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Opinión Jurídica

versão impressa ISSN 1692-2530versão On-line ISSN 2248-4078

Opin. jurid. vol.18 no.37 Medellín jul./dez. 2019

https://doi.org/10.22395/ojum.v18n37a10 

Artigos

Antonio Gramsci e a violência dos subalternos: guerra, política e “arditismo popular”*

Antonio Gramsci and Subaltern Violence: War, Politics and “Popular Arditismo”

Antonio Gramsci y la violencia de los subalternos: guerra, política y “arditismo popular”

** Cientista político, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil. Mestre em Ciência Política, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil. Doutor em Ciência Política, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil. Professor e investigador, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Marília, Brasil. Correio eletrônico: leandrogalastri@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-6218-1113


RESUMO

Este texto tem o objetivo de mapear e articular as principais passagens historiográficas e reflexões teóricas em que Antonio Gramsci trata da violência política principalmente em seus Cadernos do Cárcere (1929-1935), mas também com atenção a seus escritos pré-carcerários. A hipótese desenvolvida é de que tais passagens, reunidas e articuladas teoricamente, servem para demonstrar a existência de um método gramsciano para analisar o tema. A análise teórica dos textos de Gramsci, localizados em seu contexto histórico, conduz-nos, pela pena do próprio Gramsci, à análise da prática do “arditismo popular” como organização política de grupos subalternos de importante valor para discutir as formas possíveis de luta por fora da institucionalidade vigente, bem como à discussão da relevância desses tipos de luta para a emancipação social e para o desenvolvimento autônomo de tais grupos.

Palavras-chave: violência política; grupos subalternos; classes sociais; arditismo; Antonio Gramsci

ABSTRACT

The objective of this text is to map out and articulate the main historiographical passages and theoretical reflections in which Antonio Gramsci addresses political violence, especially in his Prison Notebooks (1929-1935), as well as paying attention to his pre-prison texts. The hypothesis developed is that said passages, gathered and articulated theoretically, serve to demonstrate the existence of a Gramscian method for analyzing the subject. Theoretical analysis of Gramsci’s texts, situated within their historical context, leads us, through Gramsci’s own prison sentence, to the practical analysis of “popular arditismo” as a political organization of subaltern groups which hold important value in discussions of possible forms of resistance outside of the institutions that existed at the moment, as well as a discussion of the relevance of those types of resistance for social emancipation and for the autonomous development of said groups.

Keywords: political violence; subaltern groups; social classes; arditismo; Antonio Gramsci

RESUMEN

El texto tiene como objetivo mapear y articular los principales fragmentos historiográficos y reflexiones teóricas en que Antonio Gramsci trata de la violencia política principalmente en sus Cuadernos de la Cárcel (1929-1935), pero con atención a sus escritos pre-carcelarios. La hipótesis desarrollada es que tales pasajes, reunidos y articulados teóricamente, sirven para demostrar la existencia de un método gramsciano para analizar el tema. El análisis teórico de los textos de Gramsci, situados en su contexto histórico, nos lleva, por la pluma del propio autor, al análisis de la práctica del “arditismo popular” como organización política de grupos subalternos de importante valor para discutir las formas posibles de lucha afuera de la institucionalidad vigente, así como a la discusión de la relevancia de estos tipos de lucha para emancipación social y el desarrollo autónomo de tales grupos.

Palabras clave: violencia política; grupos subalternos; clases sociales; arditismo; Antonio Gramsci

INTRODUÇÃO

A política, de modo abrangente, constitui-se por um conjunto de relações de força entre grupos em sociedade com vistas a fazer valer seus interesses da forma mais ampla possível. O desdobramento último dessas relações de força é a violência física, respaldada juridicamente quando exercida pelo Estado. O entendimento da violência como política desdobrada em sua última instância perpassa grande parte da tradição do pensamento político moderno1.

Para a tradição marxista, o sujeito principal das relações de força, tanto na dimensão nacional quanto na internacional, são as classes sociais e suas frações2. As classes sociais na sociedade civil e seus representantes na cena institucional-partidária são os agentes políticos por excelência das sociedades capitalistas3. Levando-se devidamente em conta a centralidade das classes sociais na estruturação das relações de força nas sociedades capitalistas, a violência também aparece, na tradição marxista, como elemento último da política. Já Marx (1988) anuncia, no capítulo XXIV d’O Capital, o papel especial da violência como “parteira” da história.

Esses métodos [da acumulação primitiva] baseiam-se, em parte, sobre a mais brutal violência, por exemplo, o sistema colonial. Todos, porém, utilizaram o poder do Estado, a violência concentrada e organizada da sociedade, para ativar artificialmente o processo de transformação do modo feudal de produção em capitalista e para abreviar a transição. A violência é a parteira de toda velha sociedade que está prenhe de uma nova. Ela mesma é uma potência econômica (p. 276, destaque meu).

Na mesma linha de raciocínio, Engels (2015), em seu conhecido estudo da violência desenvolvido em sua obra Anti-Dühring, procura desdobrar teoricamente o papel histórico exercido pela violência política a partir das formas de reprodução material da vida nas diferentes sociedades.

Consideramos, pois, que Gramsci se insere na sequência dessa tradição. O objetivo deste trabalho será, assim, explorar, nos escritos de Gramsci, as reflexões que tratem dessa questão. Existem, no conjunto de seus escritos carcerários e pré-carcerários, passagens historiográficas e reflexões teóricas sobre a problemática da violência política que, reunidas e articuladas teoricamente, podem servir para demonstrar um método gramsciano de análise do tema4. Partimos da observação de que, para o pensador italiano, as relações políticas de força compreendem também fases em que a violência política adquire protagonismo. Em suma, ela seria, também, momento de construção hegemônica5.

Na história das lutas sociais, as reivindicações populares direcionadas ao aparelho estatal sempre tiveram limites claros, que são aqueles estabelecidos pela própria estrutura jurídica e institucional. Tal estrutura, enquanto consolidação do moderno Estado capitalista, tem por função garantir, direta ou indiretamente, a reprodução social das condições materiais e simbólicas para a manutenção das elites políticas, dos grupos de interesse, de classes e frações de classes economicamente dominantes em suas posições de controle. Assim, historicamente, parte considerável das mudanças sociais demandadas pelos grupos e pelas classes subalternas tem origem, necessariamente, em iniciativas que ocorrem à margem ou em detrimento da legalidade vigente no Estado capitalista - embora muitas delas tenham sido, posteriormente, assimiladas pela estrutura institucional, como demonstra a história do movimento operário dos últimos dois séculos. 6 É para a análise sistemática de tais manifestações coletivas de desafio, resistência ou enfrentamento das estruturas jurídico-políticas do moderno Estado capitalista (ou, como as chamo aqui, “violência política”) que espero encontrar pistas nas passagens gramscianas analisadas.

A análise teórica dos textos de Gramsci, localizados em seu contexto histórico mais amplo (a partir do fim da Primeira Guerra Mundial e o entreguerras), conduz-nos, pela pena do próprio Gramsci, à análise da prática do “arditismo popular” como organização política de grupos subalternos de importante valor para discutir as formas possíveis de luta por fora da institucionalidade vigente, bem como para discutir a relevância desses tipos de luta para a emancipação social e o desenvolvimento autônomo de tais grupos. A discussão específica sobre o arditismo e o “arditismo popular” encontra-se nas seções 4 e 5 deste texto.

