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Opinión Jurídica

versión impresa ISSN 1692-2530versión On-line ISSN 2248-4078

Opin. jurid. vol.19 no.spe40 Medellín dic. 2020  Epub 22-Sep-2021

https://doi.org/10.22395/ojum.v19n40a23 

Artículos

A pandemia da Covid-19 como realidade transnacional

La pandemia de la Covid-19 como realidad transnacional

The COVID-19 Pandemic as a Transnational Reality

Heloise Siqueira-Garcia* 

Kassy Gerei dos-Santos** 

Leandro Teixeira-Ghilardi*** 

* Universidade do Vale do Itajaí, Itajaí, Brasil heloiseGarcia@univali.br https://orcid.org/0000-0001-5010-6450

** Universidade do Vale do Itajaí, Itajaí, Brasil kassy0911@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-8347-8450

*** Universidade do Vale do Itajaí, Itajaí, Brasil leandroghilardi@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-0559-9935


RESUMO

Covid-19 é o nome dado a doenga causada pelo novo coronavirus com alto poder de contágio, que encontrou, na sociedade globalizada, o cenário ideal para o seu avango acelerado, ultrapassando rapidamente as fronteiras nacionais, evidenciando a existencia de problemas transnacionais e ressaltando a importancia de se buscar respostas mais efetivas. Diante disso, este artigo objetiva analisar o novo coro navirus ante a realidade transnacional e se propóe a investigar a possibilidade de utilizagao dos mecanismos presentes no Direito Transnacional como alternativa ao combate da pandemia. Quanto a metodologia, sua base deu-se no método indutivo a partir da utilizagao das técnicas do referente, da categoria, dos conceitos operacionais, da pesquisa bibliográfica e do fichamento. Com o estudo tornou-se evidente que lidamos com um problema transnacional, nao apenas porque o virus se disseminou por todo o globo, mas também porque os Estados nacionais nao sao capazes de dar respostas consistentes a luta contra a pandemia, especialmente por suas atuagóes desordenadas. Concluiu-se que é possivel analisar o novo coronavirus no ambito transnacional, embora seja evidente a necessidade de maior aprofundamento no assunto, constatando-se a possibilidade de enfrentamento de questóes como a da pandemia por meio da utilizagao dos mecanismos presentes no Direito Transnacional.

Palavras-chave: Covid-19; transnacionalidade; Direito Transnacional.

RESUMEN

“Covid-19” es el nombre dado a la enfermedad causada por el nuevo coronavirus con alto poder de contagio, que encontró, en la sociedad globalizada, el lugar ideal para avanzar de forma acelerada, ultrapasar rápidamente las fronteras nacionales, evidenciar la existencia de problemas transnacionales y resaltar la importancia de buscar respuestas más efectivas. Ante lo anterior, el artículo tiene el propósito de analizar el nuevo coronavirus en el marco transnacional y plantea investigar la posibilidad de utilizar mecanismos presentes en el Derecho Transnacional como alternativa al combate de la pandemia. En cuanto a la metodología, se apoya en el método inductivo desde las técnicas del referente, la categoría, los conceptos operacionales, la investigación bibliográfica y el registro. Con el estudio, se evidencia que lidiamos con un problema transnacional, no solo porque el virus se diseminó por todo el globo, sino también porque los Estados nacionales no son capaces de responder de forma consistente al combate de la pandemia, en especial por sus actuaciones desordenadas. Se concluye que es posible analizar el nuevo coronavirus en el ámbito transnacional, si bien es evidente la necesidad de más profundidad en la temática, encontrándose la posibilidad de afrontar cuestiones como la pandemia mediante el empleo de mecanismos presentes en el Derecho Transnacional.

Palabras clave: Covid-19; transnacionalidad; derecho transnacional.

ABSTRACT

“COVID-19” is the name given to the disease caused by a new coronavirus with high contagion power, which found within a globalized society the ideal scenario for its accelerated advance, quickly crossing national borders, showing the existence of trans national problematic issues, and emphasizing the importance of seeking more effective answers to these challenges. Therefore, this article aims to study the new coronavirus before the transnational reality and investigate the possibility of using the mechanisms of Transnational Law as an alternative to combat the pandemic. The methodology is founded in the inductive method, from the use of techniques such as referent, category, operational concepts, bibliographic research, and filing. With the study it became evident that we are dealing with a transnational problem, not only because the virus has spread across the globe, but also because national states are not able to provide consistent responses to the fight against the pandemic, especially for its disordered actions. It was concluded that it is possible to analyze the new coronavirus at the transnational level, although there is an evident need for further study on the subject, showing the possibility of facing issues such as the pandemic through the use of the mechanisms included in Transnational Law.

Keywords: COVID-19; transnationality; transnational law.

INTRODUJO

O presente artigo deriva da atividade académica dos autores, os dois primeiros, Heloise e Kassy, tém suas atividades de pesquisa voltadas ao Direito Transnacional, enquanto o terceiro autor, Leandro, concentra seus estudos na linha da saúde e gestao do trabalho. Assim, o estudo é realizado por meio de uma interlocugao entre Direito e Saúde, buscando abordar a Covid-19 como uma realidade transnacional.

