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Opinión Jurídica

versión impresa ISSN 1692-2530versión On-line ISSN 2248-4078

Opin. jurid. vol.19 no.spe40 Medellín dic. 2020  Epub 20-Sep-2021

https://doi.org/10.22395/ojum.v19n40a16 

Artículos

Pandemia e estado de excegao: a escalada da precarizagao dos direitos sociais trabalhistas no Brasil em meio a crise provocada pelo Covid-19

Pandemia y estado de excepción: la escalada de la precarización de los derechos laborales en Brasil en medio de la crisis ocasionada por la Covid-19

Pandemic and State of Exception: the Rise of the Precariousness of Labor Rights in Brazil Amidst COVID-19 Crisis

Renato Horta-Rezende* 

Laura Campolina-Monti** 

* Centro Universitário UNA, Belo Horizonte, Brasil renatohorta@yahoo.com.br http://orcid.org/0000-0002-4666-6903

** Pontifícia Universidade Católica de Minas, Belo Horizonte, Brasil laura.campolinamonti@hotmail.com https://orcid.org/0000-0002-1856-0036


RESUMO

O presente estudo, subsidiado pelo método hipotético-dedutivo e amparado em pesquisa bibliográfica, documental e descritiva, procura demonstrar que a atuagao do Chefe do Executivo brasileiro durante a pandemia, especialmente no que diz respeito a adogao de medidas provisórias sobre o direito do trabalho, caracteriza o estado de excegao definido por Giorgio Agamben, notadamente como descrito no livro Estado de excedo (2004). A pesquisa apurou que o Presidente da República, aproveitando-se do período de pandemia provocada pela Covid-19, promoveu alteragóes profundas nos direitos laborais, contando com a postura condescendente do Supremo Tribunal Federal. Diante dos resultados, concluiuse pela existencia e crescente avango de um estado excepcional a justificar a precarizagao dos direitos sociais trabalhistas no Brasil.

Palavras-chave: Estado de excegao; Giorgio Agamben; direitos sociais; direitos trabalhistas; Covid-19; Pandemia.

RESUMEN

El presente estudio, fundamentado en el método hipotético-deductivo y amparado en la investigación bibliográfica, documental y descriptiva, busca evidenciar que la actuación del jefe del ejecutivo brasileño durante la pandemia, especialmente en cuanto a la adopción de medidas provisionales sobre el derecho laboral, caracteriza el estado de excepción definido por Giorgio Agamben en el libro Estado de excepción (2004). La investigación averiguó que el presidente de la República, aprovechándose del periodo de la pandemia ocasionada por la Covid-19, ha promovido alteraciones sustanciales en los derechos laborales, con el respaldo condescendiente del Supremo Tribunal Federal. Ante los resultados, se concluye por la existencia y creciente avance de un estado de excepción a justificar la precarización de los derechos sociales laborales en Brasil.

Palabras clave: estado de excepción; Giorgio Agamben; Derechos Sociales; Derechos Laborales; Covid-19; pandemia.

ABSTRACT

This study, which is based on the hypothetical-deductive method and supported by bibliographic, documentary and descriptive research, seeks to prove that the performance of the head of the Brazilian government during the COVID-19 pandemic is characterized by the state of exception explained by Giorgio Agamben in his book State of exception (2004), especially in regard to the adoption of pro visional measures on labor law. This research found that the Brazilian President, taking advantage of the pandemic caused by Covid-19, has promoted substantial changes in labor rights, with the unrestrictive support of the Supreme Federal Court. From the evidence, we conclude the existence and growing progress of a state of exception that justifies the precariousness of labor rights in Brazil.

Keywords: state of exception; Giorgio Agamben; Social rights; Labor rights; COVID-19; pandemic.

INTRODUJO

O presente artigo tem origem nas observares dos autores sobre os últimos fatos político-jurídicos ocorridos no Brasil desencadeados no período da pandemia do Covid-19 (Sars-CoV-2), a partir das profundas e imediatas alteragóes legislativas promovidas pelo executivo federal no ámbito dos direitos sociais laborais, as quais é objeto de ligao, pesquisa e reflexóes do autor Renato Horta Rezende. Além disso, tais acontecimentos sao analisados com base na teoria do estado de excegao de Giorgio Agamben, sobre a qual a autora Laura Compolina Monti tem se dedicado desde 2016, compreendendo existir relagao profunda entre o atual momento e os panoramas isoladamente investigados por cada autor.

Iniciada a pesquisa, observou-se que a teoria acerca da necessidade de um Estado de Direito remonta a séculos anteriores. Apesar de o referido modelo, notadamente quando associado com o ideal democrático, assegurar garantias e cercear os abusos por parte dos “soberanos” no papel, verifica-se que os objetivos nao chegaram a se concretizar na prática.

Historicamente, o Estado de Direito é concebido entre o final do século XIX e o início do século XX, e pode ser genericamente definido como um tipo específico de Estado no qual o poder nao pode ser utilizado senao pelos meios autorizados pela ordem jurídica em vigor, possuindo os indivíduos recursos jurisdicionais para o com bate dos possíveis abusos por ele perpetrados. No entanto, mesmo após as revolugóes dos séculos XVIII e XIX, que se pautaram nos ideais iluministas e também colocaram fim ao absolutismo estabelecendo diretrizes para o Estado de Direito - incluindo a limitagao de poderes -, a presenga do autoritarismo nunca deixou de existir.

Há, de certo, uma contínua e tensa dialética entre o que Giorgio Agamben denomina “Estado de excegao” e sua suposta antítese, o Estado de Direito formalmente instituído. Para o referido autor, a contradigao é apenas superficial, vez que, na realidade, sua teoria denuncia a existencia de uma anomalia sistemica que estaria a macular todo o Estado de Direito constitucional, notadamente a atuagao das instituigóes e indivíduos que tem como atribuigao a guarda e garantia da efetividade da Constituigao.

Em apertada síntese, a teoria constitucional da excegao gira em torno da concepgao de “necessidade” ou de “crise”. As decisóes derrogatórias do direito comum por uma autoridade pública confrontada com circunstáncias excepcionais encontram respaldo nas ideias de interesse público ou do bem comum. Nesse sentido, entende-se que o Estado de Direito e a Constituigao podem, e devem, ter incorporado em seu conteúdo uma resposta a crise.

Agamben, no entanto, aponta que o totalitarismo moderno pode ser definido como a instauragao, por meio do estado de excegao, “de uma guerra civil legal que permite a eliminagao física nao só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadaos que, por qualquer razao, paregam nao integráveis ao sistema político” (2004, p. 13). A partir desse ponto, a criagao voluntária de um estado de emergencia permanente - embora, nao raro, nao declarado no sentido técnico - se tornou, na opiniao do autor, umas das práticas essenciais de manutengao e atuagao dos Estados contemporáneos, inclusive daqueles denominados “democráticos”.

No caso específico da América Latina, a permanencia fática do autoritarismo vem sendo justificada como solugao diante do quadro de intensa e perene instabilidade política, democrática e económica que se pretende contornar por meio de um governo forte com poderes extraordinários (Avritzer, 2017, p. 8).Os exemplos se multiplicam na regiao sul do continente americano, podendo ser identificados tanto em períodos de declarada ditadura como em períodos de pretensa democracia em Estados de Direito no Brasil, na Argentina, no Chile, na Venezuela, entre outros.

Diante da constáncia do autoritarismo - que por vezes pode ser identificado como puro estado de excegao -, as variagoes se limitam a intensidade ou justificativa adotada para o exercício discricionário do poder, estabelecendo, como acima anunciado, um estreito diálogo com o Estado de Direito. Contudo, para que a manutengao do estado de excegao perdure, também se torna indispensável a manutengao de tensoes constantes a justificar as excepcionalidades, ainda que estas se tornem permanentes e acolhidas pelo próprio regime democrático constitucional. Em outras palavras, a perenizagao da crise e/ou da necessidade produz a transmutagao da excegao em regra.

