INTRODUJO
Sob a égide do livre comércio, da autorregulagao dos mercados e da abstengao do Estado na economía, o neoliberalismo vinha dominando o pensamento económico e pautando a grande maioria das atuagoes estatais desde a década 70. No entanto, as consequencias económicas e sociais provocadas pela atual pandemia da Covid-19 colocam em xeque, uma vez mais na história, a viabilidade das medidas económicas liberais para conter as crises económicas e permitir a preservagao do próprio sistema capitalista.
Nao é nenhuma novidade que, em tempos de forte recessao, as pautas económicas tendam a modificar-se, abrindo espago para maiores ou menores interferencias estatais na economia, conforme exemplos históricos como a quebra da bolsa de 1929, a desregulamentagao do sistema monetário internacional, os dois choques petrolíferos na década de 1970 e o estouro da bolha imobiliária de 2008.
Á diferenga das demais crises económicas do último século, a crise causada pela pandemia contempla uma combinagao nefasta de recessao económica, crise sanitária e milhares de mortes, o que expoe fragilidades instransponíveis ao laissez-faire.
As necessárias medidas de restrigao de circulagao e da atividade económica, em conjunto com a incerteza sobre o futuro e a quebra do estado de confianga, formam a conjuntura hábil a atirar as economias mundiais ao que tende a ser uma das maiores recessoes da história.
A recessao económica mundial é uma certeza. O Barómetro Global Coincidente1, sistema de indicador que reflete o estado atual da atividade económica global, caiu 22,3 pontos em maio para 45,6 pontos no índice, comparado a 67,9 pontos no mes anterior. Este é o nível mais baixo desde o início da série em 1991 e 5,5 pontos abaixo da baixa histórica anterior, alcangada em janeiro de 2009. O Barómetro Líder Global, que emite um sinal cíclico aproximadamente seis meses a frente do desenvolvimento económico real, recuou 39,5 pontos, atingindo também o nível mais baixo das séries. A queda nos dois indicadores está espalhada por todos os continentes e sinaliza uma retragao da economía mundial no inicio do segundo trimestre, que já parece ser mais grave do que a crise de 2008-2009.
O impacto da pandemia sobre a economia mundial chama a atengao nao só pela sua extensao, mas também por sua ampla disseminagao regional e setorial, todos sem precedentes na série histórica dos indicadores antecedente e coincidente do Barómetro. (KOF Swiss Economic Institute, 2020, para 3°).
Consoante a diretora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina Georgieva, mais de 85 países estao buscando financiamento de emergencia junto ao FMI. Algo jamais visto desde a criagao do fundo, em 1944 (Georgieva e Ghebreyesus, 2020).
Somente nos Estados Unidos, em questao de semanas, o pleno emprego foi “nocauteado” por um recorde histórico de 32% de desemprego no país. Índice muito superior aos quase 25% de desemprego proporcionado pela Grande Depressao de 1929. Conforme alude Torsten Slok, economista-chefe do Deutsche Bank Securities, “todos os ganhos do mercado de trabalho da última década foram perdidos”. Para o economista, esses números assemelham-se a catástrofes naturais, ou seja, sem destruigao de capital físico, e nao a crises económicas costumeiras. “É, de longe, a recessao mais rápida e mais grave, em seus estágios iniciais, de que temos registro” (Fariza, 2020, para 5°).
A devastagao económica provocada pela pandemia, portanto, caminha a passos largos e vem exigindo medidas governamentais massivas e certeiras a fim de, nao somente restaurar a confianga e a demanda, mas, sobretudo, permitir que empresas e cidadaos permanegam respirando e sobrevivam, com o mínimo necessário, ao prolongado período em que a atividade económica necessita manter-se paralisada.
Diante desse panorama, ganhou suporte o necessário protagonismo do Estado na economia, idealizado e defendido pelo economista británico John Maynard Keynes, mediante políticas públicas, fiscais e monetárias, a fim de mitigar os efeitos nefastos provocados pelas recessoes e assegurar a sobrevivencia da economia nacional e do próprio sistema capitalista.
Em tempos sombrios de pandemia e desespero nos mercados, a imprestabilidade do arsenal económico liberal forgou governos no mundo inteiro a protagonizarem uma guinada keynesiana, incorporando um papel mais ativo na economia, como o único caminho possível a ser percorrido.
Nessa senda, o presente artigo exsurge com o propósito de assentar o caminho para a compreensao do necessário e tempestivo resgate dos matizes keynesianos e da necessidade de reformas radicais, rechagando as políticas que serviram de modelo para grande parte dos governos nas últimas quatro décadas, e que restaram manifestamente falseadas pelos nefastos efeitos que um vírus provocou na saúde da populagao e na economia mundial.
