INTRODUJO
Na atual pandemia da Covid-19, estamos presenciando mudanzas nos mais variados espagos de nossa existencia. Todavía, dadas as novidades, penso que, neste momento, somente tentamos refletir sobre o que se ve. Nao é hora de ideias e pensamientos peremptórios. É o que pretendo fazer neste texto sobre a federagao brasileira e alguns influxos que se veem ocorrer. No Brasil, atualmente, veem-se situagoes relacionadas com o pacto federativo, sobre o qual já escrevi anteriormente (Conci, 2016), que merecem ser levadas em conta na análise feita por quem compreende a Constituigao e suas normas como objetos que se transformam constantemente e que, nesse sentido, entende a exigencia de que o contexto constitucional, e nao somente o texto, seja objeto permanente de estudo (Barretto, 1996). Portanto, temos um bom número de razoes para termos dúvidas em momentos como o presente.
Para pensar a federagao brasileira se exige que esta seja entendida no aqui e agora e na sua relagao com a história constitucional, sem perder de vista os influxos que os momentos impoem sobre o seu desenho constitucional, como o atual, já que se per- cebem ciclos em nosso federalismo que dependem de tais contextos constitucionais, impondo mais centralizagao ou descentralizagao e exigindo um reequacionamento dos espagos competenciais existentes para os entes (Nathan, 2006). Esses espagos podem ser alterados sem planejamento. Isso porque existe um sistema de freios e contrapesos vertical, próprio das federagoes, em que mecanismos adotados nas Constituigoes funcionam como instrumentos de controle recíproco1 (Liziero, 2019). Por sua vez, nao se pode negar haver um grau importante de oportunismo nos federalismos, dado que seus movimentos, no mais das vezes, respeitam as vontades da sociedade por mais ou menos centralizagao, que nao podem ser desprezadas (Nathan, 2006).
Sabe-se que o modelo federal brasileiro tem marcas de grande centralizagao e que é determinado por um longo processo em diregao ao fortalecimento da Uniao Federal em detrimento dos demais entes subnacionais. Por essa razao, em se comparando a outros desenhos, como o norte-americano, o argentino e o mexicano, ve-se maior proximidade com os dois últimos e mais distancia do primeiro (Ward, Wilson e Spink, 2010; Hernández, 2009), mas, ainda assim, todos eles passam por momentos pendulares de mais ou menos centralizagao2, apesar de se perceber, na história constitucional brasileira, a tendencia de um federalismo autoritário e centralizado, com acentuado poderio fiscal e político no governo federal (Arretche, 2002). Entretanto, o atual momento mostra que há movimentos que exigem que os entes subnacionais explorem, com mais rigor, as suas competencias, de modo a tornar a realidade um laboratório para o nosso federalismo. Nao quero dizer, com isso, que quanto maior for a descentralizado alcanzada melhor o pacto federativo. Este é um equívoco bastante bem trabalhado há muito no Brasil. Nem a excessiva centralizado o seria (Carneiro, 1930). Como se verá, alguns elementos serao importantes para estudar a nossa realidade atual: o modelo fiscal, as competencias constitucionais e o sistema partidário e de governo.
Para enfrentar o que se propóe se fará uso, inicialmente, de (a) uma análise fundada na história constitucional brasileira, de modo a compreender as questóes dedicadas a federado brasileira a partir da transformado dos contextos políticos e constitucionais; (b) passando, logo depois, a buscar os impactos da atual pandemia da COVID-19 na federado brasileira, em seu funcionamento, no modo como seus entes e governantes organizam suas agóes. Para tanto, utilizou-se da revisao bibliográfica, de análise da legislado e da distribuido competencial havida na Constituido de 1988, além da recente jurisprudencia do Supremo Tribunal Federal (STF), para construir o arcabougo de fundamentos que embasam os resultados do presente artigo. Ademais, percebe-se, no tema da federagao brasileira, que a análise da história constitucional e, quando necessário, do direito comparado, auxilia-nos a afirmar as conclusóes expostas ao final deste texto.