A manutengao do estado permanente de excegao que possibilita a suspensao do Estado de Direito pode ter se transformado em técnica de governos tidos como democráticos que escolhem seus inimigos e lhes dirigem todo o arsenal político e legal a fim de sufocar normas jurídicas garantidoras de direitos fundamentais com o discurso de urgencia, emergencia e temporalidade o qual se torna definitivo em virtude do permanente estado excepcional (Agamben, 2004)

Partindo de tais consideragoes históricas e teóricas, e, ainda, reconhecendo o estado permanente de excegao vivenciado pela grande maioria dos Estados e, notadamente, pelos países da América Latina, cumpre examinar o cenário atual. O tema-problema que o presente estudo se propoe a dissecar diz respeito a atuagao do Presidente da República do Brasil diante das incertezas provocadas pelo isolamento social decorrente da crise sanitária capitaneada pela pandemia do Covid-19 (Sars-CoV-2). Em específico,no que se refere a edigao de Medidas Provisórias flagrantemente inconstitucionais e que causam retrocesso na esfera dos direitos sociais fundamentais, nao se questionando, todavia, a legitimidade de tal espécie normativa fundamentada na necessidade de adogao de meios legiferantes próprios a superar a morosidade parlamentar mesmo no cenário de urgencia e releváncia (Carvalho, 2010), ainda que a mencionada necessidade também possa se afigurar como essencial ao estado de excegao.

Diante do problema supramencionado, foi elaborada a hipótese segundo a qual o estado permanente de excegao tem sido intensificado após a instauragao da crise sanitária no Brasil em virtude da pandemia do Covid-19, tendo o Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, aproveitado o cenário para editar medidas excepcionais e inconstitucionais sem maior resistencia da populagao ou dos demais Poderes.

O desenvolvimento teórico e investigativo impresso na pesquisa compreende o método científico hipotético-dedutivo, tendo como referencial teórico a obra de Giogio Agamben, notadamente no que se refere ao estado de excegao, aqui evidenciado nas agoes praticadas pelo Presidente da República do Brasil, em atuagao coordenada com o Supremo Tribunal Federal (STF), no período da pandemia do Covid-19.

A pesquisa foi construída em duas partes; na primeira foi exposto como os direitos sociais foram apontados como inimigos a serem eliminados para a superagao de crises financeiras e económicas em períodos de desenvolvimento de políticas económicas neoliberais no Brasil. Na sequencia, o trabalho correlaciona tal prática histórica com o discurso atualmente adotado por Jair Bolsonaro no sentido de que tais direitos representam obstáculos a manutengao e oferta de empregos no período da crise sanitária e, por consequencia, devem ser flexibilizados por meio de medidas urgentes, excepcionais e supostamente temporárias, fato que configuraria um estado de excegao.

Na segunda parte do artigo se examina a circularidade da subordinagao do Estado ao direito criado por ele mesmo, denunciando a possibilidade de que tal submissao se converta em mero artifício. Ainda nesse tópico, o trabalho busca tragar um panorama da relagao existente entre “crise” e “constituigao”, evidenciando a tendencia a normatizagao da excegao em favor do soberano. Em um terceiro momento, o capítulo aborda em linhas gerais as características dos direitos sociais laborais atualmente sob o ataque no Brasil e, por fim, propoe-se a desnudar o autoritarismo intrínseco a atuagao do atual Presidente da República, bem como do STF, apresentando como exemplo a decisao da proferida na Medida Cautelar em Agao Direta de Inconstitucionalidade n° 6363, justamente por esta ter como objeto uma das medidas provisórias editadas pelo governo federal.

Para o desenvolvimento do trabalho foi realizado levantamento bibliográfico com consultas a livros, dissertagoes e artigos científicos, assim como a legislagao pertinente, com a finalidade de contribuir para o desenvolvimento do raciocínio jurídico científico sobre o tema com a apresentagao de concepgoes atuais que tem o objetivo de propor perspectivas para o futuro dos direitos sociais fundamentais no Brasil.

A oportunidade da pesquisa se expressa pela relevancia que ela pode adquirir na atualidade. Em um contexto de instabilidades institucionais, avango de governos totalitários conservadores e potencial fragilizagao de direitos e garantias fundamentais, refletir detidamente sobre a temática dos direitos sociais, o papel do direito, dos governantes e do STF parece cada vez mais essencial.

2. ESCALADA DO ESTADO DE EXCEDO: O ATAQUE SISTEMÁTICO AOS DIREITOS SOCIAIS FUNDAMENTAIS

As democracias latino-americanas sao herdeiras de um regime autoritário que, por sua vez, se apresentou como algo essencial, excepcional e temporário destinado a superar crises e liquidar inimigos. Mesmo após a redemocratizagao, inimigos sao recriados a partir do estabelecimento da dualidade entre a existencia fática de um estado de excegao permanente para o enfrentamento de crises e o Estado de Direito formal que, diante da constante identificagao de ameagas, permanece em stand-by (Serrano, 2016).

Entre as décadas de 1980 e 1990, quando os países da América Latina retomavam os passos em diregao a redemocratizagao da regiao, também enfrentaram um cenário de crise social ante o grande desemprego, o subemprego e a pobreza decorrentes de crises económicas anteriores e crises políticas ainda pendentes. Para enfrentar esse inimigo, foram incentivados a desenvolver políticas económicas neoliberais orientadas pelo Institute for Intenational Economics, que, entre outras questoes, intensificaram a desregulamentagao e flexibilizagao dos direitos trabalhistas (Campos, 2017).

Tanto a flexibilizagao quanto a desregulamentagao dos direitos do trabalho nao sao novidades no ordenamento jurídico brasileiro, havendo previsao constitucional e infraconstitucional que tratam sobre sua possibilidade, como se infere do artigo 7°, incisos VI e XIII da Constituigao da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), bem como dos artigos 59, 61 e 74, além de outros inúmeros previstos no Decreto-lei 5.452, de 1° de maio de 1943 (Consolidagao das Leis do Trabalho [CLT]) e demais legislagoes trabalhistas esparsas, promulgadas tanto antes como depois do atual marco constitucional.

Na década de 1990, os governos brasileiros de Fernando Collor de Mello (1990-1992) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) desenvolveram políticas neoliberais no país, na esteira daquilo que ocorria em quase toda a América Latina.O objetivo era de superar a estagnagao da renda per capita,a hiperinflagao e o desemprego diante da crise social, política, económica e administrativa que o país atravessava(Bresser-Pereira, 1998). Para isso, um dos meios empregados foi a intensificagao da flexibilizagao e a desregulamentagao de direitos trabalhistas, com a substituigao de regras superiores por inferiores, bem como a retirada da protegao normativa trabalhista clássica de determinadas relagoes socioeconómicas ou segmentos das relagoes de trabalho (Delgado, 2019).

No discurso dos referidos governos havia muitos males a serem enfrentados e, entre eles, foram apontados os direitos trabalhistas cuja manutengao supostamente manteria o estado crítico e impediria o desenvolvimento e manutengao de empregos.

Contudo, a flexibilizagao e regulamentagao de direitos trabalhistas nao alcangou os resultados esperados e, em 1998, final do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, o Brasil alcangou a maior taxa de desemprego de sua história e o mais alto grau de concentragao de renda já registrado, nao sendo alcanzada nenhuma das cinco prioridades instituidas pelo governo: saúde, educagao, emprego, agricultura e seguranda (Soares, 2005).

Com a derrubada1 do governo Dilma Vana Rousseff (2011-2016) e outra vez diante da recente crise social, política e económica, houve inesperada e brusca retomada dos ideários neoliberais que serviram como fundamento para uma reforma trabalhista. Mais profunda que as anteriores, a referida alteragao legislativa foi proposta pelo ex-Presidente da República Miguel Elias Temer Lulia (2016-2019), com a aprovagao da Lei 13.467, de 13 de julho de 2017, que promoveu alteragoes na Consolidagao das Leis Trabalhistas (CLT), Decreto-lei 5.452 de 1943 (Delgado, 2019).

O objetivo apresentado para fundamentar a necessidade de profunda reforma das leis trabalhistas estava assentado na presenga de um inimigo a ser superado: a crise económica. O cenário exigiria tanto a adequagao da já desfigurada CLT de 1943 (Viveiros, 2018) como a redugao e precarizagao das relagoes trabalhistas a fim de manter postos de servigo diante do desemprego crescente (Martinez, 2019) que atingia 12,4% da populagao brasileira entre julho e setembro de 2017 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2020).