Para tanto, este ensaio demonstra, primeiramente, as teorías económicas que moldaram as políticas mundiais ao longo dos acontecimentos históricos e das crises económicas, em um cíclico péndulo entre os ideais liberais e keynesianos. Também serao explorados os contextos históricos que propiciaram os rompimentos com a teoria económica dominante e quais sao os matizes keynesianos que vém prestando suporte aos governos durante a crise económica gerada pela pandemia. Finalmente, provoca-se a reflexao da necessidade de reformas que rompam com as políticas dominantes que se mostraram imprestáveis para dar suporte as implicates desastrosas de uma crise económica e sanitária provocados pelo atual surto pandémico.
Utilizou-se, para tanto, quer na fase de investigado, quer na fase do relatório da pesquisa, o método indutivo. O método procedimental utilizado foi o monográfico e a técnica de pesquisa, a bibliográfica.
1. TEORIAS E POLÍTICAS ECONÓMICAS E O PÉNDULO ENTRE O LAISSEZ-FAIREE O KEYNESIANISMO
Com o intuito de demonstrar as mutagóes que a teoria económica sofreu no decorrer do tempo, dos ciclos económicos e das transformagóes económicas e sociais, convém tecer sucintas consideragóes acerca da historicidade da macroeconomia, a fim de elucidar algumas de suas raízes e metodologia.
Até a década de 1930, a teoria predominante sobre o funcionamento da economia era conhecida como a “Lei dos Mercados de Say”. Corolário da ideia de Adam Smith e da metáfora da mao invisível, dita teoria estipulava que a oferta produz sua própria demanda.
Segundo a Lei de Say, a economia opera segunda a lógica de que a oferta cria a sua própria demanda. Ou seja, a produgao de mercadorias é o que cria, automaticamente, um mercado para as mercadorias produzidas, o que, por sua vez, aumenta a produgao e o nível de empregos, operando em um perfeito ciclo autoajustável. Dessa maneira, com uma temporária queda no consumo, esta se refletiria em uma queda no valor da mercadoria e, por conseguinte, em uma redugao salarial dos trabalhadores, até que o ciclo se ajustasse e voltasse a operar normalmente.
Portanto, sob a égide do liberalismo económico, a macroeconomia clássica, regida pelo livre comércio e pela abstengao do Estado na economia, reinou livremente até a crise de 1929.
Ocorre que a produgao de bens norte-americana, aquecida com a temporária debilidade económica da Europa pós-Primeira Guerra, teve um excedente produtivo. Tal fato foi de encontro com a recuperagao europeia, que passou a produzir seus próprios bens e deixou de importar dos americanos. O resultado da superprodugao em relagao ao consumo foi a queda vertiginosa nos pregos e o desemprego em massa, o que colocou em xeque a viabilidade das medidas económicas liberais.
Nesse contexto histórico, o economista británico John Maynard Keynes marcou de maneira indelével o pensamento económico. Em meio a hegemonía neoclássica, a publicagao, em 1936, da General Theory of Employment, Interest and Money, principal obra do autor, revolucionou a teoria económica.
Até entao, Keynes era um bom discípulo de Alfred Marshall, pertencente, portanto, aos neoclássicos.2 No entanto, o desemprego em massa gerado pela Grande Depressao de 1929 o fez constatar, de maneira definitiva, que a abordagem macroeconómica clássica da Lei de Say olvidava o estudo e a explicagao do desemprego, o que o levou a romper com Marshall e apresentar uma abordagem alternativa.
Até a publicagao de sua obra, a visao macroeconómica clássica defendia que mercados livres proporcionariam empregos automaticamente, desde que os trabalhadores fossem flexíveis com relagao aos seus salários, para equilibrar o mercado nos momentos em que fossem necessários ajustes em virtude da queda do consumo e dos pregos das mercadorias. Para os neoclássicos, o desemprego seria consequencia de políticas rígidas do mercado de trabalho, as quais barravam a redugao salarial até o nível do equilíbrio.
A teoria de Keynes, bem como sua aplicagao, é melhor compreendida quando se resgata o contexto histórico em que o autor centrou seus estudos: em 1924, a Inglaterra pós-Primeira Guerra experimentava um alto índice de desemprego (cerca de 1 milhao de desempregados). A solugao liberal para a crise económica, promovida pelos economistas neoclássicos, foi a redugao salarial (a fim de permitir que os empresários pudessem contratar mais trabalhadores), a redugao das obras públicas e a extingao do seguro-desemprego. No entanto, ditas medidas nao fizeram frente a crise, e o país experimentou uma desvalorizagao em torno de 26% da moeda nacional e um nível de desemprego de cerca de 25%.
