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Opinión Jurídica

Print version ISSN 1692-2530On-line version ISSN 2248-4078

Opin. jurid. vol.19 no.spe40 Medellín Dec. 2020  Epub Sep 21, 2021

https://doi.org/10.22395/ojum.v19n40a21 

Artículos

Direitos humanos em tempos de crise: os reflexos do coronavírus no compliance estatal com a sistemática internacional

Derechos humanos en tiempos de crisis: los reflejos del coronavirus en el cumplimiento estatal con la sistemática internacional

Human Rights in Times of Crisis: The Reflect of Coronavirus in State Compliance with International Standards

Angela Jank-Calixto* 

Luciani Coimbra de Carvalho** 

* Universidade de Sao Paulo, Brasil angelajcalixto@gmail.com https://orcid.org/0000-0003-0020-7602

** Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil lucianicoimbra@hotmail.com https://orcid.org/0000-0001-8511-3060


RESUMO

Objetiva-se evidenciar, por meio da condugao de uma pesquisa de caráter qualitativo e da adogao do método dedutivo, como a pandemia causada pela Covid-19 pode levar a um maior compliance estatal com as normas de protegao de direitos humanos. Por meio de uma análise histórica do desenvolvimento e protegao dos direitos humanos no cenário internacional, verifica-se que situagóes de crise tem a capacidade de produzir efeitos positivos e uma mudanga no pensar da sociedade. Ainda, após uma reflexao acerca das consequencias da pandemia na modificagao das relagóes entre os países, denota-se como a situagao excepcional atual, apesar de gerar efeitos adversos no que se refere a protegao dos direitos humanos, expondo a fragilidade dos sistemas de saúde e de suas políticas sociais, também traz consequencias sobre o comportamento dos Estados para com seus indivíduos. Conclui-se que a atual pandemia tem a capacidade de elevar a percepgao dos custos do noncompliance e dos benefícios que um maior foco na protegao dos direitos humanos tem em longo prazo, de forma a incentivar uma maior conformidade das práticas estatais com as normas internacionais de protegao de tais direitos.

Palavras-chave : pandemia do coronavírus; direitos humanos; crise; cooperagao; compliance.

RESUMEN

El propósito es evidenciar, por medio de una investigación de carácter cualitativo y el método deductivo, cómo la pandemia causada por la Covid-19 puede llevar a un mayor cumplimiento estatal con las normas de protección de derechos humanos. Desde el análisis histórico del desarrollo y la protección de los derechos humanos en el contexto internacional, se encuentra que situaciones de crisis tienen la capacidad de producir efectos positivos y un cambio en el pensar de la sociedad. Igualmente, luego de una reflexión acerca de las consecuencias de la pandemia en la modificación de las relaciones entre los países, se denota cómo la situación excepcional actual, a pesar de generar efectos adversos en cuanto a la protección de los derechos humanos, exponiendo la fragilidad de los sistemas de salud y sus políticas sociales, repercute en la conducta de los Estados en relación con los individuos. Se concluye que la actual pandemia tiene la capacidad de elevar la percepción de los costes del noncompliance y las bondades que un enfoque más grande en la protección de los derechos humanos tiene, en largo plazo, de forma a incentivar más conformidad de las prácticas estatales con las normas internacionales de protección de tales derechos.

Palabras clave: pandemia del coronavírus; Derechos Humanos; crisis; cooperación; compliance.

ABSTRACT

The objective of this paper is to show, by means of a qualitative research and the adoption of the deductive method, how the COVID-19 pandemic can lead to greater State compliance with human rights protection standards. Through a historical analysis of the development and protection of human rights in the international scenario, it is perceived that crisis situations have the capacity to produce positive effects and a change in society's way of thinking. Furthermore, after reflecting on the effect of the pandemic on the relations between countries around the globe, it is noted that the current exceptional situation, despite generating a series of adverse effects regarding the protection of human rights -by exposing the fragility of health systems and social policies of countries affected by the disease-, has also unchained other effects on the behavior of States toward individuals. It is concluded that the coronavirus pandemic has the ability to raise the perception of the costs of noncompliance as well as the long-term benefits of a greater focus on the protection of human rights, encouraging greater compliance with international standards.

Keywords: coronavirus pandemic; Human Rights; crises; cooperation; compliance.

INTRODUJO

Este artigo é resultado de uma investigado realizada no ámbito de um doutoramento em direito, intitulada provisoriamente de “Compliance e o Sistema Interamericano de Protegao de Direitos Humanos: a sociedade civil organizada como agente de desenvolvimento sustentável”, inscrito na linha de investigado de Direito do Estado da Universidade de Sao Paulo. Diz respeito ao produto da parte inicial da pesquisa, a qual foi acrescida uma análise da influencia da pandemia do coronavírus no processo de exigibilidade de compliance, termo este que, para os fins deste trabalho, se refere a conformado das práticas das autoridades estatais as normas de protegao dos direitos humanos.

A opgao pela redagao do presente artigo se deve a evidente importáncia de se refletir acerca da situagao emergencial hodierna pela qual a sociedade passa. No atual cenário global, há uma crise de saúde pública decorrente da pandemia da Covid-19, a qual, até o dia 22 de julho de 2020, segundo dados oficiais da Organizagao Mundial da Saúde (OMS), fez 14.765.256 vítimas e levou 612.054 delas a morte, atingindo quase todos os países e territórios do globo (OMS, 2020b). Essa crise, consoante a afirmagao do atual secretário-geral da Organizagao das Nagoes Unidas (ONU), António Guterres, refere-se a uma emergencia pública, sendo reflexo de uma crise económica, uma crise social e uma crise humana, e a qual tem, ainda, se transformado em uma crise de direitos humanos (ONU, 2020a).

Notícias demonstram que a crise de saúde tem gerado um agravamento das violagoes dos direitos humanos, causando retrocessos em todo o mundo ao produzir reflexos negativos sobre alguns direitos básicos como a liberdade de expressao, a liberdade de locomogao (ante a tomada de medidas excessivamente desproporcionais em alguns países) e o direito a educagao, a saúde e a assistencia social (Human Rights Watch - HRW, 2020a). Além disso, segundo a OMS (2020a), a crise também tem gerado o aumento do estigma e discriminagao contra determinados grupos e comunidades (em especial, pessoas de descendencia asiática), o aumento da violencia doméstica contra mulheres e criangas, em razao de medidas de quarentena necessárias para se evitar a propagagao do vírus, bem como o agravamento da situagao de refugiados, que sao atingidos pelo fechamento de fronteiras.

Contudo, apesar desse cenário negativo, o momento atual também possui a capacidade de produzir reflexos de essencial importáncia sobre a política mundial no que se refere a tutela de direitos humanos. O cenário hodierno, além de revelar falhas históricas na adequada protegao dos direitos humanos, mostra a completa interdependencia da sociedade global, ao apresentar a necessidade de tomada de medidas conjuntas para o enfrentamento das crises que atingem a humanidade. Com isso, altera-se a percepgao dos custos e benefícios da conformidade das práticas governamentais com as normas de direitos humanos, o que gera impactos significativos no compliance estatal.

O paradoxo entre adesao a tratados de direitos humanos e o efetivo compliance com tais convengóes sempre foi objeto de preocupagao da comunidade internacional, até mesmo em razao de que a efetividade da protegao depende necessariamente da adogao de práticas internas pelos Estados-membros no sentido de ajustarem-se as prescrigóes internacionais. Assim, considerando a atualidade da temática e a necessidade de refletir sobre as ligóes que podem ser aferidas com a presente crise, objetiva-se neste trabalho discutir em que sentido a crise da Covid-19 possui o condao de gerar efeitos positivos, ao elevar a percepgao de que o enfrentamento de situagóes de crise depende necessariamente do maior compliance estatal com as normas de protegao dos direitos humanos.

