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Opinión Jurídica

Print version ISSN 1692-2530On-line version ISSN 2248-4078

Opin. jurid. vol.19 no.38 Medellín Jan./June 2020

https://doi.org/10.22395/ojum.v19n38a10 

Artigos

Colonialidade e feminicídio: superação do “ego conquiro” como desafio ao Direito*

Colonialidad y feminicidio: superación del “ego conquiro” como desafío al Derecho

Coloniality and Feminicide: Overcoming “Ego Conquiro” As a Challenge for Law

Clarice Gonçalves Pires Marques** 
http://orcid.org/0000-0003-1706-3051

** Doutoranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Bolsista Capes/ Proex. Mestra em Direito e Justiça Social pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Graduada em Direito. Graduada em Psicologia. Advogada. Psicóloga. E-mail: cpmarques@edu.unisinos.br e claricepiresmarques@gmail.com. Orcid: http://orcid.org/0000-0003-1706-3051.


RESUMO

O presente estudo pretendeu identificar em que medida a colonialidade, no que diz respeito à ética/não ética de guerra, contribui para o fracasso na redução do feminicídio no país. Analisou-se também o perfil do tipo de feminicídio predominante no Brasil, qual seja o feminicídio doméstico ou íntimo. Verificouse que há carência de articulação entre o sistema de registro de óbitos e a caracterização desse tipo de crime a fim de evitar a invisibilidade e subnotificação dos casos de assassinatos de mulheres que possam ser confundidos com casos de mortes não ocasionadas em razão do gênero. Notou-se que as estratégias de dominação/guerra e violência repercutem até a atualidade por meio da colonialidade/colonialidade do Direito, e mantêm as desigualdades de poder entre os gêneros e mesmo com um sistema protetivo formado pela Lei 11.340/2006 e Lei 13.104/2015, não houve redução do genocídio feminino. A proposta metodológica é a dos Estudos Decoloniais, que compreende criticamente o objeto de estudo, bem como se vale da técnica de pesquisa bibliográfica e documental.

Palavras-chave: colonialidade; colonialidade do Direito; ego conquiro; ética/não ética de guerra; feminicídio

RESUMEN

El presente estudio tuvo como objetivo identificar en qué medida la colonialidad, con respecto a la ética/no ética de la guerra, contribuye al fracaso para reducir el feminicidio en el país. También se analizó el perfil del tipo de feminicidio predominante en Brasil, como el feminicidio doméstico o íntimo. Se encontró que hubo una falta de articulación entre el sistema de registro de muertes y la caracterización de este tipo de delito para evitar la invisibilidad en la denuncia de casos de asesinatos de mujeres que podrían confundirse con casos de muertes no causadas por género. Se observó que las estrategias de dominación/guerra y violencia se reflejan hasta la actualidad por medio de la colonialidad/colonialidad del Derecho, y mantiene las desigualdades de poder entre los géneros, incluso con un sistema de protección formado por la Ley 11.340/2006 y la Ley 13.104/2015, no hubo reducción en el genocidio femenino. La propuesta metodológica es la de los Estudios Decoloniales, que abarca críticamente el objeto de estudio, así como el uso de la técnica de investigación bibliográfica y documental.

Palabras clave: colonialidad; colonialidad del Derecho; ego conquiro; no ética/ ética de la guerra; feminicidio

ABSTRACT

The present study aimed to identify the extent to which coloniality, concerning ethics/non-ethics of war, contributes to the failure to reduce feminicide in the country. The profile of the predominant type of femicide in Brazil, such as domestic or intimate femicide, was also analyzed. It was found that there was a lack of articulation between the death registration system and the characterization of this type of crime in order to avoid the invisibility and underreporting of cases of women’s murder that could be confused with cases of deaths not caused by gender. It was noted that the strategies of domination/war and violence reflect up to nowadays through coloniality/ coloniality of the Law, and maintain inequalities of power between the genders and even when they count on a protective system formed by Law 11.340/2006 and Law 13.104/2015, there was no reduction in female genocide. The methodological proposal is that of the Decolonial Studies, which comprehend critically the object of study, as well as use the technique of bibliographic and documentary research.

Keywords: coloniality; coloniality of law; ego conquiro; ethics/non-ethics of war; feminicide

INTRODUÇÃO

Em 2015 se estabeleceu um importante marco na legislação brasileira, no que se refere ao combate à violência às mulheres, qual seja a promulgação da Lei 13.104/2015 (conhecida como Lei do Feminicídio), a qual teve como objeto a alteração do art. 121 do Decreto-Lei 2848/1940 (Código Penal Brasileiro) com o fim de estabelecer o feminicídio como circunstância agravante do crime de homicídio, bem como para alterar o art. 1º da Lei 8072/1990 (Lei dos Crimes Hediondos).

Em 2012, o Brasil era o sétimo país em índices de mulheres assassinadas no mundo, em 2015 ascendeu à posição de quinto país onde mais ocorrem feminicídios1 e, passados pouco mais de três anos da entrada em vigor da legislação supracitada, não houve queda nos números, de forma que talvez, ainda venha a apresentar uma curva ascendente nos registros. Em 2016, a Organização Mundial da Saúde indicava que, em números, no Brasil, a taxa de feminicídios era de 4,8 para cada 100 mil mulheres (ONU, 2016).

Observe-se que, em conjunto com esse cenário alarmante de violência letal, há ainda números não tabulados com relação ao feminicídio tentado e não concretizado, violência psicológica, física, financeira, sexual, obstétrica, ou seja, um espectro de violências que ilustram o quadro da dor vivenciado pelas mulheres brasileiras, e, porque não dizer das mulheres latinas, já que a brasilidade pode ser assim compreendida.

Cumpre recordar que, quando da criação da Lei 13.104/2015 (Lei do Feminicídio), o ordenamento jurídico pátrio já contava com a Lei 11.340/2006 (conhecida como Lei Maria da Penha), legislação que foi promulgada para criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, norma que foi fruto de condenação proferida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). O Brasil foi condenado por omissão, negligência e tolerância à violência doméstica, posto que a inércia do Estado ante a resolução dos casos acaba por violar compromissos assinados internacionalmente com a Organização das Nações Unidas e em conjunto com outros países, no sentido de combater, coibir e erradicar todas as formas de violência contra as mulheres.

Dessa forma, percebe-se a construção de um sistema de proteção legal, mesmo que à custa de condenações internacionais (caso da Lei Maria da Penha) ou na busca de não sofrê-las (caso da Lei do Feminicídio) para o combate à violência, sem que, contudo, perceba-se algum avanço efetivo ou reflexo efetivo dessas legislações na prática, tendo em vista os dados apontados. A problemática que se instaura, portanto, é no sentido de avaliar em que medida a colonialidade, no que diz respeito à ética de guerra, pode contribuir para que a aplicação dessas normas passe quase in albis com relação à redução da violência contra as mulheres no país.

Para concretizar tal objetivo pretende-se investigar os significados da colonialidade, da ética/não ética de guerra e feminicídio; identificar como a ética/não ética de guerra se aplica sobre os corpos femininos na contemporaneidade, bem como o perfil do feminicídio no país; perquirir como o feminicídio está sendo mapeado nos bancos de dados oficiais; e observar a contribuição da colonialidade do Direito como condição para a manutenção do quadro de violência atual2.

No que se refere à metodologia empregada no estudo, utilizou-se como ferramenta de Análise Crítica do Discurso a partir da ontologia dos Estudos Decoloniais composta por Saber, Poder e Ser, que questiona percepções hegemônicas dos fenômenos estudados (Martins & Benzaquen, 2017). Assim, optou-se pelo abandono das metodologias tradicionais de pesquisa tendo em vista a proposta dos Estudos Decoloniais3 utilizados na presente análise, os quais envolvem inclusive o rompimento da colonialidade metodológica, seguido por uma compreensão crítica do objeto de estudo, a partir da pesquisa bibliográfica e documental sobre o tema à luz da Teoria Crítica Decolonial (Damazio, 2011).

1. COLONIALIDADE, ÉTICA DE GUERRA E FEMINICÍDIO: APROXIMAÇÃO DE SIGNIFICADOS E SUA CONTEXTUALIZAÇÃO

A categoria colonialidade é fundamental para a compreensão de uma série de fenômenos que se perpetuam e constituem as formas de ser e estar no mundo no que se refere à América Latina e, por consequência, no que se refere ao Brasil. Em um primeiro momento o termo “colonialidade” 4 pode remeter à ideia de colonialismo, no entanto, são conceitos profundamente diferenciados.

