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Opinión Jurídica

versión impresa ISSN 1692-2530versión On-line ISSN 2248-4078

Opin. jurid. vol.21 no.44 Medellín ene./jun. 2022  Epub 19-Mar-2022

https://doi.org/10.22395/ojum.v21n44a13 

Artigos

Desafios para a efetivação do direito fundamental à dignidade na atuação extrajudicial: uma análise comparativa entre o provimento 73 do cnj e a adi 4275/df

Los desafíos para la concretización del derecho fundamental para la dignidad en la actuación extrajudicial: un análisis comparativo entre la desestimación 73 del CNJ y la ADI 4275/DF

Challenges for the Effectiveness of Fundamental Law with Dignity in Extrajudicial Action: a Comparative Analysis Between the Provision 73 of the cnj and adi 4275/df

Ana Paula Lasmar Corrêa* 
http://orcid.org/0000-0001-9436-1939

Victor Fróis Rodrigues** 
http://orcid.org/0000-0003-0171-1624

* Faculdade de Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre, Brasil aplasmar@hotmail.com https://orcid.org/0000-0001-9436-1939

** Universidade Salvador (UNIFACS), Feira de Santana, Brasil vfroisrodrigues@gmail.com https://orcid.org/0000-0003-0171-1624


RESUMO

O objetivo principal deste artigo é analisar a atuação das serventias extrajudiciais, especialmente o Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais, na efetivação do direito à dignidade, a partir de uma comparação entre os posicionamentos do Supremo Tribunal Federal brasileiro na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4275/DF e do Conselho Nacional de Justiça, em seu Provimento nº 73. Foi realizada atividade de pesquisa bibliográfica, conforme metodologia qualitativa, e construido o marco teórico necessário a verificar a possibilidade de alteração de prenome e gênero solicitada por pessoa transexual diretamente perante os registradores. Considerando-se o Estado da Arte no tema, pretendeu-se demonstrar as dificuldades enfrentadas pelo Registrador Civil brasileiro, que deve orientar-se por dois regramentos divergentes, inviabilizando o exercício dos direitos dos transexuais. Os resultados obtidos identificam a desnecessidade de alguns dos requisitos infraconstitucionais para o exercício desse direito, indicando a possibilidade de alteração.

Palavras-chave: dignidade humana; direito notarial e registral; pessoa transgênero

Resumen

Este artículo tiene como objetivo principal hacer un análisis de la actuación de las serventías extrajudiciales, especialmente del Oficio de Registro Civil de Personas Naturales, en la concretización del derecho a la dignidad, a partir de una comparación de los posicionamientos del Supremo Tribunal Federal de Brasil en la Acción Directa de Inconstitucionalidad nro. 4275/DF y del Consejo Nacional de Justicia, en la Cautela nro. 73. Se llevó a cabo actividad de investigación bibliográfica, según metodología cualitativa, además se construyó marco teórico para verificar la posibilidad de modificación del primer nombre y género cuando solicitado por la persona transexual ante los registradores. Teniendo en cuenta el Estado del Arte en el tema, se ha pretendido demonstrar las dificultades enfrentadas por el Registrador Civil brasilero, que debe orientarse por dos reglamentos divergentes, inviabilizando el ejercicio de los derechos de los transexuales. Los resultados conseguidos identifican la no necesidad de algunos de los requisitos infraconstitucionales para el ejercicio de dicho derecho, indicando la posibilidad de modificación.

Palabras clave: dignidad humana; derecho notarial y de registro; persona transgénero

ABSTRACT

This article aims to analyze the work of extrajudicial services, especially the Civil Registry, in the realization of the right to dignity, comparing the positions of the Brazilian Supreme Court (ADI nº 4275/DF) and the National Council of Justice (Provimento nº 73). This research activity was performed according to a qualitative methodology, building the theoretical framework to verify the possibility of changing name and gender by a transexual person towards civil registers. It was intended to demonstrate the difficulties faced by brazilian members of Civil Registry, which must be guided by two divergente rules, which makes the exercise of the rights of transsexuals unfeasible. The results show the unnecessary requirements and the possibility of change.