1. ALGUMAS NOTAS HISTÓRICAS SOBRE O FEDERALISMO BRASILEIRO
Ideias federalistas, por estas terras, já circulavam antes da própria independencia. Já nas lutas libertárias contra a Coroa Portuguesa, bem antes da Declaragao de Independencia, ainda que tais lutas tenham sido muito diversas, havia um consenso por mais poderes e competencias, por consequencia, aos que estavam nessa parte do território portugues ultramarino no continente americano. Mesmo porque as ideias norte-americanas estavam presentes, em 1789, nos inconfidentes mineiros, que se espelhavam nos norte-americanos com o intuito nao somente de desfazer as relagóes com a monarquia, mas também produzir descentralizagao política e administrativa (Costa, 2007). Também na Revolugao Pernambucana de 1817, tais ideias estavam presentes, ainda porque, em que pesem os esforgos da Metrópole em produzir centralizagao na Colonia brasileira, a realidade por esta banda do Atlántico era bastante diferente. Em fungao de um pluralismo normativo pouco racional, da pouca estrutura administrativa portuguesa e, talvez, da estratégia de a Coroa de nao permitir que qualquer autoridade se tornasse demasiadamente poderosa por aqui, havia uma pluralidade de centros de poder que impressionava, caso, por exemplo, do vice-rei que nao tinha seu poder distribuído por todo o território, limitando-se a pouco mais que o Rio de Janeiro, estando a maioria das capitanias a responder diretamente a administragáo em Portugal. Também por isso a coesáo entre as provincias era débil, e o vice-rei, uma autoridade enfraquecida (de Carvalho, 1998).
Com o império, e a independencia adquirida com custos financeiros altíssimos, relegou-se a realidade pós-independencia a um apanhado de problemas de difícil solugáo. Entre eles, a necessidade de fazer expandir, por um vasto território, o poder do Rei (ou Imperador). Na Assembleia Constituinte de 1823, a distribuigáo política e administrativa do poder por todo o território era assunto central. Ainda que a preo- cupagáo com a coesáo territorial e administrativa já estivesse patente no Decreto de instauragáo da Constituinte, em junho de 1823 e também no de dissolugáo, esse tema vem já retratado, haja vista que o Imperador, em 12 de novembro daquele mesmo ano, já afirmara que a violagáo a “integridade do Império” estaria entre as razoes para o fechamento da Constituinte (Decreto, 12 de novembro de 1823). Com a outorga de uma Constituigáo para um estado unitário, viram-se derrotadas algumas vozes de tendencia federalista, como a de Antonio Ferreira Franga, cuja biografia é marcada pela luta pelo federalismo no plano nacional (Oliveira, 2012). A reagáo “federalista”, no plano formal, viria em 1834, com o Ato Adicional (Lei 16/1834) que institui novas competencias para as Assembleias Provinciais (antigos Conselhos Geraes das Províncias), cujos membros seriam escolhidos em eleigoes regionais e que legislariam sobre matérias variadas, inclusive, com competencias tributárias. Esse período de descentralizagáo permitiu que as províncias legislassem sobre “a fixagáo das despesas municipais e provinciais, e os impostos para elas necessários, contanto que estes náo prejudiquem as imposigoes gerais do Estado” (art. 10, § 5°), tendo sido o tema regulamentado pela Lei 99, de 31 de outubro de 1835. Tratava-se do primeiro arranjo fiscal entre os “entes” estatais. Mas duraria pouco! Já em 1937, ocorre um retorno centralizador, com a supressáo de poder das assembleias provinciais e com a criagáo da justiga e da polícia ligadas ao poder central e, logo depois, com a Lei de Interpretagáo, em 1840 (Lei 105/1840), provocar-se-ia um retorno centralizador que duraria até o final do Império.