Enquanto o colonialismo se traduz como uma estrutura de dominação e exploração formada pelo binômio colônia/metrópole, em que o controle da autoridade política e dos recursos de produção e do trabalho de uma determinada população (situada na colônia) tem outra identidade e sedes centralizadas de poderes em outra jurisdição territorial (situada na metrópole), a colonialidade se apresenta como algo posterior ao colonialismo, que se estrutura a partir dele e sem ele não teria se imposto de forma tão prolongada, mas não se estabelece como sinônimo. (Quijano, 2007). Maldonado- Torres, elucida de forma pontual a diferença entre os dois significados:

Colonialidad no significa lo mismo que colonialismo. Colonialismo denota una relación política y económica, en la cual la soberanía de un pueblo reside en el poder de otro pueblo o nación, lo que constituye a tal nación en un imperio. Distinto de esta idea, la colonialidad se refiere a un patrón de poder que emergió como resultado del colonialismo moderno, pero que en vez de estar limitado a una relación formal de poder entre dos pueblos o naciones, más bien se refiere a la forma como el trabajo, el conocimiento, la autoridad y las relaciones intersubjetivas se articulan entre sí, a través del mercado capitalista mundial y de la idea de raza. Así, pues, aunque el colonialismo precede a la colonialidad, la colonialidad sobrevive al colonialismo. La misma se mantiene viva em manuales de aprendizaje, en el criterio para el buen trabajo académico, en la cultura, el sentido común, en la auto-imagen de los pueblos, en las aspiraciones de los sujetos, y en tantos otros aspectos de nuestra experiencia moderna. En un sentido, respiramos la colonialidad en la modernidad cotidianamente. (Maldonado-Torres, 2007, p. 131)

O que Maldonado-Torres propõe é que a colonialidade5 é um produto do colonialismo, pode-se dizer que uma espécie de “herança”, uma marca, que se formula durante o período colonial e se perpetua/sobrevive ao tempo, enraizada no povo que aqui está. Assim padrões de poder se estabeleceram na colônia (Brasil) a partir daquela época, e influenciaram todas as gerações subsequentes em diversos campos, tanto no que se refere à forma de produção capitalista quanto às identidades, formas interpessoais de relacionar-se, produção e reprodução das subjetividades, nas ciências, na cultura, nas estruturas de poder, enfim, em um sem número de aspectos da experiência humana moderna cotidiana, nas palavras do próprio teórico.

Nessa senda, várias categorias6 se atravessam e se complementam no que se refere à subalternização da figura feminina no país a partir da colonização, obviamente, uma cultura7 da marginalização feminina não se estabelece na história da humanidade a partir da colonização da América Latina/Brasil, suas origens são remotas8, mas esta proporcionou que os estatutos de poder aplicados nas relações entre homens e mulheres na “metrópole” se transladassem para a colônia e, na colônia se deteriorassem tanto mais pela racialização a que foram submetidos os povos colonizados, e permaneceu condicionada que foi pela colonialidade.

A colonialidade do poder, categoria importante para compreender os fenômenos aqui suscitados, tem como um de seus pontos de partida o próprio questionamento do colonizador que, ao chegar na América Latina, duvidou da humanidade dos povos originários, e perguntava se possuíam alma ou não, se eram de fato seres humanos, pois foi a partir daí que se formaram identidades como europeu, branco, indígena, negro, mestiço e, a partir de como foram significadas essas identidades, estabeleceram-se hierarquias. Maldonado-Torres (2007) coloca que os graus de superioridade se justificam em relação aos graus de humanidade que são atribuídos a cada identidade, e explica que quanto mais clara a cor da pele tanto mais representa um ideal de humanidade completa.

A “raça” no sentido moderno não tem referência em momento anterior à colonização da América, portanto, foi uma noção construída a partir de aqui, com base nas diferenças fenotípicas entre colonizadores e colonizados, que foi utilizada como forma de conferir legitimidade às relações de dominação impostas pela conquista. (Quijano, 2000).

Tais hierarquizações foram implementadas na América Latina e difundidas pela expansão colonial europeia a outros pontos do globo e proporcionaram a construção do conhecimento de perspectiva eurocêntrica, que naturalizou a ideia de raça como parte das relações coloniais, suportada pelo binômio superioridade/inferioridade, e tornou-se potente e duradoura ferramenta de dominação social universal. (Quijano, 2000). É o que Mignolo denomina como “diferença colonial”, a qual não se refere à diferença cultural entre colonizadores/colonizados, mas sim a transformação dessa diferença cultural em valores e hierarquias como as raciais, as patriarcais e as geopolíticas (Novo Mundo, Terceiro Mundo etc.) (Mignolo, 2013).

A lógica da diferença colonial produziu uma visão de mundo peculiar e característica da modernidade e desencadeou o que se denomina como colonialidade global, lógica que se faz presente e acompanhada, entre outros elementos, da “ética/ não ética de guerra”. Dussel (1993) elabora considerações em torno da compreensão de ego conquiro como uma individualidade violenta que submete outras pessoas, que encobre o “Outro”, define-o como o ego do homem branco, europeu, moderno, prático, que impõe sua vontade sobre as demais (o que ilustra pela figura de Fernando Cortês, conquistador espanhol). Explica que diferentemente da “conquista”, que é um procedimento militar violento e de subjugação imediata, a subjetividade do “conquistador” se constituiu lentamente na práxis. O ego conquiro, na análise de Enrique Dussel é, sobretudo, uma vontade de poder.

Maldonado-Torres (2007) menciona o ego conquiro como um ego de conquista, fálico e violador que se traduz pelo comportamento do colonizador9, o qual busca submeter os povos conquistados a partir do que chama “emasculação dos homens” ou “feminização dos homens”, o que lhes retira o poder e os submete à força, bem como à submissão das mulheres através da violação sexual. Nesse sentido:

La guerra, sin embargo, no trata sólo de matar y esclavizar al enemigo. Esta incluye un trato particular de la sexualidad femenina: la violación. La colonialidad es un orden de cosas que coloca a la gente de color bajo la observación asesina y violadora de un ego vigilante. El objeto privilegiado de la violación es la mujer. Pero los hombres de color también son vistos con estos lentes. Ellos son feminizados y se convierten para el ego conquiro en sujetos fundamentalmente penetrables. (Maldonado-Torres, 2007, p. 138)

Maldonado-Torres (2007) ao desenvolver a teorização em torno do ego conquiro se vale das contribuições de Joshua Goldstein e menciona que a conquista é uma extensão da violação e exploração das mulheres em tempo de guerra, o que atribui à relação entre três pontos fundamentais que são a sexualidade masculina como causa da agressão, a feminização dos inimigos como dominação simbólica e a dependência da exploração do trabalho das mulheres, segundo ele, esses pontos se fundem e se naturalizam com a ideia de uma suposta inferioridade intrínseca dos sujeitos de cor e na ideia de raça que emerge e se propaga a partir da colonização das Américas. Pode-se dizer que o ego conquiro é o sinônimo dessa ética/não ética de guerra.

