INTRODUJO
O presente artigo foi desenvolvido a partir das temáticas pesquisadas pelos autores, especialmente vinculadas as áreas de formagao académica e as atividades de pesquisa e docéncia de cada um dos autores.
Assim, levando-se em consideragao a dimensao jurídica dos direitos sociais fundamentais, especialmente no cenário atual da pandemia, tem-se que, no dia 11 de margo de 2020, a Organizagao Mundial da Saúde ecoava no mundo que a até entao epidemia da doenga viral denominada de “Covid-19”, identificada em dezembro de 2019 em Wuhan, na China, tinha alcangado o nível desastroso de uma pandemia global, afetando de forma catastrófica a saúde, a economia e, por consequéncia, a vida das pessoas em diferentes partes do mundo - o que nao seria diferente no Brasil.
Em fungao da gravidade dos problemas desencadeados por esta pandemia, nao só no Brasil, mas também de forma global, parece inevitável que o debate em torno do tema venha a ser politizado, notadamente por agentes públicos e políticos que se predispoem ao enfrentamento e busca de solugoes para os impasses e impactos gerados, de maneira precípua, diante da protegao da vida e da retomada da economia, e, por consequéncia, de todos os direitos sociais fundamentais associados aqueles.
Nessa lógica tao paradoxal e complexa em tempos de pandemia - talvez ontológica, talvez dicotomica, quando se fala em vida e economia, garantir o acesso igualitário a condigoes de vida saudável e satisfatória a cada ser humano constitui um princípio fundamental de justiga social e, portanto, exige também uma grande produtividade complexa por parte da sociedade e do Estado, sendo necessária a intensificagao dos esforgos para coordenar as intervengoes economicas, sociais e sanitárias por meio de uma agao integrada com o fim primordial de protegao da vida e, consequentemente, de fortalecimento das políticas públicas de efetivagao dos direitos sociais fundamentais (Martini e Sturza, 2017).
Nesse contexto, as indagagoes em torno desse cenário de pandemia sao muitas, emergindo entao alguns problemas: em que medida os discursos ideológicos atuais, residentes na política brasileira, afetam a crise gerada pela pandemia? Seriam as políticas públicas mecanismos eficazes de protegao e garantia dos direitos sociais fundamentais? Diante de uma crise sanitária sem precedentes, seria possível estabelecer um equilíbrio entre a retomada da economia e a preservagao da saúde?
Com base nesses questionamentos, justifica-se a proposta do presente artigo de analisar tais questoes, inicialmente a partir dos discursos publicados no jornalismo impresso brasileiro - um dos veículos de maior penetragao, que deu voz a enfoques ideológicos distintos, mas que, em dado momento, dialogaram entre si sobre a importancia de preservar-se direitos sociais fundamentais, basicamente saúde e renda, apresentando também consideragoes advindas de um arcabougo bibliográfico doutrinário acerca do papel do Estado e das próprias fungóes e/ou do tipo de Estado que se deva ter para fazer ante os enfrentamentos socioeconómicos que a pandemia passou a exigir.
Assim, portanto, os objetivos deste artigo estao centrados em apresentar, inicialmente, uma análise do discurso político, com base em Laurence Bardin (2006), focando, para tanto, a categoria de ideologia, para enfatizar que, apesar da polarizagao das posigóes nos espectros tradicionais de direita e esquerda, tais discursos acabam confluindo, justamente, no sentido de que o enfrentamento da pandemia, partindo do pressuposto de defesa dos direitos sociais fundamentais, deva-se operar por meio de políticas públicas eficazes, em raro momento de aproximado nas propostas. O artigo também objetiva apresentar a posido jurídica e doutrinária centrada no tema da importancia das políticas públicas na garantia e protegao dos direitos sociais fun damentals, em especial o direito a saúde, sob a ótica das definigóes constitucionais e legais, que demonstram a necessidade de essas políticas nao permanecerem somente no nível de belas construgóes formais, sem que, realmente, venham a se concretizar como direitos consubstanciados e vivenciados pelo público-alvo ao qual se dirigem.
Seguindo esse ideário, o estudo ora proposto constitui-se em uma revisao bibliográfica, baseada no método dialético, que reconhece a sociedade como um conjunto de contradigóes e contraposigóes de ideias que levam a outras ideias, tal qual o Brasil se encontra neste momento de crise sanitária (e até mesmo humanitária) em decorrencia da pandemia.
Dessa forma, o resultado deste estudo demonstra que a escolha por apresentar a discussao ideológica acerca do debate público em torno da pandemia, valendo-se, entre outras referencias, dos jornais brasileiros impressos, encontra-se alicergada no fato de que é precisamente nas mídias massivas que se desenvolvem e se apresentam tais divergencias e, ainda que os focos possam divergir quanto ao enfoque maior na protegao a vida e a saúde, ou da retomada da economia, os discursos se mostram firmados na necessidade de políticas públicas, mesmo que se contradigam quanto ao caráter provisório ou permanente de tais medidas. Esse quadro é reforgado na abordagem jurídica e doutrinária, a qual evidencia essa intrínseca relagao entre os enunciados constitucionais e legais e as referidas políticas públicas, inerentes as possibilidades de efetivagao de tais direitos, sem os quais se constituiriam em letras mortas e sem sentido.
