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Opinión Jurídica

Print version ISSN 1692-2530On-line version ISSN 2248-4078

Opin. jurid. vol.20 no.spe43 Medellín Dec. 2021  Epub Nov 19, 2022

https://doi.org/10.22395/ojum.v20n43a18 

Artigos

Direito ao conhecimento da acusação, garantia constitucional ao intérprete judicial e aplicação de programas de tradução em atos processuais

Derecho a conocer la acusación, garantía constitucional al intérprete judicial y aplicación de programas de traducción en actos procesales

Right to Knowledge of the Accusation, Guarantee to a Court Interpreter and Application of Translation Software in Procedural Acts

Cláudio José Langroiva Pereira* 
http://orcid.org/0000-0002-2067-4980

Guilherme Lobo Marchioni** 
http://orcid.org/0000-0001-8873-3556

* Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, Brasil claudiopereira@pucsp.br, https://orcid.org/0000-0002-2067-4980

** Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, Brasil guilhermemarchioni@gmail.com, https://orcid.org/0000-0001-8873-3556


RESUMO

A partir de reflexões sobre os desafios do uso da linguagem como forma de comunicação no âmbito do Direito, e das dificuldades enfrentadas por um indivíduo que responde a processo judicial em idioma que não domina, o presente texto discorre sobre o intérprete judicial e a razão da assistência por tradutor, como uma garantia judicial inerente ao Estado democrático de direito. Construídas as premissas sobre a garantia ao intérprete judicial, debate-se a hipótese de dispensar tal profissional substituindo-o pela aplicação de programas digitais (software) de tradução que converta o idioma das decisões e atos processuais, trazendo relato de ocasiões registradas na jurisprudência do emprego desta tecnologia. Confrontase, então, a efetividade dos softwares de tradução frente a relevância da garantia de que o acusado possa compreender os atos judiciais, em consonância com direitos fundamentais, resguardados na Constituição Federal, e direitos humanos, assinalados na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A metodologia empregada corresponde a pesquisa bibliográfica, análise de legislação e revisão de jurisprudência, resultando, ao final, na percepção de que há relevante disparidade entre a amplitude necessária à concretização da garantia judicial examinada e a questionável efetividade dos métodos automatizados de tradução de atos processuais.

Palavras-chave: intérprete; tradução; linguagem; convenção americana; garantia processual

RESUMEN

A partir de reflexiones sobre los desafíos del uso del lenguaje como forma de comunicación en el ámbito del derecho, y las dificultades que enfrenta un individuo que responde a un proceso judicial en un idioma que no domina, este artículo analiza la función de intérprete judicial y la razón para la asistencia de un traductor, como garantía judicial inherente al Estado de derecho democrático. Una vez construidos los supuestos sobre la garantía al intérprete judicial, se debate la hipótesis de sustituir a dicho profesional por la aplicación de programas de traducción digital (software) que convierta el lenguaje de las decisiones y actos procesales. Se cuestiona la efectividad y calidad de los programas informáticos de traducción, dada la garantía de que el imputado debe comprender los actos judiciales, de conformidad con los derechos fundamentales y derechos humanos, establecidos en la Convención Americana sobre Derechos Humanos. La metodología utilizada corresponde a la búsqueda bibliográfica, análisis de legislación y revisión de jurisprudencia, que concluyó en la percepción de que existe una disparidad relevante entre la amplitud necesaria para implementar la garantía judicial examinada y la cuestionable efectividad de los métodos automatizados de traducción de actos procesales.

Palabras clave: intérprete; traducción; idioma; convención americana; garantías procesales

ABSTRACT

The article discusses the challenges of language as a means of communication, especially regarding legal expressions, and the difficulties faced by a person who is bound to answer a legal procedure in a language not known to him. Also presents the position of interpreters, the court translation professionals, and the importance of translation effectiveness as right within the due process of law. Further on, the text approaches the hypothesis of replacing the court translators for applications that convert written language. The effectiveness of such technology is confronted against the right of defendants in a criminal lawsuit to understand the procedure, as to fulfill their human rights recognized in the Constitution and the American Convention on Human Rights. The methodologies for this article are bibliographical research, analysis of legislation and review of jurisprudence, which resulted in the perception of a relevant disparity between the desired effectiveness of the examined judicial guarantee and the questionable accuracy of automated methods of translation applied during judicial procedures.

Keywords: interpreter; translation; language; american convention on human rights; right to a fair trial

“Minha Pátria é a língua” FernandoPessoa (1982, p. 358)

INTRODUÇÃO

Inicialmente, convidamos o leitor a imaginar um cenário no qual é acusado de um delito e precisará se defender perante um juiz e tribunal estrangeiro. A acusação ao qual o leitor é submetido é sintetizada na seguinte passagem: αυτό είναι μόνο εικονιστικό, εάν ο αναγνώστης διαβάζει ελληνικά τις παραβολές μου, εάν ο μεταφραστής google έψαχνε για το νόημα του κειμένου τότε ελπίζω ότι το άρθρο θα του φέρνει καλές σκέψεις. Defenda-se.

Pode parecer apenas um exagero retórico, uma situação hipotética para ilustrar este artigo. Mas, confrontar-se a um processo judicial em língua desconhecida é uma realidade para muitos acusados. E é um problema sério a ser enfrentado pelo Judiciário de qualquer Estado Democrático de Direito, que resguarde as mais comezinhas garantias processuais de um julgamento fundado no devido processo legal.

Neste contexto encontra-se importante disposição da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos que, em coro com outros tratados internacionais e a legislação doméstica, estabelece ao acusado de um delito o direito de ser assistido por um tradutor ou intérprete, quando não compreender o idioma empregado pelo juízo.

Para além de se abordar pontos relevantes a respeito desta garantia judicial fundamental, é necessário reconhecer e analisar novas ferramentas tecnológicas que buscam automatizar a tradução de idiomas. Programas digitais (softwares) de tradução já estão sendo utilizados pelo judiciário, sem a devida reflexão sobre a eficiência e a eficácia destes na substituição de um intérprete humano.