A violação sexual, objetificação e destruição dos corpos femininos são lugar comum na lógica da conquista e dominação de povos sobre outros povos. A respeito disso, comentam Saffioti e Almeida (1995) acerca das técnicas de dominação utilizadas pelos sérvios contra as muçulmanas na antiga Bósnia-Herzegovina10, durante o conflito armado que ocorreu nos Balcãs entre 1992 e 1995. Na ocasião as mulheres da Bósnia foram submetidas a estupros em série, com o intuito de viabilizar a reprodução forçada de crianças e a concretização de um plano de varredura étnica através da miscigenação. Conforme explica Peres (2011), essas mulheres eram violadas nas casas, nas vilas, nas cidades, nos campos de detenção e concentração, e em campos de estupro. Ou seja, a violação, nesse caso, foi estruturada, havia um planejamento com estratégia de execução e um objetivo final estabelecido claramente (varredura étnica) a partir do estabelecimento de campos destinados ao estupro, utilizado como arma de guerra:

Nos campos de estupro, geralmente escolas, armazéns, ginásios, hotéis, as mulheres - principalmente as bosniaquinhas (muçulmanas bósnias) - eram obrigadas a ter relações sexuais com mais de um soldado e várias vezes. Algumas ficavam presas durante meses até engravidarem e não poderem mais abortar. Em termos numéricos, calcula-se que cerca de vinte mil mulheres muçulmanas e croatas foram estupradas durante a guerra. Controle de mentes, controle de corpos, controle da descendência - que é patrilinear, no caso da Bósnia - e do território eram os objetivos daqueles que faziam a guerra. (Peres, 2011, p. 119)

Saffioti e Almeida (1995) recordam que à época eram transmitidas cenas nos meios de comunicação com imagens de berçários repletos de crianças frutos da estratégia militar comentada, bem como a posição da Igreja Católica no sentido de continuar condenando o aborto mesmo nessa situação e o quanto instituições como essa auxiliam na manutenção da supremacia masculina ao professar que o fruto da violação constitui desígnio biológico e “vontade de Deus”. Este é um exemplo do que este “ego de conquista” é capaz de realizar, mas trata-se de uma técnica de exercício de poder e dominação utilizada há muito na história da humanidade, pois “as atrocidades perpetradas por sérvios contra muçulmanas na Bósnia-Herzegovina não constituem nenhuma novidade. A história mostra que, em todas as guerras, o estupro transforma-se em uma arma para vilipendiar o inimigo.” 11 (Saffioti & Almeida, 1995, p. 4).

No espaço de colonização latino-americano as estratégias referidas não foram empregadas de maneira diferente, foram impostas às mulheres racializadas por esse estado de coisas que se implantou no Brasil, com dois aspectos a considerar: a submissão dos conquistados e a miscigenação como possibilidade de ampliar a colonização das “novas terras conquistadas” e de outra banda a “missão civilizatória colonial” a qual, segundo Lugones (2014) tratava-se de um embuste para explorar os povos dominados através do acesso ilimitado aos corpos das pessoas, a fim de explorálas sexualmente, explorar seu trabalho, controlar a reprodução e empreender terror sistemático ao praticar atos como alimentar cães com pessoas vivas e fazer chapéus com as vaginas de mulheres indígenas brutalmente assassinadas.

Lugones (2014) refere-se ainda que os colonizadores, a partir da “missão civilizatória”, não só introduziram a dicotomia de gênero de concepção europeia entre os povos colonizados (ainda que não buscassem de fato “torná-los” humanos, no sentido de tratá-los como humanos) como destruíram as formas comunais de relacionamento entre os povos originários, o que rompeu os laços de colaboração entre homens e mulheres colonizados. Isso passou a produzir uma espécie de indiferença por parte dos homens colonizados em relação às mulheres colonizadas, e possibilitou a hierarquização entre estes, bem como a desumanização das mulheres perante esses homens também desumanizados pelos colonizadores12.

O rompimento desses laços, bem como a produção dessa indiferença dos homens colonizados para com as mulheres colonizadas, resultou em um comportamento análogo ao do colonizador, um comportamento exploratório, violento e que reduz as mulheres à categoria de não humanas, de objetos, passíveis de “utilização” e “destruição”. Nesse sentido, as violações produzidas pelo ego conquiro, pela ética/não ética de guerra, perpetuaram-se até os dias atuais por meio da colonialidade do poder/ser/ gênero, de maneira que tal situação pode ser apontada como fator de contribuição para a atual realidade das mulheres13 brasileiras.

Considerando o percurso teórico estabelecido entre as noções de colonialidade, ego conquiro, ética/não ética de guerra e violência contra as mulheres, partindo-se da noção de que o feminicídio é o ponto culminante da prática reiterada de uma violência sistemática em relação aos corpos e subjetividades femininas, cumpre analisar o perfil do feminicídio no país, o que se pretende no tópico a seguir.

2. VIOLÊNCIA(S) CONTRA MULHER(ES): A ÉTICA DE GUERRA APLICADA SOBRE OS CORPOS FEMININOS BRASILEIROS NA ATUALIDADE E O PERFIL DO FEMINICÍDIO NO PAÍS

O sistema colonial de gênero introduzido pelos europeus oportunizou que se consolidasse na América Latina/Brasil a estrutura patriarcal que permeia a sociedade, a cultura e as instituições nacionais de modo geral. Pode se dizer que:

El término es muy controvertido y su significado es una cuestión incómoda. “Patriarcado” se refiere a una forma de poder político, pero si bien los teóricos políticos emplean mucho tiempo discutiendo la legitimidad y la justificación de las formas del poder político, la forma patriarcal ha sido, completamente ignorada, en siglo XX. (Pateman, 1995, p. 9)

A sujeição à essa estrutura está intimamente relacionada com o que refere Lugones quando afirma que el colonizador blanco construyó una fuerza interna en las tribus cooptando a los hombres colonizados a ocupar roles patriarcales.” (Lugones, 2008, p. 90). Ao modificar a estrutura interna das relações entre os sujeitos colonizados, a mulher colonizada passa à posição de dominada e, a ética/não ética de guerra se tornam lugar comum na afirmação desse poder de dominação. O sistema colonial de gênero não só submete os homens colonizados à lógica de violação, mas também os torna violadores na medida em que estes buscam restabelecer a “virilidade relativizada” pelo colonizador ao empreender a submissão das mulheres e o faz por meio da ética/não ética de guerra (violações e morte), de seu silenciamento na condição de seres políticos capazes de fazer parte dos processos decisórios em busca do bem comum e seu exílio nos espaços privados. A esse respeito, verifica-se que:

[…] junto a esta hiperinflación de la posición masculina en la aldea, ocurre también la emasculación de esos mismos hombres en el frente blanco, que los somete a estrés y les muestra la relatividad de su posición masculina al sujetarlos a dominio soberano del colonizador. Este proceso es violentogénico, pues oprime aquí y empodera en la aldea, obligando a reproducir y a exhibir la capacidad de control inherente a la posición de sujeto masculina en el único mundo ahora posible, para restaurar la virilidad perjudicada en el frente externo. Esto vale para todo el universo de masculinidad racializada, expulsada a la condición de no-blancura por el ordenamiento de la colonialidad. (Segato, 2010, p. 18)

Nesse sentido, a substituição do sistema de gênero pré-colonial pelo colonial proporcionou o confinamento doméstico das mulheres e isso gerou uma quebra em seu fazer político, o que resulta e pode explicar, de certa forma, a baixa representatividade política em instâncias legislativas e executivas na atualidade. Perceba-se que no Brasil, em 2009, foram definidos percentuais/cotas para mulheres na composição/ candidatura dos partidos políticos14, medida da qual se depreende esse esvaziamento da presença feminina nesses espaços. Segato (2010) aponta os efeitos danosos do rompimento dos vínculos entre as mulheres a partir das imposições do sistema de gênero colonial:

Los vínculos exclusivos entre las mujeres, que orientaban a la reciprocidad y a la colaboración solidaria tanto ritual como en las faenas productivas y reproductivas, se ven dilacerados en el proceso del encapsulamiento de la domesticidad como “vida privada”. Esto significa, para el espacio doméstico y quienes lo habitan, nada más y nada menos que un desmoronamiento de su valor y munición política, es decir, de su capacidad de participación en las decisiones que afectan a toda la colectividad. Las consecuencias de esta ruptura de los vínculos entre las mujeres y del fin de las alianzas políticas que ellos permiten y propician para el frente femenino fueron literalmente fatales para su seguridad, pues se hicieron progresivamente más vulnerables a la violencia masculina, a su vez potenciada por el estrés causado por la presión sobre ellos del mundo exterior. (p. 18)

Esse encapsulamento na vida doméstica, denunciado por Segato, produziu efeitos devastadores no que se refere à violência imposta para seus habitantes, basta verificar os níveis atuais de violência doméstica registrados no país e o aparato legal para a sua contenção. Nesse sentido:

Así como las características del crimen de genocidio son, por su racionalidad y sistematicidad, originarias de los tiempos modernos, los feminicidios, como prácticas casi maquinales de extermino de las mujeres son también una invención moderna. Es la barbarie de la colonial modernidad mencionada anteriormente. Su impunidad, como he tentado argumentar en otro lugar, se encuentra vinculada a la privatización del espacio doméstico, como espacio residual, no incluido en la esfera de las cuestiones mayores, consideradas de interés público general. (Segato, 2010, p. 19)