As alteragoes propostas para a legislagao trabalhista em 2017, que nao respeitaram os limites constitucionais e convencionais, foram alvos de 34 Agoes Diretas de Inconstitucionalidade (ADI)2 e ainda outras tres Agoes Diretas de Constitucionalidade (ADC)3dirigidas ao STF, restando muitas delas pendentes de julgamento4.

Ainda que a alteragao promovida pela reforma trabalhista de 2017, que tramitou em tempo recorde no Congresso Nacional (Cámara, 2016), tenha fragilizado e retirado direitos trabalhistas individuais e coletivos, o número de desempregados nao diminuiu significativamente, já que, até abril de 2019, tal situagao atingia 12% da populagao brasileira (IBGE, 2020).

Mesmo diante do resultado insuficiente colhido com a reforma de 2017, que assim como as promovidas na década de 1990precarizou direitos trabalhistas e estimulou o desemprego e a informalidade (Melek, 2017), agora, sob a presidencia de Jair Messias Bolsonaro (2019), o Executivo impós outra reforma na lei trabalhista por meio da Medida Provisória (MP) 881, de 30 de abril de 2019 (Brasil, 2019b). O texto da referida norma suprime mais direitos e aponta a legislagao laboral como o inimigo que impede o desenvolvimiento económico e social5diante da persistente crise económica, política e social a ser combatida em prol da manutengao e geragao de empregos.

O Congresso Nacional rejeitou grande parte dessa proposta de mudangas na lei trabalhista, sendo a MP parcialmente convertida na Lei 13.874, de 20 de setembro de 2019 (Brasil, 2019a), que, mesmo retirando direitos, promoveu menos alteragoes que aquelas inicialmente desejadas pelo Executivo.

Em 20 de margo de 2020, o Congresso Nacional, atendendo ao pedido do Presidente da República, reconheceu, por meio do Decreto Legislativo 6 (Brasil, 2020), o estado de calamidade pública decorrente do isolamento social em virtude da pandemia provocada pelo Covid-19 (Sars-CoV-2) autorizando o Chefe do Executivo a dispensar o atingimento dos resultados fiscais e a limitagao de empenho e prazos legais previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal (Brasil, 2000).

Logo após o reconhecimento pelo Legislativo do estado de calamidade pública atual e as suas consequencias por período imediato, mesmo depois de cessada a pandemia, o Presidente da República, que já havia editado medida com forga de lei para contornar os efeitos do isolamento social provenientes da pandemia do Covid-196, editou outras 34 MPs (Cámara dos Deputados Federais, 2020), alcangando assim a média aritmética de quase uma MP por dia para atender casos adjetivados como de urgencia e/ou emergencia.

Ainda que se compreenda a necessidade e regularidade da edigao de MPs para contornar determinados problemas sociais e económicos decorrentes da pandemia, estas se somam as outras 56 MPs anteriores publicadas no mandato do atual Presidente da República, o que deixa claro o estado de excegao permanente7. Tal conclusao emerge com ainda maior clareza diante da extraordinariedade da medida e de seus critérios subjetivos e políticos- urgencia e emergencia-que se tornam mais palatáveis durante a pandemia.

Entre as várias MPs editadas após o reconhecimento pelo Legislativo do estado de calamidade pública, o Chefe do Executivo federal editou também a MP 927, de 22 de margo de 2020 (Brasil, 2020b), e a MP 936, de 1° de abril de 2020 (Brasil, 2020d), novamente adotando como justificativa a necessidade de contengao do cenário de crise dessa vez, sanitária -, reconhecido pelo Legislativo. Foram apontados ainda como fundamento a crise económica, marcada pelo disparo do dólar que ultrapassou a marca dos cinco reais (Centro de Estudos Aplicados em Economia Aplicada [Cepea], 2020), e o índice de desemprego da populagao brasileira igual a 12,2% (IBGE, 2020). Para a superagao das crises, a legislagao trabalhista foi, mais uma vez, identificada como o inimigo a ser vencido para que, assim,se conseguisse alcangar a manutengao de empregos e a retomada de crescimento económico.

A MP 927/2020 confere ao empregador a possibilidade de adotar práticas relacionadas principalmente com a alteragao unilateral do contrato de trabalho, ainda que em prejuízo do empregado e independentemente de qualquer contra partida para a garantia do emprego. A referida norma ainda fragiliza a fiscalizagao quanto a observancia de práticas que asseguram os direitos de saúde e higiene do trabalho, e possibilita a ampliagao da jornada de trabalho de profissionais da saúde, reduzindo-lhes concomitantemente a protegao8.

A referida MP, apesar de pretender inserir norma com vigencia temporária,acentua a flexibilizagao dos direitos trabalhistas, afastando direitos sociais protegidos constitucionalmente e, portanto, avangando sobre as últimas fronteiras fundamentais ao argumento de que a economia nacional estaria a beira do precipício e que somente a agao do Chefe do Executivo, munido de plenos poderes,poderia superar tal estado.

Contudo, a mencionada MP impacta de forma direta a populagao economicamente mais vulnerável e transfere a esta o risco do negócio empresarial (Arantes, 2010) eliminando diretamente os direitos e indiretamente as pessoas nao integráveis a esse sistema político (Agamben, 2004). Desnuda-se, portanto, a real natureza das medidas adotadas pelo atual governo brasileiro e seus impactos sob o trabalho. Isso porque a excegao é precisamente o dispositivo9 original gragas ao qual o direito se refere a vida e a inclui em si por meio de sua própria suspensao. Uma teoria do estado de excegao é, entao, condigno preliminar para se definir a relagao que liga - e ao mesmo tempo abandona - o vivente ao direito (Agamben, 2004).

Um dos dispositivos mais polémicos contidos na redagao original da MP 927/2020 autorizava o empregador a, mediante acordo individual, suspender o contrato de trabalho por até quatro meses sem remuneragao, direcionando o empregado a participagao em cursos de aperfeigoamento. No entanto, diante das diversas manifestagoes de contrariedade e mesmo da inconstitucionalidade da referida norma, o artigo em questao foi revogado um dia após sua publicagao, por meio da MP 928/2020 (Brasil, 2020c). Ainda que se pudesse apontar a revogagao como uma vitória, ela evidencia a aguda inseguranga jurídica a qual se submete o trabalhador brasileiro, que, em verdade, está entregue ao arbítrio do soberano.

Pouco tempo após ter recuado na possibilidade de suspensao do contrato de trabalho sem qualquer contrapartida, o Presidente da República editou a MP 936/2020, que tratou da possibilidade de redugao temporária e proporcional de salário e jornada de trabalho, assim como da suspensao temporária do emprego por meio de acordo individual e a consequente estabilidade temporária do empregado, e ainda da instituigao de Benefício Emergencial de Preservagao do Emprego e da Renda (Brasil, 2020d).

Assim como a MP927/2020, a MP936/2020 afasta regras sociais fundamentais dispostas de maneira expressa no texto constitucional e reconhece uma suposta igualdade de condigoes entre empregado e empregador em tempos de crise, ignorando a vulnerabilidade dos trabalhadores e indo de encontro também com a Convengao154 da Organizagao Internacional do Trabalho (OIT, 1983), aprovada pelo Decreto Legislativo 22, de 12 de maio de 1992, que privilegia as negociagoes coletivas10.

Ambas as MPs tiveram sua constitucionalidade material questionada por meio de ADIs, cujas medidas cautelares de suspensao de seus efeitos foram negadas pelo STF. Em virtude da crise sanitária, económica e política que o Brasil atravessa, a Corte compreendeu como constitucionais dispositivos diametralmente contrários ao texto da Constituigao, concedendo ao Presidente da República plenos poderes para agir em nome do medo e enfrentar em seus próprios termos os inimigos que identificar.

Ao agir assim, o STF, pretenso guardiao do texto constitucional (caput da CRFB/1988), chancela a atuagao excepcional e excessiva do Executivo, e coloca em risco a fronteira da separagao dos Poderes, o que acentua a indeterminagao entre o jurídico e o político, entre a democracia e o absolutismo. Em outras palavras, a Corte atua em favor da manutengao da excegao como técnica de governo, nos exatos termos denunciados por Agamben.