Se, com conhecimentos básicos de um smartfone, um turista revela com relativa exatidão o cardápio de um restaurante na Itália, é no mínimo incoerente imaginar o mesmo sobre uma sentença condenatória, comumente repleta de termos técnicos e construída a partir de linguagem rebuscada. Se no primeiro caso o pior cenário pode ser a revelação de algum ingrediente indesejado - como “alcaparras” -, no segundo caso o cenário é o de potenciais prejuízos, dentre eles até mesmo a privação da liberd de, em especial, em país diverso de sua origem, sem sua rede de apoio - uma situação muito mais indigesta.

No plano da aplicação do Direito, com muito mais gravidade do Direito Penal, é imperioso conhecer a função do intérprete, reconhecer como garantia judicial do acusado a própria compressão do processo, das normas aplicadas, e dos fatos de que é acusado, bem como de refletir sobre a utilização de softwares de tradução em substituição ao intérprete.

A questão é se estaríamos preparados para utilizar um software como auxiliar do juízo em traduções.

As reflexões trazidas no presente estudo são resultantes do projeto de pesquisa de pós graduação do grupo de pesquisa Políticas Públicas de Segurança e Direitos Humanos, vinculado ao departamento de Direito Penal e Processual Penal da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

1. DIREITO E LINGUAGEM NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO

O Direito se manifesta por meio da linguagem e, como em qualquer técnica da sociedade, as palavras funcionam como significante e significado. A narrativa do Direito implica na evidente necessidade de compreensão do significado das suas formulações, isto é, a lei que pronuncia que aquele que matar alguém à traição será punido com a pena de reclusão de doze a trinta anos, constitui uma narrativa representada por um encadeamento de fatos e sua consequência jurídica.

Não há dúvida de que a linguagem é um método relevante de conhecer o mundo, embora não esteja invulnerável a confusões, interpretações e ambiguidades. Na hipótese da linguagem técnica instrumental do Direito, como a utilizada nos âmbitos legais, jurisprudenciais e doutrinários, é complexa e francamente hermética.

A narrativa em si é um instrumento que pode debilitar a própria comunicação, eis que a deficiência na linguagem corresponde a limites na compreensão. Como explica José de Faria Costa, interpretando a celebre proposição de Ludwing Wittgenstein no Tractatus logico-philosophicus; “os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo quer isso significar, precisamente pela língua, que o mundo - e por isso também o direito - só se pode perceber pela linguagem” (Costa, 2010, p. 24).

Mesmo dentro de uma mesma língua ou de uma mesma cultura, os termos têm significações e sentidos diferentes. É o que explica Dardo Scavino (2014, p. 10) , quando afirma que o mundo “real” está determinado pelos hábitos de linguagem de uma comunidade, que orientam nossa interpretação dos fatos, eis que “as línguas recortam a realidade em porções diferentes que constituem em cada caso o exprimível, de maneira que os recortes mais heterogêneos já não têm muitas coisas em comum, até o ponto em que a tradução fica, muitas vezes, impossível”.

O Direito, na mesma esteira, utiliza da linguagem para construção de narrativas técnicas e, bem por isso, pouco acessíveis, senão aos seus operadores que se aplicam a conhecer a respectiva linguagem e apreender seus sentidos. Contudo, como o direito submete a todos, e àquele contra quem se aplica uma norma ou se dirige um procedimento legal, é razoável que a todos seja permitido compreender sua narrativa.

A dificuldade de compreensão de textos jurídicos, atribuída ao emprego de linguagem técnica é conhecida, à grosso modo, na cultura popular nacional, como juridiquês.

Seria uma linguagem que, embora empregando o idioma oficial, é incompreensível ao leigo; expressão esta comumente utilizada como neologismo indicando um sentido pejorativo, que denota um floreio excessivo da língua.

Em verdade, o emprego de jargões profissionais no direito (e em qualquer prática aprofundada do conhecimento) é inescapável, mas não deve representar uma espécie de subterfúgio desnecessário. Termos técnicos significam mais do que a mera palavra indica e tal circunstância é própria do saber técnico, a exemplo da expressão periculum in mora que significa mais do que a simples tradução, carregando todo um sentido agregado que confere profundidade à expressão1.

A constatação da debilidade da língua como instrumento narrativo, somada ao conflito entre a linguagem técnico jurídica e o conhecimento técnico daquele que é submetido ao julgo do Estado, é o primeiro passo para refletir sobre a necessidade de garantir a um acusado a plena compreensão do processo que lhe aflige.

Esse conflito leva a uma situação ainda mais complicada para a aplicação do Direito, pois se já há uma dificuldade para o membro da própria nação, que conhece o idioma local, compreender os termos técnicos que envolvem a linguagem e a própria complexidade de um processo judicial, a barreira da língua aos estrangeiros faz com que este processo seja um verdadeiro tormento ao acusado que, sem familiaridade com o idioma - seja o do cotidiano, seja o jurídico -, fica diretamente sujeito à redução da plenitude de sua defesa (o mesmo se diga quanto aos nacionais que não dominam o idioma juridicamente utilizado pelo Estado, como é o caso de indígenas e mesmo estrangeiros com residência no país).

O cenário de dificuldades se intensifica, à medida que o fenômeno da globalização implica em maior incidência de estrangeiros submetidos a um Judiciário que utiliza idioma diverso do seu, além da tecnicidade aplicada em sua utilização, aplicando-lhe Direito que desconhece. Como assevera Renato Vieira, a partir da globalização e da necessidade de uso de línguas estrangeiras nas cortes, a importância dos intérpretes aumenta dia a dia (Vieira, 2009, p. 144).

Mais do que a barreira do idioma, o acusado estrangeiro lida com diversidades culturais das qual decorrem, inclusive, peculiaridades no próprio Direito. De fato, o Direito de cada Estado é profundamente diferente, embora presentes alguns direitos fundamentais decorrentes de compromissos internacionais, não há necessariamente uma padronização a respeito de sua forma e aplicação.

Há que se reconhecer que esta diversidade também é forma expressão de soberania do Estado, representativa também de sua história, seja nos países que adotam um direito costumeiro (common law), seja em países de direito positivado conforme o sistema civil law (Langer, 2017, p. 26 ).