Para o que nos interessa aqui, a questão é considerar os diferentes níveis de desenvolvimento das relações de força entre as classes sociais a partir de uma estrutura econômica dada, que se autonomizam como relações políticas e, finalmente, assumem a forma de relações militares. As seções a seguir serão dedicadas a esse problema.

1. ALGUNS ELEMENTOS DO DESENVOLVIMENTO TEÓRICO DA QUESTÃO MILITAR NOS CADERNOS DO CÁRCERE

Desde a publicação das primeiras edições dos escritos de Gramsci na Itália, sempre existiu uma importante tendência interpretativa da sua obra, no exterior e depois também no Brasil, caracterizada por apresentá-lo como um autor cuja contribuição ao pensamento político se limitaria à discussão de caminhos principalmente institucionais e gradualmente reformadores voltados seja a uma eventual e futura superação do modo de produção capitalista, seja a transformações políticas e sociais progressistas no âmbito da ordem capitalista vigente. Assim, independentemente da viabilidade política e prática de uma e outra proposta, a discussão teórica tem desconsiderado importantes contribuições e reflexões de Gramsci para o estudo, a pesquisa e o debate da violência política. Tal lacuna permanece nos estudos brasileiros sobre a obra desse autor.

As leituras que fazem de Gramsci exclusivamente um teórico do gradualismo das reformas institucionais impedem a exploração mais abrangente do potencial analítico de sua obra. Impedem que se esclareça devidamente, por exemplo, a íntima articulação da problemática da violência política com questões como o Estado, o partido, o problema da transição socialista e o conceito de hegemonia. A análise da violência política nos Cadernos do Cárcere se inscreve, assim também, nessa problemática ignorada pelas leituras predominantes nas academias brasileiras.

É preciso apontar que Gramsci confere, à noção de “violência”, um lugar político de culminância das relações de força em sociedade. 7 Na análise dos diferentes níveis de relações de força em determinada formação social, ele indica o mais elevado como aquele que já adquiriu característica de relação de força “militar”.

I) uma relação de forças sociais estreitamente ligada à estrutura, objetiva, independente da vontade dos homens, que pode ser medida com os recursos das ciências exatas ou físicas [...]. II) um momento sucessivo que é a relação de forças políticas, ou seja, a avaliação do grau de homogeneidade, de autoconsciência e de organização alcançado pelos vários grupos sociais [...]. III) O terceiro momento é aquele da relação de forças militares, imediatamente decisivo em cada caso (o desenvolvimento histórico oscila continuamente entre o primeiro e o terceiro momento, com a mediação do segundo) [...] (Gramsci, 2001, pp. 1.583-1.586, tradução minha).

A passagem acima tem estreita relação, na obra carcerária, com a notória reflexão de Gramsci sobre a distinção entre o que ele chama de “guerra de posição” e “guerra de movimento”. Trata-se de um dos principais momentos dos escritos do cárcere sobre a questão aqui analisada. É sobretudo na análise do terceiro momento, acima citado, que adquire maior relevância o debate sobre as estratégias de “posição” e “movimento”. A metáfora militar da “guerra de posição” é tomada por Gramsci a partir do fenômeno da guerra de trincheiras que prevaleceu na Primeira Guerra Mundial, tendo como marco inicial o fim da batalha do Marne em setembro de 1914, quando nem as tropas franco-britânicas nem as alemãs haviam logrado impor-se respectivamente recuos importantes, enterrando-se, cada um dos lados, em trincheiras que se estenderiam ao longo de todo o front e determinariam a imobilidade das posições, num equilíbrio de forças que também se instalaria no front leste (Rússia) um pouco mais tarde e perduraria durante a maior parte da guerra (Krumeich e Audoin-Rouzeau, 2004, pp. 301-303). Ora, a metáfora criada por Gramsci a partir da análise da tática russa na Primeira Guerra não é gratuita e precisa ser considerada em toda sua precisão (Gramsci, 2001, pp. 859, 1.614). Segundo Bianchi (2008):

[a] analogia entre luta política e estratégia militar começou a ser desenvolvida já no Primo Quaderno, como parte de uma discussão sobre a direção política e militar no Risorgimento italiano. [...] Fica claro que já neste primeiro momento, Gramsci concebia de modo unitário as funções técnico-militares e políticas, o que era fundamental para sua elaboração a respeito das relações de forças político-militares (p. 199).

Ficam condicionadas à guerra de posição aquelas forças políticas (e/ou militares) levadas à situação de quase imobilidade, seja devido a um equilíbrio resultante da equivalência das forças em presença, seja devido à consolidação de larga superioridade da força adversária, que reduz a(s) outra(s) a uma espécie de resistência recuada. Desse raciocínio, fica a conclusão de que a chamada “guerra de posição” não é uma escolha estratégica que permanece à disposição das forças em embate, mas é uma situação à qual essas forças são levadas independentemente de sua vontade.

Guerra de posição, em todo caso, não parecia ser a tática em voga por parte dos trabalhadores urbanos e rurais na Itália dos primeiros anos do século XX. Com a industrialização crescendo e o número de operários urbanos aumentando, a organização política destes já acenava, por meio de greves sucessivas, a uma intensa luta de classes que, em breve, evoluiria para violentos conflitos com as forças da ordem. 8 A violência política dos subalternos tornava-se uma evidente preocupação para as elites urbanas e rurais, em razão da qual, em fevereiro de 1901, ao assumir o Ministério do Interior italiano, Giolitti diria em discurso à Câmara dos deputados:

Não temo nunca as forças organizadas, temo muito mais as inorgânicas, porque sobre aquelas a ação do governo pode exercer-se legítima e utilmente e contra os movimentos inorgânicos pode-se apenas fazer uso da força (Giolitti citado por Dias, 2004, p. 88).

Giolitti manifestaria, ainda, um estratégico desejo por alguma forma de integração das massas trabalhadoras à vida administrativa do Estado, para que não ficassem “sujeitas à influência dos que acham que, por virtude de sua exclusão, às classes populares não resta outra defesa, contra as possíveis injustiças das classes dominantes, senão o uso da violência” (Giolitti citado por Dias, 2004, p. 101).

Eis o momento dos primeiros pulsos do desenvolvimento industrial italiano, que marcará as análises teóricas não apenas dos escritos iniciais de Gramsci, mas norteará também suas reflexões carcerárias. Porém, além das incontornáveis influências do contexto político, social e econômico, Gramsci desenvolverá uma profunda interlocução com o ambiente intelectual italiano e suas influências conformadoras. É assim que o tema da violência política aparece anunciado, nos Cadernos do Cárcere, nos momentos de debate e assimilação crítica que Gramsci empreende com as obras de pensadores como Maquiavel e Georges Sorel, por exemplo.