Ademais, oportuno registrar que a parcela do artigo que trata sobre a transnacionalidade é fruto da tese “Mecanismos transnacionais de combate a pobreza: uma possibilidade de análise a partir da solidariedade sustentável, da economia e da governanga”, desenvolvida pela autora Heloise.

O novo coronavírus trouxe novos questionamentos e a certeza de que estamos vivenciando um momento que ficará registrado na história, já que nunca antes um vírus se disseminou por todo o globo de forma tao rápida. Para se ter ideia da velocidade de disseminagao do vírus, os registros apontam que em dezembro de 2019 comegaram a surgir alguns casos de pneumonia na cidade de Wuhan, província de Hubei, na China; o fato foi alertado a Organizagao Mundial da Saúde (OMS) em 31 de dezembro de 2019 e, no dia 7 de janeiro de 2020, as autoridades chinesas constataram que o motivo dos casos da pneumonia decorria de um novo tipo de coronavírus, batizado de “Sars-CoV-2”, causador da Covid-19.

Em 30 de janeiro de 2020, a OMS declarou que o surto do novo coronavírus se tratava de uma emergéncia de saúde pública de importancia internacional (ESPII) - o mais alto nível de alerta da organizagao. Em 11 de margo de 2020, o surto da Covid-19 foi caracterizado pela OMS como uma pandemia, dada sua disseminagao geográfica.

Até o dia 8 de abril de 2020, temos o registro de mais de 1.353.361 casos confirmados e 79.235 mortes por Covid-19 em todo o mundo, segundo a OMS (2020).

O alto poder de contágio da doenga encontrou, em nossa sociedade globalizada, o cenário ideal para avangar de forma acelerada; a propagagao do vírus tem congestionado a maioria dos sistemas de saúde do mundo, os quais nao tém suportado a alta demanda, tornando ainda mais difícil o enfrentamento da doenga.

Como estamos vivendo o surto atualmente, nao temos ainda uma nogao precisa de sua real dimensao, mas é possível observar que a atuagao dos Estados nacionais no seu enfrentamento, em sua grande maioria, nao tem sido eficaz, tanto que, apesar das medidas adotadas por algumas nagoes, o virus continua avangando e aumentado exponencialmente o número de vítimas.

A atuagao desordenada das nagoes tem retardado e enfraquecido a capacidade de enfrentamento do vírus e, justamente por isso, deve deixar como ligao a necessidade de novas formas de enfrentar essas questoes.

Diante disso, o presente estudo é desenvolvido com o objetivo de analisar o novo coronavirus ante a realidade transnacional e se propoe a investigar a possibilidade da utilizagao dos mecanismos presentes no Direito Transnacional como alternativa ao combate da pandemia da Covid-19.

Para tanto, o artigo foi dividido em dois tópicos que se relacionam. Com relagao a metodologia adotada, utilizou-se do método indutivo, com o emprego das técnicas do referente, da categoria, dos conceitos operacionais, da pesquisa bibliográfica e do fichamento, conforme obra de Pasold (2015).

1. A PANDEMIA DA COVID-19

O coronavírus contém genoma RNA, que causa infecgoes respiratórias em uma variedade de animais. Atualmente sao sete os coronavírus reconhecidos como patógenos em humanos, o mais recente deles é denominado “Sars-CoV-2”, causador da Covid-19 (Lana, 2020), nome dado pela OMS e retirado das palavras “corona”, “vírus” e “doenga”, com 2019 representando o ano em que o surto foi relatado a OMS, como tradugao do ingles Coronavirus Disease 2019 (BBC News, 2020a).

Os “coronavírus humanos” já identificados, além do Sars-CoV-2, sao: HCoV-229E, HCoV-OC43, HCoV-NL63, HCoV-HKU1, Sars-Cov (que causa síndrome respiratória agu da grave), Mers-Cov (que causa síndrome respiratória do Oriente Médio) (Organizagao Pan-Americana de Saúde [PAHO], 2020).

O novo coronavírus se espalhou a partir da cidade de Wuhan, província de Hubei, na República Popular da China, sendo constatado após o surgimento de vários casos de pneumonia na regiao, o que foi alertado a OMS em 31 de dezembro de 2019; no dia 7 de janeiro de 2020, as autoridades chinesas constataram que se tratava de um novo tipo de coronavírus (PAHO, 2020).

Após a constatagao da doenga, os primeiros esforgos foram destinados a descrever seu curso clínico, realizar a contagem de casos graves e buscar o tratamento adequado aos doentes. Além disso, a experiencia com a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers) trazia a tona a necessidade de expansao das atividades de saúde pública, para elucidar com seguranga as características do vírus e seu possível alcance, notadamente pelo rápido avango da epidemia (Marc Lipsitch, Swerdlow e Finelli, 2020).

Para a OMS (WHO, 2020), a maioria das pessoas se recupera da doenga sem precisar de tratamento hospitalar. Porém, qualquer pessoa pode pegar o novo coronavírus e ficar gravemente doente. Para o Ministério da Saúde brasileiro (MS) (Vargas, 2020), a dimensao clínica do Sars-Cov-2 apresenta uma variagao entre estado gripal e pneumonia severa. Por meio de exames de imagem que auxiliam o fechamento do diagnóstico, 75% dos pacientes contaminados apresentaram pneumonia bilateral.