Por conta disso, nesse passo já nao há como aplicar ideologias dissonantes, mas, sob todos os pontos de vista, seguir os princípios paradigmáticos que se apresentam definidos no ordenamento jurídico brasileiro, de forma que as políticas públicas nao se refiram somente a agóes governamentais, mas a verdadeiras políticas públicas de Estado.
Portanto, mesmo que se reconhega a politizagao dos enfoques acerca das implicates da pandemia, no que concerne ao respeito a vida e a preocupagao com a economia, nas surradas distingues entre direita e esquerda, dividindo-se, dessa forma, as referencias nos campos ideológicos tradicionais e, ainda que se tenha tentado criar um falso debate público na tentativa de opor esses enfoques, ao ter-se que escolher, por exemplo, entre cadáveres e desempregos, pode-se chegar a uma rara possibilidade conciliadora.
Assim, ao analisar-se os discursos de representantes dessas divisoes ideológicas, percebe-se que existe convergencia no sentido de que se deve buscar políticas pú blicas duradouras para os enfrentamentos evidenciados pela pandemia, almejando a efetivagao de direitos sociais fundamentais, como a vida, a saúde e, igualmente, o trabalho e a renda.
1. A CONVERGÉNCIA DAS IDEOLOGIAS E DOS DISCURSOS POLÍTICOS QUANTO A NECESSIDADE DE PROTEÇÃO A VIDA ANTE A PANDEMIA DA COVID-19
A necessidade de protegao a vida parece ser unanimidade nos diferentes discursos que ecoam em tempos de pandemia da Covid-19. Gomes destaca que é terrivelmente falso afirmar que “primeiro a gente cuida da vida das pessoas, depois da economia” (2020, p. 52), pois, se a economia entrar em colapso, a saúde e a vida das pessoas se desintegrarao. Porém, é abominavelmente equivocado e perverso afirmar que a gente “tem que cuidar da economia primeiro senao vai ser pior para a vida dos pobres” (Gomes, 2020, p. 52), porque, se a saúde pública se desintegrar, a economia entra em colapso. As medidas a serem tomadas sao concomitantes no campo da saúde e da economia, pois se tornam urgentes e necessárias nao só para salvar a maior quantidade de vidas humanas, mas também para garantir a menor desorganizagao possível da economia.
Nesse sentido, no artigo intitulado “Vida e Economia”, Zucco, como deputado estadual eleito pelo Partido Social Liberal - portanto, enquadrado no campo ideológico de direita, ainda que se coloque como porta-voz da retomada da economia, pelo fim do isolamento social, por meio de um recomego gradual da atividade económica, e ainda que tenha se pronunciado previamente, antes dos planos sugeridos e indicados pelos governos, que visam, em sua maioria, atender a essa proposta, ao reconhecer a demora de se chegar a uma compatibilizagao entre vida e economia, diz textualmente: “demorou, mas se encontrou o equilíbrio entre economia e vida, que nunca foram antagónicas. Sao, na realidade, inclusivas e que, de maneira conjunta, podem ser uma solugao para esta crise sem precedentes” (Zucco, 2020, p. 27).
No mesmo editorial, depois de reconhecer a necessidade de se tomarem medidas preventivas para a manutengao da saúde, reforga os aspectos da crise financeira, que só aumenta enquanto é postergada a retomada das atividades económicas, o que só gera demissoes e redugao de salários e de jornadas de trabalho, além da queda vertiginosa da arrecadagao tributária, vindo a destacar as medidas emergenciais adotadas pelo Governo brasileiro, no sentido de distribuir renda, de forma direta, aos mais vulneráveis. Por fim, reforga o argumento anterior, no sentido de que: “vida e economia precisam andar juntas. Do contrário, os efeitos do coronavírus se farao sentir por várias geragoes, agravando as desigualdades sociais que castigam milhoes de pessoas” (Zucco,2020, p. 27). Nesse sentido, Severo corrobora:
[...] o fato é que a doenga fará muito mais vítimas entre os vulneráveis, que sao a maioria, especialmente em países recordistas em desigualdade como o Brasil. Diante de tantas constatagoes, cada vez mais visíveis e irrecusáveis, a COVID-19 deveria nos impedir de seguir fingindo que a desigualdade social é uma fatalidade, em relagao a qual nao temos responsabilidade alguma. Ou que a miséria é algo natural, que simplesmente existe no mundo. (2020, p. 256)
Por sua vez, Manuela D'Ávila, como lideranga política, do espectro da esquerda, no artigo intitulado “Quais ligoes aprenderemos no caminho?”, apresenta sua discussao baseada no que define como alguns consensos internacionais, quanto aos problemas de saúde pública, atinentes ao isolamento social, aos sistemas de saúde, bem como a protegao social públicos, em que se passe, entao, a discutir o papel da indústria, da ciencia e das universidades, bem como a relevancia da informagao de qualidade, com o combate as fake news, para que se faga o enfrentamento das implicagoes da pandemia por meio de:
Implantagao de uma política económica expansionista, como tem sido acordado entre economistas dos mais distintos matizes mundo afora, políticas fiscais que ponham dinheiro nas maos das pessoas, garantindo renda mínima e emprego, além de uma ampliagao do acesso ao crédito, de forma ampla, rápida e barata para as pequenas e médias empresas. (D'Ávila, 2020, p. 27)
Mais adiante, partindo do enfoque centrado na protegao a vida e ao meio ambien te, com atengao focada nos mais vulneráveis, colocando, entao, a vida no topo da hierarquia de prioridades, a figurar no centro das escolhas dos governos, conclui, no que impacta ao presente artigo, no sentido de que: “Além de nossas agoes individuais, é evidente a necessidade da construgao de uma rede social forte. Ninguém pode ficar para trás. Todos temos direito a vida. E a vida em abundancia” (D'Ávila, 2020, p. 27).