A falta de percepgáo dos “donos do poder”, entre eles o próprio Imperador, acabou levando a dissolugáo do império, pois aquela constituigáo estaria adaptada a permitir uma transformagáo descentralizadora em diregáo a um estado federal (Franco, 1957), tendo, inclusive, em 1885, Joaquim Nabuco apresentado projeto que fomentaria tal objetivo. Com a proclamagáo da República, em 15 de novembro de 1889, na verdade, viu-se também um grito pela Federagáo e pela inspiragáo norte-americana que tomava conta da elite liberal brasileira e ganhava forga com o passar do tempo no decorrer daquele século XIX (Franco, 1957). Isso fica claro desde o Decreto 1/1889, expedido pelo Governo Provisório, quando instituída a República Federativa, e esse primeiro pe ríodo, da República Velha (1889-1930), institui um modelo de relacionamento entre poderes federais e estaduais que se denomina “Política dos Governadores”, no qual as oligarquias regionais, a dominar a política nos estados-membros, tem importante ascendencia sobre as decisoes a serem tomadas no plano federal. No plano constitucional, a Constituido de 1891, foi o documento constitucional mais descentralizador que se conheceu no Brasil. O tema da federagao, a partir, principalmente, das ligóes de Amaro Cavalcanti (1900), colocou nas maos dos Estados, e nao da Uniao Federal, matérias de importancia central. O modelo norte-americano, de competencias expressas para a Uniao Federal, remanescentes para os Estados e concorrentes entre os entes, aparece, mas a dependencia política do Governo Federal dos acordos políticos com as oligarquias estaduais teve, naquele período, o condao de fortalecer sobremaneira as elites regionais. Restava, assim, como reconheceu o presidente Campos Sales (1898-1902), compor com essas forgas regionais ou declarar guerra a elas (Leal, 1975), o que tornaria instáveis seus governos. Previa que Estados proviam suas necessidades, especialmente com o Imposto sobre Exportagao, mas cabia a Uniao Federal a responsabilidade sobre a dívida pública interna e externa (Cavalcanti, 1900). E as constituigóes estaduais, naquele momento, discricionariamente, davam amplo poder aos municípios de ordem administrativa e financeira, reforgando poderes das oligarquias regionais (Carneiro, 1930).
Com a chegada de Getúlio Vargas a Presidencia e com o interregno de ausencia de uma Constituigao, que vai até 1934, nao foram poucas as insatisfagóes regionais, tendo seu ápice ocorrido com a Revolugao Constitucionalista de 1932, quando os paulistas lutaram contra o Governo Federal com o intuito de uma nova Constituigao. Porém o resultado nao foi o esperado pelas forgas descentralizadoras. A Constituigao, apesar de apresentar as primeiras normas características de um Estado Social (um capítulo com deveres estatais ligados a Ordem Económica e Social), recrudesceu a centralizagao, aumentando os poderes federais e as matérias de competencias da Uniao Federal. Por sua vez, reconheceu a autonomia municipal, com tributos inclusive de competencia dos entes locais, bem como concedeu ao Distrito Federal a prerrogativa de eleger o seu governador pelo voto direto. No plano fiscal, a Uniao Federal passou a tributar a renda, excetuando aquela sobre imóveis. Os Estados detinham competencia para criar impostos sobre combustíveis, que, com a Constituigao de 1946, passa para o rol federal de competencias tributárias (Franco, 1975). Também em 1934, incluíram-se os Municípios na partilha tributária, fator positivo na transformagao de nosso cons titucionalismo até entao dual, especialmente na divisao das receitas entre Estados e Uniao Federal, que excluía os Municípios de tal repartigao. Além disso, trouxe normas de cooperagao financeira (Silva, 2011).
Contudo, o projeto centralizador ganha forga com a outorga da Constituigao de 1937, em que é possível afirmar, inclusive, a suspensao da cláusula federativa, tendo em vista que, no período entre 1937 e 1945, houve intervengao federal em todos os Estados, tendo o presidente da República nomeado interventores que, por sua vez, repetiam o processo nos Municípios3, pelo sistema da necessária confirmagao dos mandatos dos entao governadores pelo Presidente ou da escolha dos interventores (art. 176) e fazendo uso da prerrogativa de legislar por decretos (art. 181 da Constituido Federal CF 1937).
Com a deposigao de Vargas e a redemocratizagao, em 1945, deram-se, na ordem federativa, o retorno das autonomias estaduais e o consequente aumento das com- peténcias municipais, tendo o péndulo voltado ao centro com a ordem autoritária instaurada com o Golpe Militar de 1964. Viu, novamente, a perda de autonomia política pelos entes subnacionais, em que governadores e prefeitos das 150 cidades médias e grandes eram selecionados pela cúpula militar (Arretche, 2002). No plano constitu cional, a Constituigao de 1967, alterada pela Emenda 1 de 1969, provocou nova onda de centralizagao, com a consequente ampliagao das competéncias da Uniao e a sua redugao dos Estados e Municípios, com a implantagao de um “federalismo cooperativo” de índole autoritária. No plano fiscal, já em 1965, com a Emenda 18, estruturou-se um sistema tributário centralizado cujas bases remanescem até os dias de hoje, em que um rol alargado de competéncias tributárias é trazido para o texto constitucional a ponto de nao gerar dúvidas sobre o avango financeiro do poderio da Uniao Federal. Depois, com a Emenda 7/1977, provocou-se novo arranjo no federal com a possibilidade de nomeagao de senadores pelas assembleias legislativas e o aumento da representagao dos Estados menores na Cámara, pois eram estes que davam maior apoio político aos militares. E as políticas sociais, por exemplo, naquele momento, estavam totalmente centralizadas, a sua gestao estava nas maos da Uniao Federal, ainda que as unidades federativas subnacionais estivessem plenamente instauradas (Arretche, 2002).