Cumpre destacar que, atualmente, ainda que muitas mulheres tenham ascendido em termos de escolarização, acesso ao mercado de trabalho e uma relativa independência financeira, essa não é a realidade de muitas, e quando o é, resta ainda a sombra dos séculos de reclusão ao espaço doméstico, de submissão às crenças masculinas acerca de poder e dominação, ou seja, as mulheres morrem por submeter-se à lógica patriarcal, assoladas pela constituição de uma subjetividade falocêntrica no contexto brasileiro, mantida pela colonialidade, ou morrem por desafiar essa mesma lógica. De acordo com Segato (2006):

Dentro de la teoría del feminicidio, el impulso de odio con relación a la mujer se explicó como consecuencia de la infracción femenina a las dos leyes del patriarcado: la norma del control o posesión sobre el cuerpo femenino y la norma de la superioridad masculina. Según estos dos principios, inspiradores de una variedad de análisis de corte feminista de crímenes contra las mujeres, la reacción de odio se desata cuando la mujer ejerce autonomía en el uso de su cuerpo desacatando reglas de fidelidad o de celibato - la célebre categoría de “crímenes contra la honra” masculina -, o cuando la mujer accede aposiciones de autoridad o poder económico o político tradicionalmente ocupadas por hombres, desafiando el delicado equilibrio asimétrico. En estos casos, los análisis indican que la respuesta puede ser la agresión y su resultado la muerte. La intencionalidad de matar o simplemente herir o hacer sufrir no define diferencias: en esta perspectiva, a veces el feminicidio es un resultado no deliberadamente buscado por el agresor. En este sentido, los crímenes del patriarcado o feminicidios son, claramente, crímenes de poder, es decir, crímenes cuja dupla función es, en este modelo, simultáneamente, la retención o manutención, y la reproducción del poder. (p. 4, grifo da autora)

Assim, os pontos de contato entre a ética/não ética de guerra e a atual situação da sociedade feminicida/genocida estabelecida no país perpassam pela colonialidade do poder/gênero/ser, pela perpetuação de práticas violadoras de dominação que foram “naturalizadas” nas relações entre homens e mulheres, pelas desigualdades de poder mantidas pela lógica patriarcal e concepções que reduzem as mulheres a objetos/propriedade acessíveis aos homens para que decidam sobre a integridade de seus corpos, sua vida ou morte (conduta característica de períodos de guerra).

Evidencia-se o asseverado até o momento a partir da análise do perfil dos feminicídios15 ocorridos no país. Em pesquisa realizada em 2015 pela Secretaria de Reforma do Judiciário, vinculada ao Ministério da Justiça, foram analisados 34 processos judiciais de comarcas situadas na Bahia, no Mato Grosso, em Minas Gerais, no Pará, no Paraná, no município de Santo André e na região metropolitana de São Paulo. Os processos versavam sobre o assassinato de mulheres e o intuito era verificar as circunstâncias e causas das mortes. Dessa forma, foi identificado que:

Na maior parte do material analisado, alegações relativas a ciúmes ou sentimento de posse em relação à vítima e inconformismo com o término do relacionamento apareceram nos processos. “Se não for minha, não vai ser de mais ninguém” é uma frase que aparece em mais de um processo, atribuída ao autor do crime, e que exprime a ideia corriqueira de que a vontade da mulher de se separar deve sucumbir ao desejo do namorado, companheiro ou marido de manter o relacionamento. Não bastante, constata-se, nos discursos dos autores dos crimes, a expectativa de fidelidade dessa mulher, mesmo após a separação, já que o envolvimento posterior da mulher com outra pessoa foi apontado como motivo do crime. (Machado, 2015, pp. 43-44, grifo da autora)

Observe-se no estudo apontado aspectos como: a inconformidade do homem com a decisão de romper o relacionamento; a supressão do direito de escolha da mulher; o sentimento de posse e o governo da vida; o fato de os sujeitos apontados estabelecerem uma vigilância para que as ex-companheiras/namoradas/esposas não se envolvessem em novos relacionamentos. Tal demonstra a necessidade de exercício de poder sobre as vontades alheias. Saffioti (1987) explica que:

Quer quando o homem desfruta de uma posição de poder no mundo do trabalho em relação à mulher, quer quando ocupa a função de marido, companheiro, namorado, cabe-lhe, segundo a ideologia dominante, a função de caçador. Deve perseguir o objeto de seu desejo, da mesma forma que o caçador persegue o animal que deseja matar. Para o poderoso macho importa, em primeiro lugar, seu próprio desejo. Comporta-se, pois, como sujeito desejante em busca de sua presa. Este é o objeto de seu desejo. Para o macho não importa que a mulher objeto de seu desejo não seja sujeito desejante. Basta que consinta em ser usada enquanto objeto. (p. 18)

Dessas considerações se depreende a ocorrência de um tipo específico de feminicídio, qual seja o assim denominado feminicídio íntimo16, espécie que pressupõe proximidade entre a mulher e seu assassino, em que o resultado morte é desfecho muitas vezes de uma rotina de violência doméstica e relacionamentos abusivos, nos quais o exercício de poder é a constante.

À semelhança de outros países da América Latina, o problema do feminicídio no Brasil está estreitamente ligado à violência conjugal: dentre as mulheres assassinadas, muitas morreram pela ação de pessoas com quem mantinham ou mantiveram um relacionamento afetivo. (Machado, 2015, p. 13)

Corroborando com essa percepção, Machado (2015) cita estudo realizado por Waiselfisz (2012), no qual identificou que os assassinatos de mulheres ocorrem na residência (40 %, enquanto apenas 15 % dos homens são mortos em casa) e com emprego de objetos penetrantes, cortantes, contundentes ou sufocação (menos de 50 % de mulheres mortas com arma de fogo em contraponto com 70 % em relação aos homens), o que pressupõe contato físico ou proximidade. “Os dados disponíveis permitem inferir que a violência doméstica e conjugal é central para a caracterização desse fenômeno e que a morte é, muitas vezes, o desfecho de histórias marcadas pela violência.” (Machado, 2015, p. 13).

Afirma-se, portanto, a prevalência do feminicídio íntimo17 no Brasil, diferentemente, por exemplo, do que ocorre no México, país marcado pelo “feminicídio sexual sistêmico organizado” que envolve sequestro, tortura, violação e descarte do cadáver, praticado por redes organizadas, com métodos específicos, de forma sistemática. Nesse tipo específico, recorrente no México, o ódio pelas vítimas não é um fator predominante, embora haja a misoginia e o desprezo pela mulher de forma generalizada naquela região, contudo, as vítimas são produto secundário de um ritual de pertencimento a grupos de homens membros de organizações criminosas, cujo principal propósito não é só exercer poder sobre os corpos femininos, mas sim reafirmar poder perante outros homens na organização criminosa18 (Segato, 2005; Marques, 2015).

3. A VISIBILIDADE E A INVISIBILIDADE DO FEMINICÍDIO: COMPILAÇÃO DE DADOS EM BANCOS OFICIAIS

A categoria feminicídio ganhou visibilidade no Brasil a partir da promulgação da Lei do Feminicídio em 2015 (Lei 13.104/2015), sua proposição alterou o art. 121 do Código Penal (Decreto-Lei 2.848/1940), para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, bem como para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos, no artigo 1º da Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990). A partir de então, a discussão política sobre a questão se impôs tanto na mídia quanto nos espaços acadêmicos, contudo, até o momento ainda não foi suficiente para impactar nem na redução dos crimes e nem no que diz respeito à compilação de dados, e gerou, de certa forma, uma invisibilidade no momento dos registros dos óbitos.