A seu turno, o ex-senador e atual vereador de Sao Paulo, Eduardo Suplicy, como presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, em artigo também assinado por Paola Carvalho, intitulado “De Eduardo para Eduardo”, faz um apelo ao atual governador do Estado do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, no sentido de que este deveria implementar um programa de renda básica no Estado, para o enfrentamento da crise do coronavírus, a exemplo de outra medida inovadora de governos anteriores, o Orgamento Participativo. Destaca, em seguida, o projeto de lei do deputado Valdeci Oliveira, que institui um programa amplo de renda básica, a ser implantada, para atingir a quem ficou de fora do auxílio emergencial nacional, já apresentado pelo Governo Federal. Depois, faz citagao que reproduzimos, que colhe do Congresso Nacional do Partido da Social Democracia Brasileira, bem como da posigao defendida pelo ex Presidente Fernando Henrique Cardoso, cujas propostas resumem, separadamente, da seguinte forma: "tem que ter transferencia de renda. O Estado tem papel com a renda mínima universal”. E, “[...] havendo recursos, porque nao assegurar uma renda mínima universal, para evitar que se crie um estigma social sobre determinado grupo social” (Suplicy e Carvalho, 2020, p. 29). Ainda, neste sentido, vislumbrando o quao importante é todo esse processo para a dignidade humana, destaca-se que:
Os Direitos Fundamentais, historicamente, nasceram como movimento contrário ao despotismo estatal, ou seja, como medidas de protegao do súdito ante o poderoso Estado. Eram e sao direitos que objetivavam compelir o Estado a desempenhar o seu papel de instrumento ou ferramenta de concregao da Dignidade Humana. Isso significa que os Direitos Fundamentais objetivam, via diretrizes normativas, designar a maneira como se deve realizar a Dignidade Humana, por meio de agoes positivas ou negativas (abstengoes) do Estado. (Avanci, 2014, p. 73).
E por fim, Suplicy e Carvalho (2020, p. 29) ao concluírem o citado artigo, reafirmam a ideia de que é necessário "prover dignidade e liberdade real para todas as pessoas, ao se assegurar o direito de participagao na riqueza do Estado e do país”, de forma que a renda básica universal se apresente como dotada de uma lógica irrefutável, enfatizando que:
este pode ser um passo para a renda básica de cidadania, como preve a Lei n° 10.835, aprovada por todos os partidos, inclusive pelo entao Deputado Jair Bolsonaro e sancionada por Lula, em 2004. O Bolsa Família e o auxílio emergencial sao uma etapa nessa diregao ao comegar pelos mais pobres. (Suplicy e Carvalho, 2020, p. 29)
E, nesse sentido, vale destacar:
Crises demandam agoes incisivas e provocam mudangas estruturais - isso já está posto. O que segue em aberto sao as escolhas a serem tomadas, cujos efeitos serao sentidos nao apenas agora, mas nos anos que virao. Nao surpreende que a renda básica universal tenha ocupado repentinamente um espago privilegiado nas conversas e nos jornais: uma sociedade em crise é convidada a repensar as necessidades que deseja priorizar. Em um mundo que mede o sucesso de um país pelo Produto Interno Bruto (PIB), esse processo nao é fácil, mas urgente. (Isoni, 2020, p. 16)
Seguindo, já no dia 3 de maio do corrente ano, no Caderno DOC, no editorial intitulado "Com a palavra”, apresenta-se ampla matéria de autoria de Denis Rosenfield, que, como filósofo e escritor, se enquadra na posigao ideológica de um neoliberal de direita, ao apresentar suas análises sobre a atual crise política atravessada pelo país, como, por exemplo, a demissao de Sérgio Moro como Ministro da Justiga e as implicagoes desses atos para o seu campo ideológico. Ao ser perguntado se a direita liberal está “escanteada” do Governo, posiciona-se de uma maneira que o traz para a discussao levada a efeito pelo presente artigo:
Nao se pode confundir liberalismo com política de equilibrio fiscal. Isso é um rango brasileiro. O liberalismo nao tem nenhuma dificuldade em advogar por uma maior intervengao estatal em períodos de crise. Agora temos uma economia voltada a pandemia. [...] O problema é confundir medidas provisórias, com validade de tempo determinada, com política perene. (Rosenfield, 2020, p. 4)
Outro viés discursivo nos é apresentado por Contardo Calligaris, como psicanalista e escritor, pelo artigo constante do Caderno Vida, do mesmo veículo, intitulado “Tenho medo de que coisas cotidianas nunca mais voltem”, em que responde a pergunta que se refere as desigualdades sociais do país, em virtude do isolamento social, no sentido de que a mídia tem destacado muito fortemente os trabalhadores da saúde, mas que se deve, igualmente, se lembrar das outras categorias profissionais, como, por exemplo, os encarregados da limpeza urbana, os trabalhos domésticos, os porteiros, os entregadores, que se constituem em “verdadeiro exército de pessoas da periferia, nao necessariamente das favelas, que, a cada manha, saem, encarando o perigo de se contaminar”; nesse enfoque, para que os demais possam manter o isolamento (Calligaris,2020, p. 5). Nesse sentido, reafirma:
Esse exército permite a uma casta que nao é mínima, as classes A e B, com alguns pedagos da C, se manter protegida. É uma tamanha confirmagao da desigualdade social brasileira. [...] os que podem se proteger e os que podem se contaminar. Será que a pandemia vai nos ajudar a pensar o Brasil, a reinventar o país de um jeito um pouco diferente? Ou será apenas a comprovagao de nossa desigualdade social? É preciso um tipo de apoio do governo absolutamente inédito na história da economia política. [...] ter coragem de assumir déficit público contrário aos ideais. [...] apostar numa renda básica. (Calligaris, 2020, p. 5)
Eis, entao, os discursos políticos, tanto de direita quanto de esquerda, que convergem quanto a necessidade de protegao a vida. Ao tratarem da economia, propoem a efetivagao de mecanismos de distribuigao direta de renda, inclusive da constituigao de um sistema universal de renda básica, o que, evidentemente, se constitui em política pública, mais do que nunca, aplicada ao problema de superagao da pandemia, já que, como afirmado, as desigualdades sociais se mostram como intensificadas quando se trata das formas de combate a propagagao da pandemia.