A partir de seus estudos sobre dito colapso económico, Keynes apresentou uma oposigao ao laissez-faire. Sob o pálio de que o capitalismo é um sistema instável,3 o economista británico defendeu a necessidade de uma intervengao moderada do Estado na economia, mediante políticas fiscais e monetárias, a fim de mitigar os efeitos nefastos provocados pelos ciclos económicos (recessoes e depressoes económicas) e assegurar o pleno emprego.
Em que pese a imprestabilidade das medidas liberais para conter a crise inglesa, as propostas protecionistas keynesianas nao foram aceitas pela ortodoxa liberal saxá.
Na sequencia, a Grande Depressáo de 1929 demonstrou que esse mundo, conforme retratado pela macroeconomia clássica, era, de fato, irreal. Ao contrário do que apregoava a lei dos mercados (Lei de Say), a produgáo nao criou sua própria demanda, o que gerou um excedente de produgáo, derrubando os pregos das mercadorias e gerando desemprego em massa. Na década de 1930, eram 13 milhoes de desempregados nos Estados Unidos da América.
Nesse contexto, Franklin Roosevelt assumiu a presidencia dos Estados Unidos e implementou um plano de reestruturagao económica - o New Deal -, colocando em prática uma série de medidas proposta por Keynes. O principal objetivo era criar condigoes para a redugao do desemprego e o fomento ao consumo, por meio da articulagao de investimentos estatais e privados. Entre as principais medidas se inserem, consoante Limoncic:
investimento macigo do Estado em obras públicas, principalmente de infraestrutura;4
destruigao do excedente de produgao a fim de conter a queda nos pregos; redugao da jornada de trabalho para abrir novos postos de trabalho e criagao de salário-mínimo e de um sistema de seguridade social hábeis a garantir o consumo mínimo por parte dos trabalhadores (Limoncic, 2003).
Ambas as medidas tinham por fito garantir o pleno emprego da populagao economicamente ativa e o estímulo ao consumo.
Nos anos seguintes, Keynes escreveu sua teoria económica para estimular a economia em épocas de crises, sua obra capital, a Teoria geral do emprego, do juro e da moeda (1936). O seu pensamento escandalizou os economistas ortodoxos. Para os economistas keynesianos, seu principal intento foi ter conseguido resolver a maior crise que o capitalismo já teve, sem ter abragado o marxismo.
Segundo a sua teoria, ao contrário do que pregava a filosofia liberal, o Estado deveria intervir nas políticas económicas mediante políticas fiscais.
Ele afirmou que, ao contrário da imperante Lei de Say, nao era a produgao que gerava consumo, e sim o consumo que impulsionava a produgao e gerava, consequentemente, emprego. Para Keynes, o trabalho é determinado pela produgao, e a produgao é estimulada pela capacidade de compra de bens e servigos.
Para Keynes, diferentemente dos liberais, nao há uma forga automática que garanta o perfeito jogo entre produgao, consumo e emprego. Por isso, o aumento e estímulo do consumo implicam criagao e fomento de empregos.
A Teoria Económica keynesiana foi, portanto, uma afronta a macroeconomia clássica, que partia das premissas do liberalismo, em que nao havia necessidade de intervengao. Isso nao quer dizer que Keynes era socialista ou marxista. Pelo contrário, era um capitalista:
[...] nao se ve nenhuma razao evidente que justifique um socialismo do Estado abrangendo a maior parte da vida económica da nagao. Nao é a propriedade dos meios de produgao que convém ao Estado assumir. Se o Estado for capaz de determinar o montante agregado dos recursos destinados a aumentar esses meios e a taxa básica de remuneragao aos seus detentores, terá realizado o que lhe compete. (Keynes, 1996, p. 322)
Ocorre que o fato de ser capitalista nao o impediu de verificar as mazelas do sistema e sua impossibilidade de proporcionar, de maneira automática, o pleno emprego, o desenvolvimento económico e a ausencia de crises. Para Keynes, “a operagao da mao invisível, ao contrário do que ainda é sustentado por economistas de inclinagao mais ortodoxa, nao produz a harmonia apregoada entre o interesse egoístico dos agentes económicos e o bem-estar global” (1996, p. 10).
Keynes é considerado como o economista mais influente do século XX e a sua abordagem é tida, amplamente, como a criagao da teoria macroeconómica moderna.