Desse modo, com tal objetivo em mente, o presente artigo é dividido em tres partes. Na primeira, é realizada uma exposigao da evolugao da protegao dos direitos humanos no ámbito global, com o fim de revelar como situagóes de crise podem levar a progressos. Em seguida, é efetuada uma reflexao acerca dos impactos positivos que a atual pandemia produz no que se refere a protegao de tais direitos, com destaque aos seus reflexos sobre as relagóes entre países em todo o globo. Por fim, sao tecidas consideragóes acerca dos reflexos da Covid-19 sobre o compliance estatal com as normas de direitos humanos, como exigencia premente para evitar a magnitude das catástrofes geradas pela atual pandemia.

No tocante ao procedimento metodológico, a pesquisa apresenta caráter qualitativo e é conduzida por meio da adogao do método dedutivo, considerando como ponto de partida constatagóes gerais para se chegar a uma conclusao particular. Ainda, de cunho eminentemente descritivo e exploratório, a investigagao é efetuada por meio de uma pesquisa bibliográfica e documental, a partir da coleta de materiais de livros, diplomas jurídicos, jornais e artigos científicos.

1. A CONSTRUYO HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS COMO PRODUTO DE CRISES E LUTAS SOCIAIS

Nao obstante as discussóes ainda hoje existentes entre teóricos das relagóes internacionais e do direito internacional no que se refere a forga e aplicabilidade das normas internacionais de protegao dos direitos humanos no ámbito interno de cada Estado, nao há como se negar, na atualidade, a consolidagao de uma sistemática global de imensa importáncia para a protegao de indivíduos contra arbitrariedades e atrocidades.

O desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos a partir da segunda metade do século passado repercute em geral de forma positiva na política internacional, sobretudo ante a consolidagao da ideia de que o cidadao deve ser protegido em toda e qualquer esfera, em que pese a nao aceitagao da imperatividade de todas as normas de protegao por uma gama variada de países.

Antes de se discutirem as repercussoes trazidas pela Covid-19 no que se refere a protegao dos direitos humanos, cumpre sucintamente apresentar os elementos que demonstram como tais direitos tem se consolidado históricamente, passando por períodos de instabilidades, retrocessos e avangos, até a formagao de uma sistemática global de protegao de importancia imensurável. Tais elementos indicam o quanto situagoes de crise, como a causada pela Covid-19, ou de negagao de direitos a parcelas populacionais criam espagos para a aprendizagem e empreendimento de lutas para o progresso da tutela de direitos básicos.

Nesse tocante, salienta-se que os precedentes históricos da consolidagao dessa sistemática internacional de protegao dos direitos humanos referem-se ao Direito Humanitário, a Liga das Nagoes e a Organizagao Internacional do Trabalho, os quais foram construídos na esfera internacional ante a percepgao da imprescindibilidade de regulagao jurídica internacional de algumas situagoes que geravam reflexos profundos na dignidade humana, como as más condigoes de trabalho e as violagoes de direitos básicos durante períodos de guerra. Desde tal época, inicia-se um processo de luta histórica em prol da consolidagao de uma protegao internacional mínima de alguns direitos básicos, processo esse que progressivamente levou a formagao sistemática global de protegao dos direitos humanos.

Como uma das principais consequencias de referidos precedentes tem-se que o direito internacional deixou de simplesmente se limitar a regulagao das relagoes entre Estados, como até entao vinha ocorrendo, e passou diretamente a regular direitos dos indivíduos, seja “ao assegurar parametros globais mínimos para as condigoes de trabalho no plano mundial, seja ao fixar como objetivos internacionais a manutengao da paz e seguranga internacional, seja ainda ao proteger direitos fundamentais em situagoes de conflito armado” (Piovesan, 2013, p. 190).

Foi somente após a Segunda Guerra Mundial, entretanto, que se caminhou de forma mais incisiva a consolidagao de uma sistemática internacional destinada a garantir a futura protegao do indivíduo contra arbitrariedades. A Segunda Guerra corresponde a um dos períodos da humanidade com maiores violagoes dos direitos humanos, fato que acabou levando a uma reagao drástica da comunidade global, motivada pelo risco de novas insurgencias que colocassem em risco a humanidade. Ante as atrocidades e horrores cometidos, vislumbrou-se o dever da sociedade internacional de fixar alguns parametros mínimos de protegao dos indivíduos e de impor normas destinadas a prevenir novas atrocidades (Taiar, 2009), de forma a tornar possível a responsabilizagao internacional de governos no caso de estes se mostrarem falhos na devida tutela humana.

Denota-se, pois, que foi a crise humanitária decorrente da guerra que gerou uma reagao da sociedade internacional no sentido de buscar a edificagao de um novo mun do, em que nao houvesse a possibilidade de ressurgimento de conflitos desastrosos. A partir de entao, com a criagao da ONU e seus órgaos, e a edigao de tratados internacionais destinados a tutelar indivíduos, os direitos humanos deixaram de ser concebidos como matérias concernentes apenas a jurisdigao doméstica de cada Estado, e os indivíduos tornaram-se verdadeiros sujeitos de direito internacional (Buergenthal, 1988). Somente entao a tutela de direitos humanos passa a constituir um tema de legítimo interesse e preocupagao internacional, percebendo-se que um Estado isolado nao possui condigoes de fazer frente a todos os desafios postos (Ramos, 2012).

Contribuigao essencial para se entender em que sentido a Segunda Guerra Mundial e o sofrimento dela decorrente levaram ao aprofundamento da afirmagao histórica de direitos humanos e a positivagao internacional de direitos individuais e direitos de cunho económico, cultural e social, é a apresentada por Piovesan, a qual explica ser, a partir de tal momento histórico, em que os homens sao vistos como “supérfluos e descartáveis” e que “cruelmente se abole o valor da pessoa humana”, que se vislumbra a necessidade de reconstrugao dos direitos humanos, “como referencial e paradigma ético que aproxime o direito da moral” (2013, p. 191). Como aponta Amaral Júnior e Jubilut (2009), os desastres da Guerra foram importantes para se perceber a essencialidade de uma reconstrugao e unificagao ética fundada na dignidade humana, e a necessidade de edigao de normas jurídicas, bem como a criagao de um sistema de fiscalizagao da aplicagao destas, como forma de limitagao do uso abusivo do poder.

Desde entao se denota, segundo Ramos (2012), um processo de juridificagao das relagoes internacionais, por meio de uma expansao quantitativa (decorrente da intensiva produgao de normas internacionais sobre os mais diversos campos de conduta social) e de uma expansao qualitativa (decorrente da criagao de tribunais internacionais e de órgaos quase-judiciais destinados ao controle internacional de arbitrariedades) do direito internacional. Tratam-se de expansoes eminentemente atreladas a crise humanitária pela qual passou a humanidade, sendo resultado dessa crise, ante a exigencia de revisao do modo pelo qual os Estados soberanos poderiam agir no tocante aos indivíduos e a relagao entre eles.