Nessa perspectiva, a formulagao das políticas públicas precisa ser uma agao muito bem-articulada e transparente, demonstrando a sociedade, na pessoa do cidadao, o fim a que se destinam, lembrando que elas, por sua vez, devem ser sempre voltadas as necessidades da coletividade, com vistas ao bem comum de toda a sociedade. Cada política pública compreende uma espécie de teoria de transformagoes sociais, a qual significa regras e agoes públicas, a partir das quais se constatam os efeitos e impactos causados ao tecido social (Zeifert e Sturza, 2019).
Portanto, as divergencias mostradas dizem respeito ao caráter provisório ou duradouro de tais políticas, ou seja, se estas se prestam somente como programas governamentais e, logo, provisórios e somente para o enfrentamento do problema, ou se, ao contrário, devem se constituir em políticas de Estado, assumindo, assim, seu caráter permanente. Logo, para a efetivagao dos direitos sociais fundamentais, especialmente em tempos de pandemia, tais políticas, em caráter provisório ou permanente, tornam-se urgentes e imprescindíveis.
2. EFETIVAÇÃO E PROTEÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS FUNDAMENTAIS EM TEMPOS DE PANDEMIA
Ao se apresentarem as construgoes discursivas dos agentes políticos, anteriormente citados, evidencia-se que, embora de campos ideológicos distintos, remetem aos direitos sociais fundamentais, bem como a necessidade de sua efetivagao, ou concretude, no meio social, pela via de políticas públicas eficazes. É somente por meio delas que os fins sociais do Estado poderao realizar-se, quer seu enfoque parta do pressuposto de atender as exigencias económicas, pelo retorno ao trabalho, e, logo, pela flexibilizagao do isolamento social, quer partam do pressuposto máximo da protegao da vida, para, depois, nao se perderem de vista os enfoques económicos ínsitos aos processos de reconstrugao pós-pandemia.
De qualquer forma, os discursos procuram, cada um a sua maneira, estabelecer a relagao entre direitos sociais fundamentais e políticas públicas, e, no caso em comento, mais particularmente entre vida e economia. Nao poderia ser diferente, haja vista que essas instancias se encontram perfeitamente instituidas no texto do artigo 6° da Constituigao Federal brasileira de 1988, ao definir, claramente, pela redagao deste artigo, que sao direitos sociais a educagao, a saúde, a alimentagao, ao trabalho, a moradia, ao transporte, ao lazer, a seguranga, a previdencia social, a protegao a maternidade e a infancia, a assistencia aos desamparados. Nesse sentido, vale ressaltar que “[...] diante da crise se colocou o Estado como o agente fundamental para restaurar o sistema económico. A médio prazo, a ligao do coronavírus é inevitável. Direitos sociais universais em saúde, educagao, moradia e pensoes, concedidos pelo Estado” (Melo Filho, 2020, p. 85).
Logo, nao restam dúvidas quanto a responsabilidade do Estado em efetivar os direitos sociais fundamentais, os quais sao direitos humanos no senso jurídico, uma vez que sao direitos que tem como escopo a índole social do ser humano, além de serem exigencias que brotam da condigao de ser membro ativo e solidário de um grupo social. Assim, os direitos sociais fundamentais sao direitos essenciais aos seres humanos e, por essa razao, exigem nao só o seu cumprimento por parte do Estado, mas também a sua ampla e irrestrita protegao (Sturza, 2008). Portanto, pode-se afirmar que
[...] todos os direitos sociais sao fundamentais, tenham sido eles expressa ou implicitamente positivados, estejam eles sediados no Título II da CF (dos direitos e garantias fundamentais) ou dispersos pelo restante do texto constitucional ou mesmo que estejam (também expressa e/ou implicitamente) localizados nos tratados internacionais regularmente firmados e incorporados pelo Brasil. (Sarlet, 2006, p. 560)
Tem-se, portanto, que os direitos sociais fundamentais expressam uma ordem de valor objetivada na e pela Constituido, pois "[...] como dimensao dos direitos fundamentáis do homem, sao prestagóes positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitem melhores condigóes de vida [...]” (Silva, 2002, p. 276-277). E, neste momento de crise sanitária, em que os direitos sociais fundamentais sao postos a prova, percebe-se que "[...] no momento atual, o Estado volta a ser o salvador da pátria. Sao 6 trilhóes de dólares nos Estados Unidos, 1 trilhao de reais no Brasil, outros tantos em diversos países” (Dowbor, 2020, p. 116), despendidos pelos governantes para tentar salvar suas nagóes, diante de uma pandemia que assola a todos e se mostra de forma catastrófica para a saúde, para a economia e, consequentemente, para a vida de bilhóes de pessoas.