Existe certa pressão para os Estados compartilharem um mesmo idioma, para facilitar suas tratativas, em nome de uma uniformização à la esperanto universal2. Em determinados casos a identidade de cada uma das ordens jurídicas exige, como aponta José Faria da Costa, que nos afastemos do “esperanto universal” e aceitemos a diversidade babélica, até mesmo confusa, quando não caótica. O professor de Coimbra argumenta que a diversidade dos Estados é, entre outras coisas, a manifestação e a expressão de uma individualidade e de uma identidade que não se deve sacrificar. Ser preservada “a liberdade, o ser individual que se autodetermina sempre na conjunção com o “outro” que é também diferente, é a fonte e a foz dos rios que levam à construção de sociedades mais justas e fraternas.” (Costa, 2010, p. 35).

É necessário considerar aqui que um estrangeiro, que não fala o idioma local e é culturalmente diferente, quando confrontado com os valores da nação em que se encontra, se encaixa com demasiada facilidade no papel de indesejado, de inimigo.

Sintetiza essas preocupações a afirmação de Raúl Zaffaroni (2019, p. 69) , na obra o Inimigo no Direito Penal, “o imigrante é um forte candidato a inimigo, o que se torna altamente arriscado numa época de revolução comunicacional, que facilita e promove os deslocamentos como nunca antes”.

Negar (ou ignorar) ao estrangeiro a compreensão do processo judicial ao qual é submetido, significa levá-lo à condição de inimigo, ou seja, considerá-lo sujeito sem direitos - prática, inequivocadamente, autoritária. Daí a imprescindibilidade da aplicação da lógica dos Direitos Humanos para salvaguardar os direitos desse indivíduo.

Reconhecer e tomar providências para evitar práticas autoritárias, como o é a negação do direito de compreensão do processo judicial ao estrangeiro, é responsabilidade de todos em um Estado Democrático de Direito.

É neste espírito que a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, elaborada no pós-guerra, tem como objetivo a imposição de limites aos Estados com vistas ao respeito a direitos humanos (Serrano, 2020, p. 199 ). Com efeito, em seu artigo 11º, a Declaração estabelece que é direito do acusado ter asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa (Organização das Nações Unidas, 1948).

Esse direito de defesa ao acusado, presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos, é complementado nas Américas pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 que define, em seu artigo 8.2, que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa” e, considerando a barreira do idioma, firma como uma das garantias judiciais do acusado o direito a ser assistido por um tradutor ou intérprete, se não compreender ou não falar o idioma do juízo ou tribunal (Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, 1969).

2. GARANTIA JUDICIAL DE ASSISTÊNCIA POR TRADUTOR OU INTÉRPRETE AO ACUSADO

Para compreender a amplitude da função do intérprete judicial e sua importância como garantia judicial, oportuno um aprofundamento a respeito de sua previsão na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, diploma que corresponde ao mais importante tratado sobre direitos civis e políticos no continente americano.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também conhecida como o “Pacto de San Jose da Costa Rica”, foi promulgada no Brasil em 1992 (Decreto n.º 678, 1992). E, em 1998, o Brasil reconheceu a competência obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos, para casos relativos à interpretação ou aplicação da Convenção Americana, com a promulgação da declaração em 2002 (Decreto n.º 4.463, 2002). É apropriado, no ponto, recordar que a Corte Interamericana de Direitos humanos é uma instituição judiciária autônoma cujo objetivo é a aplicação e a interpretação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, composta por juízes nacionais dos Estados membros da Organização dos Estados Americanos de reconhecida competência em matéria de direitos humanos, conforme o Estatuto da Corte (Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 1979).

Este dado é de suma importância para recordar que o Estado brasileiro se encontra plenamente integrado ao sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, podendo ser acionado e condenado pelo Tribunal Interamericano em caso de descumprimento de deveres previstos na Convenção.

Destaca-se que o Brasil sofreu condenações na Corte Interamericana de Direitos humanos em algumas ocasiões, dentre os quais ressalta-se o procedimento de Julia Gomes Lund y Otros (caso 11.552 de 2009), em que o Brasil foi condenado pelo desaparecimento forçado de opositores da ditadura militar integrantes da Guerrilha do Araguaia na década de 1970; e o caso Vladimir Herzog e outros (caso 12.879 de 2016), em que se reconheceu a responsabilidade do Estado pela situação de impunidade diante da detenção arbitrária, da tortura e da morte do jornalista Vladimir Herzog em 1975, durante a ditadura militar (Gervasoni & Gervasoni, 2020, p. 311 ).

Vale ressaltar que a Convenção Americana de Direitos Humanos já era considerada norma com status constitucional pela jurisprudência e doutrina antes mesmo da Emenda Constitucional n. 45/2004 (Vieira, 2009, p. 147 ), com a vigência da alteração do texto constitucional ganhou corpo o entendimento segundo o qual as normas da Convenção têm higidez, aplicabilidade imediata e eficácia plena no âmbito do direito interno brasileiro. Nesse sentido, é oportuno recordar que a referida emenda constitucional incluiu no texto da Constituição Federal, em seu artigo 5º, § 3º, a determinação de que tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos são equivalentes às emendas constitucionais na hipótese da aprovação destas se der, em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros.

A Convenção Americana contempla uma série de garantia judiciais, cuja observância pelo Estado signatário consagra direitos humanos relacionados ao devido processo legal, dentre eles a hipótese de assistência por intérprete ou tradutor.

Quanto à questão de intérpretes, o texto da Convenção determina que, durante o processo, toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a garantias mínimas como o “direito do acusado de ser assistido gratuitamente por um tradutor ou intérprete, se não compreender ou não falar o idioma do juízo ou do tribunal”, conforme disposição do seu artigo 8.2, alínea a (Convenção Americana Sobre Direitos Humanos,1969).

A inserção deste dispositivo na Convenção, como decorrência das garantias do devido processo legal, é bem justificada nas palavras de Flávia Piovesan, eis que “não há verdadeiro direito de acesso à justiça se o acusado não conseguir estabelecer uma comunicação compreensível com o tribunal por motivos linguísticos” (Piovesan et al., 2019, p. 134).