Nas reflexões sobre Maquiavel, a questão da violência insurrecional aparece de forma indireta, já que a remissão é à problemática maquiaveliana da necessidade de formação e consolidação de um Estado nacional italiano. Para atingir tal objetivo, segundo Maquiavel, o príncipe deveria ter o caráter e as virtudes necessários para reunir, em torno dele, o consenso e a vontade popular, suportes indispensáveis para a utilização da força física coercitiva sempre que adequada aos propósitos da razão de Estado (Maquiavel, 2004).

Gramsci assimila tal problemática aplicando-a para a necessidade da constituição de um partido político que tenha as características de um “moderno príncipe”, ou seja, que reúna para si aquele consenso e uma vontade “nacional-popular” em torno da constituição de uma concepção de mundo de novo tipo, uma nova proposta de hegemonia, agora elaborada pelas massas subalternas (Gramsci, 2001). Infere-se que o uso da coerção pelo “moderno príncipe”, sempre que necessário no âmbito da luta política das massas subalternas, fica legitimado pelo consenso e pela vontade nacional-populares nos quais o partido se baseia. Aqui se encontra indiretamente referida, portanto, a questão da violência política.

Para que o “moderno príncipe” possa desempenhar tal tarefa, ele deve ser

a exemplificação histórica do “mito” soreliano, ou seja, de uma ideologia política que se apresenta não como fria utopia nem como raciocínio doutrinário, mas como uma criação de fantasia concreta, que opera sobre um povo disperso e pulverizado para nele suscitar e organizar a vontade coletiva (Gramsci, 2001, p. 1.556, tradução minha).

Gramsci toma a ideia de “mito” emprestada de Georges Sorel, filósofo francês do início do século XX e autor do importante livro Reflexões sobre a violência, publicado em 1908, na França. Sorel, que, com esse texto, dava uma contribuição definitiva à corrente do sindicalismo revolucionário, fora objeto da atenção de Gramsci desde os escritos de juventude do italiano. Ao longo dos escritos do cárcere, a presença de Sorel é central por meio da mobilização de conceitos importantes utilizados por Gramsci, como “reforma moral e intelectual”, “bloco histórico” e “espírito de cisão”. São todas formulações sorelianas que Gramsci assimilará de forma crítica nos seus Cadernos do Cárcere.

O que mais interessa neste trabalho, concernente a Georges Sorel, é sua contribuição decisiva para a discussão sobre a violência política por meio de sua já citada obra Reflexões sobre a violência. Para Sorel, a violência ocorrida com o surgimento do cristianismo, da Reforma Protestante e da Revolução Francesa teria formado momentos históricos equivalentes, porque funcionaria como “mito”, isto é, como conjunto de imagens percebidas instantaneamente, intuições, capazes de evocar com a força do instinto o sentimento de luta (Sorel, 1992). Sorel parecia divisar, na violência proletária, uma espécie de ação resgatadora da condição moral de uns e outros, burgueses e proletários. Paradoxalmente a uma visão da história que se orientasse pelo pressuposto da luta de classes, sustentava que a violência proletária fortaleceria a burguesia decadente, incitando-a a assumir seu papel histórico por excelência, que outro não seria senão revidar à violência proletária com a força e a voragem capitalistas dignas das burguesias mais avançadas do mundo. O socialismo de conciliação, ou o socialismo parlamentar, entorpeceria os sentimentos revolucionários do proletariado e acomodaria a burguesia num estágio histórico indigno de seu nome.

Tudo pode ser salvo se, pela violência, ele [o proletariado] conseguir consolidar de novo a divisão em classes e devolver à burguesia um pouco de sua energia. [...] A violência proletária, exercida como uma manifestação pura e simples do sentimento de luta de classes, aparece assim como algo belo e histórico (Sorel, 1992, p. 110).

Em suma, o pensador francês concebia a violência como maneira de manter viva a cisão entre as classes, bem como meio de empreender constantemente a reforma moral do proletariado.

À violência estatal Sorel atribui o termo “força”, sem apresentar contribuições originais quanto ao conceito de Estado em si. Quanto ao mesmo conceito em Gramsci, importantes trabalhos recentes têm chamado a atenção e enfatizado a centralidade da definição mais sofisticada presente nos Cadernos do Cárcere como a unidade orgânica “coerção + consenso”, unidade que comporia, finalmente, o exercício da hegemonia, e anunciada por Gramsci (2001) da seguinte forma já notória9: “[...] deve-se notar que na noção geral de Estado entram elementos que estão relacionados à noção de sociedade civil (no sentido, se poderia dizer, que Estado = sociedade política + sociedade civil, ou seja, hegemonia couraçada de coerção)” (pp. 763-764, tradução minha).

Nesse sentido, temos que, com relação ao termo “coerção” remetido àquela unidade, a perspectiva é sempre da hegemonia já constituída como Estado. Importa, portanto, explorar de forma sistemática o elemento e o conceito de “coerção” relativo à prática dos grupos e das classes subalternos, voltada para a constituição de sua própria proposta alternativa de hegemonia, ou seja, suas formas próprias de violência política, suas formas de guerra.

2. AS DIMENSÕES DA VIOLÊNCIA: GUERRA E POLÍTICA

Na perspectiva do materialismo histórico, a guerra é concebida, em geral, como a precipitação de um conflito entre as classes dirigentes internacionais. Mas provoca também uma agitação interna, dado que não deixa de ser a expressão armada de um conflito de classe. Em última instância, como observa Lênin em Imperialismo, fase superior do capitalismo, uma disputa internacional pela expansão dos capitais monopolistas (Lênin, 1987). A guerra, também para Gramsci, está subordinada a objetivos políticos inerentes ao Estado capitalista como instrumento do capital monopolista (Gramsci, 2001) 10.

Embora se origine nas lutas dos grupos dominantes de uma nação, a guerra tende a envolver toda a população, o que implica interesses antagônicos e atrai para si questões relativas à manutenção do status quo, à luta de classes e à reprodução do Estado (Gramsci, 2001). Daí o problema de a hegemonia não estar apartada do fenômeno da guerra.

Com base no pressuposto acima, algumas ideias podem ser desenvolvidas sobre a relação entre guerra, luta de classes e hegemonia. Racionalmente considerado, o objetivo do conflito militar não é o aniquilamento completo ou destruição total do inimigo ou adversário político, mas está no que se vislumbra, por todas as partes envolvidas, como a situação pós-conflito, ou seja, nos planos para um novo equilíbrio de forças. Para tal novo equilíbrio, é necessária a presença de uma classe social que se faça hegemônica, que seja capaz de utilizar os resultados da vitória militar para consolidá-lo tanto no plano interno quanto naquele das relações interestatais. Como aponta Ciccarelli (2009b), “a ausência de tal condição mínima de racionalidade da ação militar é, para Gramsci, sintoma da ausência da direção política da guerra e, portanto, da debilidade de uma determinada classe dirigente” (p. 376).