Waiselfisz (2015) realizou um levantamento em 2015, o qual foi compilado sob o título “Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil”. O documento é uma importante fonte de dados e proporciona uma série de dados a discutir e interpretar sobre o tema. Em suas primeiras considerações, o autor informa que seu mapeamento é construído a partir do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM), da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS), do Ministério da Saúde (MS). Nesse sentido, explica que:

Pela legislação vigente no Brasil (Lei nº 6.015, de 31/12/1973, com as alterações introduzidas pela Lei nº 6.216, de 30/06/1975), nenhum sepultamento pode ser realizado sem a Certidão de Óbito correspondente, lavrada no Cartório de Registro Civil, à vista da Declaração de Óbito (DO). No caso de morte por causas naturais, a DO é preenchida pelo profissional de saúde (médico) que fez atendimento à vítima ou, quando necessário, pelos Serviços de Verificação de Óbitos (SVO). No caso de morte por causas não naturais ou externas (suicídios, homicídios, acidentes, etc.), que constitui nosso foco, em localidades que contam com Instituto Médico Legal (IML), a DO deve ser preenchida, obrigatoriamente, por médico legista do IML e, em localidades sem IML, por médico investido pela autoridade judicial ou policial, na função de perito legista eventual (ad hoc). As Declarações de Óbito são coletadas pelas Secretarias Municipais de Saúde, enviadas às Secretarias Estaduais e centralizadas posteriormente no SIM/ MS. (p. 8, grifo nosso)

Dessa forma, é possível diferenciar claramente as mortes causadas por fatores naturais das mortes provocadas, quer por acidentes, suicídios, homicídios, entre outras causas. Note-se que a linguagem utilizada é “homicídios de mulheres”, pois a legislação brasileira não criou um tipo penal específico para o assassinato de mulheres pela condição de gênero, apenas inseriu a questão como agravante do crime de homicídio no art. 121 do Código Penal. Nessa busca por informações, outro instrumento importante provém do Sistema Único de Saúde (SUS) que conta com o chamado Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), implantado em 2009, cuja finalidade é notificar situações de suspeita e confirmação de violência contra a mulher, idosos, crianças e adolescentes de forma universal, compulsória e contínua (Waiselfisz, 2015).

Embora o sistema de notificação tenha sido estabelecido em 2009 e a Lei do Feminicídio em 2015, a carência de informações permanece como fator de invisibilidade no mapeamento dos casos, a notificação ou subnotificação de violência reiterada, que muitas vezes culmina no resultado morte, faz com que se confunda a morte de mulheres por questões aleatórias, como acidentes e outras circunstâncias com as mortes causadas pela condição de gênero. Assim:

[...] as estatísticas sobre feminicídio no País são praticamente inexistentes. Mas a recente promulgação da Lei 13.104/2015, em março de 2015, a denominada Lei do Feminicídio, deverá incidir para que, em breve prazo, tenhamos uma fonte mínima de análise a partir da tipificação dos boletins de ocorrência e dos inquéritos policiais, com todas as limitações que essas fontes possam apresentar. A lei estabelece que, quando o homicídio de mulher acontece por “razões de condição de sexo feminino”, deverá ser considerado crime hediondo, por atentar contra os valores basilares da sociedade, pelo que deve merecer maior reprovação por parte do Estado. A mesma lei considera que existem razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I. Violência doméstica e familiar; II. Menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Será impossível verificar esse segundo critério pela ausência quase absoluta de informação sobre o tema. Também não existe informação direta e abrangente sobre o primeiro dos critérios, mas nesse caso poderemos recorrer aos registros do Sinan, do ano de 2013, para contar com um proxy que permita estimar o quantitativo de feminicídios perpetrados por um familiar ou um parceiro da vítima, o que nos daria estimadores para o quesito violência doméstica e familiar. E isso porque o Sinan registra exatamente o mesmo tipo de violência que poderia ter levado à morte da mulher, o que posteriormente seria registrado pelo SIM sob as rubricas X85 a Y09: agressão intencional que levou à morte da vítima. (Waiselfisz, 2015, p. 67)

Até o momento, a expectativa de Waiselfisz, de pesquisadoras, de pesquisadores e da sociedade ainda não se concretizou, pois a estrutura estatal ainda carece de discussões acerca dos significados do feminicídio, de suas motivações, da perpetuação da ética/não ética de guerra, do ego conquiro e da colonialidade nas relações e desigualdade de poder entre homens e mulheres. Em 2016 foi publicada uma cartilha governamental19 com o intuito de auxiliar nessas discussões, a fim de capacitar a Polícia para a investigação, a Perícia Criminal para a coleta de provas, a atuação do Ministério Público com relação às teses de acusação e o Poder Judiciário com relação à tramitação do processo. Ou seja, o documento tem um caráter pedagógico no sentido de chamar a atenção dessas instituições para lançar um olhar diferenciado em todas as etapas de apuração do crime contra a vida praticado contra mulheres por razões de gênero.

Contudo, não há qualquer informação estatal sobre a utilização de tal material para uso efetivo das instituições apontadas e nem números em bancos de dados que possibilitem avaliar o emprego e resultados vinculados à referida cartilha institucional. Nesse sentido, há uma preocupação fundamental no que tange à visibilidade em relação a esses crimes, pois os corpos de trabalho das instituições estatais são formados por pessoas, que também são atravessadas pelos discursos20 orientados pela colonialidade do poder/gênero/ser e, portanto constituídas também na exposição à lógica ego conquiro e da ética/não ética de guerra, e é necessário muito mais do que somente dizer como olhar para o assassinato de mulheres por razões de gênero.

Nota-se a necessidade de rediscutir as desigualdades de poder entre homens e mulheres, a perpetuação do patriarcado, rediscutir o ego conquiro e a ética/não ética de guerra, no entanto, na prática o que se percebe são modificações legislativas sem o acompanhamento necessário do debate ampliado junto às instituições estatais e sociedade. Assim, ao considerar que na atualidade essa tentativa de coibir o feminicídio tem partido apenas da disposição legal colocada pela Lei 13.104/2015, percebe-se que há muitos desafios para efetivar a proposição da legislação brasileira e reduzir as mortes por condições de gênero em face da colonialidade do Direito, o que se discute a seguir.

4. COLONIALIDADE DO DIREITO E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA O QUADRO ATUAL DA VIOLÊNCIA NO PAÍS

A colonialidade do Direito é, sem dúvida, um fator contributivo para a manutenção do patriarcado no Brasil, e para a manutenção do ego conquiro e da ética/não ética de guerra neste país. A legislação brasileira tem a marca da colonialidade viva e gritante, pois foi construída a partir de influências teóricas europeias e norte-americanas em totalidade ou quase totalidade. Da mesma forma que se afirma a colonialidade presente nas ciências naturais21, é possível também afirmar sua presença na ciência jurídica, a qual possui um histórico incontestável de subalternização feminina em toda a sua trajetória. As ciências naturais foram responsáveis pela manutenção da subalternização feminina na medida em que produziram identidades a partir de conceitos biológicos de diferenciação pelos sexos:

[...] até o século XVIII, o pensamento filosófico e médico da Europa acreditava na existência de um só sexo, o masculino. A mulher era o seu representante inferior, sendo descrita como um homem invertido. Havia uma relação da continuidade e hierarquização determinada pelo grau de perfeição metafísica. O homem era portador do calor vital que o fazia evoluir para a forma superior de macho com a exteriorização de seus órgãos genitais e, na mulher, a ausência desse calor impossibilitava tal exteriorização, determinando a posição de inferioridade. Haveria, então, um só corpo, uma só carne, na qual se aplicavam distintas marcas sociais ou inscrições culturais, conforme seu nível de perfeição. (Costa citado por Fernandes, 2009, p. 1053)

Não é possível precisar a matriz da subalternização22 feminina na história da humanidade, mas é possível identificar pontos indiscutíveis de reforçamento dessa subalternização, além de ser visível a manutenção e a expansão do patriarcado por séculos nas sociedades colonizadoras e sua disseminação aos colonizados. Mesmo com o avanço das ciências, estas permaneceram sendo instrumentos de hierarquização. Eis que no final do século XVIII essa concepção muda, deixa de existir a noção de mesmo sexo hierarquizado e começa a emergir a noção de que havia dois sexos diferentes (dimorfismo), com o estabelecimento de um modelo científico para referirse aos sexos (Laqueur, 1994).

Porém, tal construção não modificou o status social das mulheres, posto que o feminino passou da condição de “mesmo sexo” hierarquizado em posição inferior ao masculino, para a condição de gênero e sexo radicalmente diferenciado, mas ainda hierarquizado em posição inferior ao masculino23. “Os discursos científicos sobre as diferenças biológicas entre homens e mulheres, construídos nos séculos XVIII e XIX, foram antecedidos pela rediscussão do novo estatuto social da mulher e do homem.” (Bento, 2010, p. 9).