1.1 O DESENHO PROPOSTO
O movimento de descentralizagao retoma forga com a Constituinte de 1987-1988, pois o pacto formulado para a elaboragao e promulgagao da Constituigao ressaltou, no plano textual, fórmulas de cooperagao entre os entes regionais com o intuito de diminuir as assimetrias federativas a concretizar o princípio da solidariedade no plano institucional4. O processo de redemocratizagao abriu as portas para um federalismo cooperativo (Bercovici, 2004) e as cláusulas de redugao das desigualdades tem um papel importante nesse quadrante histórico. Significa dizer que o princípio da solidariedade entre os entes está exposto na Constituigao e reproduzido em diversas de suas passagens, mas as duas promessas ligadas a solidariedade e a redugao das desigualdades regionais nao foram concretizadas.
Sobre a primeira promessa, que diz respeito a necessidade de maior aproximagao competencial entre os entes da Federagao, conforme exposta no parágrafo único do artigo 23, aposta-se na necessidade de que “leis complementares fixarao normas para a cooperagao entre a Uniao e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilibrio do desenvolvimento e do bem-estar em ámbito nacional”. Nessas atividades de cooperagao, os entes devem atuar conjuntamente, e nao de forma isolada. Sao competencias comuns para as quais todos os entes devem executar parcela do todo como meio de atingir os resultados previstos no artigo 3°, que fixa os objetivos do Estado Social brasileiro. O Congresso Nacional, verificando a necessidade de que a cooperagao seja formalizada mediante decisao sua, deve elaborar leis federais, que exigem quórum aumentado com relagao as leis ordinárias, para estabelecer fórmulas de cooperagao entre os entes. Tais leis nao podem amesquinhar as competencias dos entes federados, ainda que ausentes os meios para a realizagao dos fins planejados e nao podem, por óbvio, avangar sobre competencias que nao sao da Uniao Federal. Ademais, nao devem servir para dar preponderáncia de um ente sobre outro, mas sim para estipular papéis definidos constitucionalmente de modo mais efetivo. Mas, até a presente data, passados 31 anos da promulgagao da Constituigao, somente uma Lei Complementar foi editada com fundamento no referido artigo, que trata de matéria ambiental (Lei Complementar 140/2001), o que demonstra a fraqueza de espírito cooperativo derivada de decisao do Congresso Nacional. Claro que nao se nega a existencia de outros mecanismos, como a distribuigao de rendas entre os entes (Fundo de Participagao dos Estados e Fundo de Participagao dos Municípios, por exemplo) ou a criagao de sistemas cooperativos de gestao de servigos (como o Sistema Único de Saúde e o Fundo de Manutengao e Desenvolvimento da Educagao Básica e de Valorizagao dos Profissionais da Educagao, por exemplo). No entanto, salta aos olhos a falta de decisoes que concretizem tal espirito claramente presente na Constituigao Federal. E, na ordem política, o movimento para sua descentralizagao de politicas sociais dependeu da vontade do Governo Federal, mediante politicas suas, que reforgam o papel de executores pelos entes subnacionais e de elaboradores pelo poder federal (Arretche, 2002). A coordenagao de tais politicas pelo Governo Federal se fez regra e as transferencias federais para os demais entes um instrumento, importante para gerar homogeneidade em tais politicas (Lotta, Gongalves e Bitelman, 2014).