Mankiw (1998) salienta que a relevancia da abordagem keynesiana reside no estudo das flutuagoes económicas.5 Com base na constatagao e análise da existencia de flutuagoes económicas, intrínsecas ao modelo capitalista, a política fiscal6 se tornou o cerne da política económica keynesiana (Keynes, 1996). A maneira que o governo deveria manipular os seus gastos e os tributos a fim de regular a atividade económica e mitigar, dessa maneira, os efeitos e a propensao as crises inerentes a instabilidade do capitalismo. O seu objetivo era fomentar o consumo e garantir o pleno emprego e o equilíbrio da economia (Bresser-Pereira, 1976).7
Assim, após a Grande Depressao de 1929, as políticas económicas keynesianas foram amplamente aplicadas, tanto nos Estados Unidos como na Europa ocidental, o que ficou conhecido como o “Welfare State”.8 Para impedir que novas crises financeiras mundiais pudessem acontecer, institutes criadas na Conferencia de Bretton Woods (1944), com a colaboragao de Keynes, a exemplo do FMI, vedavam que países que nao controlassem sua movimentagao internacional de capitais fossem auxiliados em caso de crise, “instaurando a estabilidade cambial e proibindo que o valor das moedas nacionais flutuasse ao sabor da especulagao” (Singer, 2009, para 3°).
No entanto, as crises que a década de 1970 trouxe para as principais economias capitalistas, ocasionadas pelo impacto da desvalorizagao do dólar americano no sistema monetário internacional e por dois choques petrolíferos (em 1973 e em 1979), acabaram por diminuir a influencia keynesiana na teoria económica. A realidade de inflagao e desemprego deram forga as ostensivas críticas perpetradas pelos monetaristas liberais, como Milton Friedman, e os da Escola Austríaca, como Friedrich Hayek (ambos os economistas neoclássicos), com relagao ao potencial do Estado em regular a economia mediante políticas fiscais, acabando com o prestígio da macroeconomia keynesiana.
Assim, na década de 1970, novas teorias económicas substituíram a teoria keynesiana. Todas propunham ajustes ou críticas aos princípios keynesianos originais (Bresser-Pereira, 2010).9 Ao final da década de 1970, a onda neoliberal que propugnava a redugao do aparelho estatal e a desregulamentagao de todos os mercados, principalmente os financeiros, “comegou a desmontar os controles multilaterais e nacionais da especulagao, liberando-a no plano mundial”. Dessa maneira, as crises financeiras voltaram, sob o consenso de que seriam inerentes ao sistema, mas também passageiras, se os governos se dedicassem ao equilibrio fiscal (Singer, 2009, para 4°).
Ressurgiu, entao, a teoria dos mercados de Say, que, em sua versao mais atual foi denominada “Teoria do Ciclo Económico Real”. Esta alude que “a economia se ajusta de forma rápida e eficiente, a menos que o governo intervenha, por exemplo, mediante a proibigao da redugao de pregos ou salários” (Posner, 2012, p. 200).
Esse período se estendeu até 2008, quando a maior crise económica, desde a Gran de Depressao de 1929, fez renascer a abordagem de Keynes da necessária intervengao moderada do Estado na economia, mediante políticas económicas e regulatórias.
Ocorre que nem a Lei de Say nem a Teoria do Ciclo Real explicam a crise económica de 2008 (assim como nao previram nem ofereceram suporte para a Crise de 1929). A formagao e estouro da bolha imobiliária, com o subsequente colapso do setor bancário, nao foram causados pela intromissao do governo na economia. A crise se deu em virtude da desregulagao de um setor bancário altamente propenso ao risco, aliado a uma política monetária inadequada (Posner, 2012).
Paul Singer relata que o estouro das bolhas imobiliárias desembocou em uma crise financeira mundial, a qual abalou algumas das mais importantes companhias financeiras do mundo e destruiu trilhoes de dólares de capitais ficticios acumulados nas Bolsas de Valores. As grandes potencias capitalistas foram compelidas a reconhecer que a proporgao tomada pela crise nao mais poderia ser contida apenas pela redugao das taxas oficiais de juros e apelaram para o arsenal keynesiano de politicas de fomento do consumo, do investimento e do emprego (2009).
A crise económica de 2008 falseou manifestamente as premissas neoclássicas, provocando um retorno dos economistas a teoria keynesiana - cujas bases rechagam explicitamente a Lei de Say nos seguintes pontos: o consumo, o entesouramento e a incerteza (Posner, 2012).