3. O SOBERANO E A CONSTITUIDO

O núcleo da teoría do Estado de Direito, tal qual concebida na Alemanha e na Franga, abriga, conforme mencionado no tópico anterior, o princípio segundo o qual os diversos órgaos do Estado somente podem agir em razao de uma habilitagao jurídica, convertendo-se o exercício do poder em competencia definida pelo Direito (Chevallier, 2013). A limitagao a atuagao do Estado tende naturalmente ao estabelecimento formal de hierarquias normativas, uma vez que o Estado se encontra submetido as normas jurídicas superiores. Assim, a teoria do Estado de Direito postula, inicialmente, a submissao da administragao ao direito, devendo tal submissao ser garantida pela existencia de um controle jurisdicional exercido pelo juiz ordinário ou por tribunais especiais, eles próprios submetidos a lei.

Nesse sentido, o Estado de Direito contrasta com a Rule of Law británica que se relaciona intimamente com a preocupagao de protegao dos direitos e liberdades individuais. Sobre o tema, Jacques Chevallier escreveu:

[...] o respeito a hierarquia das normas se faz com a afirmagao da autoridade suprema e exclusiva da Lei (o poder absoluto do Parlamento estando, entretanto, limitado pela soberania política da Nagao, a existencia de "convengóes da Constituigao” e do peso da “opiniao pública”); a legislagao é obrigada a apresentar um certo número de qualidades intrínsecas (generalidade, publicidade, nao retroatividade, claridade, coerencia, estabilidade e, em primeiro lugar, previsibilidade); enfim, as liberdades individuais sao postas sob a protegao dos tribunais ordinários, o princípio da igualdade diante da Lei exclui todo privilégio de jurisdigao dos agentes da Coroa. (2013, p. 15)

No que tange ao due process of law norte-americano, estabelecido pela 14a Emenda promulgada em 1868, a teoria do Estado de Direito também produz alteragóes interpretativas, passando o referido sistema pouco a pouco a ser entendido nao mais como mera imposigao de uma maneira de agir (procedural due process) as autoridades públicas, mas também como a exigencia de um certo conteúdo de direito aplicável (substantive due process) (Rubin, 2003).

Importante notar, no entanto, que o Estado de Direto é originalmente concebido de maneira formal, independentemente de todo caráter "substancial”. O formalismo, no entanto, encontra seus limites, pois a teoria do Estado de Direito demanda mais do que um Estado regido pelo direito por meio da construgao de uma ordem jurídica hierarquizada; ela exige também que o Estado em si esteja submetido ao direito legislado. De tal assertiva, porém, decorre o que talvez possa ser entendido como o "calcanhar de Aquiles” da referida teoria: nao é possível inferir da hierarquizagao do direito estatal a ideia de submissao do Estado ao direito, salvo se adotada uma reflexao circular; em outras palavras, em se submetendo o Estado ao direito que ele mesmo produz, nada mais faz do que submeter-se a si mesmo. Daí o risco de a subordinagao do Estado ao Direito converter-se em mero artifício11.

A construgao da teoría do Estado de Direito nao é um fato do acaso ou o produto de uma lógica puramente intrínseca da esfera jurídica, antes desponta sobre um terreno ideológico e se enraíza em uma realidade social e política específica. Se desprovida de tais contextos, ela aparece apenas como um invólucro oco, um quadro formal. Na Alemanha e na Franga, ela responde a preocupagao de se criar novos mecanismos de regulado, estando ainda associada com uma ideologia liberal. O Estado de Direto surge, portanto, como uma organizado política e social destinada a por em prática os princípios da democracia liberal (Chevallier, 2013).

Tal modelo se inspira numa desconfianga, por princípio, diante de um Estado que, a partir de entao, se procura enquadrar e conter a fim de evitar a opressao dos indivíduos. Nesse sentido, os filósofos que se esforgaram por pensar racionalmente a ordem política, em oposigao aos teóricos do absolutismo, desempenharam papel fundamental ao desenvolverem a ideia de consentimento (contrato social) e atribuírem ao Estado a finalidade de promogao da seguranga coletiva e da protegao individual de seus membros.

A delegagao ao Estado de poderes de tutela coletiva e individual representa, também, em certa medida, a autorizagao para que ele atue de modo a assegurar sua própria manutengao. Isso porque os direitos e as garantias sao compreendidos como elementos caracterizadores do Estado em si. Diante desse cenário, os textos constitucionais, desde sua origem, incluem dispositivos de enfrentamento das crises que possam abalar o status quo.

Em outras palavras, a fim de proteger a essencia do texto constitucional e assegurar a manutengao do Estado, a própria constituigao traz em seu bojo mecanismos para o gerenciamento das crises, entre eles, no caso do Brasil, a possibilidade de edigao de MPs. Ocorre que, conforme amplamente demonstrado, a situagao atual sugere que tais ferramentas excepcionais tenham de fato se convertido em técnica de governo tendente a supressao de garantias fundamentais, notadamente aquelas relacionadas com os direitos sociais.

3.1. Crise e Constituigao

Toda a construgao teórica relativa ao tema do sistema de legalidade especial está alicergada no conceito jurídico contemporáneo de crise que, por sua vez, se conecta diretamente a ideia de necessidade e pode encontrar seu antecedente histórico no conceito de razao de Estado.

O paradigma jurídico-constitucional do Estado Democrático de Direito compreende a limitagao jurídica do arbitrio do poder político e a estabilidade jurídica das garantias individuais. Nas palavras de Joaquim José Gomes Canotilho, “o princípio básico do Estado de direito é o da eliminagao do arbítrio no exercício dos poderes públicos com a consequente garantia de direitos dos indivíduos perante esses poderes” (1999, p. 10). Nesse sentido, torna-se essencial a análise do conceito de “razao de Estado”, expressao que, mesmo nao constando expressamente de grande parte das normas relativas ao sistema constitucional das crises, é alicerce históricoteórico para a sua construgao.

Razao de Estado, conforme definido por Friedrich Meinecke (1957), é a máxima do agir político, a lei motora do Estado, que determina o que deve ser feito para a manutengao do Estado e indica como este pode se desenvolver. Trata-se, portanto, da situagao em que o Estado se encontra ante ameagas, internas ou externas, ao seu poder que forgam o emprego de determinados meios de defesa e de ataque. A política, entao, pode deixar de lado a moral e o direito para agir em consideragao do bem do Estado, de acordo com a necessidade política. A razao de Estado significa o imperativo em nome do qual o poder se autoriza a transgredir o direito pelo interesse público.

Michael Stolleis (1998) aponta o surgimiento praticamente simultaneo das expressoes “razao de Estado”, “lei fundamental” e “soberania” na linguagem política europeia, o que demonstraria, segundo o autor, a vontade de poder interna do Estado e sua tendencia expansionista. Na opiniao de Stolleis, a legislagao figura como a primeira prerrogativa soberana, na medida em que se considera a livre disposigao do legislador. No entan to, a margem de agoes de política interna cresce com a razao de Estado que busca também mitigar a legislagao, adaptando-a as circunstancias concretas. Por fim, as leis fundamentais legitimam racionalmente o pacto de dominagao política, embora retirem, ao menos em tese, elementos essenciais da discricionariedade legislativa do soberano.

Carl Schmitt, um dos autores analisados por Agamben em sua obra, é conhecido por seus trabalhos teóricos sobre a perspectiva do pensamento jurídico-político estatal e define a razao de Estado como “la afirmación y la ampliación del poder político” (1968, p. 44). O autor afirma ainda que:

[...] al final del siglo XV, cuando se había agotado el vigor de la teología y ya no satisfacía científicamente la visión patriarcalista del nacimiento del reino de los hombres, la política se desarrolló como una ciencia, la cual ha configurado una especie de doctrina esotérica en torno del concepto casi místico del ratio status. (Schmitt, 1968, p. 45)12

Para alguns autores, como Senellart (2013) e Post (1992), a concepgao de razao de Estado se encontra nos juristas e teólogos medievais, desde o século XII. Gaines Post chega a afirmar a importancia da tradigao romana, citando as concepgoes de “necessitas legem non habet13, “ratio publica eutilitatis” e “ratio status14, para a compreensao da razao de ser do governo, do poder público e da preservagao do bem comum. Para o autor, “o papel dos juristas, glosadores e comentadores, foi essencial para o desenvolvimento da concepgao de razao de Estado a partir do direito romano e do direito canónico" (Post, 1992, p. 15).