Por sua vez, percebe-se que o conjunto de competencias comuns distribuidas pela Constituido Federal, previstas no artigo 24, apontam para um espago de atuagao que aprofunda as exigencias de coordenagao entre os entes. Nessa toada, Estados, Municípios e a Uniao Federal tem de organizar estratégias de atuagao que, ainda que gerem certos conflitos, pois a tratar de direitos económicos, sociais, culturais e ambientais que claramente transbordam, no que diz respeito aos efeitos que tais decisoes produzem, os espagos físicos em que os entes exercem sua jurisdigao. Nesse sentido, nao somente a racionalidade a se buscar, mas, também, o reforgo de tais análises a partir do princípio pro persona (Conci, 2014) podem ser úteis para que se busque o controle da validade de tais decisoes. Em outras palavras, se, por um lado, sao os interesses nacionais, regionais e locais que deslocam ou afirmam competencias e as delimitam, por outro, eventual regulagao mais protetiva ou menos restritiva deve prevalecer sobre outra, a exigir mais restrigoes a direitos fundamentais. Nesse espago, os conflitos federativos podem se aprofundar em situagoes de crise, como a que vivemos atualmente, pois, ausente a necessidade de utilizagao de recursos financeiros para algumas dessas decisoes, as assimetrias e a dependencia fiscais nao limitam, nesse sentido, o uso de suas competencias pelos entes subnacionais. Determinar restrigoes a circulagao de pessoas e coisas, restringir horario de funcionamento do comércio e de atividades industriais ou de servigos, implementar multas pelo descumprimento de tais determinagoes, entre outros, nao implicam atividades que envolvam uso direto de recursos públicos, é dizer, diferem daquelas que demandam compra de bens e servigos, por exemplo, que dependem de uso direto de recursos.
Verifica-se um aprofundamento da assimetria financeira entre os entes da fede- ragao com a Constituigao de 1988 e as mudangas fiscais produzidas, especialmente, a partir da década de 1990, tanto com a criagao de novas contribuigoes sociais, que fazem parte das receitas nao distribuídas entre os entes, quanto com a renúncia fiscal sobre impostos compartilhados. A autonomia financeira dos entes federativos é uma característica relevante do Estado Federal (Lewandowski, 2018) e, sem ela, as assimetrias se revelam mais presentes e reduzem o poder decisório nos planos políticos e administrativo por parte dos entes federados. Isso nao significa, a meu ver, uma simples conjugagao entre mais descentralizagao, mais federalismo (Torres, 2014), como sói ouvir-se corriqueiramente entre os fomentadores dos poderes peri féricos em uma federagao. Aliás, os expedientes de descentralizagao financeira sao inclusive utilizados, com frequencia, em estados ditos unitários (Organizagao para a Cooperagao e Desenvolvimento Económico [OECD], 2019). Essa assimetria precisa ser vista em número, verificando a evolugao do que se tem como receita tributária para os entes. Para saber, deve-se ter em conta que, em 1983, a Uniao Federal ficava com 70% da receita pública disponível. Desde entao, passou a ceder aos Estados e aos Municípios parte dessa receita como forma de diminuigao de assimetrias. No início dos anos 1990, Municípios e Estados detinham 45% de participagao na receita pública disponível. Os Municipios saltaram de 8,6%, no comego dos anos 1980, para 15,8%, em 1993 (Figueiredo, 2008). Em 2013, a receita tributária disponível (verificada após as repartigoes constitucionais) era de 58% para a Uniáo e o restante para os Estados (22%) e os Municípios (20%) (Afonso, 2015). Ou seja, no período estudado, verifica-se um movimento pendular centralizagáo-descentralizagáo-recentraliza- gáo claramente apontável, que reforga a fórmula centralizadora e pouco solidária da Federagáo brasileira, já que tres-quintos da receita nacional fica em máos da Uniáo Federal. No caso de outras federagoes, para se poder comparar, o Brasil somente é superado, em se levando em conta os dados da OCDE, no que se refere ao poderio central fiscal, pela Austrália (80,6%), pelo México (81,1%) e pela Áustria (65,7%). Nos demais casos, todos os entes nacionais se apropriam de menor parte de recursos fiscais disponíveis: Bélgica (51,4%), Canadá (40,9%), Alemanha (29,5%), Suíga (36,5%) e Estados Unidos (44,5%) (OECD, 2019).