No Brasil, a Constituição Federal não trata sobre a garantia ao intérprete de forma expressa, mas induvidoso ser obrigatório extrair do texto constitucional que ela decorre do devido processo legal e da ampla defesa. A lógica de que a garantia deriva do devido processo legal é referendada pela Corte Interamericana, que já se pronunciou no sentido de que “a garantia a tradutor ou intérprete integra o devido processo legal, servindo a corrigir desigualdades em um procedimento judicial.” (Piovesan et al., 2019, p. 134 ).

Categoricamente, portanto, é possível afirmar que o direito ao intérprete e ao tradutor é corolário da previsão constitucional do devido processo legal, insculpida no artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal Brasileira com destaque ainda para o inciso LV do mesmo artigo, que assegura contraditório e ampla defesa aos acusados e de seu parágrafo 2º, que trata sobre a aplicação de direitos e garantias decorrentes dos princípios constitucionais e de tratados internacionais (Tavares, 2013, p. 594 ).

A garantia representada pelo intérprete em processos com conteúdo acusatórios, possibilita a própria constituição do procedimento judicial quando a parte envolvida não compreende o idioma do juízo; é condição sem a qual nenhum outro dos direitos que compõe o devido processo legal pode efetivamente prosperar.

É nesse sentido que a garantia também é detalhada no Código de Processo Penal Brasileiro, ao dispor em seu artigo 193 que o interrogatório será feito por meio de intérprete quando o interrogado não falar a língua nacional (Decreto-Lei n.º 3.869, 1941), bem como é igualmente assegurada às testemunhas, conforme disposição de seu artigo 223, ao estabelecer que será nomeado intérprete para traduzir as perguntas e respostas, quando a testemunha não conhecer a língua nacional (Decreto-Lei n.º 3.869, 1941).

Assim, a previsão legal a respeito da garantia de assistência por intérprete, estabelece o direito ao devido processo legal e as condições básicas para sua incidência. A constatação acerca da amplitude da garantia judicial implica na necessária verificação dos elementos que a compõe, quais sejam: (i) a assistência deve ser realizada por tradutor ou intérprete; (ii) garantida àquele que não compreender ou não falar o idioma do juízo; (iii) devendo ser proporcionada ao acusado gratuitamente.

Exerce, assim, dupla função inegável, ao assegurar que todo e qualquer exercício de defesa, pelo acusado em Processo Judicial, seja plenamente garantido pelo entendimento da acusação, do processo, da própria defesa técnica que o representa, permitindo, também, pleno exercício de contraditar provas e alegações contrárias à sua defesa, particularmente em uma verdadeira compreensão do devido processo legal esperado.

2.1. A assistência deve ser realizada por tradutor ou intérprete;

A característica mais elementar da garantia, consubstanciada na compreensão do processo pelo acusado, é a de que seja disponibilizado um intérprete, profissional para o qual é dada a incumbência de oferecer a tradução do idioma do juízo, para a língua que aquele compreenda.

Enquanto assistente do juízo, o intérprete viabiliza o processo na língua oficial do país, ao mesmo tempo em que permite a comunicação entre a parte que não conheça o idioma e o Poder Judiciário, correspondendo a uma forma de lidar com desigualdades entre aqueles que estejam submetidos ao Estado (Steiner & Fuchs, 2019, p. 293 ).

A função primária do intérprete perante o juízo é justamente a conversão oral das falas. Esta é a figura do profissional que faz a tradução simultânea, durante atos processuais, escutando em uma língua e passando imediatamente para a outra, com isso garantindo que o acusado entenda perguntas da autoridade e consiga responder da melhor maneira possível, assim como possa registrar suas respostas no idioma oficial.

Nesse mesmo sentido é também necessário que haja assistência do intérprete para tradução simultânea, na hipótese de o acusado e seu defensor técnico não compartilharem do mesmo idioma, haja vista que sem uma real possibilidade de a defesa comunicar-se com o representado inexiste de fato defesa técnica e, assim, violada a garantia constitucional de ampla defesa.

Uma segunda incumbência do profissional vem contida na garantia corresponde à tradução de documentos processuais, ou seja, a conversão de atos do juízo, peças ou elementos de prova, para a língua que seja compreendida pelo acusado.

Ressalta-se que o intérprete surge nomeado oficialmente pelo juízo, em função muito maior que um “assistente do juízo”, o intérprete serve ao devido processo legal e aos seus atos, devendo ter efetiva formação e competência para exercer seu ofício nos idiomas necessários ao processo, assegurando assim também a ampla defesa e o contraditório efetivo. Dessa circunstância decorre a impossibilidade de ser substituído por outro profissional envolvido no caso, ainda que este alegue conhecimento daquele idioma, isto é, não pode o juiz, o advogado, o promotor ou outros assistentes querer suplantar a garantia ao intérprete, exercendo-a eles mesmos, haja vista o papel específico de cada um desses atores do judiciário.

2.2. A garantia àquele que não compreender ou não falar o idioma do juízo;

A garantia incide em qualquer uma das hipóteses, quando o acusado não compreender o idioma ou não o falar. A concluir, o intérprete será essencial para permitir a comunicação com o juízo se o acusado o compreender, mas não conseguir se manifestar na mesma língua do juízo e, de outro lado, o direito a assistência do intérprete também se fará presente se o acusado aparentar falar o idioma, mas não o compreender efetivamente.

Igualmente, importa apontar que o acusado não pode dispensar a assistência do intérprete. Embora seja um direito da parte, diante da natureza do intérprete como garantidor do processo e, assim, também, auxiliar do juízo, este possui funções subordinadas à realização do devido processo legal. Evidente que o acusado possui o direito ao silêncio e pode calar sobre perguntas que lhe forem feitas, porém as perguntas e detalhes do ato processual devem ser comunicadas ao acusado de forma que lhe seja garantida sua plena compreensão.