No protocolo de manejo clínico da Covid-19 do MS (Brasil, 2020a), o quadro clínico após a avaliagao de sinais e sintomas é caracterizado por manifestares típicas de uma síndrome gripal, podendo apresentar desde sintomas leves a mais críticos, inclusive ser assintomático. Segundo as diretrizes para o diagnóstico e tratamento para a Covid-19 do MS, “aproximadamente 80% dos pacientes apresentam doenga leve, 14% apresentam doenga grave e 5% apresentam doenga crítica. Relatórios iniciais sugerem que a gravidade da doenga está associada a idade avangada e a presenga de condigoes de saúde subjacentes” (Brasil, 2020b).

De acordo com dados do boletim epidemiológico 3 do MS de 2020 (Brasil, 2020c), houve suspeita de 40 pacientes que foram contaminados por transmissao hospitalar e 17 profissionais de saúde de um total de 138 pacientes. Ainda, desse total, a média entre o início dos sintomas e a dificuldade respiratória (dispneia) foi de cinco dias e, para a manifestagao considerada mais grave, a Síndrome da Angústia Respiratória Aguda (Sara), foi de oito dias.

Embora a análise da OMS tenha apontado que 80% dos infectados desenvolvem sintomas leves, como febre, tosse e, em alguns casos, pneumonia, 14% apresentam sintomas severos, como dificuldade em respirar e falta de ar, e 6% desenvolvem a doenga de forma grave, com sintomas como insuficiencia pulmonar, choque séptico, falencia de órgaos e risco de morte (PLITT, 2020). Nesse sentido e pelo crescimento exponencial do número de casos da doenga, com o objetivo de aprimorar a coordenagao, cooperagao e solidariedade global para que fosse interrompida a propagagao do vírus, em 30 de janeiro de 2020, a OMS declarou que o surto do novo coronavírus se tratava de uma ESPII - o mais alto nível de alerta da organizagao, conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional (OMS, 2005).

Para se determinar que um evento constitui ESPII, é convocado um comite de especialistas - chamado de “Comite de Emergencias do Regulamento Sanitário Internacional”, que analisa o caso para que, entao, seja dada a classificagao adequada que deve ser anunciada pelo diretor-geral da OMS (2005).

A medida nao foi suficiente e, em 11 de margo de 2020, a Covid-19 foi caracterizada pela OMS como uma pandemia, termo que se refere a distribuigao geográfica da doenga (PAHO, 2020), ou seja, a definigao de pandemia nao depende de um número específico de casos, mas sim de sua disseminagao.

O Diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, em uma coletiva de imprensa no dia 11 de margo de 2020, fez pronunciamento justamente nesse sentido, esclarecendo que “a palavra pandemia nao deve ser usada de forma descuidada ou leviana. É uma palavra que, se mal empregada, pode despertar medo irracional ou a aceitagao injustificável de que a luta acabou, levando a sofrimento e mortes desnecessárias” (BBC News, 2020b).

Há registros de enfrentamento de pandemias pelo menos desde 1580, época em que foi registrado o surgimento de um vírus tipo influenza e causava gripes na Ásia e que se espalhou pela África, pela Europa e pela América do Norte.

O exemplo mais recente que temos do surgimento de uma pandemia foi a disseminagao global do virus influenza H1N1, que causou a denominada “gripe suina”, em 2009 (FERREIRA, 2020).

A gripe espanhola, que ocorreu entre 1918 e 1920, é emblemática e tida como uma das pandemias mais graves já enfrentadas. Estima-se que mais de 20 milhoes de pessoas tenham morrido pela doenga que eclodiu na Europa no fim da Primeira Guerra Mundial (Ujvari, 2011). Os historiadores apontam que “a gripe se espalhou enquanto os soldados estavam voltando para casa, em seus respectivos países, levando a doenga com eles para comunidades que nao tinham resistencia ao virus - o sistema imunológico delas foi pego completamente de surpresa” (Ujvari, 2011, p. 37). A gripe espanhola levou de 6 a 9 meses para se espalhar ao redor do globo, já que as viagens eram muito mais dificeis e demoradas. Atualmente, como somos capazes de atravessar o planeta em um dia, o novo coronavirus se dissemina muito mais rapidamente (Goulart, 2005).

Outro fato que contribui com a disseminagao do virus é o aumento populacional. Atualmente, segundo a Organizagao das Nagoes Unidas ([ONU] 2020), somos 7 bilhoes de pessoas, de modo que estamos cada vez mais próximos um dos outros, portanto mais fácil se torna a disseminagao de doengas contagiosas.

Com a globalizagao e, por consequencia, a facilidade de viajar de aviao, trem e automóvel, a disseminagao de um virus pode ocorrer rapidamente. Foi o que aconteceu com o novo coronavirus, que, em poucas semanas após o inicio do surto, havia suspeitas em mais de 16 paises (FERREIRA, 2020).