Quanto à ciência jurídica, historicamente, sem sombra de dúvidas serviu para a manutenção dessa subalternização (Marques, 2015b), sua raiz patrimonialista remonta aos primeiros regulamentos que tinham como objeto animais, escravos e mulheres. Com referência a isso, menciona-se a Lei das XII tábuas, criada por volta de 450 a.C, legislação que compunha o núcleo da legislação romana (uma das influências do direito brasileiro), e que, entre suas disposições mencionava “coisas” que poderiam ser apropriadas pelo usus, através da prescrição aquisitiva, assim nominada como usucapião.

[...] V - As terras serão adquiridas por Usucapião depois de dois anos de posse; as coisas móveis depois de um ano. VI - A mulher que residiu durante um ano em casa de um homem, como se fora sua esposa, é adquirida por esse homem e cai sob o seu poder (manus), salvo se se ausentar da casa por três noites (trinoctium). (Segurado, 2002, p. 181).

Se apenas se utilizar o recurso da interpretação de texto já é possível observar a figura da mulher equipara a “coisa móvel”, ou seja, passível de apropriação pelo homem e, assim, como coisa apropriada, dela pode-se fazer o que bem entender, se considerarmos todos os significados que se atribui à palavra “coisa” 24. Ao trazer o recorte para o contexto brasileiro, inúmeras normas legitimaram a violência institucionalizada com relação às mulheres, restrição ao exercício de direitos políticos, as excludentes de punibilidade e os benefícios previstos na matéria penal para caso violadores sexuais25 casassem com suas vítimas, as atenuantes para crimes praticados em “legítima defesa da honra” que visavam “lavar a honra dos homens com sangue” 26 nos casos de adultério ou desafio de sua autoridade.

Também a linguagem jurídica estabelece conceitos como “mulher honesta”, a necessidade de autorização marital para exercer atividade profissional, o estabelecimento de “direitos e deveres conjugais”, as antigas redações que dispunham acerca do pátrio poder (que define o homem como “chefe de família”).

As disposições destacadas foram revogadas, mas ainda na atualidade, permanecem pendentes temas como a criminalização do aborto, a obrigatoriedade de consentimento do cônjuge para esterilização voluntária. Assim, a ciência jurídica, o Direito, as legislações sempre mantiveram várias medidas que violentaram/violentam a autonomia e o direito de escolha das mulheres na história do Direito. Paralelo a isso, a linguagem utilizada na elaboração das normas raramente prevê o termo “pessoa” ou “mulheres”, mas mantém o masculino com o gênero primordial e medida de todas as coisas, basta uma breve leitura dos textos legais e das obras referentes a eles (exemplos como o agente, o proprietário, o locador, o locatário, o empresário, o usufrutuário, o trabalhador, o homem médio, entre outros exemplos). A respeito disso, Alfaro (2014) discorre que:

[...], un aspecto que se expresa ese tributo androcrático del modo de ser del derecho en las sociedades occidentales capitalistas es el uso de un lenguaje sexista por cuanto, si - como señala Maturana - somos por el lenguaje y el lenguajear y renacemos y nos constituimos en el lenguaje, entonces, el lenguaje sexista no sólo revela una sociedad patriarcal y un modo androcráctico del derecho, sino que, a la vez, lo constituye y refuerza como tal. Así, en la mayoría de los textos de instrumentos normativos, sean del ordenamiento jurídico internacional o de los ordenamientos jurídicos nacionales, el uso de los términos masculinos no deja duda de que detrás está la imagen del varón como modelo de sujeto del derecho (pp. 98-99).

As considerações apontadas servem para alertar sobre o papel que o direito permeado pela colonialidade desempenhou e desempenha no ordenamento jurídico, pois traz a marca de uma sociedade permeada pela colonialidade e por desigualdades de poder entre gêneros. Isso serve para legitimar a ética/não ética de guerra e suas concepções permanecem em circulação na sociedade por meio das representações sociais27 que estabelecem a partir dessas legislações e se perpetuam como lugar comum no fazer da sociedade. O advento do sistema de proteção feminino (Lei 11.340/2006 e Lei 13.104/2015) não foi suficiente para modificar a situação “de guerra e genocídio” em que vivem as mulheres no Brasil. Saffioti (1987) coloca de forma contundente que:

Estruturas de dominação não se transformam meramente através da legislação. Esta é importante na medida em que permite a qualquer cidadão prejudicado a recorrer à justiça. Todavia, enquanto perdurarem discriminações legitimadas pela ideologia dominante, especialmente contra a mulher, os próprios agentes da justiça tenderão a interpretar as ocorrências que devem julgar à luz do sistema de ideias justificador do presente estado de coisas. O poder está concentrado em mãos masculinas há milênios. E os homens temem perder privilégios que asseguram a sua supremacia sobre as mulheres. (pp. 15-16)

Nesse sentido, Saffioti (1987) discute algo que é perceptível no dia a dia da busca por justiça, no que se refere à violência doméstica, estupro28 e morte, há inúmeros relatos de mulheres (ou familiares no caso do feminicídio consumado) que ao buscar auxílio junto às autoridades policiais e judiciário, têm suas demandas relativizadas e acabam revitimizadas, tanto por homens quanto por mulheres que têm sua subjetividade constituída a partir da cultura machista de nossa sociedade29. Além disso, há de se considerar que a produção legislativa com relação à Lei 13.104 (Lei do Feminicídio) foi de certa forma esvaziada da discussão política a respeito das assimetrias de poder, da colonialidade e dos demais fatores apontados anteriormente, pois ao que parece:

[...] apresenta-se sim como mera formalidade cumprida a evitar condenações internacionais devido a não produção de norma sobre a matéria. A norma sequer estabelece um tipo específico, conta com uma exposição de motivos ou prevê outras medidas mitigatórias que importem em modificação da estrutura vigente, prima tão somente pelo agravamento de pena do crime já tipificado. (Marques, 2015a, p. 160 )

Portanto, há longo caminho a percorrer antes que finalmente se possa contar com os efeitos pretendidos por essas normas, uma vez que sem uma rediscussão do estatuto social acerca das posições de poder e da ética/não ética de guerra não será possível descolonizar a sociedade e nem a ciência jurídica nos aspectos necessários, ao considerar a urgência de analisar as condições de possibilidade que trouxeram essas práticas violentas até os dias atuais.

Percebe-se que o Direito foi instituído para manter a ordem e as estruturas jurídicas do patriarcado, o controle jurídico da dominação das mulheres se perpetuou por anos, se refletiu tanto no plano jurídico quanto social. Nesse caminho os movimentos de reivindicação de mulheres e a crescente ampliação dos Direitos Humanos forçaram o Direito a oferecer respostas, no entanto, neste processo a ciência jurídica não se humanizou. (Marques, 2015a, p. 161)

Considerando a historicidade do Direito como instrumento de manutenção das relações de dominação, percebe-se que mesmo quando visa corrigir esse protagonismo no sustentáculo do patriarcado, se é que visa realmente, seu discurso não tem o condão de contribuir para a alteração das estruturas opressoras que possibilitam a violência contra as mulheres. O feminicídio é “[...] subtipo de genocídio, ou seja, crime de guerra, que ocorre naturalizadamente em “tempos de paz”, porque ora, não vivemos em “tempos de paz” na América Latina, nem tão pouco no Brasil [...]”. (Marques, 2015a, p. 154).

É neste ponto que se coloca, talvez, um dos maiores desafios do direito com relação ao feminicídio e a violência generalizada contra as mulheres, na atualidade - trata-se da tarefa de descolonizar seus discursos30, descolonizar suas práticas, descolonizar a ciência jurídica em si31, e trazer a discussão sobre as assimetrias de poder tanto para dentro dos espaços universitários quanto para além dos muros da academia, e ampliar a discussão no meio social quanto ao que se pode perceber como “[...] o único caminho para uma nova cultura dos direitos que atualize o princípio de esperança inerente a toda ação humana consciente do mundo em que vive e da posição que nele ocupa [...]” (Flores, 2009, p. 117). Assim, considera-se o quanto o ego conquiro e a ética/ não ética de guerra ainda estão presentes no Brasil, a fim de estabelecer diagnóstico e formas de intervenção para cessar o holocausto feminino no Brasil.

CONCLUSÕES

O presente trabalho buscou avaliar em que medida a colonialidade, no que diz respeito à ética/não ética de guerra, contribui para que normas voltadas para a redução da violência contra as mulheres no país tenham pouco ou nenhum êxito com relação aos objetivos que se propõe.

