponto de obter vantagens abusivas por conta de seu poderio econômico, por outro sua admissão para apenas um dado segmento ofende a igualdade, permitindo que alguns agentes econômicos se valham de determinada prática que é proibida a todos os demais e, o que é mais grave, prática esta que por si só viola o equilíbrio entre liberdade e igualdade. Importante frisar que esta desigualdade entre os agentes econômico não tem qualquer amparo moral, o que lhe dá o contorno de puro favoritismo e, consequentemente, a caracteriza como abuso de regulação7.

De outra banda, no que diz respeito ao paternalismo, temos o caso da zona franca de Manaus. Instituída pelo Decreto–lei n° 288 de 1967, ela consiste em uma área de livre comércio de importação e exportaçãodotada de incentivos fiscais, tais como isenção dos impostos de importação, de exportação e de circulação de mercadorias e serviços, os dois primeiros no âmbito federal e o último no plano estadual.

A questão é que, deixando de lado a ideia de desenvolvimento da região amazônica, a implementação da zona franca de Manaus por meio da regulação caracteriza o mais clássico paternalismo estatal. Tanto é assim que está sendo questionada pela União Europeia na Organização Mundial do Comércio –OMC–. Afinal, não se trata de uma política fiscal de âmbito nacional, isto é, o Brasil não adota internamente esta abordagem tributária, mas apenas naquela região. Ao fazê–lo, não permite que a região amazônica encontre e desenvolva sua vocação econômica própria, direcionando a forma de atuaçãodos agentes econômicos locais e, o que talvez seja pior, levando outros agentes econômicos de determinados segmentos industriais a se instalarem na região, a revelia do que fariam num ambiente de livre iniciativa não direcionada pelo Estado. Nota–se aqui mais uma vez que a tensão entre liberdade e igualdade foi rompida pela regulação estatal. Isto porque a livre iniciativa não é mais tão livre quando as isenções de impostos –em especial com vistas a altíssima carga tributária brasileira– empurra os agentes econômicos para aquela região. Sem falar na desigualdade eticamente inadmissível, pois prioriza uma região em detrimento das demais, sendo que, no Brasil, existem inúmeras outras regiões carentes que, com baseno mesmo discurso desenvolvimentista, mereceriam idênticotratamento –talvez até mais do que a região amazônica–tendo em vista o baixo grau de desenvolvimento industrial nelas existente.

Vale lembrar que essa mesma lógica que aqui expomos levou o Estado brasileiro a estabelecer alíquotas máxima e mínima para o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços –ICMS– (competência estadual) e Imposto Sobre Serviços –ISS– (competência municipal). Afinal, a liberdade irrestrita de fixação de alíquotas levaria ao estabelecimento de um patamar de desigualdade que violaria, inclusive, o pacto federativo brasileiro8.

Dessa forma, podemos concluir que o fundamento ético da regulação estatal está sedimentado na necessidade de obtenção de um ponto de equilíbrio na tensão constante entre liberdade e igualdade existente no mercado. Isto significa que, equilibrada naturalmente a tensão, o Estado não deve intervir, mas em caso de desequilíbrio será necessária a intervenção estatal para a retomada do equilíbrio. Contudo, sempre que a regulação estatal tiver como resultado o desequilíbrio desta tensão, seja para o lado da liberdade ou para o lado da igualdade, ela será ilegítima, e deverá ser excluída do aparato de coerção do Estado, sendo inaplicável ao caso concreto.

Finalmente, é preciso pontuar que a intervenção estatal, para que possa efetivamente equilibrar a referida tensão entre liberdade e igualdade, deve se dar sempre com vistas à realidade concreta, atentando–se à todas as particularidades envolvidas no caso. Afinal, como alerta Amartya Sen, "tanto a igualdade quanto a liberdade devem ser vistas como multidimensionais dentro de seus amplos conteúdos" (Sen, 2011, p. 351). Portanto, não existe fórmula pronta de fácil aplicação para a manutenção do supracitado equilíbrio. O que existe são parâmetros ético–normativos,os quais auxiliam na solução do problema, mas sempre levando em consideração os fatores concretos de cada caso9.

 

III. O PAPEL DO ESTADO CONSTITUCIONAL NA REGULAÇÃO ECONÔMICA

Conforme visto anteriormente, a regulação econômica estatal tem cabimento sempre –e somente– quando necessária a intervenção do Estado para a manutenção do equilíbrio da tensão existente no mercado entre liberdade e igualdade10. Para atingir este objetivo com efetividade o Estado se vale do seu aparato de coerção, isto é, se utiliza do arcabouço jurídico que tem à disposição.