O consumo
A teoria de Keynes desmitificou a máxima de Say de que “a oferta cria sua própria demanda”. Para ele, nem sempre a produgao de mercadorias geraria demanda suficiente. O que se confirmou com a superprodugao e a subsequente Crise de 1929. Logo, nas fases de recessao, o mercado nao seria capaz de gerar demanda suficiente para garantir o pleno emprego. Isso porque, diante do medo e da incerteza, neoliberal com base nas antigas ideias do laissez-faire [...] O neoliberalismo procurava reduzir o porte do aparelho do Estado e desregular todos os mercados, principalmente, os financeiros” (Bresser-Pereira, 2010, para 5°).
tende a ocorrer o entesouramento do dinheiro nas poupangas. Nessas situagóes, o Estado deveria investir na economia, com o desenvolvimento de atividades, nomeadamente de infraestrutura, a fim de restituir o pleno emprego e o aumento da demanda - como aconteceu no New Deal.
Portanto, para Keynes, o foco sai da produgao para o consumo. Nao é a oferta que cria sua própria demanda, e sim o consumo que gera a oferta e o pleno emprego. “O consumo é o único objetivo e propósito da atividade económica, porque toda atividade produtiva é projetada para satisfazer a demanda do consumidor, presente ou futura” (Posner, 2012, p. 206).
Logo, o emprego é diretamente proporcional a soma do consumo mais o investimento. Se tivermos aumento do consumo e do investimento, necessariamente teremos aumento do emprego. O inverso também é válido.
O entesouramento
Outra afirmagao que pode ser retirada da Teoria Geral de Keynes é a importancia do entesouramento, bem como o efeito nocivo que ele pode gerar. Consoante a Lei de Say, as pessoas entesouram (guardam dinheiro) a fim de possibilitar a realizagao de uma despesa futura específica (investimento). Nao se cogitava que o entesouramento, em oposigao ao consumo, poderia advir de uma preocupagao diante da incerteza.
Para Keynes, o entesouramento pode trazer indesejáveis efeitos, pois, se os indivíduos estao entesourando, logicamente, nao estao consumindo. E, se os indivíduos nao estao consumindo, a economia nao está girando. Isso porque, havendo diminuigao no consumo, a produgao para e ocorre uma diminuigao nos investimentos, o que leva ao desemprego.
A diferenga entre o dinheiro acumulado, inerte, e o dinheiro que se gasta em consumo, é que este último se transforma em renda para o vendedor do bem ou servigo, que leva ao gasto, que leva a renda e mais consumo; fomentando a atividade económica em uma reagao em cadeia que Keynes denomina “efeito multiplicador”. (Posner, 2012, p. 206)
A incerteza
Complementando a premissa anterior, Keynes acreditava que o entesouramento pode ser um meio de se proteger contra a incerteza. Assim, a incerteza quanto ao futuro dos eventos económicos e do resultado de investimentos futuros leva os agentes económicos a optarem pela liquidez de seus ativos - pelo entesouramento.
A grande contribuigao keynesiana ultrapassa o princípio da demanda efetiva e reside nas variáveis que a determinam, como a nogao de incerteza (Posner, 2012).
A imprevisibilidade com relagao ao futuro faz com que a confianza enfraquega, tolhendo o impulso de investir e consumir. Ao lhes tolher o impulso de agir, tanto empresários quanto consumidores tendem a entesourar, como uma garantia ante a incerteza.
Quanto maior o entesouramento, ou seja, os depósitos em poupanga, menor o consumo. Esse comportamento contribui para a formagao de uma espiral descendente, movida por uma demanda e investimiento em constante queda, causando demissoes, que, por sua vez, reduzem a renda e a demanda, gerando mais desemprego.
Esses matizes keynesianos podem ser vislumbrados manifestamente na atual crise económica provocada pela pandemia.
2. A PANDEMIA DA COVID-19 E A GUIÑADA KEYNESIANA MUNDIAL
A crise económica provocada pela pandemia tende a ser a maior da história recente, promovendo um tempestivo e imprescindível retorno do péndulo aos matizes keynesianos.
Keynes aduzia que, em períodos de crise e incerteza, políticas monetárias tendentes a baixar a taxa de juros seriam ineficientes em momentos mais agudos da crise, devido a armadilha da liquidez. Para o economista, “a taxa de juros seria uma medida que denota a relutancia dos agentes económicos que possuem ativos em se privarem da liquidez. Como um prémio pago pela assungao do risco” (1996, p. 164).
É o que estamos vivenciando. Em que pese o Comité de Política Monetária tenha reduzido drasticamente a taxa Selic e o Banco Central tenha diminuído a alíquota dos compulsórios exigidos das instituigoes financeiras, o resultado pretendido nao foi atingido. As taxas de juros nao caíram. Ao contrário, o agravamento do risco fez com que as taxas de juros subissem. Isso porque os bancos preferem manter a maior quantidade possível de moeda, cobrando mais caro para desfazer-se da liquidez.