Dessa forma, a partir das análises empreendidas sob as lentes dos Estudos Decoloniais e o apoio de outros aportes teóricos, nota-se que as práticas violentas se instituíram -ao menos como um dos fatores tributários para situação atual- com a dominação colonial no Brasil, com a destruição das relações políticas e sociais comunais dos povos originários e os laços de colaboração entre mulheres pelo seu exílio ao espaço doméstico, viabilizados pela instituição do patriarcado.

Identifica-se que a lógica ego conquiro aliada à ética/não-ética de guerra, assim entendida como técnica de guerra e dominação, permanece vigente por força da colonialidade e se aplica aos corpos femininos no que tange à sua expressão máxima, qual seja o feminicídio, assim entendido como ponto culminante de violência reiterada à mulher, sob o perfil de feminicídio íntimo, ao considerar o alto índice de mulheres assassinadas por pessoas próximas como ex-cônjuges/companheiros/namorados, em sua maioria dentro de suas residências. No entanto, alertse para a dificuldade na compilação de dados em bancos de dados oficiais o que proporciona o paradoxo visibilidade/invisibilidade dos feminicídios ocorridos no país, bem como a necessidade de modificação nas práticas institucionais que envolvem o sistema de investigação, perícia, Ministério Público e Judiciário a fim de dar cumprimento às proposições da Lei 13.104/2015.

Por fim, aponta-se para os desafios da legislação brasileira em face da colonialidade do Direito, posto que por incontáveis séculos se mantém como instrumento de manutenção do patriarcado, legitima as desigualdades de poder entre os gêneros e cercea a liberdade das mulheres em diversos aspectos.

A ciência jurídica tem legitimado por meio dos tempos a ética/não ética de guerra em vários momentos, no contexto brasileiro cita-se em especial a previsão de extinção de punibilidade para o estuprador por meio do casamento com a vítima, regra revogada apenas em 2005, bem como as teses jurídicas e atenuantes com relação ao assassinato de mulheres por cônjuges e ex-cônjuges/namorados/companheiros sob o pretexto da legítima defesa da honra.

É indispensável, no sentido de produzir mudanças sociais, que se propicie a discussão das desigualdades de poder entre os gêneros no âmbito do direito (tanto no aspecto acadêmico, nas faculdades de direito, nas universidades, bem como com a ampliação da discussão para o âmbito da sociedade) e a busca da descolonização da ciência jurídica a fim de que efetivamente se obtenha a exclusão da ética/não ética de guerra das relações sociais e a redução do holocausto feminino no Brasil.

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* Texto originalmente apresentado através de comunicação oral no XXVII Congresso Nacional do Conpendi, Porto Alegre - RS.

1 De acordo com dados veiculados pela imprensa oficial (Empresa Brasil de Comunicações), no portal Agência Brasil, em agosto de 2017.

2“Como se sabe, a evolução do reconhecimento dos Direitos Humanos e Fundamentais está voltada, principalmente, a estabelecer os traços iniciais do longo caminho percorrido pela luta por reconhecimento, identidade, visibilidade e emancipação das pessoas e grupos que passaram e ainda passam por situações de exclusão de sua própria dignidade. Não é equivocado se afirmar que esses direitos formam, atualmente, o cerne dos sistemas jurídicos democrático-constitucionais e do discurso político e social, especialmente utilizados para resolver conflitos internos ao próprio Estado ou ainda conflitos de cunho internacional. Isso porque a pessoa humana é um valor a ser protegido pela ordem jurídica interna de Estados concretos e determinados, mas, ao mesmo tempo, se coloca como um valor supraestatal, merecedor de especial proteção no âmbito internacional, a tal ponto de ser reconhecido hoje como um processo de constitucionalização do Direito Internacional. Essa empreitada não pode prescindir de uma análise histórica, que aproxime as principais construções teóricas contextualizadas a seu tempo com a própria evolução da ordem estatal e da ordem jurídica que lhe dá consistência”. (Rossi, 2019, p. 211).

3“O filósofo crítico latino-americano, como concebe a Filosofia da Libertação, assume a responsabilidade de lutar pelo Outro; a vítima, a mulher oprimida do patriarcalismo, as gerações futuras aos que deixaremos uma Terra destruída, etc. Assim, todos os tipos de alteridade possível desde sua consciência ética situada; a de qualquer ser humanos com ‘sensibilidade’ ética que saiba indignar-se frente à injustiça que sofre algum Outro.” (Dussel, 2017, p. 3243).

4“La colonialidad, en consecuencia, es aún el modo más general de dominación en el mundo actual una vez que el colonialismo como orden político explícito fue destruido.” (Quijano, 1992, p. 440).

5“El pensamiento decolonial presupone desengancharse (epistémica y políticamente) de la red del conocimiento imperial (teo y ego políticamente establecido) y de la administración disciplinaria.” (Mignolo, 2010, p. 38).

6Categorias como diferença colonial, colonialidade das ciências, colonialidade do gênero, entre outras, que constituem as teorizações dos Estudos Decoloniais.

7“A cultura não é uma entidade alheia ou separada das estratégias de ação social; ao contrário, é uma resposta, uma reação à forma como se constituem e se desenvolvem as relações sociais, econômicas e políticas em um tempo e um espaço determinados.” (Flores, 2002, p. 12).

8Precisar as origens da marginalização feminina na história é praticamente impossível, pode-se apontar apenas alguns marcos importantes para sua perpetuação, pois pode ser identificada desde a antiguidade, nas matrizes do pensamento filosófico-ocidental, a partir da escrita dos textos bíblicos, pelo discurso dos teólogos da Idade Média, solidificando-se com a ideia de propriedade privada que tem como sustentáculo a família/sociedade patriarcal, a epistemologia científica predominantemente masculina apoiada pelo determinismo biológico (Gomes, 2012).

9O autor menciona como exemplo que os primeiros cristãos romanos eram contra a escravidão de outros seres humanos, no entanto, com o tempo essa lógica mudou, e aceitou-se a escravidão de povos inimigos/não cristãos, dominados pela força, bem como a violação das mulheres.

10O conflito armado na região da Bósnia e Herzegovina, atualmente independentes, ocorreu entre 1992 e 1995, e envolveu três grupos étnicos/religiosos: os sérvios cristãos ortodoxos, os croatas católicos romanos e os bósnios muçulmanos (Peres, 2011).

11No entanto, as autoras reforçam que, embora seja uma estratégia para dominação e humilhação dos homens, na intenção de, dentro de uma compreensão patriarcal de poder, “ofendê-los” a partir da violação das mulheres, o que ocorre é que quem sofre efetivamente com a violência, as gestações indesejadas, as lesões, os abalos psicológicos e as sequelas físicas são as mulheres. Só um pensamento eminentemente machista e sexista pode dar suporte a ideia descabida de que se pode ofender outro homem a partir da violação da mulher, pois nesse sentido pode-se imaginar que a mulher é utilizada como “objeto”, “instrumento” de humilhação dentro de uma noção de que ela seria “propriedade” ou “objeto” do homem ofendido.

12“[...] pessoas colonizadas tornaram-se machos e fêmeas. Machos tornaram-se não-humanos-por-nãohomens, e fêmeas colonizadas tornaram-se não humanas-por-não-mulheres. Consequentemente, fêmeas colonizadas nunca foram compreendidas como em falta por não serem como-homens, tendo sido convertidas em viragos. Homens colonizados não eram compreendidos como em falta por não serem como-mulheres. O que tem sido entendido como ‘feminização’ de ‘homens’ colonizados parece mais um gesto de humilhação, atribuindo a eles passividade sexual sob ameaça de estupro. Esta tensão entre hipersexualidade e passividade sexual define um dos domínios da sujeição masculina dos/as colonizados/as.” (Lugones, 2014, p. 937).

13Note-se, entretanto, que tal violência, violações e destruição dos corpos e da vida não se aplicam apenas aos corpos femininos no seu aspecto biológico, vinculado ao sexo biológico, mas a todos os corpos femininos, feminilizados ou dotados de feminilidade e tudo o que ela representa. Referese no sentido de incluir essa percepção também quando se trata de violação e morte de mulheres transexuais, cujos dados são de difícil acesso considerando a invisibilidade desse tipo de violência no país e a coleta equivocada de dados nos bancos de dados governamentais. Em geral, ao efetuar os registros, as autoridades e os serviços de saúde se atêm às informações de caráter biológico e os registros são efetuados como homicídio, sem a referência da violência de gênero.