2.3. Deve ser gratuitamente proporcionado o intérprete;

Questão relevante é a disponibilização do intérprete ao acusado sem custos, a fim de que não ocorram disfunções em processos judiciais, quando envolvida população de menor poder aquisitivo. O acesso à justiça é garantido constitucionalmente e, nessa toada, da obrigação imposta ao Estado de fornecer o intérprete “exsurge a igualdade entre os jurisdicionados para diante do imprescindível entendimento dos atos do processo, poder estruturar reação defensiva” (Vieira, 2009, p. 146).

A persecução penal está a cargo do Estado, que submete o indivíduo à sua tutela e, assim, também assume o dever de proporcionar todos os instrumentos necessários a, no pleno exercício desta persecução, garantir o devido processo legal constitucionalmente previsto, com todos os elementos a ele inerentes.

Trata-se, portanto, de também assegurar a igualdade de condições entre acusados, eis que “só em se garantindo a instrumentalização da possibilidade de se entender a imputação e de se compreender e discutir, durante o trâmite processual até final decisão de mérito, o conteúdo dos elementos de prova colocados no processo é que se possibilita a igualdade da condição entre quem fala e entende um idioma e quem não o faria não fosse o intérprete e o tradutor.” (Vieira, 2009, p. 146 ).

A gratuidade do intérprete é também reforçada pelo Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que estabelece, categoricamente, que toda pessoa acusada de um delito terá direito a “ser assistida gratuitamente por um intérprete, caso não compreenda ou não fale a língua empregada durante o julgamento” (Decreto n.º 592, 1992).

Bem assim, para que seja concretizado o devido processo legal, e respeitados os direitos processuais penais inscritos na constituição, especialmente o contraditório e ampla defesa, nos casos em que o acusado não compreender a língua oficial, a presença de um intérprete é condição sem a qual podemos afirmar que não será praticado o devido processo legal.

3. A SUBSTITUIÇÃO DO INTÉRPRETE JUDICIAL POR PROGRAMAS DIGITAIS DE TRADUÇÃO

Considerada a garantia constitucional do intérprete e o seu papel no devido processo legal, importa analisar o impacto de avanços tecnológicos na prática processual.

A tecnologia a serviço do Poder Judiciário traz inequívocos benefícios à aplicação do Direito, fato que é bem ilustrado pela digitalização de processos que tem substituído os autos físicos em papel, proporcionando rapidez na tramitação e facilidades no acesso ao procedimento. Aliás, o Conselho Nacional de Justiça instituiu o Processo Judicial Eletrônico, sistema de processamento de informação e prática de atos processuais, por meio da Resolução n. 185 de 18/12/2013 (Conselho Nacional de Justiça, 2013).

O emprego da tecnologia para melhorias na aplicação do Direito concretiza, inclusive, o dever de eficiência da Administração Pública, sendo oportuno desde que não acarrete prejuízos aos direitos dos jurisdicionados. É dizer que as novas técnicas devem ser escrutinadas, pois a solução aparentemente milagrosa pode trazer consigo aflições a direitos estabelecidos.

Tradicionalmente a única hipótese para a tradução e interpretação de línguas diversas àquela do juízo era a assistência de profissional devidamente capacitado. No momento, atual, contudo, os programas digitais de tradução apresentam uma opção simples, rápida, e conveniente, para realização de tradução que se façam necessárias durante o processo. Destes sistemas o mais conhecido programa de tradução automática é “Google Tradutor”, contudo, a utilização de inteligência artificial para traduções é também empregada por diversos outros sistemas como o “Bing” da Microsoft, “Babylon software”, e “Open trad”.

É neste sentido que se afigura relevante escrutinar a aplicação de softwares e aplicativos de tradução, como instrumentos para viabilizar a comunicação entre acusado e demais atores do processo judicial, ou o emprego dessa tecnologia para converter textos de língua estrangeira para o idioma do juízo ou do idioma do juízo para leitura do acusado, em linguagem que este possa compreender.

Principalmente no Processo Penal, a garantia ao intérprete significa um direito fundamental do acusado, de modo que a utilização de programas digitais (software) para realizar a função do assistente do juízo precisa ser confrontada sob diversos ângulos, a fim de não permitir afrontas ao devido processo legal. Interessa, sobretudo, constatar a qualidade da interpretação gerada pela máquina (programa digital, software, aplicativo ou funcionalidade digital), sob o risco de seu emprego funcionar como mero simulacro de tradução e, portanto, uma farsa na garantia a direitos fundamentais do acusado.

3.1. Utilização do “Google Tradutor” no Poder Judiciário

A utilização da ferramenta ou programa digital denominado “Google Tradutor”, no âmbito do processo judicial, especialmente o processo penal, não é situação estranha à realidade brasileira. Estamos tratando de prática que vem sendo realizada pelos Tribunais brasileiros. Longe da substituição do intérprete corresponder a uma proposta de ficção científica, há no Poder Judiciário exemplos concretos do emprego de softwares de tradução em processos judiciais, a exemplo da ementa de julgamento abaixo:

Penal. Operação coiote. Esquema de envio irregular de imigrantes de origem africana para os Estados Unidos. Uso e falsificação de documentos públicos. Corrupção ativa e passiva. Formação de quadrilha. Legalidade das interceptações telefônicas. Utilização da ferramenta “Google Tradutor” para a tradução da sentença. Possibilidade. Autoria e materialidade comprovadas. Dosimetria. Pena-base. Exasperação em menor patamar. Pena de multa. Regime inicial de pena. Substituição da pena privativa de liberdade. (TRF 3ª Região, Apelação Criminal n. 0006151-21.2009.4.03.6119, 1ª turma, Rel. Des. Federal Wilson Zauhy, Data de Julgamento: 29/03/2016) (grifo nosso).

Mais, ainda, é o que retrata a determinação administrativa, pela qual passou-se a permitiu a utilização de forma sistemática desse tipo de tecnologia no Tribunal Regional Federal da 3ª Região. A Corregedoria Regional da Justiça Federal da 3ª Região editou o “Expediente Administrativo nº 2011.01.0218” (2016), com vistas a regular a utilização de documentos processuais traduzidos por meio do “Google Tradutor”, um dos mais utilizados aplicativos digitais para tradução simultânea.