Essa revisao levou a relativizagao da soberania absoluta dos Estados, ante a elevagao da condigao da sociedade internacional de uma relagao marcada em sua essencia pela busca, por cada Estado, de seus próprios interesses individuais, para a formagao de uma comunidade internacional, na qual prevalece o interesse público internacional e o compartilhamento de valores fundamentais comuns (Floh, 2008). Nesse cenário, inicia-se um caminhar em diregao ao estabelecimento de relagoes mais harmoniosas e cooperativas entre Estados para a devida tutela dos direitos dos indivíduos, por mais que o cenário político internacional continuasse, em certa medida, marcado por interesses políticos.

Mencionado processo de juridificagao e consequente consolidagao da sistemática global de protegao dos direitos humanos comegou a ser construído a partir da Carta das Nagóes, em 1945, pela qual se criou a ONU e seus principáis órgaos, gerando na esfera internacional, consoante Sloboda e Tavares (2014), uma diversidade de direitos e obrigagóes para os Estados e conferindo poderes a organismos internacionais.

Logo após, em 1948, editou-se a Declaragao Universal dos Direitos Humanos, vista como código e plataforma comum de agao dos Estados, e elaborada com o intuito principal de definir o elenco de direitos humanos previsto na Carta das Nagóes Unidas. A Declaragao introduziu, no cenário internacional, a concepgao contemporánea de Direitos Humanos, como uma unidade interdependente e indivisível, fazendo com que todos os direitos, independentemente da dimensao, tenham o mesmo valor e importáncia (Piovesan, 2013).

Desde entao, com a crescente valorizagao internacional dos direitos humanos, passou a haver uma intensa produgao de tratados e órgaos internacionais para ga rantir a implementagao dos direitos humanos conceituados na Declaragao Universal de Direitos Humanos, já que tal Declaragao, ainda que constitua um código comum de conduta dos Estados, nao apresenta forga jurídica obrigatória e vinculante.

Criou-se, ante tal constatagao, para o fim de assegurar o respeito dos direitos humanos por todos os Estados, uma sistemática internacional de monitoramento e controle (international accountability) (Piovesan, 2013). Esse processo foi iniciado a partir da juridicizagao da Declaragao, a qual culminou na elaboragao de dois trata dos internacionais distintos: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, e o Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, os quais foram posteriormente ampliados com a edigao de diversos outros tratados multilaterais de direitos humanos.

Referida ampliagao decorre essencialmente da afirmagao contínua de direitos no cenário internacional, em razao da constante perpetuagao de cenários de arbitrariedade e lesividade a liberdade humana, que levaram ao empreendimento de lutas legais e políticas destinadas a assegurar um catálogo básico de direitos a serem protegidos na esfera internacional (Luño, 2004). Destacam-se, nesse aspecto, as buscas pela autodeterminagao e descolonizagao dos povos, os movimentos de afirmagao dos direitos da mulher, as lutas contra sistemas totalitários de governo, contra a escravidao etrabalhos forgados, bem como a procura pela prevengao da ocorrencia de situagóes de terrorismo, sequestro de pessoas, crimes cibernéticos, entre outros.

Como produto direto dessas lutas, sao adotadas diversas convengóes internacionais, instituídas com a finalidade de garantir a todos os indivíduos o exercício de seus direitos fundamentais. Nesse sentido, destaca-se a edigao da Convengao para a Prevengao e Repressao do Crime de Genocídio (1948), a Convengao contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984), a Convengao Internacional sobre a Eliminagao de todas as Formas de Discriminagao Racial (1965), a Convengao sobre a Eliminagao de todas as Formas de Discriminagao contra a Mulher (1979), a Convengao sobre os Direitos da Crianga (1989), a Convengao Internacional sobre a Protegao dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros de suas Famílias (1990) e a Convengao sobre os Direitos das Pessoas com Deficiencia (2006). Ainda com vistas a maior protegao internacional dos direitos humanos, sao criados órgaos com o intuito principal de garantir a responsabilizagao dos Estados pelas violagoes de direitos humanos em seu território, como o Tribunal Penal Internacional (1998) e o Conselho Internacional de Direitos Humanos (2006), principal órgao do sistema internacional responsável pelo combate as violagoes dos direitos humanos.

Vislumbra-se, pois, que, diante de situagoes de adversidade, guerras e crises, houve, no cenário global, a progressiva redefinigao dos valores fundamentais da comunidade internacional e a instituigao de marcos jurídico-institucionais de limitagao do poder estatal. Consolida-se uma nova ordem internacional, caracterizada pela contínua integragao sistemica do direito internacional com o direito interno dos Estados, e pela impossibilidade de direitos fundamentais serem objeto de exclusiva jurisdigao interna dos Estados (Piovesan, 2013).

Essas normas internacionais trazem benefícios a tutela da pessoa humana, preenchendo eventuais vazios legislativos no ámbito doméstico, garantindo a protegao extraterritorial dos cidadaos, limitando o poder dos Estados e servindo de parámetro de validade de normas domésticas e de conduta para o exercício do poder, estabelecendo os padroes mínimos de protegao (Acosta Alvarado, 2013). Fixa-se, com isso, a tutela de direitos humanos como o principal objetivo visado pela comunidade internacional, o corpus juris internacional de salvaguarda do ser humano, consagrando no cenário internacional, segundo Trindade, uma diversidade de “direitos e garantias que tem por propósito comum a protegao do ser humano em todas e quaisquer circunstáncias, sobretudo em suas relagoes com o poder público” (2006, p. 412).

Especificamente no tocante a saúde, destaca-se que as crises nessa esfera e a percepgao da necessidade de empreendimento de esforgos conjuntos para combater situagoes de adversidade também levaram a consolidagao de um sistema global diretamente atrelado a ONU, destinado a combater as patentes violagoes do direito a saúde, a vida e a integridade física e psicológica e a enfrentar situagoes de emergencia pública (como a da Covid-19).

A OMS, criada em 7 de abril de 1948, é a agencia especializada da ONU responsável internacionalmente pelo combate a crises no setor de saúde global, atuando como autoridade diretiva e de coordenagao em questoes de saúde pública em todo o globo, tendo ela progressivamente se consolidado como importante instrumento de enfrentamento de situagoes de emergencia nesse setor.

O firmamento da OMS como organismo essencial também ocorreu diante da resposta global as adversidades enfrentadas no ámbito da saúde. Em parceria com os Estados-membros, a OMS promoveu, nos últimos 70 anos, grandes avangos na promogao da saúde em todas as regioes do globo, destacando-se as medidas para o controle de doengas como cólera, febre amarela, varíola, sarampo, tuberculose, tifo, aids, H1N1, ebola, malária, entre outras (OMS, 2018). Com isso, progressivamente afirmou-se o posicionamento relevante da OMS no enfrentamento de epidemias, surtos e doengas, e consolidou-se uma sistemática internacional que reconhece a saúde como direito instransponível, que deve ser tutelado independentemente de fronteiras territoriais.

Denota-se, pois, que a construgao histórica e a consolidagao gradual dos direitos humanos derivam de um intenso processo de crises sociais e políticas caracterizadas nao pela linearidade, mas sim por passar por períodos de crises constantes, que serviram como elemento para o estabelecimento de novas lutas destinadas a salvaguardar tais direitos.

Diante de tal assertiva, entende-se que as adversidades e crises globais se referem a fatores importantes a progressiva afirmagao da necessidade de uma maior tutela global dos direitos humanos, sobretudo por destacarem as falhas existentes e por incitarem e demonstrarem a maior necessidade de protegao de direitos básicos.