Gramsci observa que a estrutura produtiva influi diretamente sobre a organização da guerra e sobre a composição social dos exércitos. A conclusão óbvia é que tal estrutura, assim, tem peso decisivo sobre a natureza da direção política do conflito (Gramsci, 2001). Esta última observação tem importância incontornável na análise da guerra que podemos extrair do pensamento de Gramsci. É importante lembrar que ele faz uma aprofundada análise das relações gerais de força presentes em determinada formação social, já citada acima neste texto (Gramsci, 2001). Como observa então Gramsci, fazendo uma profícua releitura do “Prefácio de 1859” da Contribuição para a Crítica da Economia Política, de Marx, toda relação de forças se desenvolve no âmbito de condições materiais que “podem ser mensuradas com os sistemas das ciências exatas e físicas”. Essa “relação de forças sociais estreitamente ligada” à estrutura será tão mais ferozmente defendida e atacada pelos grupos sociais que se opõem quanto maior o “grau de homogeneidade, de autoconsciência e de organização” alcançado por tais grupos. Essa é a força dialética capaz de trazer a guerra para o interior da luta de classes em determinada formação social. Por isso, “a classe dirigente deve procurar manter o melhor equilíbrio político e social possível para que as novas ocasiões de conflito não levem à derrocada de sua hegemonia” (Ciccarelli, 2009b, p. 377). Também nesse caso, “a direção militar deve estar sempre subordinada à direção política, ou seja, o plano estratégico deve ser a expressão militar de determinada política geral” (Gramsci, 2001, pp. 2.051-2.052).

Na passagem que encerra o parágrafo acima, como se sabe, Gramsci está tratando diretamente da guerra, de tática e estratégia, e de como a guerra é, ou deva ser, subordinada à política da classe social que a conduz, ou de seus representantes. Mas não se pode negar que esse raciocínio possua também alguma relação com a dimensão da coerção estatal na guerra de classes interna. Toda coerção, toda força estatal se volta contra grupos, classes e frações de classes que não se convencem de sua situação subalterna. E a estrutura voltada para a função repressiva o faz não apenas no exercício de fato de sua função precípua, mas também na perene promessa desta. A espada pende constantemente sobre a cabeça das classes trabalhadoras. Tal ameaça também é “pedagógica”. “Ensina” a aceitar a hegemonia vigente. Por isso mesmo, necessita de mecanismos autônomos de reprodução, tal qual aqueles aparelhos privados da sociedade civil. Vejamos o que embasa, cria e justifica esses mecanismos.

Há elementos importantes para se pensar sobre o que aludimos acima, por exemplo, no parágrafo 48 do primeiro Caderno, um texto A reelaborado no parágrafo 37 do Caderno 13 com outras passagens de primeira redação. Nessas passagens, Gramsci observa como se aprofunda a hegemonia jacobina das classes urbanas ampliando-se e aprofundando-se a base econômica com o desenvolvimento industrial e comercial. E aponta que “neste processo alternam-se insurreições e repressões, ampliações e restrições do sufrágio político, liberdade de associação e restrição ou anulação desta mesma liberdade” (Gramsci, 2001, p. 58). Segue-se a descrição do processo sinuoso, irregular, feito de saltos, avanços e retrocessos, assimétrico e desigual, da tentativa jacobina de consolidação de sua hegemonia:

[...] com equilíbrio diverso entre forças armadas recrutadas e corpos armados profissionais (polícia, gendarmeria); com a dependência desses corpos profissionais de um ou outro poder estatal (do judiciário, do ministro do interior ou do ministro da guerra); com a maior ou menor parte das normas deixada ao costume ou à lei escrita, pelo que se desenvolvem formas consuetudinárias que podem ser abolidas em virtude de lei escrita; com separação real maior ou menor entre os regulamentos e as leis fundamentais, com o uso maior ou menor de decretos-lei que se sobrepõem à legislação ordinária e a modificam em certas ocasiões, forçando a “paciência” do parlamento (Gramsci, 2001, p. 58, tradução minha).

Na sequência, aparece o conhecido raciocínio segundo o qual o exercício “normal” da hegemonia, num sistema representativo parlamentar, é caracterizado por uma combinação mais ou menos equilibrada entre força e consenso etc. Essas ocorrências históricas tornam saliente o fato da coerção (seja como a espada pendente sobre as cabeças populares, seja como o exercício efetivo da força) como presença constituidora da formação, construção, consolidação da nova hegemonia. As leis, a estrutura jurídica e a institucionalidade vigente são permanentemente flexibilizadas, ajustadas, corrigidas, por vezes mesmo ignoradas, na turbulência da consolidação do poder da nova classe que se pretende hegemônica.

Nesse processo, é preciso considerar a possibilidade de uma hegemonia de classe se formar, além da intensa difusão ideológica de uma determinada concepção de mundo e das concessões materiais a classes aliadas e adversárias, também pelo estímulo à constituição do espírito de corpo a determinados setores de funcionários que se tornam verdadeiras “castas” corporativas com interesses próprios de grupo. Tais “castas” o são, evidentemente, não em seu sentido sociológico clássico, como um grupo de indivíduos inamovíveis de sua condição por nascimento, mas como um conjunto de posições no âmbito da administração do Estado reservadas a indivíduos de determinadas classes sociais e outros que para ali ascendam e tornem-se defensores dos mesmos valores e posições11. A própria possibilidade de ascensão, embora restrita, é elemento de hegemonia. Tudo isso, no entanto, remete ainda ao exercício da coerção para a consolidação hegemônica de uma classe social que já é dominante, ou seja, já está de posse do aparelho estatal. Vejamos a seguir os fundamentos possíveis, dados pela experiência histórica, da luta hegemônica a partir da prática da violência “ilegal”, anti-institucional, ou dos grupos subalternos.

3. A VIOLÊNCIA DOS SUBALTERNOS: GRAMSCI E A EXPERIÊNCIA HISTÓRICA ITALIANA

A “violência ilegal” ocorre, assim, nos choques com determinadas formas de institucionalidade. Está presente na guerra interestatal, na guerra de classes, na guerra civil. Noções como “arditismo”, “guerra partigiana” e “brigantaggio” são usadas por Gramsci em contextos referentes a essas dimensões. Duas importantes passagens dos Cadernos para se analisar as observações de Gramsci sobre a relação entre política e violência se encontram já no primeiro Caderno, parágrafos 133 e 134, dois textos “B” 12. Nesses parágrafos, escritos entre fevereiro e março de 193013, há relevantes considerações sobre o “arditismo” e a “guerra partigiana”, bem como a única vez, nos Cadernos, em que o autor acrescenta uma terceira definição às formas de guerra, além da tipologia posteriormente consagrada nas noções interdependentes de “guerra de posição” e “guerra de movimento”: a “guerra subterrânea”, como “a preparação clandestina de armas e de elementos combativos de assalto” (Gramsci, 2001, p. 122) 14.

Para Gramsci, a guerra partigiana é uma forma de luta “de minorias fracas, mas exasperadas, contra uma maioria bem organizada” (Gramsci, 2001, p. 123). Ela é conduzida por fora dos exércitos regulares. Dessa forma, essa minoria ativa e protagonista não pode ser definida como “organizações armadas privadas” como os arditi, pois sua atividade se desenvolve contra um exército e, portanto, contra um Estado (Ciccarelli, 2009a). O arditismo, por seu lado, é uma forma “ilegal” de atuação de um exército, ou seja, forma adotada por um Estado que se encontra momentaneamente inerte, enfraquecido no campo de batalha (Gramsci, 2001). A guerra partigiana típica não ocorre nos campos de batalha ou nas formas “oficiais” de combate. Pode adotar iniciativas em terrenos diversos e com formas militares estranhas às da guerra “oficial”.