A preocupagao com o surto vivenciado atualmente levou a OMS a langar uma iniciativa chamada “Solidarity” (solidariedade), que consiste em um estudo clinico por meio do qual 10 paises vao pesquisar simultaneamente a eficácia de quatro medicamentos para o tratamento de pacientes com covid-19, com o objetivo de coletar o máximo de dados em menor tempo possivel (CARBINATTO, 2020).

Apesar dos esforgos, no dia 26 de margo de 2020, quando foi registrado um acréscimo de 100.000 novos casos no mundo em apenas dois dias, alcangando a marca de 512.000 casos confirmados, com 23.094 desde o inicio da pandemia, o diretor-geral da OMS publicou que “a pandemia da Covid-19 está se acelerando a uma taxa exponencial” e afirmou que “sem agao agressiva de todos os paises, milhoes poderao morrer” (FERREIRA, 2020, par. 10).

Embora vivamos em uma sociedade globalizada, com relagoes transnacionais cada vez mais evidentes, ainda nao temos um sistema de saúde global capaz de dar respostas efetivas a essas ameagas, fato que torna ainda mais difícil a luta contra a pandemia. Isso porque, para conter a doenga, depende-se dos governos dos países com pessoas infectadas, os quais combatem o vírus cada um a sua maneira - o que tem acontecido na maioria dos países é o fechamento de fronteiras, escolas e universidades, a suspensao de competigoes esportivas profissionais e a proibigao de reunioes -, e, quando fracassam, todos permanecem em risco de uma nova disseminagao ou agravamento.

Como as medidas nao sao padronizadas, e sim escolhidas por cada governo - já que a OMS cumpre a fungao de orientar -, diante da preocupagao com a perda económica e da possível recessao decorrente da paralizagao das atividades, sao ignoradas algumas medidas de prevengao do espalhamento do vírus. Nesse contexto, surgem teorias de que o enfraquecimento económico poderia ser mais prejudicial do que o próprio vírus, mesmo sem qualquer embasamento científico para tanto, o que tem levantado o questionamento sobre quais seriam as medidas adequadas para combater o novo coronavírus sem causar uma paralizagao económica. Essa situagao tem levado ao relaxamento de muitas medidas até aqui adotadas e aumentado o risco de agravamento da pandemia.

2. AS DEMANDAS DESTERRITORIALIZADAS E A TRANSNACIONALIDADE

A pandemia decorrente do novo coronavírus veio para tornar ainda mais claro que existem problemas que nao podem mais ser resolvidos dentro dos Estados nacionais: eles ultrapassam as fronteiras. Isso já havia sido pressentido por temas como a economia, o direito ambiental, a sustentabilidade, o direito penal, o direito empresarial, mas o ano de 2020 veio demonstrar que todos eles se inter-relacionam; além disso, acrescentou-se um problema de escala global: a saúde pública. Tudo isso deixa evidente que existem questoes que sao de cunho mundial, de modo que seus reflexos sao capazes de ultrapassar rapidamente as fronteiras limitantes dos Estados nacionais, o que demonstra a ineficácia do Direito Nacional com relagao a essas questoes (Garcia, 2019).

De acordo com Cruz e Bodnar (2012) e (Garcia, 2019), essa situagao decorre justamente da realidade transacional que vivemos na atualidade, caracterizada por uma complexa teia de relagoes políticas, sociais, económicas e jurídicas que, por consequencia, justificam o surgimento de atores, conflitos e interesses que exigem a formulagao de respostas eficazes do Direito.

As adversidades apontadas e consideradas como de escala global apenas demonstram que os problemas humanos podem surgir em qualquer nível da sociedade humana: individual, comunitário, inter-regional ou internacional. E a tratativa para as suas solugoes deve ser diferenciada. O Estado nacional nao consegue mais dar respostas consistentes a sociedade diante da complexidade das demandas transnacionais que se avolumam continuamente, sendo necessário se pensar, no ámbito jurídico, sobre os problemas transnacionais que demandam respostas transnacionais. Nesse contexto, abrem-se as discussóes sobre o Direito Transnacional.

O Estado nacional, originado das revolugóes francesa e americana, conforme aponta Habermas (2001), sofre, desde a década de 1970, uma pressao da globalizagao, caracterizada pela quantidade cada vez maior e intensificada das relagóes de troca, de comunicagao e de transito para além das fronteiras nacionais. Gerando a necessidade de um novo tipo de organizagao que leve a sua relativizagao, já que o Estado nacional nao é mais considerado um lugar de retorno, mas um tipo de organizagao cujo caráter problemático a cada dia se demonstra mais profundo e visível, sendo necessário um novo ponto de partida para um novo tipo de organizagao que o relativize (Habermas, 2008).

Ohmae (1995) afirma que vivemos num mundo sem fronteiras, em que o Estado nacional se tornou mera ficgao, e os políticos parecem ter perdido seu poder efetivo. Apesar de Giddens (2001) discordar em partes - como também se compreende - de que o Estado nacional nao é uma ficgao, mas seu formato está sendo alterado. A globalizagao, nos dizeres deste último, afasta-se do Estado nacional, enfraquece alguns de seus poderes, mas cria demandas e possibilidades para a regeneragao de identidade locais.