Nesse sentido, pode-se assumir que Post considera a razao de Estado atemporal, entendendo a defesa do bem-estar público em caso de urgencia ou necessidade como uma regra de conduta para toda e qualquer organizagao política, em todos os tempos. Em outras palavras, o conceito de razao de Estado assim poderia ser entendido como um problema permanente na prática política.

Ilustrando o acima exposto, bem como a tendencia de normatizagao da excegao em favor do soberano, Gilberto Bercovici escreve:

A tributagao pública e os impostos, por exemplo, eram sempre eventos extraordinários. Os recursos ordinários eram provenientes do domínio real. Os impostos eram considerados recursos extraordinários, com o objetivo de financiar a defesa do reino e a guerra. Por isso a necessidade do consentimento dos súditos ressaltada pelos autores medievais. O que vai se modificar a partir do século XII é o fato de a emergencia publica, o casus necessitatis ir, aos poucos, se tornando permanente. Sempre com a justificativa da necessidade, ao final dos séculos XIII e XIV, a cobranga de impostos se torna anual. A necessitas mudou de sentido, passando da defesa e guerra para as necessidades ordinárias da administragao, tornando-se perpetua necessitas ou necessitas in habitu. (2013, p.53)

Durante a primeira metade do século XVII, a razao de Estado busca resolver problemas específicos ligados as guerras religiosas, ao Sacro-Império, ao nascimento e manutengao dos Estados. O problema fundamental é como guiar normativamente a política, agora autónoma, sem a religiao e a moral. Na segunda metade do século XVII, a reflexao sobre a razao de Estado assume as características de disciplina jurídica para fornecer a argumentado necessária para legitimar a supressao de direitos em favor do interesse comum da preservado do Estado. A técnica política autónoma, dotada da fundo exclusiva de conservado política, gera a normalidade das práticas de transgressao, derrogagao e desvio da ordem ético-jurídica (Bercovici, 2013).

Tais reflexoes evidenciam um cenário tenebroso. Nao apenas transparece a concretizagao de um estado de excegao, com a suspensao autorizada da ordem jurídica para além dos limites constitucionalmente instituídos, mas também se está diante do risco - e mesmo da tendencia - de perenizagao dessa suspensao a despeito de seus feitos e de seu contraste com a Constituigao brasileira.

É evidente que o mundo se encontra em um momento de crise, sendo igualmente clara a crítica situagao económica enfrentada por grande parte dos países da América Latina, notadamente pelo Brasil. No entanto, o que se questiona nao é a relevancia e urgencia do cenário, mas das medidas que o governo optou por adotar, notadamente aquelas que se referem a flexibilizagao e supressao de direitos que sao resultado de conquistas históricas.

3.2. Direitos sociais na Constituigao da República Federativa do Brasil de 1988

Os direitos sociais, como direitos de segunda dimensao, convém relembrar, sao aqueles que exigem do Poder Público uma atuagao positiva, uma forma atuante de Estado, prioritariamente na implementagao da igualdade social dos hipossuficientes. Conforme ensina Kildare Gongalves Carvalho, “sao direitos de status positivus, já que permitem ao indivíduo exigir determinada atuagao do Estado, com o objetivo de melhorar suas condigoes de vida, garantindo os pressupostos materiais para o exercício da liberdade” (2010, p.749-750).

Sua origem histórica está na crise da tradigao do Estado Liberal e na consagragao do paradigma do Estado Social de Direito, que, rompendo com os padroes formalistas de igualdade e de liberdade do paradigma anterior, buscam mecanismos mais concretos de redugao das desigualdades socioeconómicas para os membros da sociedade (Fernandes, 2018). A partir desse movimento, desmistifica-se o preceito da igualdade formal instituída pelo liberalismo e tem início a manifestagao de que o Estado pode ser compreendido nao mais como um inimigo (oponível) da sociedade, mas como um facilitador de sua existencia.

No Brasil, a preocupagao da ordem constitucional com os direitos sociais assume, na Constituigao de 1934, o seu marco inicial. Por sua vez, a Constituigao de 1988 trouxe importantes avangos, principalmente porque, ao colocar os direitos sociais no título lI dos direitos fundamentais, finaliza uma discussao despropositada e estéril existente na doutrina constitucional acerca de sua natureza. Hoje, é inquestionável a pertenga dos direitos sociais como espécies de direitos fundamentais.

O artigo 6° da Constituido da República de 1988 refere-se de maneira bastante genérica aos direitos sociais por excelencia, como o direito a saúde, ao trabalho, ao lazer, a previdencia social e a assistencia aos desamparados. Diversas sao, portanto, as espécies de direitos sociais. A doutrina, contudo, com fins didáticos, vem agrupando tais direitos sociais em algumas categorías: 1a) os direitos sociais dos trabalhadores; 2a) os direitos sociais da seguridade social; 3a) os direitos sociais de natureza económica; 4a) os direitos sociais da cultura; 5a) os de seguranga. Os direitos sociais dos trabalhadores podem ser classificados em: 1°) direitos sociais individuais do trabalhador; 2°) direitos sociais coletivos do trabalhador (Tavares, 2020). No presente estudo, conforme esclarecido, interessa abordar especialmente os direitos relativos aos trabalhadores.

O oferecimento de direitos de cunho social tem como destinatários todos os indivíduos, mas pretendem, em especial, alcangar aqueles que necessitam de um amparo maior do Estado. Contudo, a protegao constitucional constante do artigo 7° da Constituigao da República de 1988 destina-se, segundo os dizeres da própria Constituigao, apenas aos trabalhadores, sejam eles urbanos, sejam rurais. É precisa mente em face dos direitos inscritos nesse dispositivo constitucional - e em outras leis esparsas - que a atuagao do atual governo tem se intensificado.

É certo que, de início, seguindo uma linha mais rígida da leitura da “separagao de poderes”, o universo das normas de direitos sociais era tido como questao interna aos órgaos políticos do Estado, que, a partir de razoes pragmáticas (por exemplo, políti cas), estabelecia a lista de prioridades internas a esses direitos, bem como os modos e formas de sua concretizagao. (Fernandes, 2018) Por essa razao, tradicionalmente atribuiu-se a natureza das normas constitucionais sobre direitos sociais o status de normas programáticas, que sao normas de baixa efetividade, demarcando-se muito mais planos políticos de agao, que o legislador e o administrador público deverao se comprometer do que verdadeiras obrigagoes jurídicas concretas.

Entretanto, numa perspectiva mais atual, a literatura especializada vem entendendo, conforme preleciona Andréas Krell que

[a]s normas programáticas sobre direitos sociais, que hoje encontramos na grande maioria dos textos constitucionais dos países europeus e latino-americanos definem metas e finalidades, as quais o legislador ordinário deve elevar a um nível adequado de concretizagao. Essas “normas-programa” prescrevem a realizagao, por parte do Estado, de determinados fins e tarefas (2002, p.20).

Assim, “elas nao representam meras recomendagoes (conselhos) ou preceitos morais com eficácia ética-política meramente diretiva, mas constituem Direito diretamente aplicável” (2002, p.20).

A despeito da relevancia de tais direitos, de sua natureza exigir uma postura ativa do Estado e de sua genese estar associada com o fracasso de ideias liberais, sao precisamente esses os direitos que a atual gestao, em nome da economia, aponta como os principais inimigos. Nesse sentido, mais do que uma violagao constitucional, as políticas do governo Bolsonaro representam uma contradigao histórica e a negagao do compromisso de redugao das desigualdades.

3.3. O soberano

Considerada a gravidade do cenário delineado, poder-se-ia imaginar que o Presidente da República, no que tange a suas medidas autoritárias e controversas, estivesse se esforgando para manter um discurso de legalidade e vinculagao a ordem constitucional vigente e ao próprio Estado Democrático de Direito. No entanto, verifica-se que Jair Messias Bolsonaro transparece, reiteradamente, em seu discurso o viés intencionalmente excepcional de seu governo (Marques, 2020; Rodrigues, 2020).

Diante do caos decorrente das crises sanitária, económica e política, o país tem testemunhado a ocorrencia de sucessivas manifestagoes populares (Caram, 2020; Coletta, Carvalho e Fernandes, 2018; Franco, 2020; Adorno, 2020; Fernandes, Soares e Teófilo 2020). Em atengao as orientagoes das autoridades de saúde nacionais e mundiais, boa parte dos manifestantes tem escolhido os meios digitais como veículo para a expressao de opiniao e a reivindicagao de direitos. No entanto, há uma significativa parcela de apoiadores do Presidente que, ignorando essas mesmas recomendagoes, tem se aglomerado em locais públicos a fim de defender as posturas adotadas por ele, inclusive as MPs objeto do presente estudo.