Há outro aspecto que gostaria de tocar, ainda sobre o fomento a centralizagáo, que é a regulagáo dos partidos políticos no Brasil. Há dois aspectos que apontam tal fomento a centralizagáo na realidade partidária brasileira: a exigencia de que sejam nacionais e a sua organizagáo interna. A primeira fortalece os vínculos entre políticas nacionais e decisoes partidárias, tendo em vista que haverá dificuldade de decidir em prol dos entes subnacionais se as suas forgas internas náo dispoem de mecanismos de veto de ordem regional. Mais ainda, é uma forte submissáo as decisoes de suas liderangas que conduz a nacionalizagáo de suas decisoes em detrimento dos interesses regionais que pudessem despertar nas suas instancias internas. Fere-se frontalmente os interesses subnacionais em detrimento dos interesses das liderangas partidárias. Dois ingredientes se alimentam para tanto. O primeiro, diz respeito a regra da liberdade de regulamentagáo interna pelos partidos políticos, fruto do artigo 17, parágrfo 1°, que cria cenário da sobreposigáo dos interesses nacionais sobre os subnacionais, pois tal regulamentagáo impoe a tendencia da fidelidade interna, da organizagáo vertical, de votos que seguem as liderangas e os interesses partidários, mais que os dos entes subnacionais (Arretche, 2013). Decisoes de diregoes partidárias sáo seguidas pelos seus membros (Limongi, 2006; Pereira e Mueller, 2003), e os diretórios regionais tendem a ser subservientes a diregáo nacional (Rodrigues, 2018; Guimaráes, Rodrigues e Braga, 2019). Essa verticalizagáo das escolhas partidárias, entre opgoes existentes no processo legislativo, e a captura das vontades dos parlamentares pelas diregoes produzem também um enfraquecimento da protegáo dos interesses subnacionais em detrimento dos nacionais. Nesse sentido, nem mesmo o Senado Federal funciona como casa de representagáo dos interesses dos Estados, ou “Casa dos Estados”, vigorando a regra de que as decisoes partidárias, tomadas pelas suas liderangas, sáo seguidas pelos membros do partido ao votar (Lyne, 2008). Porém, a realidade aqui exemplificada se enfraquece no atual momento em razáo de náo ter conseguido o atual governo federal formar uma base partidária estável, o que vem lhe causando severas derrotas. A fragmentagáo partidária, somada a ausencia de uma coalizagao de partidos, também aprofunda o descompasso entre as decisoes do Governo Federal e o apoio dos parlamentares, e dos partidos, nas casas do Congresso Nacional (Conci, 2019). Ademais, temos, pela primeira vez, um presidente nao filiado a nenhum partido político, o que enfraquece a relagao partidos-governo.
Por fim, a estas referencias, deve ser agregada mais uma, que diz respeito, pelo que se viu, ao último aspecto plausível para manter-se o poder no centro da federagao, que se encontra desgastado. Ante a estratégia do presidente brasileiro de apontar o dedo para a política tradicional, tida por ele como corrupta, o que vem sendo feito desde a campanha presidencial, acabou por gerar efeitos deletérios para a governabilidade. Isso porque a ausencia de uma política de formagao de um governo de partidos, de uma coalizao estável, vem gerando alta instabilidade nas relagoes entre governo e parlamento. A defesa feita insistentemente, pelo Presidente, da estipulagao de um novo modo de governar, em que os partidos políticos deixariam de ser importantes, como blocos, enfraqueceu o governo.
A aposta de que a gestagao das políticas de governo seria feita mediante um cenário em que parlamentares individualmente ou bancadas temáticas (evangélicos, ruralistas, entre outras) dariam suporte ao projeto político do governo nao se realizou. Como resultado, o governo propoe um “presidencialismo de coalizao disfuncional” (Abran ches, 2019), no qual derrotas tem sido constantes, afirmando o próprio presidente ser a rainha da Inglaterra (Pessóa, 2019). Esse movimento empodera o Congresso Nacional de um modo pouco visto desde o processo constituinte de 1987-1988, com o vazio de coordenagao política fruto de seguidos erros do Governo Federal. Esse fenómeno mostra, com o atual modelo de gestao interna dos partidos políticos, centralizado, e o enfrentamento entre governo e partidos, a fragilidade do primeiro, pois os partidos mantiveram seu modus operandi tradicional e a fidelidade como marca de seus membros, é dizer, o modelo de decisao parlamentar centralizado pelos partidos políticos nao sofreu mudangas. Nao houve mudangas quanto a disciplina parlamentar e se verifica que o controle da agenda tem deixado de estar centralizado nas maos do presidente e tem sido partilhado com o Congresso.
Do que se apontou, verifica-se que: a) o rol de competencias concorrentes, no plano legislativo, e comuns, no plano administrativo, que existem em grande número, propondo uma fórmula federativa de pacto territorial; b) o alto empoderamento fiscal da Uniao Federal, por sua vez, impoe um excessivo fortalecimento de suas decisoes, especialmente, em temas de políticas públicas, para as quais os entes subnacionais passam a ser mais seus executores que seus formuladores; c) a regulamentagao partidária constitucional, ao exigir partidos nacionais e outorgar ampla liberdade de organizagao interna, impoe uma sobreposigao dos interesses partidários, nacionais, sobre os regionais ou locais, enfraquecendo os interesses subnacionais em detrimento dos interesses da maioria partidária; d) o presidencialismo brasileiro, dito de coalizao, que exige do governo federal a formagao de uma base de apoio ampia, dada a frag mentado partidária existente, e o apoio dos governadores, está esgargado, gerando constante fragilidade para as decisoes governamentais.