Keywords: human dignity; notary law;transgender person

INTRODUÇÃO

O presente artigo deriva de atividade acadêmica de seus autores, em áreas específicas de suas atuações, tendo em vista que lecionam a disciplina de Direito Civil, bem como realizam atividade de pesquisa relacionada aos direitos fundamentais e ao constitucionalismo. Além disso, o professor Victor Fróis Rodrigues exerceu atividade de delegação de notas e registros, como Oficial de Registro Civil de Pessoas Naturais, de modo que o tema abordado reflete sua trajetória profissional.

O direito ao nome, como um dos principais direitos da personalidade, é protegido e regulado pelo ordenamento jurídico brasileiro. Além de sua previsão no artigo 16 do Código Civil vigente (Brasil, 2002), encontra amparo também na Lei nº 6.015/1973 (Brasil, 1973), que organiza a atuação notarial e registral no Brasil. Na seara constitucional, o direito ao nome (nele compreendidos o prenome e o sobrenome, conforme a previsão civil) ressoa em diversos valores axiológicos, dentre os quais a Dignidade Humana, reconhecida como fundamento da República Federativa do Brasil (Brasil, 1988), mas não só: há que se considerar a proteção à vida privada, a prevalência dos direitos humanos, e a própria assistência à família, na busca pelo fim da violência em suas relações.

Portanto, o nome, como, possivelmente, expressão primeira do ser sujeito de direitos, liga-se a um extenso feixe de direitos e situações amparadas ou reguladas pela legislação. É preciso salientar, além do mais, que os direitos da personalidade aceitam (ou mesmo requerem) uma abordagem interdisciplinar, havendo espaço para outras áreas do conhecimento, tais como a psicologia, a biomedicina e a sociologia, pois é fundamento basilar da noção de identidade. Nesse sentido:

A individualização da pessoa humana ocorre, principalmente, pelo reconhecimento público do indivíduo constituindo o alicerce de toda a vida. O registro de nascimento com vida é o mecanismo de identificação do indivíduo perante o Estado, nesse momento será definido o prenome de acordo com o sexo biológico, o que é indicado em campo próprio na Declaração de Nascido Vivo - DNV, regulada pela Lei 12.662, que transformou a Declaração de Nascido Vivo (DN) em documento de identidade provisória, aceita em todo o território nacional. Assim, o prenome, como um direito de personalidade, presta-se a individualizar o ser humano, que passará a ser reconhecido como tal erga omnes. (Lima e Moraes, 2019, p. 454)

No que se refere à identidade, nesta empreitada, há que se trabalhar também com aspectos relativos à sexualidade, que é outro fator importante para o reconhecimento do ser por si mesmo e pelo outro. A identidade de gênero, portanto, é conceito apto a gerar inclusão quando protegido pelo ordenamento, em que pese possa despertar certa polêmica: a participação de 8 (oito) instituições na qualidade de amicus curiae no julgamento da ADI nº 4275/DF já é capaz de revelar a complexidade e a especial relevância do tema.

O caso em tela volta-se à proteção dos transexuais ou transgêneros, cujo direito de alteração registral de nome e gênero foi apreciado pelo Supremo Tribunal Federal e regulamentado pelo Conselho Nacional de Justiça. Contudo, existe divergência entre a decisão judicial e o regulamento, e esta divergência gera consequências na atuação do ofício de registro civil das pessoas naturais.

Segundo preciosa lição de Maria Berenice Dias,

A transexualidade é uma divergência entre o estado psicológico de gênero e as características físicas e morfológicas perfeitas que associam o indivíduo ao gênero oposto. Caracteriza-se por um forte conflito entre o corpo e a identidade de gênero e compreende um arraigado desejo de adequar - hormonal e cirurgicamente - o corpo ao gênero almejado. Existe uma ruptura entre o corpo e a mente, o transexual sente-se como se tivesse nascido no corpo errado, como se esse corpo fosse um castigo ou mesmo uma patologia congênita. O transexual se considera pertencente ao sexo oposto, entalhado com o aparelho sexual errado, o qual quer ardentemente erradicar. Enquanto o homossexual aceita seu sexo biológico, o transexual rejeita seu próprio sexo anatômico. O transexual masculino tem ego corporal e psíquico femininos. Com o transexual feminino, ocorre o contrário. (Dias, 2014, pp. 43, 269)