Oliviero e Cruz (2012) afirmam, nesse sentido, que a justificativa para os debates sobre o Direito Transnacional se dá essencialmente pelo fato de que o Direito Nacional e o Internacional nao apresentaram mecanismos eficazes de governanga, regulagao, intervengao e coergao para as demandas efetivamente transnacionais. Conforme destacam Piffer e Cruz (2020), os acontecimentos que ultrapassam de forma recorrente as fronteiras nacionais sao efetivamente transnacionais e demandam um compromisso regular e significativo de todos os participantes.

Pois bem, para a primeira compreensao advinda da crise gerada pelo reconhecimento e surgimento de problemas que ultrapassam barreiras, como é o caso do novo coronavírus, a partir de Cruz (2014), entende-se que se trata, também, de crise de governabilidade, na medida em que é fortalecida a concepgao de que a humanidade é um grupo único, cujas adversidades de uma nagao podem facilmente interferir, de forma direta, em outra localizada no outro extremo do globo. Na visao de Rifkin (2010), deve ocorrer uma uniao com base em critérios de cidadania global e pela sua característica inata de empatia ou mesmo por uma empatia global em um mundo interconectado. Ela é verificada, na visao do autor, no interesse do outro em compartilhar a sensagao suportada por seu semelhante. Por seu valor intrínseco, seria capaz de trazer solugóes para problemas de cunho transnacional, como o do novo coronavírus, em que a preocupagao e o cuidado nao devem ser apenas individuais, mas também coletivos, ponto intimamente ligado a critérios de solidariedade, essencial para a visao do Direito Transnacional, pois a criagao de uma consciencia global solidária é capaz de possibilitar a ampliagao da visao humana para os infortúnios de proporgao global que assolam toda a humanidade (Garcia, 2019).

Tais afirmativas e significances correlacionam-se também com a Sociedade de Risco considerada por Beck (2011), surgida a partir dos diversos riscos sociais, políticos, económicos e industriais, os quais foram tomando cada vez maiores proporgoes, escapando da algada das instituigces de controle e protegao da sociedade industrial, o que foi gerado pelo próprio avango técnico-económico, e o processo de modernizagao acaba por voltar-se a si mesmo como tema e problema através da reflexividade. A consciencia do risco estaria, entao, englobada em questoes para o futuro e nao para o presente, o que pressupoe um processo social de reconhecimento e legitimagao.

O reconhecimento da sociedade como mundial ou global desenvolve-se, como destaca Neves (2009), a partir do século XVI, consolida-se na segunda metade do século XIX, com o surgimento de um tempo único mundial, e alcanga seu ápice no final do século XX.

Por sua vez, o preámbulo da Declaragao Universal dos Direitos Humanos reconhece a “família humana” como grupo de titulares dos direitos humanos: “consi derando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiga e da paz no mundo [...]” (ONU, 1948).

Nesse contexto, Garcia (2019) com base em Castells (2005) descreve que a crise de legitimidade das instituigoes nacionais, bem como a dificuldade de o sistema político gerir os problemas de escala global sao fatores determinantes para a emergencia da sociedade civil global.

A caracterizagao da sociedade como um grupo único mundial advém da concepgao de que o grupo humano pertence a uma mesma espécie, que reflete problemas compatíveis e respostas isonómicas. E a pandemia da Covid-19 é mais um dos aspectos a comprovar a naturalidade de tal caracterizagao, já que a mesma doenga atinge e mata pessoas pertencentes as partes mais remotas do globo terrestre.

Sobre cidadania global, Real Ferrer (2013) destaca que se trata de um dos pilares da politizagao da globalizagao. Ademais, retornando a Rifkin (2010), o autor sugere que os cidadaos precisem de uma uniao para formar uma civilizagao empática, que envolva todos os poderes, políticos e económicos, comprometidos em viabilizar a sociedade que se quer, exercendo direitos e cumprindo obrigagoes, pensando e atuando em prol de objetivos comuns.

De acordo com Garcia, “o fim dos regimes socialistas e comunistas, o avango da tecnologia, a ampliagao do acesso a informagao e a evolugao dos meios de transporte gerados pela globalizagao” (2019, p. 326) serviram para intensificar a percepgao da sociedade mundial sobre a existencia de problemas que transpassam barreiras, o que bate a nossa porta com a pandemia declarada. Conforme bem destaca Dowbor (2020), o coronavírus e as respostas comuns buscadas pelos países só demonstram ainda mais a dimensao planetária dos desafios enfrentados.

O termo "globalizagao", como aponta Beck (1998), nao significa necessariamente o fim da política, mas uma saída do marco categórico do Estado nacional. O processo que levou a essa consideragao, de acordo com Castells (2005), decorre de um aspecto empírico que abarca a existencia de sistemas globais, de economia, de comunicagao, de seguranga e de gestao do meio ambiente. Além disso, embora seu início tenha sido em uma vertente puramente económica, evolui para uma globalizagao multifacetada, inclusive jurídica, como aponta Staffen (2013), a globalizagao deve ser entendida como manifestagao de uma interdisciplinaridade sistemica. Garcia (2019) com base em Giddens (2001), discorre que a globalizagao está transformando a vida das pessoas em razao de sua complexa variedade de processos e da mistura de influencias políticas e económicas, em especial em países desenvolvidos, criando, até mesmo, sistemas e forgas transnacionais.