2. IMPACTOS E REFLEXÓES SOBRE A PANDEMIA ATUAL NO MODELO FEDERATIVO
Percebe-se, no que afirmei acima, que há um paradoxo interessante no modelo federal brasileiro. Se, por um lado, o rol das competencias comuns se apresenta ampliado, por outro, a receita que se arrecada no nosso modelo fiscal fica próxima a tres-quintos para a Uniao e um-quinto para cada um dos demais entes, é dizer, Estados e Municípios. Onde, assim, tal realidade se apresentaria com mais intensidade? A meu sentir, e isso explicaria parcela dos problemas e conflitos federativos que se vive atualmente, no exercício de competencias sobre temas que nao demandam, imediatamente, a utilizagao de excessivos montantes de recursos públicos.
No caso da crise pandemica que se vive, essa realidade se apresenta claramente. Vamos aos fatos, relatados em atos normativos federais. Elencam-se alguns a seguir, pelo grau de importancia.
Decreto 10.212, de 30 de janeiro de 2020, em que se promulga o Regulamento Sanitário Internacional, que havia sido aprovado na 58a Assembleia Geral da Organizagao Mundial da Saúde, em 23 de maio de 2005. Ainda que estivesse a produzir efeitos em ambito internacional, internaliza regras importantes construídas a partir de outras crises como a da Sars, por exemplo. Trata-se, assim, de conjunto de regras internacionais eficazes juridicamente.
Portaria 188, de 3 de fevereiro de 2020, em que o Ministro da Saúde declara Emergencia de Saúde Pública de Importancia Nacional em decorrencia da COVID-19.
Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, em que se dispoe sobre medidas para o enfrentamento da emergencia de saúde pública de importancia internacional de corrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. A referida lei reitera alguns conceitos do Decreto 12.212 e aponta medidas para o enfrentamento da crise, como isolamento, quarentena, entre outras.
Medida Provisória 927, que estatui medidas trabalhistas para o enfrentamento do estado de calamidade pública.
Decreto 10.282/2020, que regulamenta a Lei 13.979/2020, e define servigos públicos e atividades essenciais.
Já os atos normativos (portarias, leis e decretos estaduais e municipais) sao aos milhares. Para que se tenha uma ideia, só no Estado de Sao Paulo, entre 16 de margo5 e 8 de abril, já eram 395 atos, desde portarias a decretos e leis, estaduais e municipais. Em Minas Gerais, 135 leis municipais. Ou seja, há uma profusao legislativa incrível em temas afetos também aos entes subnacionais.
O STF, por sua vez, já recebeu 814 processos que tratam de temas afetos a epidemia do coronavírus, dos quais 381 tiveram negado seguimento, 53 ordens foram denegadas, 43 liminares deferidas, 38 indeferimentos, 25 liminares deferidas, 18 deferimentos e 95 outros atos. Há alguns deles dedicados, especialmente, a funcionar como reforco dos mecanismos de freios e contrapesos. Há um conjunto de decisoes que apontam para o exercício do controle do poder presidencial que merecem sejam analisadas6, 7 e8. Infelizmente, nao é o caso no presente artigo, que se limitará aquelas que tratam do diretamente do pacto federativo. Seria o caso das decisoes apresentadas a seguir.
a) Na Arguigao de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 568, em liminar, o ministro Alexandre de Moraes determinou a destinagao imediata de R$ 32 milhoes ao Estado do Acre para o custeio das agoes de prevengao, contengao, combate e mitigagao a pandemia do novo coronavírus ao homologar proposta de ajuste apresentada pelo governo do Estado para autorizar a realocagao da quantia que lhe fora designada em acordo de destinagao de valores recuperados na Operagao Lava-Jato.
Na Agao Cível Originária (ACO) 3.363, o ministro Alexandre de Moraes suspendeu por 180 dias o pagamento das parcelas da dívida do Estado de Sao Paulo com a Uniao para que o governo paulista aplicasse integralmente esses recursos em agoes de pre- vengao, contengao, combate e mitigagao a pandemia causada pelo novo coronavírus. O mesmo ocorreu na ACO 3.365, para o Estado da Bahia.