Em mais de uma oportunidade, Jair Messias Bolsonaro se juntou a horda de manifestantes, demonstrando absoluto desprezo nao apenas pelas diretrizes sanitárias (Amado, 2020; Ohana, 2020), mas, sobretudo pela vida daqueles diretamente atingidos pela pandemia. Durante uma manifestagao particularmente surreal, na qual os manifestantes pediam a intervengao militar, bradavam contra o Congresso Nacional e pediam o fim do isolamento social, o Chefe do Executivo discursou a respeito da Constituigao (Congresso em foco, 2020). No entanto, ao ser questionado pela imprensa sobre a sua participagao no referido ato, o Presidente respondeu: “O pessoal geralmente conspira para chegar ao poder. Eu já estou no poder. Eu já sou o presidente da República. Eu sou, realmente, a Constituigao” (Carvalho, 2020, s/p).

O episódio, obviamente, teve grande repercussao, e o comentário do jornalista Josias de Souza representa acurada análise do contexto:

Tornaram-se frequentes os episódios em que Jair Bolsonaro tem recaídas de sobriedade depois de personificar ataques de insensatez. Se isso tivesse ocorrido uma vez, poderia ser entendido como mero acontecimento. Se tivesse ocorrido duas vezes, poderia ser interpretado como mera coincidencia. Quando a coisa se repete incontáveis vezes, vira uma inquestionável estratégia. Na crise do coronavírus, o que era apenas incomodo vai se tornando insuportável. No seu vaivém estraté gico, Bolsonaro já levou o rosto cinco vezes a vitrine da rede nacional de radio e TV. Ele desdisse num pronunciamento o que dissera na fala anterior. Em margo, Bolsonaro desconvocou uma manifestagao anti-Congresso e anti-Supremo que ele havia estimulado em mensagens de WhatsApp. Depois, foi ao encontro dos manifestantes em frente ao Planalto, violando as recomendagoes de isolamento social do Ministério da Saúde.

Neste domingo, Bolsonaro discursou para uma multidao que clamava, no gogó e em inúmeras faixas, por intervengao militar, fechamento do Congresso e do Supremo e um novo AI-5, que pressupoe, entre outras barbaridades, a censura a imprensa. Tudo isso na frente do Quartel General do Exército. Nesta segundafeira, o presidente disse que respeita o Judiciário e o Legislativo. E proclamou: “Eu sou a Constituigao”.

A frase lembra Luiz 14. Com uma diferenga: o monarca francés, a quem se atribui a frase “O Estado sou Eu”, viveu no século 17 e permaneceu no poder por 72 anos. Bolsonaro vive no século 21, num país democrático [...] (2020, s/p)

Se a frase Luiz XIV parece absurda, mesmo tendo sido pronunciada em um contexto de absolutismo, a afirmagao feita por Bolsonaro é absolutamente divorciada de qualquer parámetro de razoabilidade. O Chefe do Poder Executivo, por óbvio, nao personifica o Estado e tampouco o texto constitucional, estando antes a este submetido. Nao lhe cabe nem mesmo a alcunha de “Chefe Supremo” como também pretendeu se auto-intitular o Presidente (Franco, 2020).

Há, no entanto, um título que Bolsonaro poderia reivindicar, qual seja, o título de “soberano”. O conceito de soberania tem seu nascimento no século XVI, como elemento essencial para estruturagao e formagao do Estado Moderno. Kelsen afirma que a soberania é qualidade do poder do Estado, sendo absoluta, já que nenhuma outra manifestagao pode se contrapor a vontade estatal (Fernandes, 2018). Por isso mesmo, a doutrina tradicional irá afirmar que a soberania tem como características ser: uma (um poder acima de todos os outros); indivisível (aplicável a todos os acontecimentos internos ao Estado); inalienável (se o Estado a perder, ele desaparece); e imprescritível (nao há limite de duragao, existindo tao quanto exista o Estado) (Fernandes, 2018).

Assim, na perspectiva da tradicional dogmática constitucional, o Estado é soberano. No entanto, há uma outra definigao de soberano que importa analisar. Nas palavras de Carl Schmitt, em sua obra Political Theology (2005), também pode ser entendido como o soberano aquele que decide sobre o estado de excegao. Em síntese, o referido autor assume que a soberania nao se encontra em qualquer texto legal e, tampouco, é de titularidade do povo, sendo antes atributo daquele que a seu arbítrio decide pela existéncia de uma crise/necessidade, bem como sobre quais as medidas adequadas para o enfrentamento dela.

O estado de excegao caracteriza-se precisamente pela suspensao autorizada da ordem jurídica a fim de garantir a manutengao da ordem e do Estado. Pode ser considerado, portanto, como medida ilegal, mas absolutamente jurídica e revestida de constitucionalidade. Como definido por Agamben (2004), a criagao voluntária de um estado de emergencia permanente - embora, nao raro, nao declarado no sentido técnico - se tornou umas das práticas essenciais de manutengao e atuagao dos Estados contemporáneos, inclusive daqueles denominados democráticos. Isso porque a manutengao de um estado de excegao permanente colabora com interesses individuais de conservagao das condigoes de poder político.

Conforme explica Agamben,

[n]a realidade, o estado de excegao nao é nem exterior nem interior ao ordenamento jurídico e o problema de sua definigao diz respeito a um patamar, ou a uma zona de indiferenga, em que dentro e fora nao se excluem, mas se indeterminam” (2004, p. 39).

Nesse sentido, a suspensao da norma nao significa sua aboligao e a zona de anomia por ela instaurada nao pretende ser destituída de relagao com a ordem jurídica. A finalidade do estado de excegao, considerada sua intrínseca relagao com a ideia de necessidade e de preservagao de uma ordem jurídica, nao parece ser o combate a uma situagao excepcional, mas o fortalecimento do poder do soberano que, além de decidir sobre a existencia da necessidade, decide também sobre as medidas apropriadas a serem adotadas.

O paradoxo da soberania se anuncia quando o soberano está ao mesmo tempo dentro e fora do ordenamento jurídico. Nas palavras do autor,

[s]e o soberano é, de fato, aquele no qual o ordenamento jurídico reconhece o poder de proclamar o estado de excegao e suspender, deste modo, a validade do ordenamento, entao ele permanece fora do ordenamento jurídico e, todavia, pertence a este [...] (Agamben, 2002, p. 23)

Nesse sentido, a soberania assinala o limite, compreendido tanto no sentido de fim como de princípio, do ordenamento jurídico. Schmitt (1992) evidencia a articulagao do soberano com a excegao a partir de uma decisao:

A excegao é aquilo que nao se pode reportar; ela subtrai-se a hipótese geral, mas ao mesmo tempo torna evidente com absoluta pureza um elemento formal especificamente jurídico: a decisao. Na sua forma absoluta, o caso de excegao se verifica somente quando se deve criar a situagao na qual possam ter eficácia normas jurídicas. Toda norma geral requer uma estruturagao normal das relagoes de vida, sobre as quais ela deve encontrar de fato aplicagao e que ela submete a própria regulamentagao normativa. A norma necessita de uma situagao média homogenea. Esta normalidade de fato nao é um simples pressuposto que o jurista pode ignorar; ela diz respeito, aliás, diretamente a sua eficácia imanente. Nao existe nenhuma norma que seja aplicável ao caos. Primeiro se deve estabelecer a ordem: só entao faz sentido o ordenamento jurídico. É preciso criar uma situagao normal, e soberano é aquele que decide de modo definitivo se este estado de normalidade reina de fato. Todo direito é “direito aplicável a uma situagao”. O soberano cria e garante a situagao como um todo na sua integridade. Ele tem o monopólio da decisdo última. Nisto reside a essencia da soberanía estatal, que, portanto, nao deve ser propriamente definida como monopólio da sanado ou do poder, mas como monopólio da decisao [...] Aqui a decisao se distingue da norma jurídica e (para formular um paradoxo) a autoridade demonstra que nao necessita do direito para criar o direito. (1992, p. 39-41 citado em Agamben, 2002, p. 24; grifo nosso)

A partir dessa referencia ao monopólio da decisao e diante do panorama fático delineado no primeiro capítulo, emerge com clareza a realidade de um país submetido ao arbítrio de um soberano que vem sistematicamente investindo contra os direitos sociais dos trabalhadores.