Além disso, como tivemos a oportunidade de mencionar linhas atrás, também o aparato de coerção estatal se encontra eticamente limitado, uma vez que não é dado ao Estado romper com o equilíbrio da tensão entre liberdade e igualdade.

Pois bem, é justamente a partir dessas constatações que a atuação do Estado Constitucional deve ser trazida à equação. Isto se deve ao fato da Constituição ocupar um papel central na sistematização do direito positivo, seja porque figura como fonte irradiadora de juridicidade para todas as demais normas que integram o sistema jurídico, ou ainda porque é através dela que os principais valores éticos vigentes em uma sociedade em determinado momento históricoassumem a forma de direitos e deveres, passando a usufruir da coercibilidade que é própria das normas jurídicas. Esta afirmação pode ser mais facilmente constatada no que tange aos direitos e garantias fundamentais. Afinal, através deles a Constituição confere proteção jurídica a diversos valores éticos, tais como liberdade, igualdade, democracia –considerada mais do que mero regime ou forma de governo–, intimidade etc.

A questão é que, no que toca especialmente à liberdade e igualdade, diversas são as formas em que estes valores se apresentam ao longo do texto constitucional. Basta verificar, v. g., no caso da liberdade, as liberdades de reunião, de informação e de culto e, no caso da igualdade, a paridade de armas na relação processual, o direito às férias remuneradas do trabalhador e o direito ao voto.

Entretanto, também dentro da perspectiva econômica os valores liberdade e igualdade se apresentam no plano constitucional. Uma simples leitura do Título VII, Capítulo I da Constituição da República se mostra suficiente para demonstrar esta afirmação. Contudo, dentre todos os artigos deste capítulo, o mais significativo –sob ótica da tutela jurídico–econômica dos valores liberdade e igualdade– é o artigo 170, que elenca os princípios gerais da atividade econômica.

De acordo com o caput do referido dispositivo a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa. Esta prescrição normativa reflete a tensão existente no mercado entre liberdade e igualdade, pois, se de um lado vigora a livre iniciativa, de outro deve haver a valorização do trabalho humano. Nesse sentido lembra Karl Marx que "as mais importantes operações do trabalho são reguladas e dirigidas segundo os planos e as especulações daqueles que aplicam o capital" e que "o objetivo que eles pressupõe em todos estes planos e operações é o lucro" (Marx, 2004, p. 46).Isto posto, em decorrência do poderio econômico a liberdade pode suprimir ou mesmo aniquilar a igualdade, levando à prevalência do lucro do capitalista em detrimento da dignidade do trabalhador. Não é outro o fundamento do salário mínimo, das férias remuneradas, dentre outros direitos assegurados por lei ao trabalhador, tudo isso devido à sua reconhecida hipossuficiência na relação laboral. Percebe–se, assim, que o dispositivo em questão reconhece e protege tanto a livre iniciativa (liberdade) quanto a valorização do trabalho humano (igualdade), delegando ao Estado o papel de intervir –nos termos da Constituição– sempre que qualquer delas estiver sendo violada, ou seja, sempre que houver ruptura no equilíbrio da tensão existente no mercado entre liberdade e igualdade.

Nesse diapasão, também os incisos do artigo 170 apresentam hipóteses que demonstram a necessidade de regulação estatal para equilibrar os valores liberdade e igualdade. É o que decorre da leitura dos incisos II e III, o primeiro reconhecendo o direito à propriedade privada produtiva (liberdade) e o segundo estabelecendo que a propriedade deve exercer uma função social (igualdade). Talvez dentre todas as hipóteses constitucionais esta seja a que melhor representa a tensão existente entre liberdade e igualdade no plano econômico, atribuindo ao Estado a possibilidade de intervenção sempre que necessária para atingir o reequilíbrio. Afinal, a liberdade de uso e disposição da propriedade fica condicionada ao atendimento da sua função social, isto é, deve–se atingir o ponto de equilíbrio entre a manutenção da propriedade (liberdade) e o exercício da sua função social (igualdade).