No referido expediente a Corregedoria autorizou o uso do “Google Tradutor” pelas Varas Federais Criminais que compõe o Tribunal Regional Federal da 3ª Região, com a finalidade de traduzir atos processuais e decisões que demandam a citação, notificação e intimação de eventuais investigados ou réus estrangeiros em seu idioma pátrio, como mandados, cartas precatórias, cópia de denúncia, sentença, bem como os documentos que os instruem, com exceção de cartas rogatórias.

A decisão da Corregedoria considerou o uso do “Google Tradutor” como uma boa prática processual, uma medida idônea, célere e com resultados satisfatórios. Ponderou também as dificuldades que o Tribunal Regional Federal da 3ª Região encontrava para traduzir processos criminais: “Assim sendo, não se torna necessário aguardar, como tem ocorrido atualmente nas diversas varas federais com competência penal, o lapso de tempo de às vezes diversos meses até a obtenção de tradutor intérprete pelas vias mais convencionais” (Corregedoria Regional da Justiça Federal da 3ª Região, 2016).

A prática teve repercussão clara nos julgamentos, merecendo destaque casos representativos da utilização deste programa digital (software) de tradução:

“Considerando a notória dificuldade de disponibilidade de intérpretes/tradutores para atuarem nesta Subseção Judiciária, bem como a evidente demora do procedimento (nomeação, envio das peças, tradução e devolução, para somente então expedir-se a carta precatória de intimação), providencie a Secretaria a versão da sentença para o idioma inglês por meio da ferramenta “Google Tradutor”, conforme autorização do Expediente Administrativo nº 2011.01.0218, da Corregedoria Regional da Justiça Federal da 3ª Região.” (4ª Vara Federal de Guarulhos, Ação Penal n. 0005957-79.2013.403.6119, Juiz Federal Alessandro Diaferia, publicado no Diário Oficial do Interior SP e MS do TRF 3ª Região em 27.3.2014, p. 305) (grifo nosso).

“O Juízo a quo determinou a tradução da sentença para o idioma do réu por meio da ferramenta “Google Tradutor”, o que não se afigura qualquer prejuízo ao réu, tendo em vista que a Defensoria Pública da União apresentou razões de apelação pormenorizadas e abrangentes.” (TRF 3ª Região, Apelação Criminal n. 0006151-21.2009.4.03.6119, Rel. Des. Federal Wilson Zauhy, j. 26.3.2016) (grifo nosso).

Contudo, não é exclusividade daquele Tribunal o desejo de empregar tradução computadorizada para atos judiciais. Exemplos outros da substituição de intérprete ou tradução por profissional, com a utilização de softwares e aplicativos digitais de tradução podem ser encontrados em diversos procedimento no Brasil.

A este respeito, podemos destacar decisões do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que retratam a utilização programa digital de tradução, especificamente a ferramenta do “Google Tradutor”, em atos na fase de Inquérito Policial e durante a instrução processual, em prática que, pelo teor das decisões exaradas, evidentemente deixaram dúvidas quanto à sua eficácia e, mais ainda, quanto a estar assegurada a garantia do devido processo legal e assim da ampla defesa:

na Delegacia, informou que não conseguia falar bem o português e não conseguiu entender tudo o que disseram, pois era falado muito rapidamente. Declarou que, como não conseguia entender o que era dito na Delegacia, resolveram utilizar um instrumento de tradução, talvez o Google Tradutor, mas o que era escrito e apresentado a ele não refletia efetivamente os acontecimentos. (TJ SP, Apelação Criminal n. 0035900-03.2017.8.26.0114, Rel. Des. Edison Brandão, j. 30.11.2020)

em juízo, disse que até aquele momento, não conhecia o réu. Foram para a delegacia e quando chegaram lá não havia ninguém com a função de intérprete. Aproximadamente por 1 hora tentaram explicar alguma coisa com a ajuda do google tradutor, mas pouco puderam explicar. (TJ SP, Apelação Criminal n. 1500743-53.2018.8.26.0535, Rel. Des. Lauro Mens de Mello, j. 20.2.2020) (grifo nosso)

Ao mesmo tempo em que o Poder Judiciário se depara com o dilema entre praticidade e eficiência dos programas digitais de tradução, a possibilidade da utilização dessas ferramentas tem sido amplamente discutida entre profissionais de tradução, tendo como preocupação principal a qualidade dos documentos produzidos pela tradução oferecida pela tecnologia (Martins, 2011, p. 287 ).

3.2. Comprometimento da linguagem pela tradução digital e a linguagem robótica

Todo o debate sobre a aplicação do intérprete no judiciário, deve ser permeado pela lembrança de que a técnica é utilizada como meio de garantia de defesa e concretização do devido processo legal. Desta percepção decorre a preocupação de que uma tradução realizada sem qualidade sirva tão somente para oficializar o cumprimento da exigência legal no processo, o que, em verdade, representa absoluta violação a garantias constitucionais.

Nesse sentido, a promoção de traduções destinadas a processos judiciais encontra complicadores relacionados, muito além do que se refere simplesmente à linguagem empregada (Hale, 2001, p. 71 ), especialmente aos termos jurídicos utilizados e a necessária exatidão de seus significados em uma tradução e, especificamente, numa tradução automatizada.

A tradução realizada por computadores pelo uso de softwares, como o “Google Tradutor”, “se enquadra dentro da área da linguística computacional, que pode ser definida como uma subárea da inteligência artificial combinada com a aplicação da linguística formal”. De modo que “a principal dificuldade prática atual reside na dificuldade de implementar em um sistema computacional certos aspectos textuais e discursivos mais complexos ou abrangentes, como ambiguidades, referências anafóricas, etc.” (Carvalho & Dias, 1998, p. 372 ).

Se o produto das traduções computadorizadas enfrenta problemas de qualidade em textos de modo geral, em razão de qualquer aspecto textual mais complexo, é de se esperar, portanto, que a sua aplicação em textos referentes à área jurídica sofra comprometimentos muito maiores, em razão da sua forma ao mesmo tempo técnica, rebuscada, e pouco acessível ao leigo, comumente empregada nos tribunais.