Ainda, sob uma fundamentagao filosófica dos direitos sociais fundamentais e mais ainda sob uma perspectiva dogmática e jurídica de abordagem, tais direitos podem ser classificados tanto em direitos prestacionais (positivos) quanto em direitos defensivos (negativos) (Sarlet, 2006, p. 554-555). Assim, os direitos sociais fundamentais "nao sao direitos contra o Estado, mas sim direitos através do Estado, exigindo do poder público certas prestagóes materiais” (Krell, 2008, p. 19), uma vez que "caracterizam-se, ainda hoje, por outorgarem ao indivíduo direitos a prestagóes sociais estatais, como assistencia social, saúde, educagao, trabalho etc., revelando uma transigao das liberdades formais abstratas para as liberdades materiais concretas [...]” (Sarlet, 2001, p. 51).
Assim, em que pese o cenário catastrófico no qual o Brasil e o mundo se encontram, em decorrencia da pandemia da Covid-19, é mister destacar que essa situagao de caos certamente deixará muitas ligóes e, quigá, nos permitirá entender e alcangar um outro modo de interpretar, avaliar e valorizar os direitos sociais fundamentais, especialmente a vida - será um novo momento de ressignificagóes, que talvez determine o futuro da humanidade e dos marcos civilizatórios. Essas transformagóes advindas da crise sanitária e humanitária, ao contrário de outras, sao reais e vieram para ficar.
Diante de tais abordagens, é crível que se reconhegam a todos os Poderes instituídos no Brasil a competencia e o dever institucional de se comprometerem com a efetivagao e protegao dos direitos sociais fundamentais, a partir de uma perspectiva de profundo entendimento sobre as necessidades envolvidas no cenário de pandemia, respondendo a elas de forma justa e eficiente no desenvolvimento de políticas públicas, destacadamente as políticas de saúde, protegendo quem efetivamente detém, em última instancia, a soberania do poder: o povo.
3. AS POLÍTICAS PÚBLICAS E O DIREITO SOCIAL FUNDAMENTAL A SAÚDE: INTERLOCUÇOES ESSENCIAIS NO CONTEXTO DA COVID-19
A saúde, na sociedade contemporánea, apresenta-se como uma prerrogativa essencial a vida do homem, ao mesmo tempo que, nas muitas situagóes da vida diária, acaba sendo ameagada. Portanto, no contexto da pandemia da Covid-19, é necessária uma garantia a esse direito fundamental, uma vez que, em sociedades ditas “democráticas” e em um mundo onde os riscos também sao globalizados, as dificuldades residem justamente em permitir a manutengao da saúde (Sturza, 2008). Hoje, esta é indiscutivelmente um fundamental direito humano, além de ser também um importante investimento social. Assim, com o objetivo de melhorar as condigóes de saúde de todos os cidadaos, é fundamental que os governos invistam recursos em políticas públicas de saúde, com programas efetivos para a sua promogao.
A redagao do artigo 196 da Constituigao Federal brasileira de 1988 deixa explícita a relagao autoconstitutiva entre direitos sociais fundamentais e políticas públicas, ao estabelecer que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e económicas que visem a redugao do risco de doenga e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário as agóes e servigos para sua promogao, protegao e recuperagao (Brasil, 1988).
É evidente que, a partir do texto constitucional, a prestagao jurisdicional do Estado veio a ser, sistematicamente, chamada a se pronunciar, até que, no Agravo Regimental 271286, do Rio Grande do Sul, em que foi relator o ministro Celso de Melo, se apresenta, de maneira inequívoca, a intrínseca relagao entre os ámbitos do direito a saúde e de políticas sociais e económicas. Nesse sentido, transcrevem-se alguns dos tópicos citados no artigo de autoria de Lucília Alcione Prata, a fim de se ilustrar o tema:
O direito público a saúde representa prerrogativa jurídica indisponível, assegurada a generalidade das pessoas, pela própria Constituigao da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integralidade deve zelar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e económicas idóneas, que visem garantir aos cidadaos, o acesso universal e igualitário a assisténcia farmacéutica e médico-hospitalar.
O direito a saúde, além de qualificar-se como direito fundamental, que assiste a todas as pessoas, representa consequéncia constitucional indissociável do direito a vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuagao, no plano da organizagao administrativa federativa brasileira, nao pode mostrar-se indiferente ao problema de saúde da populagao, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissao, em grave comportamento inconstitucional.