Na Agao Direta de Inconstitucionalidade 6.357, o ministro Alexandre de Moraes deferiu medida cautelar que afasta a exigencia de demonstragao de ade- quagao orgamentária com relagao a criagao e expansao de programas públicos destinados ao enfrentamento da Covid-19, sendo válida para todos os entes da federagao que tenham decretado estado de calamidade pública decorrente da pandemia do novo coronavírus.
Na ADPF 672, em liminar, o ministro Alexandre de Moraes assegurou aos go- vernos estaduais, distrital e municipal, no exercício de suas atribuigoes e no ámbito de seus territórios, competencia para a adogao ou manutengao de medidas restritivas durante a pandemia da Covid-19, tais como a imposigao de distanciamento social, a suspensao de atividades de ensino, as restrigoes de comércio, as atividades culturais, a circulagao de pessoas, entre outras.
Nas referidas agoes, há sinais importantes para o pacto federativo brasileiro e para o que se afirmou anteriormente. Isso porque, nas tres primeiras, o ponto fulcral da discussao diz respeito ao federalismo fiscal brasileiro e as assimetrias financeiras, e demonstra a percepgao, do ministro Alexandre de Moraes, que, cautelarmente, definiu que as regras fixadas previamente, no sentido de preservar a responsabilidade fiscal dos entes, devem ser mitigadas em momento de epidemia e de novos problemas a serem enfrentados. Mitigam e apontam para uma realidade circunstancial que deve ser levada em conta por um tribunal supremo. Um dos pilares do empoderamento da Uniao Federal, o fiscal, é contrariado.
A última, por sua vez, dedica-se ao tema das competencias comuns e a necessidade de interpretar de forma a levar em conta o contexto constitucional que vivemos. Isso fica claro ao apontar, com fundamento no artigo 24, XII, da CF, que a Lei 12.979/2020 estabeleceu “as orientagoes gerais, destacando a competencia de cada autoridade, a fim de que o território brasileiro adotasse com uniformidade as medidas para o enfrentamento da emergencia de saúde pública” decorrente da COVID-19”. Também se refere as competencias previstas no artigo 23, II e IX, de legislagao concorrente, em que os espagos de cada ente devem ser preservados, inclusive o dos Municípios, conforme o artigo 30, II, para suplementar a legislagao federal e estadual.
CONCLUSOES
Como pretendi deixar patente logo no início do artigo, nao pretendo langar con- clusoes peremptórias. Sao nuances do momento em que vivemos que, a meu sentir, merecem atengao.
Primeiro, percebe-se que a profusao de atos estaduais e municipais, sobre o tema da pandemia, além das decisoes do STF referidas, reforgam o espago legislativo e administrativo dos entres subnacionais e aumentam a pressao pela coordenagao a ser feita pelo Governo Federal. Infelizmente, o momento e o modo como isso vem ocorrendo somente reforgam a falta de planejamento na disposigao da descentralizagao na federagao brasileira, que, sem coordenagao (Bercovici, 2002), gera mais competigao entre entes subnacionais e o ente nacional.
Segundo, verifica-se, ainda assim, até o momento, a formagao de um cordao de contengao por sobre a tensao centralizadora, própria da nossa federagao e acentuada em momentos como o presente, e a ampliagao dos espagos decisórios dos entes subnacionais para regular de forma regional ou local seus intentos legislativos e administrativos, desde que fundados em leituras racionais e científicas do contexto sanitário em que se vive.
Terceiro, dada a ausencia de uma base de coalizao estável formada com partidos políticos apoiadores do Governo Federal e sem o apoio dos governadores estaduais, além do efeito de fortalecimento dos entes subnacionais que decorre das decisoes do STF, da falta de coordenagao da conjuntura epidemica pelo Governo Federal e do fortalecimento, assim, do poder político de governadores e prefeitos (Dantas, 2020), tem-se uma reconfiguragao prática, no campo da realidade, do federalismo brasileiro, rumo ao fortalecimento dos entes subnacionais que, pelo que vimos até o presente momento, seguem fortes para se tornarem protagonistas deste momento singular e triste da vida nacional. Inclusive, desempenhando novas fungoes, como o enfrentamento de pandemias e o relacionamento com organizagoes internacionais (Ward et al., 2010).