2. ESPADO PARA AVANZOS: O CORONAVÍRUS COMO FATOR DEMONSTRATIVO DA ESSENCIALIDADE DA PROTE^ÁO CONTÍNUA DOS DIREITOS HUMANOS

Nao obstante a edificagao e o fortalecimento de uma sistemática global de protegao dos direitos humanos, denota-se que a atual pandemia tem levado a formagao de um cenário marcado pela tendencia ao retrocesso nesse ámbito e pelo fechamento de alguns países ao sistema internacional.

Com relagao aos retrocessos, destaca-se importante investigagao formulada pela HRW (2020a), a qual aponta que a crise do coronavírus tem gerado impactos significativos em direitos básicos de indivíduos em todo o globo. Primeiramente, a organizagao salienta que, apesar da comunicagao aberta e transparente em países como Taiwan, Cingapura, Coreia do Sul e Itália, ocorreram várias violagoes da liberdade de expressao e do direito de acesso a informagoes relevantes. Como exemplo, cita a conduta do governo chines, que reteve informagoes públicas sobre a Covid-19, subnotificou os casos de infecgao e subestimou a gravidade da crise, além de ter detido pessoas por falarem sobre a epidemia nas redes sociais, censurado debates sobre o vírus e restringido a cobertura da mídia. Também cita os casos do governo iraniano, apontando indícios de subnotificagao, e do governo da Tailándia, o qual tem iniciado agoes judiciais retaliatórias contra informantes do setor da saúde e jornalistas, bem como tem efetuado ameagas de agóes disciplinares contra equipes médicas que falam sobre a escassez de suprimento de bens essenciais ao combate da epidemia.

No que se refere ao direito a liberdade de locomogao, que restou restringido pela imposigao da quarentena em diversos países, a HRW (2020a) frisa que, apesar da essencialidade do isolamento, em alguns países, as medidas tomadas foram excessivamente desproporcionais, como no caso da China, que construiu barricadas nas portas de famílias supostamente infectadas com barras de metal, prendeu pessoas que se recusaram a usar máscaras de protegao, bem como usou drones com alto-falantes para repreender aqueles que saíam sem máscaras.

A organizagao também aponta que a Covid-19 tem levado ao aumento do estigma, do preconceito, do racismo e da discriminagao contra determinadas comunidades e grupos, como asiáticos e pessoas contaminadas; a violagao do direito a educagao em algumas nagóes, considerando a existencia de amplas parcelas da populagao de diversos países que nao tem acesso a equipamientos tecnológicos e/ou internet em casa; ao aumento da violencia contra mulheres, considerando que a imposigao da quarentena e do isolamento social tem submetido algumas delas ao constante contato com abusadores; ao aumento da vulnerabilidade de alguns grupos, como moradores de rua, refugiados, migrantes e presos.

Em consonancia com o esclarecido pela OMS, as ameagas impostas pela Covid-19 afetam de forma diferente os distintos grupos sociais. As vulnerabilidades decorrentes da ausencia de condigóes dignas de moradia e da instabilidade financeira de distintos países impactam o risco de infecgao, criando um cenário em que moradores de rua, refugiados, migrantes e presos nao contem com meios de terem seus direitos a saúde e a vida protegidos. Tais grupos, caracterizados pela marginalizagao e pela estigmatizagao, requerem atengao adicional na resposta a Covid-19. Contudo, a ausencia de políticas públicas para aliviar a situagao de tais grupos os sujeita a um maior risco de infecgao e diretamente prejudica a resposta a crise de saúde (OMS, 2020a).

Além disso, a HRW (2020a) ainda destaca outras violagóes em alguns países específicos, como: a) a ausencia de protegao de trabalhadores de saúde em alguns países, como na Hungria, na qual foi denunciada a falta de um protocolo básico de saúde, de salas de isolamento, de suprimentos médicos básicos (como antissépticos e máscaras), além da falta de pessoal para responder a crise; b) a violagao patente do direito a saúde em países como a Venezuela, na qual o sistema de saúde se encontra em colapso total, inclusive sem acesso regular a eletricidade ou a água, e como a Tailandia, onde o sistema de saúde se encontra minado pela corrupgao (com o desvio de suprimentos e máscaras para outros mercados, por exemplo); c) o aumento alarmante de crimes de ódio em países como Reino Unido, Estados Unidos, Espanha e Itália; d) o desrespeito a equipes médicas por parte do governo do Egito, o qual as enviou para instalagóes de quarentena sem ao menos informá-las sobre tal fato e sobre os riscos da missao; e) evidencia de discriminagao na assistencia a saúde com base na orientagao sexual e na identidade de genero em países como Estados Unidos, Tanzania, Japao, Indonésia, Bangladesh, Rússia e Líbano; entre outras (HRW, 2020a).

Para além de tais retrocessos, denota-se, ainda, o fechamento de alguns países ao cenário internacional, o que vem tomando forga há algum tempo e que constitui produto da ascensao de governos nacionalistas em distintos países (sobretudo após a crise financeira de 2009). Tal negagao ao atual funcionamento da sociedade internacional tem se tornado mais acentuada em razao da pandemia, sendo possível vislumbrar-se na mídia atual pronunciamentos contrários a atuagao de organismos multilaterais (como a OMS), como é o caso do pronunciamento do presidente norte americano no sentido de diminuir o financiamento a OMS, em razao de entender que esta nao tomou todas as medidas necessárias para controlar a propagagao da Covid-19 (Charleaux, 2020).

Contudo, inobstante os embates políticos que giram em torno da temática, frisase que a crise da Covid-19, por mais que tenha gerado situagoes adversas de maior violagao dos direitos humanos, também tem servido para demonstrar a interdependencia inerente dos distintos Estados, nagoes e povos na atualidade, a qual exige a observancia efetiva da sistemática internacional, e para ressaltar as falhas passadas na protegao de direitos humanos, produzindo reflexos potencialmente positivos para que se avance no empreendimento de maiores esforgos para a efetiva tutela de direitos humanos. Nesse sentido, destaca Nay:

Grandes crises que causam choques sociais podem, em última análise, provocar maneiras positivas de reconsiderar o bem comum e os direitos fundamentais. A participagao das mulheres no esforgo de guerra entre 1914 e 1918, por exemplo, levou a extensao do direito de voto as mulheres em muitos países. O fim da Segunda Guerra Mundial proporcionou uma oportunidade para os países europeus repensarem o con trato social em torno de sistemas de protegao a saúde mais inclusivos. Considerando tudo, é o momento apropriado agora, enquanto a humanidade está enfrentando a crise, para comegar a pensar na reconstrugao pós-Covid-191. (2020, p. 2, tradugao livre)

No que se refere ao primeiro efeito, qual seja, do reconhecimento da interdependencia global, isso ocorre porque a crise hodierna exalta que problemas em princípio locais tem repercussoes globais graves. Com isso, torna-se claro que o enfrentamento das crises em geral depende necessariamente de uma agao coordenada de toda a comunidade internacional, até mesmo porque a nao erradicagao do vírus em um ponto do globo, a qual é dificultada pelo histórico subinvestimento em saúde e programas sociais, pode produzir como efeito sua disseminagáo.

Nao obstante as críticas a tal visáo, como as emitidas pelo economista irlandés Michael O'Sullivan (2019), o qual apresenta uma perspectiva diametralmente oposta ao asseverar a existéncia de uma nova fase na geopolítica caracterizada náo pela globalizagáo, mas sim pelo nivelamento, em que a tendéncia seria pelo isolamento e pela rejeigáo da integragáo internacional, considera-se que a Covid-19 demonstra a insustentabilidade de se seguir um rumo marcado pela adogáo de políticas que simplesmente ignoram as instituigoes gradualmente construidas nas últimas décadas.