Conforme destacam Piffer e Cruz (2020), apesar de a transnacionalidade nao se confundir com a globalizagao, ela nao pode ser dissociada dela, sao fenómenos interligados. A transnacionalidade nasce do contexto da globalizagao.

O Estado nacional tem sem modelo atual baseado no território, em um lugar concreto, com o controle das instituigoes, a criagao de leis, a defesa de fronteira, com vistas a protegao de sua soberania. Além disso, o Estado é relativizado pela sociedade inserida na globalizagao e suas particularidades que se ramificam em várias dimensoes e se mesclam, apresentando uma multiplicidade de relagoes sociais e económicas que transpassam facilmente as barreiras territoriais. Essa realidade causa efeitos diretos em diversos fundamentos da autoridade nacional, como, por exemplo: fiscalidade, atribuigoes especiais da polícia, política externa e defesa (Beck, 1998). A sociedade global exige uma tratativa jurídica e política que acompanhe a nova realidade e ultrapasse as barreiras do Estado nacional a partir de solugoes eficientes a essas novas questoes jurídicas (Garcia, 2019).

A realidade transnacional é latente e demanda agao, principalmente jurídica. Ainda, precisa de uma resposta mais humana, em especial quando abordada uma questao sensível, de saúde, como é o caso da pandemia do novo coronavírus.

Nesse mesmo sentido, Beck (1998) apresenta pelo menos oito razoes observadas que geram concepgoes da necessidade de agao transnacional ante as realidades da globalizagao, que sao apresentadas por Garcia da seguinte forma:

1) o alargamento do campo geográfico e a crescente densidade do intercam bio internacional, além do caráter global da rede de mercados financeiros e do poder cada vez maior das multinacionais; 2) a revolugao permanente no terreno da informagao e as tecnologias da comunicagao; 3) a exigencia universalmente aceita de respeitar aos direitos humanos; 4) as correntes iconicas das indústrias globais da cultura; 5) a política mundial pós internacional e policentrica - junto aos governos há cada vez mais atores transnacionais com cada vez mais poder, como as multinacionais, as ONG's e a ONU; 6) o problema dos danos e atentados ecológicos globais; 7) o problema dos conflitos transculturais num lugar concreto; e 8) o problema da pobreza mundial. (2019, p. 330)

Ou seja, os estudos apontam justamente para a concepgao de problemas mundiais que merecem respostas ainda nao alcanzadas a sua altura. Com base em Beck (1998), Garcia (2009) e Garcia (2019) defendem que a transnacionalidade deve ser concebida a partir de demandas transnacionais, relacionando-se diretamente com a efetividade dos direitos difusos e transfronteirizos baseados na solidariedade, com o objetivo de sobrevivencia do ser humano no planeta.

O prefixo trans, em contraposizao ao inter, do Direito Internacional, que designa o que se dá entre os Estados, respeitada a separazao entre eles e levadas em conta as suas fronteiras (Nasser, 2010), remete as ideias de “além de”, “para além de”. O transnacional remeteria a ideia daquilo que “[...] atravessa o nacional, que perpassa o Estado, que está além da concepzao soberana do Estado e, por consequencia, traz consigo, inclusive, a ausencia da dicotomia público e privado.” (Stelzer, 2009, p. 24-25). Além disso, é aplicado a diversos tipos de sujeitos: indivíduos, empresas, Estados, organizares de Estados e outros grupos. (Jessup, 1965).

Garcia (2019) descreve que Jessup (1965), já em 1965 apontava a existencia de premissas e exemplos suficientes para demonstrar e caracterizar o Direito Trans nacional, e, ainda, que nao existe nada que impeza a aplicazao de um direito ou de outro, tampouco existe no caráter do foro. O desafio seria a quebra de paradigma do pensamento moderno.

Sua base teórica aponta para o reconhecimento da pluralidade cultural e seu exercício decorre de uma pauta axiológica comum de caráter difuso, o que corrobora com as evidencias trazidas pela pandemia da Covid-19.

Por oportuno, salienta-se que podem ser apresentadas diversas respostas na abordagem dos aspectos decorrentes da transnacionalidade, porém acredita-se que a melhor tratativa para as questoes transnacionais nao se daria na criagao de "espatos transnacionais”, que se acredita ser um tanto quanto utópico, mas sim em poderes desterritorializados que serao - ou deverao ser - operacionalizados pela melhor equagao entre o transconstitucionalismo e o transjudicialismo (Garcia, 2019).

Contudo, frisa-se que, embora o Direito Transnacional surja pelas lacunas decorrentes das falhas apresentadas pelos Estados nacionais ao lidarem com demandas globalizadas, estes Estados nao desaparecem, pois mantem sua importancia na garantia e aplicagao dos direitos, inclusive o transnacional. Aliás, as próprias visoes de democracia e república na era transnacional necessitam da existencia dos Estados nacionais (Garcia, 2019).