A marginalização das pessoas transexuais pela imposição de modos de vida padronizados e incompatíveis com a dignidade é inaceitável em um Estado Democrático de Direito. A tutela estatal deve combater a planificação dos modelos de vida e o conservadorismo normativo que impedem o direito a uma vivência plena, de qualidade e sem estigmas. Neste sentido, tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Conselho Nacional de Justiça posicionaram-se pela possibilidade de alteração de nome e gênero de transexuais. O grande problema reside na divergência de requisitos elencados para tal. Enquanto o STF buscou meios facilitadores para o exercício desse direito, o Conselho Nacional de Justiça, com fulcro na Segurança Jurídica, exigiu diversos documentos para a alteração em cartório extrajudicial, dificultando sua aplicação prática.

Desde já, é importante fazer uma ressalva: na atuação do Registro Civil das Pessoas Naturais, não há campo a ser preenchido quanto ao “gênero” e sim quanto ao “sexo”. Embora as consequências práticas dessa diferenciação não sejam tão grandes, é imperioso destacá-la, reconhecendo-se que são conceitos diferentes e não sinônimos, em que pese, neste trabalho, sejam usada com frequência a expressão “sexo/gênero” como facilitador didático.

1. TEMA-PROBLEMA

Com esteio nas supracitadas questões, pretende-se verificar a divergência entre o posicionamento do Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4275/DF e a regulamentação expedida pelo Conselho Nacional de Justiça no Provimento nº 73 destinado às serventias extrajudiciais e avaliar os efeitos jurídicos e sociais de tais posicionamentos, à luz do princípio da dignidade humana em compatibilidade com o princípio da segurança jurídica, na apreciação da situação jurídica e da condição social da pessoa transexual.

É importante mencionar que, embora seja recorrente o estudo quanto às dificuldades para a efetivação da dignidade humana das pessoas transgênero, e, embora haja ensaios e estudos quanto às decisões do Supremo Tribunal Federal que garantem a alteração de prenome e gênero, pretende-se, com esse trabalho, apontar para as divergências existentes entre a garantia e a regulamentação desse direito, e, mais do que isso, demonstrar as dificuldades enfrentadas pelo Registrador Civil brasileiro, que deve orientar-se por dois regramentos divergentes, inviabilizando sua atuação e dificultando o exercício dos direitos dos transexuais.

2. OBJETIVOS

O objetivo geral deste artigo é comparar o Provimento 73 do Conselho Nacional de Justiça do Brasil e a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4275, do Supremo Tribunal Federal brasileiro, para verificar, a partir do resultado dessa comparação, as dificuldades na efetivação do direito à dignidade humana das pessoas transexuais nos serviços extrajudiciais. Para tanto, foram estabelecidos como objetivos específicos: a) realizar atividade de pesquisa bibliográfica, consistente na leitura crítica e detida das obras, resoluções, provimentos e decisões indicadas; b) realizar atividade de pesquisa bibliográfica das referências apontadas pelos próprios autores das obras, resoluções, provimentos e decisões supramencionadas, seguindo a trajetória de pensamento que esses propõem; c) construir um marco teórico coerente com a temática e com os referenciais apresentados; d) realizar atividade de revisão bibliográfica (Alves, 1992, pp. 53-60); d) problematizar os pressupostos teóricos a partir das conclusões preliminares extraídas ao longo da atividade de pesquisa (Gil, 2008), a fim de auxiliar a compreensão da problemática existente no tema-problema.

3. JUSTIFICATIVA

Pretende-se analisar a adequação jurídica das disposições normativas acerca do nome e do gênero em nosso ordenamento, sem descuidar de seu reflexo social. Em outras palavras, trata-se da própria normatividade e atuação do registro civil como instrumento apto a promover a dignidade humana ou a gerar graves danos aos transexuais, pelo impedimento da alteração de nome e gênero.