No que toca especificamente à função social, Norberto Bobbio sustenta que o Estado deixou de ser indiferente no que diz respeito ao desenvolvimento econômico, assumindo, além da tarefa que lhe é tradicional de controlar o desenvolvimento econômico, a função de dirigi–lo (Bobbio, 2008, pp. 118–119). Por esse motivo afirma que "a função do Direito não é mais só protetora–repressiva, mas também, e sempre com maior frequência, promocional" (Bobbio, p. 119). Contudo, o autor pontua que, para exercer esta função, a norma jurídica dotada de sanção negativa não se mostra mais idônea, sendo preciso recorrer à normas que reforcem a diretriz econômica estabelecida através de uma sanção positiva (Bibbio, p. 119). Isto não significa que as normas que executam esta função sejam desprovidas de qualquer carga negativa, limitando–se, apenas, a prescrever recomendações e objetivos. Muito pelo contrário! Quer dizer que o Estado, visando atender a sua função diretiva, passou a valer–se de uma técnica normativa que cumula simultaneamente a função protetora–repressivacoma função diretiva. Trata–se, pois, de normas que deixam uma abertura no ordenamento jurídico para sua integração à partir de parâmetros éticos. E não poderia ser diferente, na medida em que "a moral serve a necessidades e interesses sociais e cumpre uma função social" (Sánchez, 2007, p. 233). Portanto, ao criar o requisito de atendimento à função social – não só da propriedade em si, mas também dos meios de produção – a Constituição está abrindo as portas para a intervenção do Estado na propriedade e nas relações econômicas privadas, seja através do fomento para sua utilização de modo moralmente aceitável (função diretiva), ou ainda por meio de intervenção, ou mesmo da sua supressão, buscando afastar a situação pontual de imoralidade (função protetora–repressiva)11.

Além dos casos supracitados, há outro que merece ser aqui apresentado. Ele consiste nas previsões dos incisos IV e IX–também do artigo 170–, pois enquanto o primeiro prevê a livre concorrência (liberdade), o segundo estabelece tratamento favorecido para as pequenas empresas (igualdade). Trata–se do caso mais explícito de aplicação do supramencionado preceito aristotélico, segundo o qual os iguais devem ser tratados de forma igual, e os desiguais devem ser tratados de forma desigual, mas na medida de sua desigualdade. Afinal, a Constituição reconhece que o equilíbrio da tensão entre liberdade e igualdade só é alcançado quando é atribuído um tratamento diferenciado para produtores/fornecedores que se encontram em situação diametralmente oposta – sob a ótica do tamanho da empresa. Ressalte–se, contudo, que à luz da previsão constitucional deve–se ter em mente que, no presente caso, a distinção estabelecida pela regulação estatal não pode, por sua vez, aumentar o desequilíbrio já existente, nem mesmo desequilibrar a relação favorecendo agora o lado antes desfavorecido. Isto porque, nos termos éticos incorporados pela Constituição, o tratamento desigual deve ser realizado na exata medida da desigualdade existente entre os agentes econômicos, tendo como parâmetro de distinção o tamanho da empresa – aqui entendida como atividade, nos termos da teoria da empresa. Desta forma, estamos diante de mais um preceito constitucional de feição jurídico–econômica, o qual determina que o Estado regule uma certa relação econômica visando o reestabelecimento ou a manutenção do ponto de equilíbrio da tensão existente no mercado entre liberdade e igualdade, mas neste caso tendo como foco apenas os produtores/fornecedores.

Não obstante a existência de diversos outros casos semelhantes no plano constitucional, acreditamos que os exemplos mencionados acima são suficientes para demonstrar que o ordenamento jurídico –especialmente a Constituição– não está alheio às questões de ordem moral existentes no âmbito da sociedade por ele regulada, sob pena de tornar–se ilegítimo.Mas, indo mais além, fica claro que os imperativos de ordem ética não são vistos exclusivamente nos direitos e garantias fundamentais, e que podem ser encontrados em outras normas constitucionais, dentre as quais ressaltamos aquelas de natureza jurídico–econômica, as quais atribuem ao Estado –por meio de mandamentos constitucionais– o dever de manutenção do equilíbrio da tensão existente no mercado entre liberdade e igualdade através do seu aparato de coerção, quer dizer, por meio de normas jurídicas materialmente –e formalmente também– amparadas pela Constituição.

 

IV. CONCLUSÃO

Com vistas ao que expusemos até aqui, podemos concluir que é dever do Estado Constitucional intervir na economia se –e somente se–ocorrer desequilíbrio na tensão constante existente no mercado entre liberdade e igualdade, o que será feito com o amparo da Constituição. No entanto, o âmbito de atuação da regulação estatal é limitado também pela referida tensão, haja vista que não pode o Estado desequilibrá–la sob o pretexto de regular a economia, seja para o lado da liberdade, ou mesmo para o lado da igualdade.

Outrossim, fica claro que o dever de intervenção, assim como o limite da regulação, em que pesem sejam imperativos morais –portanto, de ordem ética– se encontram refletidos na Constituição do Estado. Isto se deve a necessidade de correspondência dos valores éticos de uma sociedade com o ordenamento jurídico que a regula, já que do contrário estaríamos diante de patente ilegitimidade e, como se sabe, o Direito deve ser legítimo, pois o Direito ilegítimo é uma violação, um não–Direito.