O fenômeno do “brigantaggio” 15 aparece tratado por Gramsci de forma importante no Caderno 19, sobre o Risorgimento, e há uma menção relevante na carta 422 das “Lettere del cárcere”, de 12 de novembro de 1933 (Gramsci, s/d). Ele é entendido por Gramsci como um “movimento caótico, tumultuado e com traços de ferocidade dos camponeses para se apoderar da terra” (Gramsci, 2001, p. 2.046). Assim, o fenômeno se deveria à ausência de uma classe social capaz de unificar o restante do país em torno de um projeto comum para a cidade e o campo (Agostino, 2009).

O “brigantaggio” é resultante da explosividade das classes camponesas em grau agudo de pobreza. Lembra Gramsci que “as agitações locais, particularmente comuns na Itália Meridional”, eram “uma continuação atenuada do chamado ‘brigantaggio’ que grassou no Mezzogiorno entre 1860 e 1870; depois de 1870, continuaram os assaltos às sedes municipais, as lutas armadas entre os municípios pelos direitos de pastagem etc.” (Gramsci, s/d, p. 755). Ou seja, o “brigantaggio” italiano do começo do século XX é remetido por Gramsci ao mesmo fenômeno que se propagou no sul camponês italiano na década de 1860, no bojo das convulsões do processo de unificação.

O “brigantaggio”, assim, aparece caracterizado como um levante de maiorias camponesas empobrecidas, de caráter descentralizado e difuso, estando ausentes a organização e a disciplina política de projeto político estratégico de amplo horizonte. Já a guerra partigiana é ação de minorias enfraquecidas, mas ativas e “exasperadas”, contra uma “maioria bem organizada”. O arditismo, por sua vez, é fenômeno político-militar estudado por Gramsci primeiro como tipo específico de tática militar no campo de batalha, depois analisado em suas consequências enquanto tática política na dimensão da luta de classes. Essa noção possui uma interessante dialética na reflexão gramsciana, sobre a qual vale a pena nos determos por mais algumas linhas.

Nos escritos do cárcere, Gramsci (2001) aprofunda o uso da noção de arditismo como recurso de guerra política e militar (embora o faça enfatizando a necessidade de se considerarem as diferenças e nuances entre uma e outra prática, comparando as artes política e militar apenas como “estímulo ao pensamento”). Para Gramsci (2001), o “arditismo moderno” nasce como recurso de guerra de posição, como tática de sabotagem e incursão por trás das trincheiras inimigas, efetuadas por pequenas patrulhas que atuavam como “arma especial”.

Na luta política moderna, o Estado usa o arditismo (a “ilegalidade”) como meio para sua própria reorganização, enquanto, na aparência, permanece na legalidade. Condena-se, no entanto, as mesmas iniciativas por parte das classes trabalhadoras:

Crer que à atividade privada ilegal se possa contrapor outra atividade semelhante, ou seja, combater o arditismo com arditismo, é uma tolice. Significa crer que o Estado permaneça eternamente inerte, o que não acontece nunca, sem mencionar outras condições diversas (Gramsci, 2001, p. 121, tradução minha).

A seguir, Gramsci refuta a possibilidade de que as classes trabalhadoras possam constituir grupos especializados de ataque, devido à própria impossibilidade de se afastar de sua jornada de trabalho fixa para constituir grupos profissionalizados de assalto. Estaria claro então que este não pudesse fazer parte do método regular e sistemático de luta política das classes trabalhadoras? Gramsci não trata esse limite como uma camisa de força tática. Nesse sentido, é importante lembrar-se da distinção entre o “voluntarismo que teoriza a si mesmo como forma orgânica de atividade histórico-política” daquele que é concebido apenas como “momento inicial de um período orgânico de preparação e desenvolvimento” (Gramsci, 2001, p. 1.675). Veja-se de forma mais completa a passagem que compara a luta partigiana com a prática do arditismo:

Os comitadjis, os irlandeses e as outras formas de guerra de guerrilha [partigiana] devem ser separados da questão do arditismo, embora pareçam ter pontos de contato com ele. Essas formas de luta são próprias de minorias (fracas, mas exasperadas) contra maiorias bem organizadas, enquanto o arditismo moderno pressupõe uma grande reserva, imobilizada por várias razões, mas potencialmente eficiente, que o sustenta e o alimenta com aportes individuais (Gramsci, 2001, p. 123, tradução minha).

Nesse último sentido, no entanto, a guerra partigiana (“guerra de guerrilha”) e o “arditismo moderno” podem ser aproximados em termos de tática e métodos. A “grande reserva” potencialmente eficiente, “que o sustenta e o alimenta com aportes individuais” (Gramsci, 2001, p. 123), poderia ser constituída por um proletariado politicamente organizado. O principal trabalho continuaria sendo, nesse caso, a organização política das massas trabalhadoras.

Gramsci já havia tratado diretamente da questão em um artigo do L’Ordine Nuovo de julho de 1921, “Gli ‘arditi del Popolo’” (Gramsci, 1967). Os “arditi del popolo” são um interessante fenômeno de defesa armada do proletariado. Os “arditi” originais eram grupos de assalto formados por voluntários, que atuavam paralelamente, por fora das atividades regulares de seus exércitos durante os combates nas trincheiras da Primeira Guerra. Gramsci, como se viu, considera que tais grupos atuavam para compensar a inabilidade e a debilidade a que estavam reduzidos os exércitos nas trincheiras. Tais grupos não possuíam vínculo orgânico com as tropas recrutadas, ou tropas de linha, o que causaria um permanente problema de estratégia e um vácuo de liderança nesses exércitos, separando-se a “massa” das tropas de sua “elite” 16.

Ainda no texto citado, refletindo sobre a derrota das ocupações de fábrica consumada em setembro do ano anterior, Gramsci aponta a responsabilidade do Partido Socialista Italiano, ou de suas hesitações, e a falta de clareza quanto aos objetivos políticos do movimento. É relevante, nesse momento, a forma como ele aborda a ideia do proletariado em armas. Primeiro, considera que um movimento de reação popular organizado não deve se deparar com limites previamente estipulados. Isso seria “o mais grave erro de tática que se pode cometer” (Gramsci, 1967, p. 541). Em seguida, faz uma reflexão que ainda conheceria profundo alcance teórico em seus escritos carcerários:

é necessário compreender, é necessário insistir na compreensão de que, hoje, o proletariado não está apenas contra uma associação privada, mas contra todo o aparelho estatal, com sua polícia, seus tribunais, seus jornais que manipulam a opinião pública ao bel-prazer do governo e dos capitalistas [...] Quando o povo trabalhador sai da legalidade e não encontra a virtude de sacrifício e a capacidade política necessária para conduzir até o fim sua ação, é punido com o fuzilamento em massa, com a fome, o frio, a inanição que mata lentamente a cada dia (Gramsci, 1967, pp. 541-542, tradução minha).