A sociedade pós-moderna, que se funda sob as luzes da diversidade (Toledo, 2017), reclama uma apreciação crítica quanto aos entraves jurídicos e administrativos da efetivação da dignidade aos transgêneros. Neste sentido, o presente trabalho se justifica na medida em que pretende denunciar os efeitos de tais entraves, impedindo-se sua naturalização, bem como pela busca de alternativas razoáveis para a efetivação do direito à dignidade sem que se negligencie a observância da segurança jurídica na atuação das serventias extrajudiciais.

4. O PROVIMENTO Nº 73 DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA: A SEGURANÇA JURÍDICA EM FOCO

Considerando a interpretação conforme a Constituição e o Pacto de São José da Costa Rica (Decreto nº 678/1992) dada ao artigo 58, da Lei nº 6.015/1973 conhecida como Lei dos Registros Públicos (Brasil, 1973), pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.275/DF, fez-se necessário regulamentar o procedimento administrativo para promover a alteração assentos de registro civil das pessoas naturais do nome e do sexo das pessoas autopercebidas como transexuais, independentemente de prévia ordem judicial e/ou cirurgia de redesignação sexual.

A iniciativa partiu do Grupo de Trabalho Identidade de Gênero e Cidadania Lgbti da Defensoria Pública da União, que instou a Corregedoria Nacional de Justiça, via pedido de providências (Pedido de Providências nº 0005184-05.2016.2.00.0000.), para, no uso de suas atribuições, expedir orientação aos cartórios de registro civil de pessoas naturais de todo o país, uniformizando os procedimentos para dar efetividade ao direito de autodeterminação das pessoas transexuais.

Com fundamento no vetor irradiante da dignidade da pessoa humana, foi possível sustentar o reconhecimento à autodeterminação da pessoa como forma de pleno exercício da sua personalidade jurídica. Sendo assim, imperativa a dispensa de prévia manifestação judicial ou submissão a qualquer intervenção médica (cirurgia de redesignação sexual, esterilização, terapia hormonal ou laudo médico) com fins a garantir pleno e efetivo exercício de direito fundamental.

Dessa forma, portanto, foi editado o Provimento nº 73, de 28 de junho de 2018, pela Corregedoria Nacional de Justiça, dispondo sobre a averbação da alteração do prenome e do sexo/gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoa transgênero nos cartórios de Registro Civil das Pessoas Naturais (RPCN).

Novamente, importa ressaltar que não obstante a interpretação constitucional promovida no acórdão objeto da temática, o elemento “gênero” não é requisito ou pressuposto para assentamento de qualquer espécie de registro civil, mas sim, o sexo da pessoa, que corresponde ao genótipo e fenótipo do indivíduo.

A legitimidade para deflagrar o procedimento pertence a toda pessoa transgénero maior de 18 (dezoito) anos de idade, desde que esteja no gozo de suas capacidades para pleno exercício dos atos da vida civil. O procedimento será realizado com escopo na livre e consciente manifestação de vontade do requerente, que no uso de sua autonomia privada indicará a pretensão de alterar os elementos prenome e sexo em seus assentos de nascimento e/ou casamento, ao oficial de registro.

O requerimento poderá ser direcionado a qualquer ofício de RCPN, não havendo vinculação àquele onde se deram os assentos de nascimento e/ou casamento do legitimado. Neste caso, deverá o oficial de registro receptor encaminhar o procedimento ao oficial competente, às expensas da pessoa requerente, via Central de Informações do Registro Civil (CRC) (Brasil, 1973). Na formulação do requerimento, o legitimado deverá observar o preenchimento dos seguintes elementos: a sua qualificação completa, que contempla o nome civil (prenome e sobrenome), a nacionalidade, a naturalidade, data e local de nascimento, estado civil, profissão, RG, CPF, endereço completo, telefone e endereço eletrônico de e-mail; A declaração expressa da vontade de proceder à adequação da identidade mediante a averbação do prenome, gênero ou de ambos, tanto quanto da inexistência de processo judicial que tenha por objeto a alteração pretendida e, por fim, de que é o efetivo portador e titular dos documentos de identificação apresentados (RG, CPF, Passaporte, título de eleitor, dentre outros), sob as penas da lei; a indicação da alteração pretendida e o fundamento, que tem respaldo no princípio da dignidade da pessoa humana, conforme interpretação constitucional dada à Lei dos Registros Públicos pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI nº 4.275/DF. Ao fim, serão consignados local e dada, bem como a assinatura do requerente, que deverá ser aposta na presença do oficial de registro.