Constatamos também que, sob a perspectiva ética, o que ampara a Ordem Econômica da Constituição é a constatação da existência de uma tensão constante no mercado entre liberdade e igualdade, a qual deve ser mantida sempre equilibrada, haja vista que o seu desequilíbrio, tanto para o lado da liberdade quanto da igualdade, leva a situações imorais e, portanto, eticamente inadmissíveis. Desta forma, a necessidade de manutenção do equilíbrio da tensão entre liberdade e igualdade, e o reconhecimento das consequências imorais decorrentes do seu desequilíbrio, sustentam a necessidade de intervenção estatal na economia, afastando, assim, dentro de uma perspectiva epistemológica, a doutrina do laissez–faire.

 


NOTAS:

* O presente artigo é o resultado da investigação realizada no projeto de pesquisa "Constituição econômica, atividade administrativa e regulação", iniciado no ano de 2012 e encerrado no ano de 2014, o qual foi liderado pelo autor, e que estava vinculado a Universidade Santa Cecília (Brasil).

1 Inclusive, não nos parece ser possível retirar a moral da balança econômica, pois, como ensina Adolfo Sánchez Vásquez, a simples presença humana na economia a força a estabelecer relação com a moral, sendo que os problemas morais propostos pela vida econômica decorrem da inserção do homem na produção, seja como força produtiva, ou ainda como sujeito das relações de produção (Sánchez,2007, p. 218).

2 É importante ressaltar que o mencionado salto positivo de qualidade de vida não se restringiu ao aspecto qualitativo, abrangendo também o quantitativo. Isto porque a regulação estatal estabeleceu limites para a emissão de poluentes, o que acarretou melhora significativa nos indicadores de qualidade do ar e da água naquela região.

3 Alguém poderia objetar que, dentro da dinâmica própria das relações de consumo, não estaríamos diante de imposição, na medida em que se trata de uma relação privada baseada no acordo de vontades. Data venia, nos parece que, uma vez existente a necessidade de aquisição de determinado bem indispensável, a liberdade de escolha fica inviabilizada. Portanto, o que a intervenção estatal busca alcançar através da regulação é justamente a manutenção do equilíbrio da tensão existente entre liberdade e igualdade. Cumpre lembrar, inclusive, que a defesa do consumidor é um dos princípios da ordem econômica previstos expressamente na Constituição do Brasil (artigo 170, V), e que, desta forma, também as relações de consumo devem ser equilibradas pela regulação estatal sempre que necessário. Tanto é assim que o Código de Defesa do Consumidor do mesmo país abre às portas para referida intervenção ao prever expressamente o princípio da boa–fé objetiva (artigo 4°, IV).

4 Utilizamos a expressão "regulação econômica" como sendo toda intervenção do Estado na economia realizada por intermédio do aparato jurídico à sua disposição, seja de forma positiva (determinando um fazer) ou mesmo negativa (determinando um não fazer).

5 É justamente por reconhecer a necessidade de equilibrar a tensão entre liberdade e igualdade que o Direito do Estado estabelece cláusulas de abertura, que permitem ao aplicador do direito buscar elementos éticos para equalizar situações fáticas através da aplicação de normas jurídicas. Dente eles destacamos os princípios da moralidade, da boa–fé objetiva e da função social. Referidos princípios não se aplicam apenas à atividade econômica, mas também –eprincipalmente– à atividade social do Estado, notadamente no que toca a concretização dos direitos fundamentais.

6 Conforme a lição de Adolfo Sánchez Vásquez, "a realização moral não é somente um empreendimento individual, mas também social, isto é, não somente processo de moralização do indivíduo e sim processo de moralização no qual influem, de maneira diversa, as diversas relações, organizacionais e instituições sociais" (Sánchez, 2007, p. 233). Portanto, é nessa perspectiva que nos referimos à moral social.

7 Note–se que não fazemos aqui apologia à condenação do anatocismo, nem mesmo à sua defesa, pois isto não pertence ao escopo do presente trabalho. Simplesmente pontuamos a diferença de tratamento dada pela legislação brasileira a diferentes agentes econômicos em situações semelhantes.

8 Temos plena ciência de que o argumento da dissolução do pacto federativo tem natureza política. Contudo, ressaltamos que o nosso foco é a desigualdade que o acarreta, esta sim de cunho ético.

9 Até por esse motivo nossa opção de abordar o tema através da analise de casos.

10 Reiteramos: a afirmação se refere apenas à regulação econômica.

11 Nesses casos específicos a situação de imoralidade implica necessariamente em ilegalidade, na medida em que caracteriza a violação de uma norma jurídica. No entanto, é preciso frisar que, como regra, a imoralidade não caracterizaqualquer ilegalidade. Afinal, só há ilegalidade quando ocorre violação de norma jurídica.


 

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