Gramsci conclama o Partido Socialista a mudar de atitude e tirar do torpor e da indecisão “as massas que ainda seguem o partido”. 17 Apela para que não sejam impostos limites à ação dessas massas a fim de que o povo italiano não sofra “uma nova derrota e um novo fascismo multiplicado por cada vingança que a reação implacavelmente aplica sobre os titubeantes e indecisos, depois de ter massacrado a vanguarda do assalto” (Gramsci, 1967, p. 542, tradução minha).

Veja-se que Gramsci não cai na armadilha blanquista que aqui poderia ser comparada ao arditismo “puro”, à elite militar e militante que descura a necessidade do suporte de retaguarda, do apoio das massas trabalhadoras à sua causa heroica. Mas ele se coloca francamente favorável também à luta por fora da legalidade, ao desafio à institucionalidade vigente, desde que respaldada em bases populares de massa, desde que a conduza a vanguarda de um amplo contingente de trabalhadores politicamente organizados contra o Estado capitalista em questão:

os comunistas são contrários ao movimento dos “arditi del popolo”? Pelo contrário: eles aspiram ao armamento do proletariado, à criação de uma força armada proletária que tenha condições de derrotar a burguesia e de garantir a organização e o desenvolvimento das novas forças produtivas geradas pelo capitalismo (Gramsci, 1967, p. 542, tradução minha).

A partir daqui é relevante apresentar alguns elementos que deságuam na formação de uma estrutura militar popular de luta antifascista e, por força das determinações conjunturais, também anticapitalista. É a isso que nos dedicaremos na seção seguinte.

4. OS “ARDITI DEL POPOLO”

Os arditi italianos originais eram destacamentos de elite das tropas terrestres. Formavam grupos de combatentes apartados do restante da tropa e recebiam armas e treinamento especial. No âmbito da guerra, isso contribuiu para minar ainda mais o chamado “espírito de corpo” no exército, já que os soldados comuns passavam a ver os arditi como grupos privilegiados, que cumpriam missões especiais e não eram obrigados a permanecer na insustentável condição da vida nas trincheiras (Garofalo, 2010).

Com relação às suas condições de surgimento, Gramsci observa que o arditismo como função político-militar “ocorreu nos países politicamente não homogêneos e enfraquecidos, tendo como expressão um exército nacional pouco combativo e um estado-maior burocratizado e fossilizado na carreira” (Gramsci, 2001, p. 122, tradução minha).

Possuíam características como o antiparlamentarismo soreliano e a hostilidade contra a grande burguesia. Mas os arditi cultivavam em seu seio um intenso patriotismo e um antissocialíssimo visceral, talvez por causa da resistência operária à guerra. Segundo o autor, “tudo isso contribuirá para alimentar o mito do ardito combatente que ferozmente vai ao encontro da morte, cantando seu amor pela pátria” (Garofalo, 2010, p. 1).

A Associazione fra gli arditi d’Italia foi fundada em 1º de janeiro de 1919. Seu estatuto continha reivindicações patrióticas e sindicalistas, mas também questões políticas de matiz democrático e revolucionário, além de explícita aversão ao sistema parlamentar de partidos (Garofalo, 2010). Em seguida, a associação recebeu maciço apoio material do movimento futurista e se aproximou organicamente deste, movimento que atingiu seu emblema ideológico na exaltação da “guerra de regeneração” (Garofalo, 2010). A ascensão acelerada da organização ocorreu quando os industriais começaram a contribuir financeiramente com ela num arranjo antissocialista. A associação começou a se aproximar cada vez mais das posições dos Fasci di combattimento.

Em 10 de novembro de 1918, Mussolini participou de um encontro de arditi num café no centro de Milão e os interpelou em diapasão nacionalista:

Arditi! Soldados companheiros! Eu lhes defendi quando o covarde filisteu lhes difamou [...] O raio de seus punhais e o rugido de suas bombas farão justiça a todos os miseráveis que quiseram impedir a marcha da maior Itália. Ela é de vocês! [...] Para vocês! (Il Popolo d’Italia, 25 novembro 1918, citado por Garofalo, 2010, tradução minha).

Em pouco tempo, um pacto provisório foi formado, e o antissocialismo fora o cimento comum que uniu arditi, futurismo e fascismo. As autoridades militares e a grande burguesia saudaram o novo movimento ao perceber imediatamente sua utilidade na luta antioperária (Garofalo, 2010). Ao longo de 1919 e os primeiros meses de 1920, arditismo, fascismo e futurismo formaram um único bloco orgânico (Francescangeli, 2008). A entrada em cena dos arditi nas convulsões sociais de 1919 assinalou um verdadeiro salto qualitativo na luta política entre as classes subalternas e hegemônicas à medida que introduziu o emprego de meios modernos e de técnicas de ataque em chave contrarrevolucionária e antipopular (Francescangeli, 2008).

A ação contrarrevolucionária preventiva teve pernas curtas entre os arditi. As contradições começaram a se impor. O choque entre uma perspectiva teórica revolucionária e a prática reacionária emergiu: o giro definitivamente conservador do fascismo e as agitações e revoltas do biennio rosso forçaram parte significativa dos arditi a escolher a trincheira na qual combater em definitivo (Francescangeli, 2008). Traço marcante do arditismo fora o antiparlamentarismo partidário e a hostilidade à alta burguesia. A aproximação cada vez maior do fascismo com o capital monopolista causava desconforto entre os arditi, que foram se afastando de Mussolini. A consolidação do terrorismo fascista (squadrista) também afastou definitivamente os futuristas e o intervencionismo democrático-resorgimentale do movimento fascista (Garofalo, 2010). Apesar dos apelos fascistas, a maioria dos ex-combatentes regulares se posicionou contra o fascismo e o nacionalismo, propondo a superação da guerra por meio de um programa democrático.

Os primeiros problemas aconteceram já no verão de 1919, quando parte dos arditi aproximou-se cada vez mais dos socialistas na luta contra as classes dirigentes e a política parlamentar, rebelando-se contra Mussolini. Alguns arditi também começaram a colaborar com o diário socialista L’Avanti (Garofalo, 2010).

Em 12 de setembro de 1919, Gabriele D’Annunzio ocupou a cidade de Fiume com seus legionários, a maioria dos quais ex-arditi. Os arditi foram os primeiros a entrar na cidade e formaram, sob o comando de D’Anunzzio, o corpo dos “Legionários Fiumianos”. Em sua maioria, eram compostos por uma importante corrente ardita de inspiração anarcorrevolucionária e guiados, desde janeiro de 1920, pelo sindicalista revolucionário Alceste De Ambris (Garofalo, 2010).

Primeira organização armada em aberta oposição ao fascismo, os Arditi del Popolo se consideravam herdeiros naturais da rebeldia pós-bélica em geral. Isso também é explicado pelo fato de boa parte dos legionários fiumianos manter um posicionamento declaradamente antifascista antes, durante ou depois do advento do fascismo ao poder (Francescangeli, 2008).