Nesse sentido pronunciou-se Luigi Ferrajoli (2020), esclarecendo que a crise da Covid-19 se diferencia de outras tragédias do passado, em razáo de seu caráter global afetar toda a humanidade e de ela proporcionar dois ensinamentos básicos: a fragilidade e, ao mesmo tempo, interdependéncia dos Estados, e a necessidade de que sejam adotadas medidas eficazes e homogéneas, a fim de se evitar que a variedade de procedimentos adotados favorega o contágio e a multiplicagáo de danos. Como afirmado pelo teórico, “o coronavírus náo conhece fronteiras. Ele já se espalhou para quase todo o mundo e certamente por toda a Europa. É uma emergéncia global que exigiria uma resposta global”2 (2020, para. 1).

Nessa visáo, ante a atual pandemia, a qual demonstra a imprescindibilidade de uma sistemática internacional de tutela e regulagáo de direitos e obrigagoes, denota-se a capacidade de um enorme salto civilizacional na percepgáo da impossibilidade do primado do Estado sobre seu território em algumas questoes, como aquelas de saúde pública global e, em especial, sobre questoes de direitos humanos (Ferrajoli, 2020), bem como na compreensáo da imprescindibilidade de as autoridades estatais tomarem medidas contundentes para conformarem suas práticas aos preceitos internacionais de tutela de tais direitos.

Para a compreensáo de tal impossibilidade, destacam-se os ensinamentos trazidos por vários teóricos que tém se esforgado nos últimos anos para demonstrar em que sentido a globalizagáo produz consequéncias económicas, sociais e jurídicas para a humanidade, e de que forma ela implica a necessidade de tutela internacional e de conformado das práticas estatais as diretrizes internacionais de protegao dos direitos humanos. A pandemia bem reflete os ensinamentos trazidos, como uma evidencia da interdependencia de todos os Estados.

Nesse sentido, salienta-se a reflexao de Trindade (2006), esclarecendo que a globalizagao, por mais que tenha sido densificada por avangos científicos e tecnológicos, também tem gerado situagoes sociais nao previstas, como a acentuagao das disparidades económicas entre individuos e países; a criagao de meios para a difusao de armas nucleares; a acentuagao da crise migratória; a promogao do desemprego macigo; o aumento dos grupos marginalizados e excluídos socialmente; a identificagao de xenofobia e de nacionalismos; o crescimento da vulnerabilidade das pessoas; entre outras. Tais situagoes geram a necessidade de reavaliagao da forma tradicional de Estado e do relacionamento entre as distintas nagoes.

Do mesmo modo, Ferrarese (2009) descreve que a globalizagao tem como efeito a desterritorializagao e desnacionalizagao das sociedades domésticas, processo esse irreversível no cenário atual de interconexao económica e tecnológica. Como asseverado pela teórica, ante a globalizagao e a consequente percepgao de que os Estados respondem atualmente a objetivos e problemas globais, perdeu-se a ideia de que as distintas sociedades se encontram estritamente vinculadas a um território e auferiu-se a nogao de que há uma diversidade de assuntos que nao mais sao de competencia reservada das autoridades nacionais. Tais mudangas acabam por remodelar a ideia de que cada comunidade ou grupo de pessoas pertence tao somente a um Estado limitado por fronteiras territoriais desenhadas pelos Estados-nagao, até mesmo ante a percepgao de que, para além da pertenga a um sistema político nacional, os indivíduos compoem um sistema global muito mais abrangente, que nao é limitado pelo território (Ferrarese, 2009).

Peters (2006) ainda esclarece que os problemas que tem surgido desde o início do desenvolvimento do processo de globalizagao, nao sao mais locais, mas sim globais e desterritorializados, dependendo de redes complexas nos campos da economia, da ciencia, da política e do direito para sua solugao, fato que tem levado a um aumento na interdependencia global. Segundo o teórico, observa-se que algumas questoes que eram tipicamente vinculadas a governos nacionais, como a garantia da seguranga humana, da liberdade e da igualdade, hoje foram transferidas para o plano internacional, dependendo, pois, da solugao oferecida em tal plano, como é o caso das crises de saúde pública que atingem a toda a sociedade global.

Portanto, nao há mais a possibilidade de que tais problemas globais sejam regulados dentro dos limites territoriais dos Estados, pois geram reflexos em outros territórios e crises para a humanidade como um todo (Peters, 2006). A globalizagao leva a diminuigao da capacidade de os governos nacionais trabalharem de forma isolada em face dos problemas que surgem, o que gera a indispensabilidade de que autoridades estatais ajam de forma coordenada e nao ignorem a sistemática internacional de protegao meramente em razao de interesses individuais.

A crise do coronavírus ressalta a interconexao e interdependencia entre todos, tendo em vista a rápida propagagao do vírus desde a China até quase todos os países do globo em questao de apenas poucas semanas, fato que demonstra ao mesmo tempo a nao limitagao dos problemas a fronteiras territoriais e o quanto os avangos tecnológicos decorrentes da globalizagao também trazem efeitos adversos, como a facilitagao da disseminagao do vírus (por meio de transporte aéreo, em especial), que outrora, nao fosse o constante intercambio global, possivelmente restaria limitado localmente.

Nesse cenário, em que se verifica a emergencia de problemas globais que nao se limitam a fronteiras territoriais, exige-se, para a própria sobrevivencia da humanidade, um avango na efetiva protegao de direitos. Conforme a ONU, a atual pandemia prepara o terreno para que se perceba que apenas uma resposta baseada em direitos humanos possibilitará sair da crise e possibilitará que se evite, em possíveis futuras crises, que seus impactos gerem tantos danos como os atualmente observados (ONU, 2020a).

Mencionada necessidade de avango encontra-se eminentemente relacionada nao com a edigao de novos tratados, mas sim com o empreendimento de medidas para o devido compliance, com a busca pela conformidade com os tratados já existentes na esfera internacional. Como reconhece a Assembleia-geral da ONU, a pandemia requer uma resposta global baseada num multilateralismo renovado, em que haja a tomada de medidas contundentes para a melhor protegao dos direitos humanos e uma maior cooperagao entre os distintos Estados (ONU, 2020b), até mesmo ante a impossibilidade de resolugao isolada dos problemas que surgem na esfera internacional.

Por fim, a Covid-19, para além de ressaltar a interdependencia global e a necessidade de conformagao das práticas internas a diretrizes internacionais, também apresenta um segundo efeito, já destacado acima, qual seja, de tornar mais evidentes as falhas passadas na protegao dos direitos humanos. A Covid-19 apesar de nao discriminar entre suas vítimas, exacerba a vulnerabilidade dos menos protegidos na sociedade, ao destacar a desigualdade económica e social profunda, e a inadequagao dos atuais sistemas de protegao social e de saúde.

No tocante a tal questao, destaca-se que o histórico subinvestimento de alguns países em sistemas de saúde e em programas sociais tem enfraquecido a possibilidade de responder adequadamente a pandemia (ONU, 2020a). Ademais, consoante o asseverado pela OMS (2020a), o vírus afeta de forma diferente os distintos grupos sociais, sendo que as vulnerabilidades decorrentes da ausencia de condigoes dignas de moradia e da instabilidade financeira, as quais sao produto de um histórico de negligencia de alguns grupos sociais (como moradores de rua, refugiados, migrantes e presos), impactam ainda mais o risco de infecgao nessa populagao, o que cria um cenário de nao protegao de seus direitos a saúde e a vida.