Ainda, corroborando a premissa keynesiana de propensao ao entesouramento como uma garantia ante a incerteza, foi sintomático, nesse sentido, que já no início da pandemia no Brasil as famílias brasileiras fizeram mais depósitos do que saques na caderneta de poupanga. Dados do Banco Central (BC) mostram que, em maio, os depósitos líquidos somaram R$ 37,2 bilhoes. Este é o maior volume de depósitos líquidos em um único més em toda a série histórica do BC, iniciada em janeiro de 1995 (Infomoney, 2020).
Nessa mesma senda, como reagao a incerteza e ao risco exacerbado trazido pela pandemia e pelo provável colapso sanitário e económico, assistimos a uma queda drástica nos investimentos, na demanda e aumento do desemprego. Até o início de margo, os investimentos já haviam apresentado um recuo de 8,9%, representando apenas o início dos efeitos da pandemia. Somente na cidade de Sao Paulo, as vendas do comércio desabaram 65,5% na primeira quinzena de abril (G1, 2020). Nesse mesmo período, a venda de automóveis também contraiu 76%, chegando ao pior patamar desde fevereiro de 1999 (Silva, 2020). As commodities já sofreram, no inicio de margo, o pior choque da demanda desde 2008 (Cheong, 2020). Ao final de abril, o desemprego no país subiu para 12,2%, atingindo 12,9 milhoes de pessoas (Economia-UOL, 2020). A economia norte-americana perdeu 20,5 milhoes de empregos apenas em abril, o maior nivel já experimentado desde a Grande Depressao (Economia-UOL, 2020).
Isso nao ocorre somente devido as medidas de restrigoes as atividades economi cas, mas, sobretudo, porque a pandemia quebrou o “estado de confianga”, conforme aludido Keynes. O índice de confianga do consumidor brasileiro, segundo o índice da Fundagao Getúlio Vargas (FGV) foi de 80,2 pontos, em 24 de margo de 2020. O que significa uma queda de 7,6 pontos e representa o patamar mais baixo desde janeiro de 2017. Importante levar em conta que dois-tergos da coleta de dados ter ocorrido antes das medidas de restrigao, já sendo possível notar um impacto expressivo nas expectativas. Já o Índice de Confianga Empresarial caiu 6,5 pontos em margo, para 89,5 pontos, maior queda desde a recessao de 2008 (FGV, 2020).10 Ainda, a Bolsa de Valores brasileira já acumula perdas acima de 35% no ano (Economia-UOL, 2020).
Isso significa que as expectativas de empresários, investidores e consumidores já estao comprometidas, ainda que estejamos apenas no início da pandemia no Brasil. Como corolário desse impacto na confianga, temos uma quebra no ciclo produtivo. O consumo das famílias tende a ficar restrito a gastos essenciais. O animal spirit, o impulso empreendedor que faz girar a economia e sem o qual uma economia capitalista nao consegue funcionar, foi drasticamente abalado. Consequentemente, o consumo e os investimentos arrefecerao cada vez mais, inevitavelmente, e de maneira significativa - empurrando ainda mais o desemprego.
Certamente, nao é o simples encerramento da quarentena e o consequente retorno as atividades que terao o condao de restaurar o estado de confianga e retomar o consumo e os investimentos. Isso porque continuamos inseridos em um cenário de total incerteza, provocado por uma pandemia para a qual ainda nao existe vacina nem medicamento antiviral específico. Sobretudo, nao há leitos nem respiradores suficientes para atender a alta exponencial da demanda.
Ao contrário, a insistencia em manter a já inexistente normalidade, com a redugao do isolamento social, tende, conforme já experenciado pelos italianos, espanhóis e americanos, ao aumento exponencial do contágio e ao consequente colapso do sistema de saúde.
O colapso do sistema de saúde e a progressao de óbitos aumentarlo o caos e o medo, proferindo um golpe fatal na confianza, gerando um impacto ainda mais contundente na já combalida economia brasileira.
Nao é crível supor que em um cenário de guerra, com hospitais, necrotérios e funerárias superlotados, caminhoes que circulam com corpos, valas comuns e a dor dos lutos sem despedidas; as pessoas seguirao comprando roupas, casas e carros novos, e aquecendo a economia. Logo, o choque de demanda tende a aumentar, levando a mais desemprego, numa espiral descendente movido por uma demanda e investimento em constante queda, o que causa mais demissoes, as quais reduzem a renda e, consequentemente, o consumo, derrubando ainda mais a demanda e acarretando mais desemprego.