O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compóem, no plano institucional, a organizagao federativa do Estado brasileiro - nao pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria lei fundamental. (2013, p. 252)
Evidenciam-se, dessa forma, pelos ditames da decisao referida, os principios paradigmáticos que vieram a ser utilizados como parámetros para encaminhar as discussoes judiciais acerca do direito a saúde no Brasil, de forma que, por sua natureza, langam luzes esclarecedoras sobre a intrínseca relagao entre saúde e economia, que vem ocupando os discursos políticos em fungao da pandemia da Covid-19.
Além do estabelecimento dessa relagao autoconstitutiva entre saúde e economia para assegurar o direito social fundamental (e universal!) a saúde, também é essencial o cumprimento do dever do Estado em implementar políticas sociais e económicas de caráter público. Nesse sentido, destaca-se que essa tarefa é atribuída a todos os entes federativos, de forma que se pode ousar inferir que tais paradigmas tenham, inclusive, alicergado recente decisao do Supremo Tribunal Federal brasileiro1, na intengao de permitir que os demais entes federativos, ou seja, os Estados e municípios, fossem declarados legítimos ao estabelecerem normas próprias como as do isolamento social enquanto método necessário a barrar ou, pelo menos, minimizar a disseminagao da infecgao generalizada pelo coronavírus.
A seu turno, Aith procura esclarecer que a terminologia constitucional, ao fazer alusao as políticas públicas sociais e económicas, como base para que o Estado venha a assegurar o direito social fundamental a saúde, refere-se a um leque muito amplo de possibilidades, dado que, nesse sentido:
Tanto umas como as outras contribuem, ao mesmo tempo, para o desenvolvimento económico e social do Brasil. Parece evidente que todas as políticas públicas se coordenam em diregao ao mesmo sentido, ou seja, rumo aos objetivos nacionais fixados no art. 3 da Constituigao Federal. Tal conclusao torna-se inevitável quando descobrimos que entre os objetivos da nagao está o de garantir o “desenvolvimento social”, de forma a “erradicar a pobreza e a marginalizagao”. Tanto as políticas económicas, como as políticas sociais podem e devem caminhar juntas nesse sentido. (2007, p. 134)
Em fungao de que os aportes discursivos dos agentes políticos, bem como os aportes doutrinários, já apresentados, mencionam a intrínseca relagao entre o direito a vida e as questoes económicas, dado que tal protegao a saúde deve ser realizada por meio de políticas sociais e económicas públicas, pode-se verificar que tanto os discursos políticos quanto os aportes doutrinários e jurisprudenciais indicam o problema estrutural do Brasil, relativamente a pobreza e as desigualdades sociais. Por conta disso, é mister se fazer uma abordagem acerca desses últimos enfoques, pois impactam, de forma considerável, as consequencias da pandemia, notadamente quanto a uma possível retomada económica. Nesse sentido, o tema das políticas públicas para a erradicagao da pobreza e das desigualdades, sob a perspectiva de protegao a saúde, mais do que nunca, se faz necessário e urgente nas pautas dos poderes instituídos, uma vez que “[...] uma epidemia se torna complexa pelo fato de ser sempre um ponto de articulagao entre as determinagoes naturais e sociais. Sua análise completa é transversal: é preciso compreender os pontos [...]” (Badiou, 2020, p. 37).
Assim, de pronto, esse problema nos remete ao texto constitucional, quando se consagra que a erradicagao da pobreza e da marginalizagao, bem como a redugao das desigualdades sociais e regionais, se constitui em um dos objetivos da própria República (artigo 3°, III, da Constituigao federal brasileira de 1988), o que implica que, por tal enunciado, esse propósito deva nortear todas as políticas públicas do país. De outra sorte, o indicador económico prioritário, esculpido na própria Carta Política, através da qual se logra a classificagao dos diversos níveis económicos do país, parte do estabelecimento do salário-mínimo como indicador de renda, que deve, segundo o enunciado do artigo 7°, IV, como assegurado a todos os trabalhadores, para a melhoria de sua condigao social: fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender as suas necessidades vitais básicas e as de sua família com moradia, alimentagao, educagao, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdencia social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculagao para qualquer fim.