14A Lei 9.504/1997 foi alterada pela Lei 12.034/2009 com o fim de modificar a redação do §4º do art. 10º, que incluiu a obrigatoriedade de preenchimento de 30 % (trinta por cento) e o máximo de 70 % (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo. Dessa forma, se é necessário garantir a presença femenina através de lei específica, embora seja um ganho, devido à possibilidade de concretização da participação por força de lei, demonstra, por outro lado, a falência social, exatamente por ser necessária a existência de lei que obrigue que se cumpra o que, obviamente, deveria ser naturalmente concretizado.

15Caputi & Russell (1990) caracterizam o feminicídio como o ápice/extremo de uma prática de terror continuada e antifeminina que inclui amplo espectro de abusos, os quais podem ser verbais ou físicos, exemplificados por: violação; tortura; escravidão sexual; prostituição e abuso sexual infantil intrafamiliar ou extrafamiliar; violência física ou emocional; assédio sexual por telefone, nas ruas, trabalho, no ambiente escolar/acadêmico; mutilações genitais, operações ginecológicas desnecessárias como histerectomia gratuita; heterossexualidade forçada, esterilização forçada e maternidade forçada em virtude da criminalização do aborto; psicocirurgia, negação de comida, cirurgias plásticas e outras mutilações realizadas em prol do embelezamento. Afirmam que sempre que estas formas de terrorismo, assim denominadas por elas, resultam em morte, podem ser categorizadas como feminicídio. Atualizando as formas de comunicação poderia ser acrescentado o assédio realizado através de e-mails e redes sociais, ação de assediar sexualmente efetuada por ‘hackers’ e ‘stalkers’ através de meios informáticos, bem como outros meios similares de comunicação.” (Marques, 2016, p. 114).

16 Atencio (2011) elenca outros tipos de feminicídio: a) feminicídio familiar, que é praticado por um homem com laços de parentesco; b) feminicídio infantil, que seria o assassinato de meninas praticado tanto por homens quanto mulheres que tenham relação de confiança com a criança; c) feminicídio por ocupações estigmatizadas seria aquele praticado contra mulheres que trabalham na noite, em bares e casas noturnas, como bailarinas, strippers, garçonetes e prostitutas; d) feminicídio sexual sistêmico desorganizado envolve sequestro, tortura, violação e descarte do cadáver, sendo que os assassinos podem ser conhecidos ou desconhecidos e matam de uma só vez e em período determinado; e) feminicídio sexual sistêmico organizado também envolve sequestro, tortura, violação e descarte do cadáver, porém é praticado por redes organizadas, com métodos específicos, de forma sistemática.

17“La violencia de pareja es una de las más graves manifestaciones de la violencia basada en género (VBG) que, a su vez, representa una consecuencia visible y tolerada de una cultura patriarcal.” (Coral-Díaz, 2012, pp. 23-24).

18“Quem domina a cena são os outros homens e não a vítima, cujo papel é ser consumida para satisfazer a demanda do grupo de pares. Os interlocutores privilegiados nessa cena são os iguais, sejam estes aliados, sejam competidores: os membros da frataria mafiosa, para garantir o pertencimento e celebrar seu pacto; os antagonistas, para exibir poder diante dos competidores nos negócios; as autoridades locais, as autoridades federais, os ativistas, os acadêmicos e jornalistas que ousem intrometer-se no sagrado domínio, os parentes subalternos — pais, irmãos, amigos — das vítimas. Essas exigências e formas de exibicionismo são características do regime patriarcal de uma ordem mafiosa.” (Segato, 2005, p. 273).

19A cartilha publicada pela Secretaria de Políticas para Mulheres é intitulada “Diretrizes Nacionais — Feminicídio: investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres”. Traz um arcabouço teórico conceitual sobre a categoria feminicídio. O documento é parte do projeto de implementação do protocolo Latino-Americano para a investigação das mortes violentas de mulheres por razão de gênero no Brasil (Brasil, 2016).

20“O discurso é um instrumento de persuasão que, por sua vez, é uma das formas de poder, ao passo que uma verdade é sempre veiculada por um discurso.” (Bragato & Damaceno, 2013, p. 321).

21A ciência moderna foi criada dentro da cultura europeia ocidental e carregou consigo seus valores e representações e, posteriormente, a própria ciência passou a reforçar esta cultura ao produzir pressupostos de verdade que colonizaram o resto do mundo e levaram consigo suas hierarquizações e dicotomias. O conhecimento científico é socialmente construído e a sua objetividade não implica em neutralidade (Santos, 2008; Marques, 2015).

22Conforme expressado, de difícil identificação, pois remotamente remonta às matrizes do pensamento filosófico ocidental e perpassa por mitos como o de Pandora, alguns filósofos gregos, o pensamento judaico-cristão (Chassot, 2004).

23“Nesse cenário, o sistema reprodutivo feminino constituía a base da função social da mulher e de suas características comportamentais, produzindo um ser mais frágil do ponto de vista físico, intelectual e emocional. Esse discurso impingiu à mulher a representação que a desqualifica enquanto pessoa e a subordina a uma matriz biológica e procriadora.” (Fernandes, 2009, p. 1055).

24 Lopes (1996) e Diniz (2012) comentam que a modalidade de usucapião ressaltada se tratava de espécie de matrimônio.

25A extinção de punibilidade para violadores sexuais por meio do casamento esteve em vigência no Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei 2.848/1940), em seu artigo 107, VII, e foi alterada apenas em 2005 com o advento da Lei 11.106/2005.

26Cite-se as teses jurídicas utilizadas para inocentar assassinos de mulheres, ensinadas nas faculdades de direito nos anos 70 do século XX, elaboradas e difundidas a partir do livro do jurista Evandro Lins e Silva (A defesa tem palavra), o qual utilizava como modelo didático para jovens advogados a defesa que preparou para Doca Street, assassino de Angela Diniz, caso emblemático de 1976. As estratégias partiam especificamente no sentido de desqualificar a vítima, de modo a convencer o júri à culpabilização da vítima e não do assassino. (Blay, 2003).

27Serge Moscovici (citado por Praça e Novaes, 2004) conceitua que a representação social reflete a cultura e a sociedade cujo sujeito está inserido, o que possibilita a compreensão do objeto social. Além disso, o autor chama de senso comum, crença, mito, já que é o resultado das relações interpessoais. (Moscovici citado por Strey, 1998).

28Em pesquisa realizada pelo instituto Datafolha, a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2016, foi pontuado que mais de 33 % da população brasileira considera a mulher culpada pelo estupro. A pesquisa mostrou que 42 % dos homens e 32 % das mulheres afirmam que “mulheres que se dão o respeito não são estupradas” (EBC, Agência Brasil, 2016). A pesquisa foi um retrato importante de como o machismo atua nas representações de homens e mulheres acerca do estupro no Brasil e chamou a atenção das autoridades para o tema.

29Relatos que envolvem a culpabilização das vítimas pela agressão são comuns como: “o que estava fazendo na rua a esta hora?”, “que roupa estava usando?”, “a ameaça não foi tão grave”, “tem mulher que apanha e não se separa do companheiro porque gosta de apanhar”, “pediu para levar”, “o marido/ companheiro é uma pessoa boa, trabalhadora, mas a mulher foi infiel, pediu para morrer”. São apenas algumas das expressões que se observa no meio social.

30“[...] as ciências descoloniais servem ao processo de descolonização, que começou no exato momento em que também se iniciou a colonização moderna. As ciências descoloniais encontram sua primordial inspiração não no assombro diante do mundo, mas no grito do colonizado ante uma realidade desumanizadora. [...] Pois bem, a atitude descolonial serve de inspiração e orientação a uma forma de conhecimento que interrompe a estrutura das ciências estabelecidas.” (Maldonado-Torres, 2006, pp. 125-126).

31“[...] discussão do mundo colonial pelo colonizado não é um confronto racional de pontos de vista. Não é um discurso sobre o universal, mas a afirmação desenfreada de uma singularidade admitida como absoluta. O mundo colonial é um mundo maniqueísta.” (Fanon, 1968, p. 30).

Recebido: 15 de Junho de 2019; Aceito: 21 de Outubro de 2019

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