A trágica experiencia norte-americana demonstra que, no mesmo dia em que os Estados Unidos haviam enterrado 60.000 mortos pela Covid-19, o PIB americano retraia 4,8% no 1° trimestre de 2020. Os gastos com consumo, responsáveis por quase 70% do PIB americano, tiveram queda de 7,6% entre janeiro e margo de 2020 (Costa, 2020).
No Brasil, além da redugao das exportagoes em virtude da recessao económica mundial, o avango indiscriminado do contágio certamente será objeto de um cordao sanitário por parte dos demais países, enfraquecendo ainda mais as exportagoes brasileiras. É o que já vem acontecendo. Ao final de junho, o alto índice de contaminagao no Brasil fez com que as autoridades sanitárias da China suspendessem a autorizagao de exportagao de carne de tres unidades no Brasil (Globo Rural, 2020). Valendo lembrar que, em 2019, os chineses responderam por 26,7% das compras (494 mil toneladas) de carne brasileira (Figueiredo e Mano, 2020).
Logo, nao há a propalada dicotomia entre a saúde e a economia. A proposigao utilitarista de pór termo a quarentena, assumindo o sacrificio de algumas vidas em prol da economia e da preservagao dos empregos, nao perpassa uma análise moral e, sequer, económica. É perversa e irracional. Seremos remetidos a uma recessao ainda mais severa e teremos uma retomada económica nefasta, calcada nas cinzas das vítimas, na dor e na irresponsabilidade e na ignorancia.
É preciso uma atuagao governamental a fim de restaurar, gradativamente, o estado de confianga. O crescimento económico, como Keynes supós, tem uma correlagao positiva com a baixa aversao a incerteza. Compete ao governo dissipar os medos, irracionais ou nao, dos consumidores e dos empresários. O que jamais deve ser feito mascarando a real situagao e negando a gravidade da pandemia. Mas, sobretudo, projetando confianga, lideranga, autoridade e determinagao na resolugao dos problemas económicos e sociais, com a utilizagao do arsenal keynesiano a fim de prestar suporte económico e o mínimo social durante a sombria realidade.
O surto pandémico provocado pelo novo coronavirus veio para demonstrar, entre várias outras ligóes e uma vez mais na história, que o arsenal liberal nao tem o condao de prestar suporte a devastadora crise económica que se inicia. Sobretudo, cria condigóes para um maior agravamento da crise económica e social ao negligenciar sistemas públicos de saúde, ciéncia, saneamento básico e políticas de crédito e renda mínima que permitam consumo e empregos. Economias e economistas passam a falar a mesma língua, remetendo a necessária atuagao do Estado como protagonista na adogao de medidas sanitárias e políticas económicas e sociais, na tentativa de evitar o colapso total da atividade económica.
A palavra de ordem mundial tem sido no sentido de relegar os compromissos com a disciplina fiscal e atuagao massiva do Estado com programas de transferéncia de renda, políticas económicas, concessao de crédito subsidiado via bancos públicos, assim como futuros investimentos públicos para compensar a fuga do investimento privado e fomentar o emprego e o consumo. Medidas jamais cogitadas para o mainstream do livre mercado.
Evidenciou-se de maneira decisiva que, durante uma crise, o setor privado sai de cena e, além de nao investir, necessita da atuagao estatal para se manter. A atuagao do Estado é fundamental para projetar confianga. Essencial para fomentar a demanda e reanimar a economia em tempos de crise e incerteza.
O laissez-faire vem se mostrando, continuamente, como uma experiéncia fracassada que coloca em risco a sobrevivéncia do próprio capitalismo. Uma livre economia de mercado nao se autorregula, e a combinagao de salários baixos e imensa desigualdade social nao se traduz em crescimento económico. Pelo contrário, é sinónimo de queda na demanda, desemprego e arrefecimento económico. Afinal, ao se reduzir a capacidade de compra da populagao, as empresas sao compelidas a reduzir o ritmo de produgao e dispensar mao de obra. Além de desemprego, a estagnagao do consumo e da produgao reduz a receita tributária, o que gera mais deficit.
A abstengao estatal em investimentos sociais, como a saúde, demonstrou a fragilidade dos sistemas de saúde públicos nos países e o quanto essa debilidade pode arrastar economias inteiras para a depressao. A recusa em investir em saneamento básico permite a maior contaminagao e fragilizagao de grande parte da populagao. Logo, a pandemia veio demonstrar que a vulnerabilidade de uns gera, inevitavelmente, a tragédia de todos.