É notável que, dessa forma, se evidenciam a terrível discrepancia entre os enunciados constitucionais e a realidade socioeconómica do Brasil, e a necessidade de que tais normas deixem o caráter de meros enunciados formais para se inserirem no contexto social, enquanto realidades concretas, demandando, nesse sentido, as referidas políticas públicas para sua implementagao. Por conta disso, Camargo Neto assim se posiciona:
[...] propoe-se que o eficaz combate a pobreza está, necessariamente, vinculado a garantia e a promogao dos direitos sociais. Portanto, políticas públicas voltadas para a erradicagao da pobreza devem primar pelos seguintes direitos: educagao, saúde, alimentagao, trabalho, moradia, lazer, seguranga, previdencia social, protegao a maternidade e a infancia e assistencia aos desamparados. (2013, p. 535)
Agora, uma vez mais, aplicando-se os discursos políticos, quer do espectro de esquerda, quer de direita, ainda que este último recomende que as medidas de transferencia de renda sejam emergenciais, ou seja, somente como formas de superagao ou minimizagao, por exemplo, da crise gerada pela atual pandemia, chega-se a referencia comum que essa transferencia de renda é a única medida cabível nessas circunstancias. Entretanto, para os aportes teóricos, focados na estrutura jurídica da República, fundada na Constituigao Federal brasileira de 1988, se deve concluir que, sim, a transferencia de renda deve servir tanto ao momento vivenciado, em fungao da crise causada pelo coronavírus, quanto a busca de solugao dos problemas estruturais, de cunho socioeconómico, para a erradicagao da pobreza e, assim, realizar os demais direitos sociais fundamentais, nos quais se inclui, com certeza absoluta, a protegao da vida, por meio de medidas sanitárias e de saúde pública. Nesse sentido,
Tanto a propagagao do vírus responsável por esta pandemia como as medidas desigualmente eficazes tomadas pelos Estados para proteger as suas populagóes provam, se necessário, que a saúde é, antes de mais nada, um bem público: que o estado saudável ou mórbido do corpo de cada pessoa depende em primeiro lugar do estado saudável ou mórbido do corpo social, do qual o primeiro é dependente ou um simples apéndice, e da capacidade ou nao do referido corpo social se defender, por si ou através das suas instituigóes políticas, contra fatores patogénicos, em particular desenvolvendo um sistema de assisténcia social eficiente e uma política de saúde pública que proporcione ao segundo os meios necessários e suficientes (humanos, materiais, financeiros). (Bihr, 2020, p. 25)
Por conta disso, Camargo Neto, ao exemplificar o Programa Bolsa Família, como proposta paradigmática nesse sentido, tece as seguintes consideragóes no sentido de que as políticas públicas estruturadas no Brasil devem ter foco tanto na promogao dos direitos sociais fundamentais quanto na redugao de desigualdades, esta última com programas de transferéncia de renda, o que permite concluir que estao aptas a enfrentar a pobreza, como se tem verificado. Possíveis constrangimentos ao sucesso de tais políticas devem ser superados (Camargo Neto, 2013, p. 543). Logo, as estratégias para a agao em prol de políticas públicas voltadas para a saúde podem ser assim entendidas:
[...] saúde é ao mesmo tempo um direito humano fundamental e um sólido investimento social. Os governos devem investir recursos em políticas públicas saudáveis e em promogao da saúde, de maneira a melhorar o nível de saúde dos seus cidadaos. Um princípio básico de justiga social é assegurar que a populagao tenha acesso aos meios imprescindíveis para uma vida saudável e satisfatória. Ao mesmo tempo, isto aumentará, de maneira geral, a produtividade da sociedade tanto em termos sociais como económicos. Políticas públicas voltadas a saúde e planejadas para curto prazo trarao benefícios económicos de longo prazo [...] (Declaragao de Adelaide, 1988).
Nesse senso, as políticas públicas sanitárias consistem de fato em decisóes que fazem fronte aos problemas individuais dos cidadaos nas questóes de saúde. As decisóes sao presas aos organismos do governo, como, por exemplo, o Ministério da Saúde e os vários departamentos e setores aos quais cabe a responsabilidade de promover as políticas públicas. Por conseguinte, para entender plenamente as políticas públicas sanitárias de um governo, é necessário considerar todas as decisóes de todos os atores do governo envolvidos no financiamento e na gestao das decisóes relativas a saúde, uma vez que esta representa consequéncia constitucional relacionada diretamente ao direito a vida (Sturza, 2008, p. 123). O Poder Público jamais pode mostrar-se indiferente aos problemas de saúde da populagao, especialmente em tempos de caos sanitário e humanitário, como o que assola o Brasil e o planeta como um todo.
Portanto, é possível visualizar-se na Constituido brasileira, dessa forma, um rol quase exaustivo de direitos e garantias individuais, além, é claro, dos direitos sociais fundamentais. Nesse patamar se encontra o direito a saúde, ou seja, um direito social fundamental de segunda geragao2. Nesse sentido, conveniente sao as palavras de Dallari, quando diz que “[...] o direito a saúde deve ser assegurado a todas as pessoas de maneira igual [...]” (1985, p. 24).
Logo, o artigo 196 da Constituigao Federal brasileira de 1988, que assegura o direito a saúde, refere-se em princípio a efetivagao de políticas públicas que alcancem a populagao como um todo, com a garantia do acesso universal e igualitário, e nao situagoes individualizadas. A gravidade alcangada pela pandemia tornou-se uma ameaga a sobrevivencia humana; portanto, buscar políticas públicas de enfrentamento a esta crise conciliando com a efetivagao de direitos sociais fundamentais, como a vida, a saúde e, igualmente, o trabalho e a renda, é necessário e urgente.
CONCLUSOES
Por fim, apropriadas ao contexto deste estudo sao as palavras de Ost quando diz que nao se pretende concluir: “sobretudo, nao concluir. Resistir a tentagao da última palavra, esse trago feito no final das páginas acumuladas [...] Nao, nao é preciso concluir. É preciso, pelo contrário, abrir o círculo; [...] circularidade em movimento como a própria vida e as ideias” (1995, p. 389). Aliás, as reflexoes que dialogam com o tema da pan demia da Covid-19 nao sao precisas (algo pronto e acabado) e afirmar, com exatidao, qualquer que seja a conclusao, é um tanto quanto temeroso. Portanto, neste momento, este estudo nao é definitivo, mas sim uma possibilidade de proporcionar reflexoes e alternativas para produzir conhecimento sobre assuntos de direta e fundamental importancia para o processo de construgao e consolidagao de um espago mais justo e igualitário, especialmente em um momento de crise sanitária e humanitária.