A crise tem servido para demonstrar de que forma essa negligencia produz reflexos gravíssimos em momentos de emergencia como o presente, enfatizando a necessidade de tomada de medidas drásticas no futuro para evitar novas violagoes dos direitos humanos como as que tem ocorrido. A permanente ausencia de foco na promogao de melhorias sociais em alguns países (combinado com outros fatores, como a corrupgao) tem gerado impactos ainda maiores sobre grupos vulneráveis, bem como tem gerado violagoes graves do direito a saúde e a vida, tendo em vista que o sistema de saúde deficitário de alguns países implica maiores riscos de contágio, menor probabilidade de trato dos contaminados e menor possibilidade de controle do espalhamento do vírus (OMS, 2020a).

Diante de tal fato, a Covid-19 representa uma oportunidade para uma mudanga e corregao de curso, no sentido de evidenciar a imprescindibilidade de uma política baseada nos direitos humanos, o que se constitui em necessidade premente no cenário atual de interdependencia global.

3. O EFEITO DA COVID-19 SOBRE O COMPLIANCE ESTATAL COM NORMAS INTERNACIONAL DE PROTE^ÁO DOS DIREITOS HUMANOS

Nao obstante os avangos na sistemática internacional de protegao dos direitos humanos, denota-se que ainda hoje há dúvidas acerca dos reais efeitos da expansao do direito internacional sobre a conduta das autoridades estatais no que se refere a tutela de direitos humanos. O elevado índice de ratificagao de convengoes internacionais, apesar de sugerir certo progresso no reconhecimento universal dos direitos humanos, nao apresenta relagao estreita com os avangos no compliance com as normas internacionais de protegao de tais direitos.

Isso porque, nao obstante a afirmagao da forga jurídica vinculante que os tratados de direitos humanos tem, a política internacional ainda hoje é conduzida de acordo com certa conveniencia política dos Estados, os quais deixam de cumprir com termos de tratados quando tal conduta é de seu interesse. Tal constatagao é inclusive passível de averiguagao diante da forma que alguns países tem ignorado as orientagoes da OMS e, consequentemente, tem violado direitos humanos básicos de seus cidadaos, como o direito a vida e a saúde adequada, apesar da adesao a convengoes básicas que tutelam tais direitos.

Há uma série de discussoes sobre o compliance, o qual se refere ao “grau em que o comportamento estatal conforma-se com aquilo que um acordo prescreve ou proscreve”3 (Von Stein, 2013, p. 478, tradugao livre), sendo que a identificagao dos motivos que levam Estados a ratificarem acordos internacionais e efetivamente cumprirem ou nao com seus termos e a averiguado das consequencias diretas ou indiretas da assungao de compromissos na esfera internacional sao objeto de debates entre distintos teóricos do direito internacional e das relagóes internacionais. Nesse ámbito de discussóes, vislumbra-se a existencia de uma gama de embates entre teóricos realistas, liberalistas, institucionalistas e construtivistas4, os quais, apesar de partirem de visóes de mundo e focos diversos, preocupam-se essencialmente com a real efetividade do direito internacional e com os efeitos que normas internacionais produzem sobre as agóes de autoridades estatais.

As maiores controvérsias no ámbito dos estudos de compliance concentram-se especificamente no campo dos direitos humanos, até mesmo ante a existencia de uma diversidade de estudos que apontam que convengóes de direitos humanos sao as que apresentam menor forga e produzem menores efeitos sobre a agao de governos. Segundo Simmons (2009), o regime internacional de protegao dos direitos humanos, no que diz respeito a sua coercibilidade, corresponde ao regime mais subdesenvolvido existente na esfera internacional.

No tocante aos estudos que se concentram na análise dos efeitos da adesao a tratados de direitos humanos sobre a conduta de Estados e que buscam averiguar se tal ratificagao leva ao compliance e a uma consequente modificagao da realidade, os resultados sao bastante inconclusivos.

Linda Camp Keith (1999), por exemplo, ao efetuar uma análise acerca da influencia da ratificagao do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos na melhora de direitos civis e políticos, apresenta uma análise pouco otimista. Em suas conclusóes, ao verificar que os índices de violagao de direitos antes da adesao ao tratado continuaram basicamente os mesmos que aqueles após a adesao, ela evidencia nao haver qualquer relagao entre a adesao e a promogao de mudangas na prática, no que cinge a protegao dos direitos humanos.

Do mesmo modo, identificou Hathaway (2002), a qual, em pesquisa que englobava a análise de tratados relativos a genocídio, tortura, liberdade civil, julgamentos públicos e justos e representagao política de mulheres, também verificou que, apesar de haver evidencias de que Estados que ratificam tratados apresentam melhores índices de protegao que aqueles que nao os ratificam (com excegao de alguns tratados regionais), nao há evidencias de que a ratificagao leva a melhora na protegao dos direitos humanos. Pelo contrário, a teórica constatou que muitas vezes a ratificagao implica a piora na tutela de tais direitos, até mesmo ante a percepgao de que a ratificagao com frequencia é realizada com o objetivo de impedir pressao externa.

Ainda, conclusao semelhante é a apresentada por Hafner-Burton e Tsutsui, os quais, após o estudo dos efeitos da ratificagao da adesao de distintos países a seis tratados dos protegao de direitos humanos, identificaram que, na realidade, os “tratados internacionais de direitos humanos pouco fazem para encorajar melhores práticas e nao conseguem impedir muitos governantes de uma espiral de crescente comportamento repressivo, inclusive podendo exacerbar práticas ruins”5 (2005, p. 1398, tradugao livre).

Por outro lado, há pesquisas que apontam que a ratificagao pode sim levar ao compliance, nesse sentido concluindo, por exemplo, Cole (2012), Hug e Wegman (2016), Neumayer (2005) e Simmons (2009). Entretanto, tais teóricos verificam que a geragao de efeitos positivos necessariamente depende de alguns fatores essenciais.

Nesse tocante, Cole (2012) e Hug e Wegman (2016) identificam que o compliance com tratados de direitos humanos é essencialmente dependente da existencia de mecanismos de monitoramento e enforcement, que possam garantir a observancia dos direitos humanos pelos Estados-partes das convengoes ratificadas. Por sua vez, Simmons (2009) observa que a democracia e a forga que a sociedade civil doméstica possui influenciam positivamente no respeito aos direitos humanos, enquanto Neumayer (2005) verifica que ratificagao gera efeitos positivos quando existem condigoes no país ratificador para que grupos domésticos, indivíduos e sociedade civil em geral persuadam, convengam e pressionem os governos a tornarem os compromissos formais em melhores práticas de direitos humanos.

Contudo, até mesmo nesses casos, em que se verifica que a adesao gera efeitos positivos sobre a conduta das autoridades estatais, as conclusoes a que chegam os pesquisadores sao relativas, apenas servindo para a observagao de que a ratificagao de tratados de direitos humanos promove maiores mudangas quanto mais democrático for um país e quanto mais forte for a sociedade civil do Estado ratificador. A adesao a sistemática internacional, como aponta Neumayer (2005), nao gera benefícios incondicionais para a tutela de direitos humanos, a protegao destes depende da vontade política e da existencia de condigoes concretas no Estado-parte para que mudangas sejam promovidas.

A ausencia de promogao de mudangas práticas no que se refere ao compliance, conforme o apontado por Guzman (2002), deve-se a constatagao de que fatores que inerentemente influenciam a decisao dos Estados de ratificarem tratados internacionais e cumprirem com seus termos, como a possibilidade de ganhos recíprocos e os “Tres Rs do Compliance” (Reputagao, Reciprocidade e Retaliagao), nao se aplicam a tratados de direitos humanos.