3.4. 0 STF como guardiáo do texto constitucional

A última fronteira para a protegao da integridade do texto constitucional e, consequente, nao apenas dos direitos nele inscritos (como aqueles previstos no artigo 7°), mas do próprio Estado Democrático de Direito é comumente identificada no STF. A referida Corte é o órgao de cúpula do Judiciário brasileiro e, de fato, desde sua origem, recebeu a atribuigao de vigilancia para a manutengao da ordem jurídica e organizacional do Estado. Foi criado no Governo Provisório republicano para ser a instituigao que deveria garantir a República, mesmo contra eventuais maiorias parlamentares que apoiassem o retorno a Monarquia.

Isto é, a fungao originária do STF era a manutengao do regime político e da ordem jurídica vigente. Kildare Gongalves Carvalho aponta que “o texto constitucional de 1988 conferiu ao Supremo Tribunal Federal a fungao precípua de guarda da Constituigao” (2010, p. 1357) e, nesse sentido, Oscar Velhena Vieira aponta que as mudangas trazidas pela CRFB/88 na esfera da jurisdigao constitucional:

[t]iveram um forte impacto sobre o papel do Supremo Tribunal Federal no sistema político brasileiro. A ampliagao do acesso, o estabelecimento de novas competencias, somada a própria extensao do direito constitucional sobre campos antes reservados ao direito ordinário, transformaram o Supremo Tribunal Federal numa importante e cada vez mais demandada arena de solugao de conflitos políticos, colocando-o numa posigao central em nosso sistema constitucional. (2002, p. 217)

Quanto ao papel político do STF, Aliomar Baleeiro afirma que:

O Supremo carrega por precípua missao a de fazer prevalecer a filosofia política da Constituigao Federal sobre todos os desvios que o Congresso e o Presidente da República, Estados, Municípios e particulares se tresmalhem, quer por leis sancionadas ou promulgadas, quer pela execugao delas ou pelos atos naquela área indefinida do discricionarismo facultado, dentro de certos limites, a ambos aqueles Poderes. O tragado desses limites, quer quanto ao legislador, quer quanto ao executor, nunca foi, nao é, nem será nunca uma linha firme, clara e inconfundível. Há uma terra de ninguém nesta faixa de fronteira. Teoricamente, essas linhas jazem na Constituigao. Mas como a lei é a obra de expressao do pensamento, ela padece de lacunas, antinomias e obscuridades, como os de qualquer outro país em qualquer época. E a agao do tempo, envelhecendo dispositivos ou desafiando o alcance de outros, senao o próprio silencio do texto, engendra os problemas que o Supremo Tribunal Federal há de enfrentar pelo futuro afora, as vezes como freio dos avangos temerários, outras vezes como acelerador das aspiragoes agudas e das reformas latentes.(1968, p. 103)

Ve-se, portanto, que a fungao delegada ao Supremo Tribunal Federal, sob a ótica da dogmática constitucional moderna, está ligada nao apenas a nogao de guarda da Constituigao, mas também a ideia de manutengao da ordem e do regime político em vigor, englobando inclusive a eventual revisao de atos do Executivo e do Legislativo. É possível conceber, nesse sentido, que é do STF o monopólio da decisao última a respeito da constitucionalidade (e consequente vigencia) das normas em geral no ordenamento jurídico brasileiro; no entanto, o foco de estudo do presente trabalho nao é a atuagao do STF como um todo, mas, especificamente, seu posicionamento com relagao as MPs editadas durante a pandemia.

3.5. MC-ADI 6363

Diversas MPs recentemente editadas pelo Chefe do Executivo foram questionadas perante o Supremo, tendo sido propostas, como já mencionado, mais de 30ADIs e ainda outras tres ADCs. A fim de ilustrar a atuagao da Corte Constitucional, elege-se o acórdao proferido quando do julgamento da medida cautelar na ADI 6.363, que abordou a temática dos direitos trabalhistas cuja fragilizagao o presente estudo busca evidenciar. A referida agao foi proposta pelo Partido Rede Sustentabilidade, em face da MP936/2020, que instituiu o “Programa Emergencial de Manutengao do Emprego e da Renda” (Brasil, 2020d). Foram especificamente questionados os dispositivos que versavam sobre a possibilidade de repactuagao do contrato de trabalho, inclusive com redugao de salário e alteragao de jornada, mediante acordo individual firmado entre empregador e empregado, como se este estivesse em igualdade de condigoes.

Em síntese, o requerimiento formulado apontava a violagao direta aos artigos 7°, VI, XIII e XXVI, e 8°, III e VI, da Constituigao. Os referidos dispositivos assim estabelecem:

Art. 7° Sao direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem a melhoria de sua condigao social:

[...]

VI -irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convengao ou acordo coletivo;

[...]

XIII - duragao do trabalho normal nao superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensagao de horarios e a redugao da jornada, mediante acordo ou convengao coletiva de trabalho;

[...]

XXVI -reconhecimento das convengoes e acordos coletivos de trabalho;

Art. 8° É livre a associagao profissional ou sindical, observado o seguinte:

[...]

III -ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questoes judiciais ou administrativas;

[...]

VI -é obrigatória a participagao dos sindicatos nas negociagoes coletivas de trabalho;

Ve-se, portanto, que a ofensa ao texto constitucional é evidente, nao dependendo sua identificagao de qualquer exercício interpretativo.

O STF, no entanto, tem firmado entendimento no sentido de que, apesar de sujeitas ao controle de constitucionalidade, as MPs demandam análise dife renciada. Segundo a Corte, a inconstitucionalidade material deve, em regra, ser analisada, ou seja, o Supremo irá analisar se o conteúdo da MP contraria ou nao o texto da CRFB/88. Porém, afirma o STF (de forma questionável, para alguns doutrinadores) que a inconstitucionalidade formal deve ser analisada apenas excepcionalmente (como excegao). Isso porque a inconstitucionalidade formal diz respeito aos fundamentos da relevancia e urgencia (requisitos formais da MP) e entende o STF que a análise de relevancia e urgencia é um juízo discricionário do Presidente da República. Nesses termos, quem tem que saber o que é relevante e urgente para o país é o Presidente (Fernandes, 2018).

Tal entendimento claramente chancela a fungao de soberano - na concepgao Schmittiana- do Presidente, na medida em que a cúpula do Judiciário brasileiro afirma depositar sua confianga no arbítrio deste.

A fé - que os romanos denominavam “fides”- teria o mesmo sentido que “possuir um crédito com alguém”, como consequencia do fato de que somos abandonados confiavelmente a ele, ligando-nos numa relagao de fidelidade. Por isso, a fé é tanto a confianga depositada em alguém quanto a confianga com que contamos junto a alguém (Agamben, 2011). Aquele que detém a fides nele colocada por um homem mantém tal homem em seu poder. Na sua forma primitiva, tais relagoes implicavam uma reciprocidade, ou seja, depositar a própria fides em alguém merecia, em retribuigao, a sua garantia e a sua ajuda. “Mas é precisamente esse fato que marca a desigualdade de condigóes. Trata-se de uma autoridade que é exercida conjuntamente com a protegao sobre aquele que se submete, em troca da sua submissao e na mesma medida desta” (Benveniste, 1969, p. 118-119).

A fides é o meio pelo qual alguém se entrega totalmente a confianga de outrem, podendo ser também compreendida como mecanismo para aquilo que Agamben (2004) chama de “pura dominagao de fato”; portanto, elemento essencial na compreensao do estado de excegao como paradigma do direito e, especificamente no caso em tela, da situagao do Brasil no cenário atual.