Todavia, gerou-se expectativa de que a tradução automatizada, por programas digitais (softwares) fosse suficiente, inclusive aos processos judiciais, o que pode ser atribuído a circunstâncias estranhas à aplicação do Direito, isso porque “os consumidores da tradução estão, aos poucos, se tornando tradutores eles próprios. A crescente proeminência de serviços de tradução automatizada via internet, sob a máscara do Google Translate e outros menos cotados, coloca em questão o tradicional estatuto do tradutor” (Cronin, 2013, p. 207 ).

De acordo com estudos especializados a respeito da tradução automática, estando “acostumados a ler textos traduzidos - e geralmente bem traduzidos - por pessoas experientes, os usuários colocaram sua expectativa diante de tais programas no mesmo patamar”, o que, no caso do Poder Judiciário, implicou até mesmo na edição geral de normativa permitindo a tradução de atos do processo por softwares de tradução, como acima destacado. Contudo, como apontado no referido estudo, “o que se vê, no entanto, é um conjunto de textos que poucas vezes se assemelham àqueles escritos por falantes do idioma.” (Carvalho & Dias, 1998, p. 370 ).

Embora a utilização seja razoável, no emprego de sistema de tradução digitalizada automática pelo leigo, apenas para que se possa perceber o assunto do texto na língua estrangeira - nada mais que isso (Carvalho & Dias, 1998, p. 370 ), as “normas e rotinas do treinamento dos tradutores profissionais estão sofrendo a pressão das formas colaborativas de prática da tradução, mediadas pelas novas tecnologias tradutológicas” (Cronin, 2013, p. 207 ).

O destaque na doutrina, atinente à profissão do intérprete, deve servir como alerta de que a tradução por aplicativos ou programas digitais, principalmente aqueles voltados para textos técnicos, auxilia o tradutor, mas não o substitui. A tradução de textos técnicos, em que predominam um grande rigor vocabular e uma estrutura textual rígida, ainda que em detrimento do estilo, poderia mesmo ser desempenhada por um computador (um programa digital de tradução) de modo apenas superficial, posto que exige grande esforço e especialização dos tradutores humanos (Carvalho & Dias, 1998, p. 382 ).

Assim, no caso da tradução de documentos e explicação de atos jurídicos, a não falantes do idioma do juízo, o comprometimento da mensagem é uma possibilidade real indiscutível.

Embora possam ser traçadas matrizes comuns aos sistemas jurídicos nacionais, cada ordenamento é um sistema único, dotado de suas peculiaridades e, assim, de uma linguagem técnica específica.

Mesmo entre países que compartilham idiomas, nem sempre há correlação exata entre os termos e conceitos empregados. Ao se inserir nesse contexto um grau adicional de complexidade - a diversidade linguística -, a compreensão de um sistema por agentes externos se torna ainda mais difícil (Lucchesi, 2016).

Portanto, se a dificuldade na tradução de textos e atos formalizados a partir da linguagem do Direito é verdadeira atividade para profissionais habilitados à interpretação de línguas, então o emprego de tradução instantânea de documentos e atos jurídicos por programas digitais (softwares), cuja tecnologia atual não permite discernir com exatidão determinados termos, ou cuja tradução exata sequer existe, resulta num conteúdo de duvidosa fidelidade original, sequer podendo ser chamado de “tradução”, circunstância esta que, no contexto das garantias e dos direitos fundamentais, tem capacidade de gerar consequência desastrosas à vida de um acusado.

4. INADEQUAÇÃO DOS PROGRAMAS DIGITAIS (SOFTWARES) DE TRADUÇÃO EM ATO PROCESSUAL

É ponto incontroverso que qualquer tradução encontra dificuldades em ambiguidades, regionalismos, e tecnicismos, e, mais ainda, a complexidade da tradução é agravada na tradução de textos redigidos em linguagem técnica, como é o caso de textos jurídicos. Como decorrência das dificuldades de uma tradução, desponta a possibilidade de traduções de baixa qualidade, sendo que a exclusão de profissional habilitado e sua substituição por programas digitais aumenta vertiginosamente a possibilidade de erros na tradução.

É bem possível afirmar que as traduções por softwares e aplicativos tenham se popularizado e sua precisão tenha melhorado ao longo dos anos, ocorre que tal circunstância tem uma perigosa capacidade de acarretar uma cega confiança nos programas de tradução (Wahler, 2018, p. 111 ). De fato, em se tratando de textos jurídicos os advogados, membros do judiciário e, principalmente, acusados, não necessariamente são capazes de entender as intrínsecas complexidades da tradução, para que possam confirmar se determinados termos jurídicos, ou não, tenham sido convertidos a outro idioma com exatidão, ou traduzidos da forma mais próxima possível de seu significado.

No sistema legal atual, quem se preocupa com a acuracidade da tradução no meio jurídico é o assistente do juízo, o intérprete, incumbido da tarefa de garantir o devido processo legal - justamente o profissional que vem sendo substituído pela “máquina”, a qual não tem a capacidade de atender às sutilezas de observação, imprescindível na realização de interpretação e tradução, que sirva a um processo judicial.

Nesse sentido, a exclusão do profissional de tradução da sofisticada equação que perfaz o devido processo legal, coloca o judiciário sob a possibilidade de receber uma tradução descuidada de palavras ou expressões de um idioma para o outro. Como aponta Guilherme Lucchesi, “a crença ingênua do tribunal na tecnologia, além de absoluto desprestígio para com os estudiosos do Direito Comparado, periga a produção de verdadeiros nonsenses.” (Lucchesi, 2016).

É importante recordar que o destinatário de um ato processual, como uma intimação ou sentença judicial, não é simplesmente ao profissional do direito que ali atua, mas é também o próprio sujeito submetido ao processo, tal como denota a garantia de que o acusado possa compreender o processo e a acusação que contra ele pesa, permitindo-o praticar autodefesa e contribuir com a defesa técnica. Fatalmente, ainda que um ato processual ou mesmo uma sentença, traduzida por meio de software, possa parecer clara ao profissional do direito, não se pode concluir o mesmo em relação àquele que não domina o idioma do juízo e os complexos termos e expressões jurídicas, cuja tradução não se aperfeiçoa com a simples substituição de palavras, pelo seu correspondente em idioma diverso.