Para efetivação da segurança jurídica, princípio regente dos serviços de registros públicos, o provimento estabeleceu extenso rol de documentos e certidões que devem ser instruídos junto ao requerimento administrativo, com intuito de permitir a averiguação pelo oficial de registro de débitos, compromissos, deveres e demais obrigações pendentes ou em curso pelo requerente.

A exigência se justifica pela necessidade de posterior comunicação aos órgãos administrativos e judiciais da alteração do nome e/ou sexo, enquanto elementos essenciais à identificação da pessoa natural, garantindo, assim, continuidade das relações jurídicas do requerente. De tal maneira, como medida preventiva a eventuais tentativas de uso das prerrogativas e direitos reconhecidos pela ordem jurídica para instrumentalizar fraudes e/ou simulações, cabe ao oficial de registro exigir apresentação dos documentos e certidões discriminados no §6º, art. 4º, do Provimento nº 73/2018, para efeitos de posterior comunicação aos órgãos públicos (administrativos e judiciais) da alteração promovida nos elementos jurídicos delimitadores do estado da pessoa, sem a qual haveria grave prejuízo à identificação e correlação perante os cadastros públicos, tanto quanto nas relações jurídicas iniciadas anteriormente à alteração do registro.

Com efeito, exige-se sejam apresentados ao oficial de registro, no ato do requerimento:

  1. - certidão de nascimento atualizada;

  2. - certidão de casamento atualizada, se for o caso;

  3. - cópia do registro geral de identidade (RG);

  4. - cópia da identificação civil nacional (ICN), se for o caso;

  5. - cópia do passaporte brasileiro, se for o caso;

  6. - cópia do cadastro de pessoa física (CPF) no Ministério da Fazenda;

  7. - cópia do título de eleitor;

  8. - cópia de carteira de identidade social, se for o caso;

  9. - comprovante de endereço;

  10. - certidão do distribuidor cível do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal);

  11. - certidão do distribuidor criminal do local de residência dos últimos cinco anos

  12. (estadual/federal);

  13. - certidão dos tabelionatos de protestos do local de residência dos últimos cinco anos;

  14. - certidão da Justiça Eleitoral do local de residência dos últimos cinco anos;

  15. - certidão da Justiça do Trabalho do local de residência dos últimos cinco anos;

  16. - certidão da Justiça Militar, se for o caso. (Conselho Nacional de Justiça, 2018);

A redação do provimento é expressa ao determinar que a falta de qualquer dos documentos anteriormente listados impede o processamento do pedido perante o registro civil, dando ensejo à qualificação negativa da pretensão pelo oficial de registro (§8º, art. 4º).

Entretanto, a eventual verificação de ações judiciais em curso ou débitos pendentes não impedem o processamento e deferimento do pedido, mas impõem ao oficial o dever de comunicar os juízos e órgãos respectivos, da alteração promovida.

Também merece destaque a previsão que estabelece a faculdade do requerente apresentar outros documentos para instruir o procedimento, notadamente: “(I) laudo médico que ateste a transexualidade/travestilidade; (II) parecer psicológico que ateste a transexualidade/travestilidade; (III) laudo médico que ateste a realização de cirurgia de redesignação de sexo” (Conselho Nacional de Justiça, 2018). Disposição regulamentar com conteúdo desprovido de qualquer efeito prático, tendo em vista a vedação de subordinar a pretensão de alteração do nome e sexo constantes dos assentos de registro civil à prévia comprovação de avaliação, intervenção ou tratamento médico. Por conseguinte, o oficial de registro tanto não poderá exigir a apresentação destes documentos, quanto também não poderá justificar a negativa de cumprimento do ato por falta deles.