Assim, algumas consideragoes fazem-se necessárias, no sentido de que a pandemia vem impactar, diretamente, as crónicas e estruturais desigualdades socioeconómicas constitutivas da realidade brasileira, já que, em fungao delas, os sistemas regionais e mesmo o sistema nacional de saúde, por falta de investimentos adequados, acabam se mostrando deficitários, mesmo em condigoes normais, para atender a demanda social por saúde, o que se mostra extremamente problemático no contexto atual de expansao do coronavírus.
Por óbvio, entao, devem ser alocados recursos, agora, mais do que nunca, as áreas de saúde pública, únicas eficazes no enfrentamento direto do problema. Entretanto, chega-se a necessidade de distribuigao direta de renda, para que tais desigualdades, igualmente, possam ser enfrentadas em fungao das medidas sanitárias de isolamento social que, efetivamente, estao a impedir ou a precarizar, ainda mais, os estamentos sociais mais vulneráveis e carentes.
A pretensao nao é uma discussao ideológica, que acaba por criar falsas polémicas, mas sim a proposigao de um debate acerca de políticas públicas de Estado, imunes, portanto, aos descaminhos políticos de sucessivos governos que, comprometidos somente com sua base partidária, acabam por desaparelhar os mecanismos já eficazes de enfrentamento dos problemas estruturais do país.
Nesse sentido, faz-se necessária a vontade política, em sentido amplo, dos agentes públicos para cumprirem com os ditames constitucionais e legais, bem como com a base jurisprudencial já consolidada, para entao se implementar o acesso universal a saúde por meio de políticas sociais e económicas que venham a efetivar os direitos sociais fundamentais, com a utilizagao de políticas de Estado que persigam o objetivo de erradicar a pobreza e as desigualdades sociais que nos atormentam enquanto povo e nagao - as quais se mostram ainda mais evidentes na pandemia.
Mesmo que se possa e se deva discutir um modelo de política expansionista, com maior intervengao direta do Estado, ou uma proposta neoliberal, em que tais medidas sejam apenas uma intervengao em momentos de crise, destaca-se o ponto culminante e essencial nesse debate: a formulagao e implementagao de políticas públicas de Estado enquanto instrumentos eficazes de distribuigao de renda, para que haja uma diminuigao das desigualdades, nao só na superagao da crise gerada pela pandemia, mas também enquanto superagao desses problemas estruturais e/ou conjunturais da realidade brasileira. Dessa forma, talvez seja possível indicar uma solugao, embora em longo prazo, refletindo-se, diretamente, no contexto da saúde pública.
Assim, o texto constitucional deixa de ser apenas uma espécie de promessa inconsequente, com normas de caráter meramente formal, fazendo com que os direitos sociais fundamentais se concretizem em nossa realidade social, atingindo os propósitos de universalidade com que foram formulados. Evidentemente que, pensando-se no tema em questao, na profundidade que exige, nao haveria a menor possibilidade de se distinguir entre vida e economia, pois, por mais que se possam estabelecer preocupagoes e garantias quanto aos resultados económicos e no que podem vir a impactar as próprias condigoes de vida, o bem maior a ser preservado é a vida; e é precisamente isso que diz o texto da Carta Política brasileira a ser aplicado: sem o respeito a vida e sua protegao sistemática nao há que se considerar nenhum outro direito, quer por viés de ordem económica, quer político-ideológica.
Portanto, retornar as indagagóes iniciáis sobre os discursos políticos e ideoló gicos atuais diante da crise incondicional que acomete a contemporaneidade, seja sob a concepgao de políticas públicas enquanto mecanismos eficazes de protegao e garantia dos direitos sociais fundamentais, seja sob a conjuntura económica, que busca estabelecer um equilíbrio entre a retomada da economia e a preservagao da saúde e, consequentemente, da vida, significa afirmar que o cenário atual é de gravidade e, em última análise, de letalidade. O Brasil e o mundo estao lutando pela preservagao e manutengao das vidas, por vias que dependem de um esforgo coletivo, o qual representará um grande desafio para o Estado, para a sociedade e para o sistema de saúde pública brasileiro.
Logo, é adequado e pertinente reiterar que, hoje, nenhuma resposta definitiva e pontual saciará as indagagóes propostas; afinal, o vírus demonstra-se democrático e acomete a todos sem discriminar fronteiras, genero, classe ou raga. As respostas e as solugóes para as crises geradas por essa pandemia necessitam ser construídas diuturnamente, uma vez que envolvem diálogos concernentes aos aspectos sociais, políticos, jurídicos, culturais e religiosos.
Portanto, ainda que a politizagao dos debates em torno da pandemia, a partir do binómio vida-economia ou, em outros termos, da preservagao da saúde e, consequentemente, da vida ante a retomada do trabalho e a manutengao da economia, apresente-se como uma constante polemica nas diversas pautas de debates, nao restam dúvidas que um denominador comum existe: é necessário e urgente a implementagao de políticas públicas de enfrentamento a essa crise sem precedentes. E, nesse ideário, sábias sao as palavras de Dino quando refere que “a política económica já vinha numa diregao errada desde antes do Coronavírus: recessao, descontrole cambial, dificuldade de retomada do crescimento, desemprego e descaso com políticas públicas. Mas temos que cuidar de uma patologia de cada vez. Agora, nosso foco é derrotar o Coronavírus!” (2020, p. 67).