Nesta análise, deve-se levar em consideração também os contatos que D’Annunzio e os fiumianos mantiveram com os líderes do movimento operário organizado -entre eles, Bombacci e Serrati-, com alguns sindicalistas revolucionários -Baldesi e D’Aragonae com elementos anarcoinsurrecionalistas de destaque -entre eles Malatesta- entre 1920 e 1922 (Francescangeli, 2008). Para Francescangeli (2008), são apressadas as considerações sobre o movimento D’Annunziano ter sido, estritamente, um ensaio fascista. O autor observa, por exemplo, que, por trás dos ataques à política parlamentar e à monarquia, não se encontravam apenas intentos autoritários e elitistas, mas as mesmas críticas à democracia burguesa que, apenas um ano depois, constituiriam a premissa para o nascimento do PC d’I. Tudo isso pode explicar, segundo Francescangeli (2008), como “a primeira organização antifascista tenha sido herdeira do ribellismo pós-bélico em geral e do espírito fiumiano em particular” (p. 33) 18.

Após o distanciamento em relação ao movimento fascista -cada vez mais um braço armado da reação patronal-, os arditi formaram fileiras no flanco operário e se amotinaram contra a intervenção italiana na Albânia, participando ativamente da Revolta de Ancona de junho de 1920 (Garofalo, 2010).

Em maio de 1921, a linha filofascista da Associação Nacional dos Arditi da Itália tornou-se minoria, por causa do aumento da violência dos esquadrões fascistas, e a associação retoma os laços com D’Annunzio, após tê-lo acusado de filossovietismo. Seu comitê central aceitou como programa a Carta de Carnaro (constituição de Fiume) 19 e convidou os arditi membros dos Fasci di Combatimento a abandonarem as fileiras fascistas (Garofalo, 2010). Tratava-se de uma postura, na verdade, equidistante entre fascismo e socialismo, a qual outra minoria passou a se opor abertamente: a componente anarcorrepublicana liderada por Argo Secondari, que decidiu se unir militarmente, no espírito “ardito”, ao proletariado, golpeado pela reação burguesa e fascista, fundando, assim, a “Associazione degli Arditi del Popolo” (Garofalo, 2010).

Esses foram os processos que, entremeando a luta de classes à época, culminaram na formação dos Arditi del Popolo. As lições a tirar desse importante momento da história da luta operária italiana ainda não se esgotaram. Uma “força armada proletária” que possa derrotar as elites dirigentes não é exatamente uma possibilidade frequente na história da luta contra o capital. Mas, em meados de 1921, ainda se podia alimentar, embora a partir de então cada vez menos, esperanças numa sublevação continental, e Gramsci certamente levava em conta tal variável. O que importa enfatizar aqui, em todo caso, é que se trata de uma das formas de luta “contra todo o aparelho estatal” imaginadas por Gramsci (1967): o desafio violento à estrutura institucional vigente, desde que respaldado num trabalho político de organização dos trabalhadores.

CONCLUSÕES

Como afirmamos anteriormente em relação aos comentários de Gramsci sobre a consolidação do Estado revolucionário francês, as leis, a estrutura jurídica e a insti tucionalidade vigente são permanentemente flexibilizadas, ajustadas, corrigidas, por vezes mesmo ignoradas, na turbulência da consolidação do poder da nova classe que se pretende hegemônica. Essa “turbulência” segue até que a nova classe logre a consolidação histórica da concepção de mundo e da estrutura institucional con- formes ao seu modo de vida. Mas, até aqui, trata-se da consolidação do poder de Estado de uma classe revolucionária que já o alcançou. Ocorre, porém, que aquela relação conflituosa com a institucionalidade vigente também se verifica na atividade política das frações dos grupos subalternos que resistem à hegemonia consolidada de determinada classe social.

A fundação dos Arditi del Popolo correspondeu, como argumentamos acima, a um importante momento de contestação da ordem por fora dessa mesma ordem, por fora da institucionalidade vigente, pela perspectiva de uma nova classe social em luta contra a hegemonia em questão. Manifestou-se como uma forma possível de luta contra a integralidade do aparelho estatal. Não foi o caráter de organização armada que definiu a importância histórica da experiência dos Arditi del Popolo para os grupos subalternos, mas sua postura anti-institucional, de contestação do aparato legal que os havia mandado para a frente de batalha contra outros trabalhadores em prol de noções nebulosas de “pátria”, “nação”, “nacionalismo”.

As tradições de luta e resistência dos grupos subalternos desenvolvem-se numa relação de frequente antagonismo com a estrutura institucional do Estado. Práticas típicas daquela resistência incorrem constantemente no desafio às regras estatais. Sob o pressuposto pétreo do direito à propriedade, por exemplo, as leis do Estado capitalista protegem o latifúndio, as grandes corporações e as instituições financeiras de quaisquer medidas substanciais que os obriguem a participar de algum processo de redistribuição da riqueza socialmente produzida e por eles privadamente acumulada. Não há, portanto, como resistir aos avanços do latifúndio e das grandes corporações industriais e financeiras sem se chocar, em algum momento, com as instituições do Estado.

Assumido o pressuposto acima, a observação histórica pode demonstrar que a organização política independente, própria daquelas frações dos grupos subalternos que constantemente se preparam para o choque cotidiano com as regras e o funcionamento do Estado capitalista, cria uma tradição de práticas de luta20. Historicamente, as greves de massas, as ocupações e lutas no campo, a prática organizacional dos conselhos de fábrica, os princípios educativos alternativos que unificam trabalho e ensino numa perspectiva totalizante a respeito da produção de determinado modo de vida, enfim, todo esse conjunto de práticas de luta e resistência merece um estudo voltado para a demonstração de seu potencial criador de embriões de uma nova concepção de mundo, nova moral, germes de reforma moral e intelectual, de uma democracia mais radicada nos setores populares. Ou seja, a demonstração de que a violência política, que nesse caso é apresentada como a luta que desafia a estrutura institucional do Estado capitalista, pode criar sementes de maior democratização dessa mesma estrutura.

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* Texto resultante de recente investigação do autor na área de Teoria Política, com relação específica ao pensamento político do filósofo italiano Antonio Gramsci.

1 Para mencionarmos quatro nomes centrais dessa tradição, ver Maquiavel (2004), Hobbes (1999), Weber (2011) e Clausewitz (2007).

2Para uma sucinta análise da rivalidade tendencial entre as classes e as frações dominantes de diferentes formações nacionais, ver Gramsci (2001)

3A obra O 18 Brumário de Luís Bonaparte, de Marx, apresenta, como se sabe, uma discussão clássica sobre a dinâmica das relações entre as diferentes classes sociais, suas frações e seus representantes políticos no sistema partidário, no poder executivo e no parlamento. Ver Marx (2011).

4A violência política será definida aqui, num sentido mais abrangente, como toda iniciativa política organizada de caráter anti-institucional que envolva desafio e/ou resistência ativa à legalidade vigente. Veja-se, por exemplo, o verbete “resistência” (tanto “ativa” quanto “passiva”, de autoria de Nicola Matteucci, constante no Dicionário de Política [Bobbio, Matteucci e Pasquino, 1998]).