A averbação através da qual se promove o reconhecimento extrajudicial da pessoa transexual de readequar os elementos prenome e sexo constantes de seu assento de registro civil à sua identidade de gênero autopercebida tem caráter sigiloso. Sendo assim, é vedada qualquer menção à circunstância da alteração no corpo das certidões resumidas expedidas, devendo o oficial de registro consignar apenas que existem elementos de averbação à margem do assento. A publicidade da alteração somente será franqueada ao titular do assento, demais interessados somente acessariam o teor mediante prévia autorização judicial, e, sempre instrumentalizada em certidão de inteiro teor do assento correspondente, em que estará consignada a opção do requerente manifestada via procedimento extrajudicial para realização da mudança. A subsequente averbação da alteração no assento de nascimento dos descendentes dependerá de prévia anuência destes, quando já relativamente incapazes ou plenamente capazes. O provimento também exige anuência de ambos genitores, que somente será indispensável quando o registrando ainda não possuir capacidade plena para manifestação autônoma de sua vontade. Eventuais divergências no exercício do poder familiar serão resolvidas pelo juízo competente.

Em relação à alteração do assento de casamento importa destacar que a descrição do sexo e/ou gênero dos cônjuges não constitui elemento obrigatório do registro, conforme rol de requisitos da escrituração descrito no art. 70, da Lei nº 6.015/1973. Não havendo que se falar em alteração da designação do sexo e/ou gênero do assento de casamento, a pretensão recairá apenas quanto ao prenome alterado pela pessoa transexual.

De outro lado, por tratar-se de assento declaratório da existência de entidade familiar eventuais alterações promovidas administrativamente tornam imprescindível o consentimento do outro cônjuge, que, sendo negado, deverá ser suprido judicialmente.

A preocupação com a segurança jurídica na alteração dos dados pessoais, garantindo a continuidade das relações jurídicas e a devida atualização das informações essenciais à qualificação das pessoas perante órgãos públicos, especialmente aqueles que concentram cadastros de identificação, tais quais as Secretárias de Segurança Pública, o Ministério da Fazenda, o Ministério da Trabalho, a Polícia Federal e a Justiça Eleitoral, destaca-se como ponto fulcral na regulamentação promovida pela Corregedoria Nacional de Justiça, do procedimento extrajudicial de alteração do nome e sexo das pessoas transexuais.

5. A ATUAÇÃO DO REGISTRO CIVIL DE PESSOAS NATURAIS NA COMPATIBILIZAÇÃO DAS EXIGÊNCIAS LEGAIS: DESAFIOS E POSSIBILIDADES ENTRE A DIGNIDADE HUMANA E A SEGURANÇA JURÍDICA

A efetivação da dignidade da pessoa humana, através da autodeterminação da identidade de gênero e do reconhecimento da plena liberdade de exercício dos direitos da personalidade trouxe consigo uma preocupação não avaliada no acórdão na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.275/DF, quanto à necessidade serem estabelecidos pressupostos procedimentais que garantam plena segurança jurídica à prática do ato nos registros civis de pessoas naturais e seus respectivos efeitos na esfera jurídica de terceiros.

Cabe ao oficial de registro, por atribuição do Provimento nº 73/2018, da Corregedoria Nacional de Justiça, promover a qualificação jurídica do pedido de alteração de gênero/sexo e nome nos assentos de nascimento e casamento da pessoa transexual.