A preocupação com a fidelidade da tradução proporcionada pelos programas digitais de tradução, em confronto à garantia judicial do intérprete, não é meramente doutrinária, tendo sido objeto de enfrentamento na jurisprudência, com especial ênfase ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região, onde sua utilização acabou por ser regulamentada pela própria Corregedoria do Tribunal. Na decisão judicial abaixo colacionada, a tradução de documento judicial deve ser tomada com a devida seriedade, não sendo suficiente a conversão automática desenvolvida pelos softwares, programas e aplicativos digitais de tradução, uma vez que podem causar confusões no texto:

É de conhecimento notório e popular que a fidelidade das traduções efetuadas pela referida ferramenta é duvidosa e deixam muito a desejar. E aqui não se trata de uma mera frase, uma expressão ou palavra solta, mas de um texto jurídico, concatenado e lógico que exige muito mais que a transliteração de vocábu- los desconexos, ao reverso, impõe profundo conhecimento das línguas envolvidas e dos temas propostos, a ser realizada por um tradutor habilitado para tanto. (TRF 3ª Região, habeas corpus n. 0002414-53.2017.4.03.0000, Rel. Des. Cecilia Mello, j. 30.5.2017)

A recusa ao emprego de ferramentas e programas digitais de tradução, como o “Google Tradutor”, no processo judicial, ante seus possíveis desacertos, encontra fundamento na complexidade do idioma e, mais ainda, na tecnicidade que se soma à língua em textos jurídicos que formam um processo.

Importa enfatizar que o juiz tem alternativas além dos programas digitais de tradução, para suprir emergencialmente a indisponibilização de um intérprete judicial, sem ferir a garantia processual, considerando que intérpretes e peritos são equiparados, conforme artigo 281 do Código de Processo Penal, sendo plenamente possível observar a regra geral prevista no artigo 159, do mesmo diploma legal, nomeando-se um tradutor público ou, na sua falta, duas pessoas idôneas e com reconhecido domínio do idioma (Lopes Junior, 2020, p. 795 ).

É ao profissional habilitado e reconhecido pelo judiciário que deve ser confiada a tradução de documentos em língua estrangeira, ou a tradução de atos processuais à língua do acusado, entretanto a legislação previu alternativas à impossibilidade de nomeação de intérprete, restando muito distante da lei a opção por programas digitais de tradução, inadequados a dar tratamento adequado à língua e à lógica escrita em atos processuais.

A tradução de atos judiciais proporcionada por intérprete ou tradutor habilitado é, assim, muito mais do que um cumprimento de formalidade processual. Como corolário do texto constitucional, trata-se de verdadeira efetivação de um devido processo legal, decorrente da estrutura do Estado Democrático de Direito brasileiro, efetividade esta que não é alcançada por softwares de tradução.

CONCLUSÕES

A garantia ao intérprete corresponde a direito do acusado, a quem é constitucionalmente garantido compreender o processo, entender a acusação que pesa contra ele bem como o procedimento a ser realizado pelo Estado, ainda que não fale o idioma oficial do local.

Uma tradução realizada no contexto de um processo judicial, sem a devida observância de critérios que norteiam uma tradução de qualidade, levará a disfunções no texto traduzido. Sobretudo no processo penal, esta tradução disfuncional não cumpre a função de garantir ao indivíduo submetido ao judiciário a compreensão do processo, desrespeitando assim a garantia judicial de ser assistido por intérprete judicial, garantia esta decorrente da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e dos princípios do devido processo legal e da ampla defesa contemplados na Constituição Federal.

A tradução de atos processuais por programa digital de tradução, como a ferramenta “Google Tradutor”, ou software similar, não permite a eficaz realização do direito a um intérprete. Ao revés da razão de ser da garantia processual, uma tradução realizada por software serve como simulacro de atendimento ao direito do acusado, deixando de efetivamente observar o conteúdo da garantia judicial e suprimindo seu direito fundamental de compreender o processo.

Nesse sentido, embora possa parecer uma solução prática aos desafios de fornecer traduções no contexto judicial, o emprego de ferramentas, aplicativos e programas digitais para conversão da linguagem dos atos processuais não oferece a necessária segurança de fidelidade da tradução.

Somente por meio de profissional técnico devidamente habilitado como tradutor ou intérprete, que o Judiciário garante aos jurisdicionados a compreensão de atos processuais. É dever do Estado garantir ao acusado, que necessite de assistência para entender o idioma do juízo, especialmente em razão da precisão requerida na conversão da linguagem jurídica que utiliza fórmulas e expressões intrínsecas à ciência do direito, a plena compreensão de todos os atos de poder que contra ele são empregados.

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1 Ao lado da “fumaça do bom direito” (fumus boni juris - representativo da existência de elementos materiais capazes de indicar que o postulante pode ter razão/direito), o periculum in mora ou “perigo na demora”, é um dos requisitos para conceção de tutelas antecipadas, decisões provisórias, cautelares, que visam evitar que uma demora na decisão definitiva, sobre determinada situação levada ao Judiciário, não venha causar dano grave ou de difícil reparação ao bem ou direito ali discutido.

2O mais difundido dos idiomas artificiais, criado em 1887 pelo oftalmólogo e poliglota polaco Ludwig Lazar Zamenhof (1859-1917), com o intuito de que pudesse servir como língua universal. Sua gramática abrange apenas 16 regras e seu vocabulário é constituído, tanto quanto possível, de raízes de palavras comuns aos principais idiomas europeus, com eliminação de fonemas comuns a poucas línguas. O poliglota Ludwig, que segundo consta dominava cerca de 11 línguas, vivia em Bialystok, Polônia (mas à época de sua obra uma região de domínio do Império Russo), onde uma diversidade de culturas (e idiomas) se fazia presente, inclusive o russo e o lituano, situação que inspirou a criação de uma linguagem neutra, quase universal, para facilitar a comunicação, com uma gramática simplificada, em uma construção a partir de idiomas europeus mais comuns (Harrison, 2005, p. 4).

Recebido: 12 de Agosto de 2021; Aceito: 06 de Dezembro de 2021

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