A constatagao dessa ausencia de autoexecutoriedade dos tratados de direitos humanos deve-se, segundo Simmons (2009), a ideia de que as autoridades estatais em geral tem de que os tratados de direitos humanos nao geram maiores ganhos com o seu cumprimento do que com o seu nao cumprimento, fato que gera a diminuigao do interesse dos Estados de empreenderem medidas para a diminuigao de abusos. Além disso, consoante a mesma teórica, a impossibilidade de influencia por meio de critérios de reciprocidade e reputagao deve-se ao fato de que nenhum governo altera suas práticas em razao de abusos praticados em outro Estado e de que a ausencia de implementagao de direitos humanos nao implica consequencias diretas na reputagao do país violador em outras áreas. Ainda, conforme Carneiro e Wegmann (2017), os custos de retaliagao no caso de noncompliance com tais tratados sao baixos ou até mesmo inexistentes, já que a agao de uma nagao contra seus próprios cidadaos nao ameaga diretamente outros Estados.

Tais fatos diminuem a eficácia de tais tratados e, consequentemente, geram uma maior probabilidade de noncompliance. Ante tais perspectivas, em razao de alguns tratados de direitos humanos nao preverem mecanismos formais de enforcement ou coergao suficientemente fortes, da mesma forma que nao oferecem recompensas materiais, legais ou políticas, eles nao sao capazes de compelir ou incentivar os Estados a adequarem suas condutas (Hafner-Burton, 2005).

No mais, para além de tais critérios de retaliagao, reputagao e reciprocidade, salienta-se que as teorias de compliance em geral enfatizam que a análise dos custos da adesao a tratados internacionais, combinada com a análise dos benefícios que podem ser auferidos com essa adesao, geram influencias diretas na decisao de adesao e na tomada de medidas tendentes ou nao ao compliance com as normas internacionais.

Nesse tocante, salienta-se que, apesar de a ideia de que a análise dos custos e benefícios da vinculagao internacional a tratados de direitos humanos corresponde a regra geral adotada pelos Estados derive da corrente realista das relagoes internacionais, teóricos de outras correntes de pensamento também aceitam a presenga de tal fator como elemento a ser considerado no estudo das relagoes internacionais.

Destaca-se o pontuado por Chaynes e Chaynes (1993), integrantes da Escola do Processo Legal, que, apesar de divergirem da concepgao realista, bem esclarecem que nao se pode olvidar que a adesao a tratados internacionais é eminentemente uma decisao política, sendo sempre efetuada uma avaliagao de custos e benefícios. No mesmo sentido, ressalta-se o defendido por teóricos construtivistas como Goodman e Jinx (2003), os quais também enfatizam que as elites governamentais sao essencialmente motivadas nas relagoes internacionais pelos custos e benefícios sociais, e nao por um senso de obrigagao legal.

Ademais, como apontado por Dunoff e Pollack (2013), é possível evidenciar como elemento comum a todas as teorías racionáis dominantes das relagóes internacionais (realismo, institucionalismo e liberalismo) que há uma tendencia a se defender que os atores internacionais agem de acordo com propósitos específicos, perseguindo interesses e objetivos próprios, enquanto sujeitos a constrigóes externas e a limitagóes na habilidade de tomar decisóes. Com isso, na condugao da política internacional, fatores como custos e benefícios geram impactos no comportamento de tais atores.

Nao obstante as críticas a tal visao, como a apresentada por Koskenniemi (2009) ao asseverar que tais teorias (inclusive aquelas que conferem um destaque importante ao direito internacional, como o liberalismo e o institucionalismo) reduzem o direito a um papel decorativo e negam ao direito sua autonomia e significancia nor mativa, nao se pode desconhecer que elas apresentam grandes contribuigóes para o entendimento da dinamica das relagóes internacionais, justamente por evidenciarem os motivos e como funciona o compliance com normas internacionais e por nao ignorarem que a política influencia tais relagóes, razao pela qual nao podem ser descartadas.

De acordo com essa visao, a redugao dos custos da adesao a sistemática internacional de protegao dos direitos humanos ou a elevagao dos benefícios dessa adesao (ou, ainda, a combinagao de ambos) gera efeitos diretos no compliance, o que leva a uma maior procura pela conformidade dos atos de autoridades estatais com as normas internacionais de protegao dos direitos humanos.

Trazendo os debates acima para o cenário contemporaneo, há de se considerar que a atual pandemia possui a prerrogativa de exercer influencias significativas na questao do compliance ou noncompliance com as normas de direitos humanos.

De acordo com o discutido no item anterior deste trabalho, a Covid-19 gera alteragóes na percepgao da necessidade de maior cooperagao e tutela de direitos, seja por exaltar que problemas locais tem repercussóes globais, seja por demonstrar a impossibilidade de os Estados conduzirem suas políticas internas de forma isolada da sistemática internacional. Contudo, para além de tais efeitos e nao obstante a constatagao da ausencia de autoexecutoriedade dos tratados de direitos humanos, e a defesa da ideia de que tais convengóes nao geram efeitos de retaliagao e reciprocidade ou na reputagao dos Estados-partes, ela também gera indiretamente outro efeito, qual seja, a elevagao dos custos do noncompliance e dos benefícios no longo prazo da tomada de medidas concretas para a protegao dos direitos humanos básicos. Isso porque a pandemia altera a percepgao inicial de que o compliance nao propicia maiores ganhos que o noncompliance, mas sim efeitos no tocante a forma de condugao da política internacional no que se refere a direitos humanos, por tornar visível que o noncompliance de um Estado com tratados de direitos humanos tem a capacidade de afetar diretamente outros Estados.

Ora, conforme asseverado, ao tornar evidentes as falhas passadas na protegao dos direitos humanos, sobretudo no que se refere ao direito a saúde e a inclusao social, bem como a redugao de desigualdades sociais, e ao demonstrar em que sentido o subinvestimento em sistemas de saúde e em programas sociais enfraquece a possibilidade de responder adequadamente a pandemia, a atual crise também eleva a percepgao dos custos do noncompliance e, consequentemente, dos benefícios do compliance.

A pandemia demonstra que a nao conformidade das práticas domésticas com as normas internacionais de protegao dos direitos humanos gera resultados nefastos, custos reais e de grande magnitude, seja para as pessoas atingidas, seja para os próprios interesses económicos dos países. Nesse tocante, pontua-se que, ainda que os custos humanos nao sejam considerados pelas autoridades estatais na decisao de conformagao, os custos económicos produzidos pela atual crise indicam a imprescindibilidade de que os governos se atentem a políticas sociais e invistam futuramente nestas, para a própria sobrevivencia económica do país. Evidencia-se tal assertiva diante da verificagao de que nos países com maior tradigao na protegao dos direitos humanos lentamente ocorre um processo de reabertura económica, enquanto naqueles em que há um combate deficitário, decorrente nao apenas das respostas dadas pelos governos mas também da própria incapacidade de se lidar com a crise de saúde, incapacidade essa catalisada pelo histórico subinvestimento em programas sociais, o rombo é maior (ONU, 2020b). Ocorre um efeito dominó nesses casos, já que a nao protegao de direitos sociais e humanos básicos agrava a crise económica pela qual passam os países.