Se parte do entendimento da Corte chancela a entrega do povo ao soberano, sua aplicagao também conduziria, ao menos em tese,a suspensao da MP936/2020 que, independentemente dos requisitos formais, apresenta conteúdo que ofende frontalmente o texto constitucional.Na prática, entretanto, o ministro Ricardo Lewan dowski ignorou o posicionamento anterior do Supremo e, em exercício de verdadeira atividade legislativa complementar, optou por interpretar o texto da MP no sentido de que os acordos individuais somente se convalidarao após a manifestagao dos sindicatos dos empregados. Na mesma decisao, o ministro ressalvou que, na ausencia de manifestagao destes, na forma e nos prazos estabelecidos na própria legislagao laboral para a negociagao coletiva, será lícito aos interessados prosseguir diretamente na negociagao até seu final.

A referida decisao reconhece expressamente nao expurgar integralmente a inconstitucionalidade contida na MP936/2020, consignando que “pretende-se pre servar ao máximo o ato normativo impugnado, dele expungindo [apenas] a principal inconstitucionalidade apontada na exordial” (Lewandowski, 2020, s/p).

Diante do exposto, tem-se que o STF, comumente identificado como guardiao da Constituigao e garantidor da efetividade dos direitos fundamentais, a partir da edigao de MP claramente ofensiva ao texto constitucional e com potencial de lesar milhares de trabalhares, optou por extrapolar sua competencia e adequar o texto que deveria ter sido reconhecido como natimorto. Assim, mais do que encorajar a continuidade da pratica desenfreada de edigao de MPs inconstitucionais, a Corte se torna cúmplice da instalagao e manutengao do estado de excegao.

CONCLUSOES

Historicamente, as democracias latino-americanas sao herdeiras de um regime autoritário que, por sua vez, se apresentou como algo essencial, excepcional e temporário destinado a superar crises e liquidar inimigos.No Brasil, a flexibilizagao e a desregulamentagao dos direitos do trabalho vem se operando de maneira sistemática, notadamente durante os governos com tendencia neoliberal.

Após a promulgagao do Decreto Legislativo 6 (Brasil, 2020), que declarou o estado de calamidade pública decorrente da pandemia provocada pelo Covid-19 (Sars-CoV-2), testemunhou-se a proliferagao de MPs que, com o pretexto de representarem uma resposta a crise, precarizaram sobremaneira as relagoes de trabalho, ofendendo de maneira direta o texto constitucional.

Capitaneadas pelo Presidente da República, tais medidas evidenciam e corroboram um estado de excegao que opera a pleno vapor sob o mando do Estado de Direito constitucional.

A dogmática constitucional tradicionalmente adota a concepgao de Hans Kelsen, o qual identifica, nas Cortes Constitucionais, a fungao de declarar o direito, defendendo a Constituigao. No entanto, tal concepgao nao isenta o Estado brasileiro dos riscos inerentes ao desvirtuamento da Constituigao com base em uma decisao daquele que lhe deveria garantir efetividade, mas que se torna, em grande medida, um legislador ratione temporis ac situationis.

A decisao proferida quando do julgamento da medida cautelar na ADI6.363 ilustra com clareza esse cenário e a realidade de um povo entregue ao arbítrio do soberano, mediante a aquiescencia de sua Corte Constitucional.

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1Segundo Nassif (2018), o processo de impeachment da ex-Presidente da República, Dilma V. Rousseff (PT), é resultado de um golpe de Estado apoiado pelo Parlamento, Judiciário e por parcela da populagao brasileira, e que causou e ainda causará o perecimento de conquistas sociais e redugao de direitos em que, a época, a sociedade nao projetaram.

2“Espécie de controle concentrado no STF que visa a declarar a inconstitucionalidade de leis ou atos normativos federais ou estaduais que contrariem a Constituigao da República de 1988” (Fernandes, 2018, p. 1.571).

3“Espécie de controle concentrado no STF que visa a declarar a constitucionalidade de leis ou atos nor mativos federais que estejam em consonáncia com a Constituigao”(Fernandes, 2018, p. 1.631).

4Por exemplo, a ADI 5.923.

6Conforme a MP 925, de 18 de margo de 2020, que trata da prorrogagao de contribuigoes fixas e as variáveis relativas a contratos de concessao de aeroportos, prazo para reembolso e reutilizagao de passagens aéreas por motivo da pandemia do Covid-19 (Brasil, 2020a).

7Em todos os governos brasileiros, tornou-se evidente o abuso do uso de MPs, o que evidencia o estado de excegao permanente. Por exemplo: José Sarney de Araújo Costa (1985-1990) editou 41 MPs; Fernando Collor de Mello (1990-1992) editou 278 MPs; Itamar Augusto Cautiero Franco (1992-1995) editou 533 MPs; Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) editou 1.497 MPs; Luis Inácio Lula da Silva (2003-2011) editou 410 MPs; Dilma Vana Rousseff (2011-2016) editou 221 MPs; Michel Miguel Elias Temer Lulia (2016-2019) editou 125 MPs (Brasil, 2020e).

8Conforme artigo 4°, caput, e artigo 26 e 27 da MP 927/2020 (Brasil, 2020b).

9Na obra O que é o contemporáneo? e outros ensaios (2009), Agamben propoe a hipótese de que a palavra “dispositivo” seja um termo técnico decisivo na estratégia do pensamento de Foucault. Embora estenunca tenha elaborado propriamente uma definigao, Agamben aponta algumas de suas declaragoes, em entrevista concedida no ano de 1977, como sendo evidencias da hipótese que se propoe a investigar. Do conteúdo da referida entrevista, Agamben extrai as seguintes conclusoes acerca do dispositivo: a) é um conjunto heterogeneo, linguístico e nao linguístico, que inclui virtualmente qualquer coisa no mesmo título — discursos, instituigoes, edifícios, leis, medidas de polícia, proposigoes filosóficas etc. O dispositivo é a rede que se estabelece entre esses elementos; b)o dispositivo tem sempre uma fungao estratégica concreta e se inscreve sempre numa relagao de poder; c) como tal, resulta do cruzamento de relagoes de poder e de relagoes de saber.

10“Art. 5 — 1. Deverao ser adotadas medidas adequadas as condigoes nacionais no estímulo a negociagao coletiva” (OIT, 1983).

11A doutrina do Estado de Direito trará a esse problema respostas variadas: a teoria da “autolimitagao”, dominante no pensamento jurídico alemao, segundo a qual nao se conheceria nem haveria direito anterior e superior ao Estado, respondem as teorias de “heterolimitagao”, muito presentes no pensamento jurídico frances, colocando o fundamento do direito fora do Estado — antes que H. Kelsen recuse os termos da controvérsia, pela afirmagao da identidade entre o Estado e o direito (Chevallier, 2013).

12“[...] ao final do século XV, quando se havia esgotado o vigor da teologia e já nao mais satisfeita a visao patriarcal do nascimento do reino dos homens, a política se desenvolveu como uma ciencia, a qual criou uma espécie de doutrina esotérica em torno do conceito quase místico da razao de Estado” (Schmitt, 2013, p. 45) (tradugao nossa).

13A necessidade nao tem lei. Sobre esse aspecto, ver Senellart (2013), em particular os tópicos sobre a análise de Policraticus de Jean de Salisbury. Conforme explica Agamben (2004, p. 41), “a teoria da necessidade nao é aqui outra coisa que uma teoria da excegao em virtude da qual um caso particular escapa a obrigagao de observancia da lei”.

14Antes da era moderna, esses brocardos, que tem sua origem no direito romano, especialmente na construgao da doutrina do iustitium, foram utilizados na Idade Média para a elaboragao de teorias sobre uma espécie de excegao, que fundamentaria o poder do rei de dispensar a lei em virtude de um caso particular. Refere-se, aqui, principalmente, as teorias de Jean de Salisbury e Tomás de Aquino, nos séculos XII e XIII, respectivamente (Saint-Bonnet, 2001). A estrutura teórica de Jean de Salisbury e Tomás de Aquino foi construída sobre uma ideia central, qual seja o imperativo de conservagao da comunidade. Esse imperativo indicava uma lógica específica que permitiria a conservagao do rei e do reino. Tal lógica foi denominada de “ratio status”, “regni” ou rei “publicae”, que significava a arte ou a ciencia de como ser o rei (Saint-Bonnet, 2001). Pode-se dizer que o imperativo de preservagao do rei e do reino (ratio status) englobava um mecanismo que articulava uma ratio communis utilitatis (ratio normal) e uma ratio necessitatis aututilitatis (ratio excepcional).

Recebido: 16 de Maio de 2020; Aceito: 29 de Junho de 2020

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