A auséncia de incentivo e investimento público em pesquisa científica deixa o país a mercé de um vírus, obstando de maneira nefasta o desenvolvimento de uma vacina, de um medicamente antiviral específico, de testes para a detecgao do vírus, expondo a saúde pública da populagao e arrastando consigo a economia do país.
O retorno ao keynesianismo apresenta-se, assim, como o único caminho a percorrer. Os Estados terao que investir em programas de transferencia de renda e concessao de empréstimos bancários subsidiados com baixas taxas de juros para empresas, mormente micro e pequenas empresas que sao a imensa maioria no país. É preciso políticas sociais e fiscais a fim de aumentar a demanda, manter os empregos e dirimir os efeitos perversos do choque de oferta e demanda causado pela pandemia. Incentivos ao investimento privado e, enquanto ausente o investimento privado, pro gramas de infraestrutura mediante investimento público terao que ser cogitados a fim de estimular o emprego, gerar renda e permitir o consumo e a recuperagao económica do país. A saúde pública, o saneamento básico e a redugao da pobreza terao que ser analisados sob o prisma de investimento público e nao apenas como assistencialismo e custo. O fomento a pesquisa científica nacional terá que ser prestigiado a fim de permitir maior inovagao e tecnologia produtiva, protegao a saúde pública e maior autossuficiencia nacional. Nao se pode falar em desenvolvimento económico e social sem apoio e fomento a pesquisa científica nacional.
“A economia está, talvez mais do que nunca antes na história, nas maos da ciencia”. A recuperagao da confianga e a seguranga na retomada económica somente será possível quando a ciencia desenvolver uma vacina ou tratamento claro e aplicável em grande escala (Fariza, 2020, para 8°). Conforme expós o ex-economista-chefe do Banco Mundial, Paul Romer, a única maneira de recuperar a economia é controlando o vírus e as mortes. Afinal, para recuperar a economia, é preciso garantir que as pessoas se sintam seguras e confiantes (García, 2020) - restaurar o estado de confianga.
Nao se trata de profanar permanentemente os necessários ajustes fiscais, mas de nao os sacralizar em detrimento da vida, e da saúde pública e económica do país. Consoante o painel de especialistas do banco suígo UBS, a recuperagao da economia mundial está intimamente condicionada a políticas fiscais, monetárias e de saúde alinhadas e eficazes (Fariza, 2020).
O Estado mínimo está nu! O vírus despiu as premissas ortodoxas do livre mercado. Governos mundo afora rendem-se ao keynesianismo e ao imprescindível papel mais ativo do Estado na economia a fim de mitigar as severas sequelas da crise económica e sanitária provocada pela pandemia e propiciar melhores condigoes de retomada do crescimento económico.
Espera-se que as grandes ligoes e as mortes nao recaiam no rincao do esquecimento.
CONCLUSOES
As consequencias económicas e sociais provocadas pela atual pandemia da Covid-19 nao encontram precedentes na história recente mundial.
As imprescindíveis medidas de restrigao de circulagao e da atividade económica em conjunto com a incerteza sobre o futuro e a quebra do estado de confianga formam a conjuntura hábil a atirar as economias mundiais ao que tende a ser uma das maiores recessoes da história.
O panorama caótico mundial em tempos de pandemia e a impossibilidade do arsenal metodológico liberal para conter os efeitos da crise económica fez emergir uma guinada keynesiana mundial.
Á diferenga das demais crises económicas do último século, a crise causada pela pandemia da Covid-19 expoe fragilidades instransponíveis inerentes ao laissez-faire. O Estado terá que tomar as rédeas da economia e preocupar-se efetivamente com a retomada do crescimento económico, o que inclui, inexoravelmente, políticas públicas para cuidar dos mais vulneráveis e da saúde pública de toda a populagao. Além de investimentos públicos em pesquisa científica. A economia depende, como nunca antes na história, da ciencia, da saúde pública e da atuagao forte do Estado.
Uma vez que a iniciativa privada nao somente sai de cena, em tempos de crise, como necessita de auxílio estatal para sobreviver, a confianga na recuperagao econó mica está na atuagao incisiva estatal, investindo recursos públicos em políticas de saúde, sociais, económicas e fiscais, em uma abordagem conjunta, aos moldes dos matizes keynesianos.
Nao se sabe se o trauma das mortes e do colapso económico trarao, em longo prazo, o imprescindível retorno do pendulo aos matizes keynesianos e a um Estado de bem-estar social, mas será ululante se a pandemia da Covid-19 nao significar a ultimagao do processo de rompimento com a ordem económica neoliberal.