A Covid-19 expoe as injustigas sociais. Isso demonstra que o histórico de noncompliance com as normas internacionais de protegao dos direitos humanos, ante a negligencia com relagao a alguns grupos e a ausencia de investimento na promogao de direitos económicos e sociais básicos, promove impactos e custos sociais e económicos irreversíveis e profundos. Da mesma forma, demonstra os benefícios do sério investimento na promogao de direitos humanos e na conformidade das práticas internas com o preceituado pelos tratados internacionais, por evidenciar que os países que investem mais seriamente na protegao de tais direitos apresentam maiores condigoes de lidar com os momentos de crise. Nesse sentido, é o afirmado pela ONU:

A crise da COVID-19 colocou em evidencia o papel crucial que a protegao e promogao de direitos económicos e sociais possui como parte da resposta urgente as crises. Nunca antes a importancia da responsabilidade dos governos de proteger as pessoas, garantindo seus direitos económicos e sociais, tem sido demonstrada com tanta clareza. No entanto, há uma ligao importante que precisará ser aprendida quando isso acabar. Países que investiram na protegao de direitos económicos e sociais possuem uma maior probabilidade de serem mais resilientes6. (2020a, p. 9, tradugao livre)

Do mesmo modo, para além da elevagao dos custos e dos beneficios, destaca-se que o coronavírus demonstra em que sentido o noncompliance de um Estado gera efeitos direitos para outros Estados, uma vez que aumenta a propagagao desregulada do vírus e sua disseminagao para outras regioes. Tal fator tem a prerrogativa de tornar evidente a sociedade internacional a necessidade de empreendimento de agoes destinadas a incentivar e exigir o compliance de todos os países com as normas de direitos humanos.

A atual pandemia impacta diretamente na percepgao do peso que a protegao dos direitos humanos tem e dos benefícios que podem ser auferidos com uma efetiva protegao. Nesse sentido, apresenta a prerrogativa de elevar o nível de compliance com as normas internacionais, pela alteragao dos critérios de medigao dos custos e benefícios do nao empreendimento de medidas para a conformidade das práticas internas a tais normas.

CONCLUSOES

Direitos humanos sao produto de um histórico de crises, instabilidades, retrocessos e lutas pela sua afirmagao e protegao. Nao decorrem de uma linearidade e nem sempre sao integralmente protegidos, nao obstante exista atualmente mecanismos e diplomas legais internacionais criados justamente para evitar violagoes e para exigir que as políticas públicas tomadas pelos governos nacionais se alinhem com os valores e direitos protegidos no plano internacional.

Hodiernamente, passa-se por um novo período de crise: uma crise de saúde pública, que tem se transformado em uma crise económica, social e de direitos humanos. Tal crise, apesar de ter se iniciado com o ressurgimento de governos autoritários e nacionalistas, e com o consequente distanciamento de alguns países das instituigoes multilaterais, decorre essencialmente da eclosao da pandemia do coronavírus, que atinge de forma desastrosa todo o globo e que lamentavelmente tem conseguido fazer milhoes de vítimas nos mais distintos países.

A pandemia tem produzido inúmeros reflexos negativos, com a restrigao de uma diversidade de direitos básicos dos indivíduos e com a geragao de um cenário de instabilidade social, política e económica. Contudo, inobstante a evidencia de retrocessos, vislumbra-se a possibilidade de que o presente período sirva ao menos para impulsionar ainda mais a humanidade como um todo na diregao da efetiva e integral protegao dos direitos humanos e, em especial, dos grupos mais vulneráveis da sociedade internacional, por meio do incentivo a um maior compliance com tratados de direitos humanos. Como em períodos passados, a crise possibilita um caminhar rumo a um maior progresso na protegao de direitos essenciais.

Isso porque a presente pandemia demonstra a imprescindibilidade de conformagao das práticas internas as normas internacionais, para evitar que possíveis futuras crises gerem uma magnitude de consequencias desastrosas e impactos globais muitas vezes irreversíveis. O compliance com normas de direitos humanos, a partir da crise, passa a ser visto como medida indispensável, bem como passa a ser incentivado, ante a elevagao da percepgao dos custos de noncompliance e dos benefícios de garantia efetiva de direitos no longo prazo.

Os desastres resultantes da Covid-19 e o fato de que eles tornam evidentes as falhas e negligencias passadas de alguns governos no que se refere a tutela de indivíduos, altera a percepgao dos custos do noncompliance, por demonstrar que o histórico subinvestimento histórico de alguns países no enfrentamento de desigualdades sociais e na promogao de uma melhora geral da qualidade de vida da populagao, em especial dos grupos mais vulneráveis, gera grandes problemas para todos os países. Nesse sentido, altera-se também a percepgao dos benefícios do compliance, ante a constatagao de que a observancia constante das diretrizes internacionais de protegao possibilita uma resposta mais efetiva para situagoes de crise, como a atual pandemia.

Dessa feita, os efeitos indiretos da crise atual sinalizam a necessidade de mudangas, apontando a premencia de maior compliance, de apoio as instituigoes multilaterais e de uma efetiva protegao global dos direitos humanos. É possível que essa crise se vislumbre como uma oportunidade, com base nos exemplos do passado, em que as instabilidades causaram a busca pela maior protegao dos indivíduos em face de situagoes e governos abusivos.

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1No original: “Major crises that cause societal shocks can ultimately provoke positive ways of reconsidering the common good and fundamental rights. The participation of women in the war effort between 1914 and 1918, for example, led to the extension of the right to vote to women in many countries. The end of World War 2 provided an opportunity for European countries to rethink the social contract around inclusive health protection systems. All things considered, it is the appropriate time now, as humanity is facing the crisis, to start thinking about the post-COVID-19 reconstruction”.

2O teórico adota o posicionamento de que o caráter global da epidemia confirma a necessidade de uma Constituigáo Global que preveja garantías e instituigoes a altura dos desafios globais e da protegáo da vida de todos. Salienta-se que as autoras do presente artigo concordam com o posicionamento do teórico no sentido dessa necessidade para uma maior governanga global, sobretudo em situagoes de crise. Contudo, adota-se posicionamento diverso, por vislumbrar-se que, apesar dessa necessidade, ainda náo há meios para se afirmar, na atualidade, a possibilidade de uma Constituigáo e governanga global, sobretudo ante a estruturagáo de um sistema político ainda fortemente marcado por políticas nacionalistas e diante da existéncia de uma diversidade de desentendimentos no que se refere a interpretagáo e aplicabilidade dos direitos humanos em todos os países do globo. Defende-se a necessidade de cooperagáo e coordenagáo de relagoes entre os Estados em prol da tutela de direitos fundamentais (Calixto e Carvalho, 2017).

3No original: “the degree to which state behavior conforms to what an agreement prescribes or proscribes”.

4Considerando o foco deste trabalho, nao se discorre acerca das ideias defendidas em cada corrente. Contudo, indica-se, para uma melhor compreensao das distintas teorias, a leitura do seguinte livro:Dunoff, J. L. e Pollack, Mark A. (2013). Interdisciplinary perspectives on international law and international relations: The state of the art. Cambridge University Press.

5No original: “international human rights treaties do little to encourage better practices and cannot stop many governments from a spiral of increasing repressive behavior, and may even exacerbate poor practices”.

6No original: “The COVID-19 crisis has placed a spotlight on the crucial role that protecting and promoting economic and social rights has as part of the urgent crisis response. Never before has the importance of the responsibility of governments to protect people, by guaranteeing their economic and social rights, been so clearly demonstrated. Yet there is an important lesson that will need to be learned when this is over. Countries that have invested in protecting economic and social rights are likely to be more resilient”.

Recebido: 14 de Maio de 2020; Aceito: 20 de Junho de 2020

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