Notadamente os problemas a serem lidados pelo Direito Transnacional sao de grande relevancia, como seria o caso do próprio enfrentamento da Covid-19; contudo, trata-se de um Direito ainda a ser operacionalizado e, por isso, depende-se da aca demia o maior afinco na perfectibilizagao e construgao de tal Direito, reconhecendo o ordenamento jurídico transnacional e lidando com ele (Garcia, 2019). Por oportuno, apresenta-se um conceito de Direito Transnacional como:

[...] conjunto de ordens, normas e principios evoluídos das concepgoes dos direitos internos, dos direitos humanos e da economia frente a influencia do cenário global decorrente da globalizagao, pautados pela solidariedade sustentável, pela justiga ambiental e pelos próprios direitos humanos, cuja aplicagao é garantida mundialmente pela organizagao jurídica interna dos Estados nacionais a indivíduos, empresas, Estados, organizares de Estados, ou outros grupos sociais e institucionais. (Garcia, 2019, p. 395)

Dessa forma, a fim de contribuir com a construgao da transnacionalidade, em sua qualidade de Direito, apresentam-se os seguintes pontos a serem observados:

  1. Sujeitos mais abrangentes que os do Direito interno e do Direito internacional, principalmente em razao do seu objeto, englobando Estados nacionais, Organizares Internacionais, Organizagoes de Estados, empresas e individuos;

  2. Objeto compreendido pelas chamadas “demandas transnacionais”, evidenciadas por problemas, demandas e realidades cujas consequencias ultrapassam as barreiras fictícias dos Estados Nacionais, que hoje podem ser compreendidas, por exemplo, pelo meio ambiente, direitos humanos, Economia, crimes transnacionais, direito digital, direito do consumidor, direito empresarial e paz mundial.

  3. Princípios basilados em tres valores fundamentais: a solidariedade sustentável, a justiga ambiental e os direitos humanos, vinculados a responsabilidade intra e intergeracional;

  4. Forma estabelecida pela criagao de “normas jurídicas transnacionais”, criadas a partir de regras previamente estabelecidas de aplicagao heterárquica, perfectibilizada pelo transconstitucionalismo e pelo transjudicialismo; e

  5. Instituigoes responsáveis pela fiscalizagao da aplicagao das normas aos sujeitos, dotadas de poder de polícia administrativo e compreendidas por órgaos já existentes com cunho coercitivo, como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, a Organizagao Mundial do Comércio, a Organizagao Internacional do Trabalho, Organizagao Mundial da Saúde e Programa das Nagoes Unidas para o Meio Ambiente (este que deveria se tornar um órgao dotado de poderes de fiscalizagao e coergao, transformando-se numa possível “Organizagao Mundial para o Meio Ambiente”). (Garcia, 2019, p. 385-386).

Com a globalizagao, observa-se uma modificagao das correlagoes humanas, que sao cada vez mais multidimensionais, multiníveis e multiformes. Isso se deve aos caminhos que levaram a globalizagao, como o avango da tecnologia, dos meios de comunicagao e de transporte, que facilitam o estreitamento dos lagos, a atemporalidade e a transterritorialidade. Hoje nos relacionamos nos mais variados lugares e nos mais variados tempos, sem impedimentos para que as relagoes entre pessoas, empresas, Estados, organizagoes e instituigoes sejam constantes ou momentáneas (Garcia, 2019).

A fronteira fictícia dos Estados nao é mais relevante para diversos aspectos da vida económica, social e política. Nesse sentido, a Covid-19 é mais uma evidencia disso, considerando que o vírus “surgiu” em janeiro de 2020 na China e, ao final de margo, já ultrapassava 415 mil pessoas infectadas em todo o mundo, segundo dados do MS (2020). Todas as correlagoes humanas - multidimensionais, multiníveis e multiformes - geram, por consequencia, dependencia e responsabilidade também nas mais variadas dimensoes, formas e níveis.

CONCLUSOES

É certo que atualmente vivemos em uma sociedade globalizada, fruto dos significativos avangos nos campos tecnológicos, de transportes e dos veículos de informagao, o que trouxe uma facilitagao enorme na conexao de pessoas e diversas consequencias positivas para a vida em sociedade.

Contudo, apesar das inegáveis evolugoes da vida em sociedade decorrentes da globalizagao e da formagao da sociedade globalizada, há também uma crescente preocupagao com o surgimento de problemas que ultrapassam as fronteiras dos Estados nacionais, como o é o caso da pandemia da Covid-19, a doenga proveniente do novo coronavírus.

O novo coronavírus se disseminou de uma forma nunca vista na história, ao menos nao nessa velocidade. Como foi relatado neste artigo, os primeiros casos da doenga foram descobertos em dezembro de 2019, na China, e, no dia 7 de janeiro de 2020, foi constatado que se tratava de um novo coronavírus, causador da Covid-19. Poucos dias depois, no dia 30 de janeiro, a OMS declarou que o surto do novo coronavírus se tratava de uma ESPII.