5O conceito de “hegemonia” alinhava praticamente toda a malha conceitual desenvolvida nos Cadernos do Cárcere. A hegemonia é um processo de controle social — é a direção política, cultural e ideológica de determinada sociedade — exercido pelas classes e frações de classes dominantes de determinada formação social sobre as classes e grupos subalternos. O exercício da hegemonia por aquelas classes dominantes envolve simultaneamente elementos de coerção e de consentimento ativo ou passivo. Os primeiros teriam como lócus privilegiado a dimensão do Estado em seu sentido estrito, ou “sociedade política” nos termos de Gramsci. Ou seja, a instância da burocracia administrativa estatal e das forças armadas. Os segundos seriam protagonistas na dimensão da “sociedade civil”, aquela composta pelos “aparelhos privados de hegemonia” (escolas, igrejas, sindicatos, partidos, meios de comunicação, associações de categorias profissionais liberais etc.). Ver Gramsci (2001).

6Sobre as sublevações operárias movidas por reivindicações posteriormente assimiladas à institucionalidade vigente, ver Przeworski (1989) e Coggiola (2010).

7Gramsci, por exemplo, afirma que “as lutas políticas entre as forças sociais são a manifestação concreta das flutuações de conjuntura do conjunto das relações sociais de força, em cujo terreno ocorre a passagem destas a relações políticas de força, para culminar na relação militar decisiva” (Gramsci, 2001, p. 1.588).

8A respeito das organizações e dos movimentos dos trabalhadores urbanos e rurais da Itália nos primeiros anos do século XX, conferir Antonioli (1997), Gianinazzi (2006), Colarizi (2007) e Dias (2000).

9Entre as obras mais recentes nas quais encontramos importantes reflexões sobre o conceito de Estado em Gramsci, estão Morton (2007) e Thomas (2009).

10A percepção da guerra como um fenômeno subordinado à política já se encontra formulada em profundidade por Clausewitz em seu notório tratado sobre a guerra (Clausewitz, 2007). Gramsci demonstra conhecer as ideias do general prussiano, embora não haja evidências de que tivesse lido o autor diretamente.

11De toda forma, a ascensão, numa sociedade persistentemente desigual, é exceção, não regra. Sobre a questão das castas e estamentos, observa Weber (s/d) que “toda diminuição no ritmo de mudanças nas estratificações econômicas leva, no devido tempo, ao aparecimento de organizações estamentais e contribui para a ressurreição do importante papel das honras sociais” (p. 225). Há valia em se considerar, portanto, que o aparato de violência, enquanto mais uma dimensão da burocracia dirigente, possua papel reprodutor da hegemonia também na consolidação de seu espírito de corpo, para além da efetivação de sua atividade fim.

12Textos de redação única, ou seja, não revistos ou retomados por Gramsci em novas elaborações. Os textos “A” são aqueles de primeira redação, posteriormente retomados e, com frequência, reelaborados em textos “C”, conforme classificação de Valentino Gerratana em sua edição crítica de 1975. Os textos “C” compõem, com frequência, os “Cadernos especiais”, aqueles que possuem alguma unidade temática, denominados assim pelo próprio Gramsci.

13 Gianni Francioni (1984) propôs uma periodização cronológica diferente da apresentada pela edição crítica de Gerratana, buscando demonstrar uma complexa e detalhada reconstrução do itinerário do pensamento gramsciano nos diferentes cadernos. Francioni propõe uma perspectiva não linear, em que os escritos da prisão são considerados em concomitância com as cartas de Gramsci, apontando que estas devem ser lidas conjuntamente com os cadernos. Assim, a análise de Francioni será um guia importante para entender os contextos específicos, teóricos e cronológicos, da elaboração gramsciana.

14“A resistência passiva de Gandhi é uma guerra de posição, que se torna guerra de movimento em certos momentos e guerra subterrânea em outros: o boicote é guerra de posição, as greves são guerra de movimento, a preparação clandestina de armas e de elementos combativos de assalto é guerra subterrânea” (Gramsci, 2001, p. 122).

15Em nota à edição brasileira das Cartas do Cárcere, Carlos Nelson Coutinho observa: “O ‘brigantaggio’, mais do que banditismo puro e simples, designa um complexo fenômeno de rebelião política e social de base camponesa, às vezes manipulado por setores conservadores e clericais. Depois da formação do Estado unitário, ele se alimentou muitas vezes das esperanças frustradas de reforma agrária, sendo duramente reprimido pelo novo poder central” (Gramsci, 2005, p. 378).

16Explica Carlos Nelson Coutinho, em nota à edição brasileira dos Cadernos do Cárcere, que “o termo arditi refere-se aqui aos grupos de assalto compostos basicamente por voluntários. Significando literalmente ‘os que têm ousadia, audácia, coragem’, a expressão ganha destaque durante a Primeira Guerra Mundial. Os termos arditi e arditismo adquirem outra conotação depois da guerra, quando veteranos dessas tropas formam uma Associação de arditi e se revelam nacionalistas apaixonados. Muitos deles integram os Fasci di Combattimento de Mussolini. Em 1921, alguns grupos de esquerda constituem os arditi del popolo para se oporem às esquadras fascistas” (Gramsci, 2002, pp. 379-380).

17Gramsci, como é notório, inspirava-se então nos recentes eventos revolucionários na Rússia. Sobre o processo da cisão comunista italiana em relação ao reformismo socialista e à postura de Lênin a respeito, ver, por exemplo, Del Roio (2005): “Em função da postura do reformismo diante da guerra imperialista e de sua influência sobre as massas, para Lênin a cisão com essa corrente precede no tempo e em importância a cisão com o esquerdismo, embora, de acordo com o momento histórico-político, seja necessário selar compromissos com essas vertentes. Mas, enquanto combate com veemência o esquerdismo no comunismo alemão, Lênin sustenta de maneira crítica o esquerdismo no socialismo italiano, diante da necessidade de apressar uma já tardia cisão [com o reformismo]” (p. 26).

18A constituição de Fiume (Reggenza italiana del Carnaro), feita por Alceste de Ambris, ele próprio sin- dicalista revolucionário (para um desmentido das teses que apressadamente irmanam sindicalismo revolucionário e fascismo ver Galastri (2015)) encerrava uma política externa filossoviética, previa todas as liberdades políticas, direito de voto às mulheres, educação laica e popular, voto dos soldados e controle e revogabilidade dos cargos políticos, nacionalização de portos e ferrovias e condicionava a propriedade privada ao trabalho. Bordiga, por exemplo, elogiou a proposta avançada da “Carta” em artigo numa publicação chamada Prometeo, de 15 de janeiro de 1924 (Francescangeli, 2008).

19Ver nota anterior.

20Em seu livro From mobilization to revolution, Charles Tilly (1978) considera a violência revolucionária como etapa possível de constituição de parâmetros para a imposição de mudanças sociais e a partir “de baixo”. Tilly é autor central no estudo das chamadas “teorias da ação coletiva e movimentos sociais”. Parte de uma perspectiva que não se avizinha à filosofia da práxis gramsciana. De todo modo, aqui nos interessa, especificamente, considerar o desenvolvimento, por parte do autor, de uma abordagem histórica que procura resolver a questão de como as grandes mudanças estruturais alteram as formas anteriores de ação coletiva. Para os nossos propósitos, pode-se perguntar se o fenômeno inverso não se verificaria igualmente: a violência política dos “de baixo” que cria tradições de luta e valores específicos de uma concepção de mundo e formas de vida que condicionem novas mudanças estruturais.

Recebido: 16 de Junho de 2018; Aceito: 05 de Dezembro de 2018

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