Dada a disseminagao geográfica da doenga por praticamente todo o planeta, em 11 de margo, a OMS atribuiu a classificagao de pandemia, com mais de 125.000 casos registrados. Até o dia 8 de abril de 2020, temos o registro de mais de 1.353.361 casos confirmados, e 79.235 mortes por Covid-19, segundo a OMS (2020).

O crescimento da doenga é exponencial. O que mais chama a atengao e assusta a comunidade global é o rápido avango e o alto contágio, dela e que, por conta disso, apesar de sua taxa de letalidade ser considerada relativamente baixa, o número de pessoas com sintomas da doenga tem sobrecarregado os sistemas de saúde e gerado uma demanda muito alta por equipamientos de protegao contra o virus e de testes para a identificagao dos infectados.

A pandemia de Sars-CoV-2 comprova a caracterizagao da sociedade como um grupo único mundial, isso porque é um problema que desconhece as fronteiras criadas pelos Estados nacionais, atingindo, em pouco tempo, até mesmo as pessoas pertencentes as mais regioes mais remotas do globo terrestre.

Tornou-se evidente que atualmente lidamos com um problema transnacional, nao apenas porque o vírus se disseminou por todo o globo, mas também porque se tem observado que os Estados nacionais, em grande parte, embora importantes em sua colaboragao, nao sao capazes de dar respostas consistentes a luta contra a pandemia, especialmente por suas atuagoes desordenadas.

Disso decorre a necessidade de se buscar novos mecanismos capazes de dar respostas efetivas a crise, mesmo que para isso seja necessário relativizar o Estado nacional por meio da aplicagao do Direito Transnacional, que se apresenta como uma consequencia da própria globalizagao e da falha dos Estados nacionais na condugao de problemas dessa magnitude.

De acordo com Castells (2005), as crises de eficiencia, de legitimidade, de identidade e de equidade, que sao crises de governabilidade, especialmente evidenciadas em momentos como o atual, em que fica abalada a crenga dos cidadaos ante as decisoes adotadas pelos governantes na condugao de questoes de interesse nacional de tao elevada importancia, como é o caso do enfrentamento da pandemia da Covid-19, em que muitas vezes sao colocadas em xeque as medidas de enfrentamento do coronavírus pela possível recessao económica decorrente do isolamento social, uma das principais orientagoes da OMS para a contengao da epidemia, sao também crises políticas que afetam as instituigoes de governanga transnacional. Portanto, ao nosso sentir, ressaltam a necessidade da busca de respostas mais efetivas a essas questoes, que sao possivelmente alcangadas por meio da operacionalizagao do Direito Transnacional.

O transnacional está direcionado a ideia daquilo que “atravessa o nacional, que perpassa o Estado, que está além da concepgao soberana do Estado e, por consequencia, traz consigo, inclusive, a ausencia de dicotomia púbico e privado”, conforme a conceituagao de Stelzer (2009, p. 24-25).

O Direito Transnacional, por sua vez, conforme conceito apresentado no presente artigo, é o conjunto de ordens, normas e princípios evoluídos das concepgoes dos direitos internos, dos direitos humanos e da economia ante a influencia do cenário decorrente da globalizagao, pautados pela solidariedade sustentável, pela justiga ambiental e pelos próprios direitos humanos, cuja aplicagao é garantida mundialmente pela organizagao jurídica interna dos Estados nacionais a individuos, empresas, Estados, organizares de Estados e outros grupos sociais e institucionais.

Há de se ressaltar que, apesar de o Direito Transnacional surgir diante das falhas apresentadas pelos Estados nacionais, estes nao desaparecem e mantem sua importancia na garantia e aplicagao dos direitos, inclusive o Direito Transnacional operacionalizado pelo transconstitucionalismo.

Claro, para cumprir efetivamente o seu papel, o Direito Transnacional depende de lapidagao e instrumentalizagao, especialmente por seu enorme potencial evidenciado por diversos estudos, inclusive neste artigo, quando sao analisados alguns dos proble mas decorrentes da pandemia da Covid-19. Para isso, sao necessárias medidas iniciais, como a criagao de “normas jurídicas transnacionais”, de fortalecimento de instituigao de fiscalizagao da aplicagao dessas normas, possivelmente por meio dos órgaos já existentes, porém dotados de poder de polícia, de poder coercitivo, que tem feito bastante falta nesse momento a OMS, que emite recomendagoes relevantíssimas ao combate da epidemia, mas, como se tratam de "recomendares", sao constantemente ignoradas e muitas vezes até questionadas sem qualquer embasamento técnico.

Assim, da conjugagao do estudo desenvolvido no presente artigo, em que foi possível analisar o novo coronavírus na realidade transnacional, embora seja evidente a necessidade de maior aprofundamento no assunto, já que se trata de tema natu ralmente rico, foi possível constatar a possibilidade de enfrentamento de questoes como a da pandemia da Covid-19 mediante a utilizagao dos mecanismos presentes no Direito Transnacional, desde que devidamente lapidado e instrumentalizado para que tenha a devida efetividade.

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Recebido: 13 de Maio de 2020; Aceito: 28 de Julho de 2020

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