A qualificação registral é a exteriorização do princípio da legalidade: sua forma mais contundente, pois, em linhas gerais, deve o registrador observar na análise dos títulos o ordenamento jurídico em vigor. Qualificar é atribuir uma qualidade que poderá ser negativa caso o procedimento não esteja instruído com os documentos constantes em lei ou apresente ainda algum vício tal que demanda a desqualificação para esclarecimento e apresentação de documentação que supra o defeito. (Alvim Neto, (Coord.); Cambler, (Coord.) Clápis, (Coord.), 2014, p. 833)

Para tanto, deve ser observado o rito procedimental constante do ato regulamentador, destacando-se a previsão do §6º, art. 4º, em que se exige a instrução do pedido com um extenso rol de documentos e certidões, sob pena de não deferimento da pretensão. Também merece atenção a disposição do §3º do art. 8º, que previu a exigência da anuência do cônjuge para deferimento da alteração no assento de casamento da pessoa transexual.

Neste aspecto, há discordância quanto à legalidade das exigências mencionadas. Inexiste parâmetro que estabeleça de forma objetiva quais pressupostos devam ser atendidos para efetivação do direito de alteração do nome e do sexo/gênero das pessoas transexuais. Em verdade, do acórdão em referência depreende-se a impossibilidade de criar barreiras ou obstáculos na adequação dos registros civis à identidade gênero, como meio de efetivação da dignidade da pessoa.

O Conselho Nacional de Justiça - CNJ - tem atribuição constitucional para regulamentar e fiscalizar os atos administrativos praticados pelos órgãos integrantes do Poder Judiciário e dos serviços extrajudiciais de notas e dos registros públicos, zelando, sempre, na sua atuação, pelos vetores orientadores da administração pública, a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade e a eficiência (Brasil, 1988).

A tarefa de delimitar precisamente a extensão e o alcance do poder regulamentar é árdua, sobretudo diante das circunstâncias ilustradas, em que o parâmetro dado é uma decisão judicial proferida em sede de controle de constitucionalidade, e não propriamente um ato normativo. O exercício do poder normativo/regulamentar do CNJ já foi objeto de Ação Declaratória de Constitucionalidade, conforme ementa do acórdão adiante transcrita:

Ação declaratória de constitucionalidade ajuizada em prol da resolução N. 07, de 18.10.05, do Conselho Nacional de Justiça. Ato normativo que “disciplina o exercício de cargos, empregos e funções por parentes, cônjuges e companheiros de magistrados e de servidores investidos em cargos de direção e assessoramento, no âmbito dos órgãos do poder judiciário e dá outras providências. Procedência do pedido. 1. Os condicionamentos impostos pela Resolução nº 07/05, do CNJ, não atentam contra a liberdade de prover e desprover cargos em comissão e funções de confiança. As restrições constantes do ato resolutivo são, no rigor dos termos, as mesmas já impostas pela Constituição de 1988, dedutíveis dos republicanos princípios da impessoalidade, da eficiência, da igualdade e da moralidade. 2. Improcedência das alegações de desrespeito ao princípio da separação dos poderes e ao princípio federativo. O CNJ não é órgão estranho ao Poder Judiciário (art. 92, CF) e não está a submeter esse Poder à autoridade de nenhum dos outros dois. O Poder Judiciário tem uma singular compostura de âmbito nacional, perfeitamente compatibilizada com o caráter estadualizado de um parte dele. Ademais, o art. 125 da Lei Magna defere aos Estados a competência de organizar a sua própria Justiça, mas não é menos certo que esse mesmo art. 125, caput, junge essa organização aos princípios “estabelecidos” por ela, Carta Maior, neles incluídos aos constantes do art. 37, cabeça. (...) (STF; 2008, ADC nº 12/DF)

O pedido delimitado pela Procuradoria Geral da República na ação constitucional vinculou a jurisdição quanto à análise da necessidade de dar-se interpretação conforme a Constituição ao artigo 58 da Lei nº 6.015/1973, de modo a reconhecer aos transexuais, que assim o desejarem, independentemente da cirurgia de transgenitalização, o direito à substituição de prenome e sexo no registro civil.

Sendo assim, apenas eventualmente e em caráter obiter dictum foram expostas preocupações com os possíveis reflexos jurídicos provenientes do reconhecimento do direito pretendido, nos votos apresentados a julgamento do mérito pelos ministros.

De tal modo, após devida provocação, a Corregedoria Nacional de Justiça, órgão integrante do CNJ com atribuição para expedir recomendações, provimentos, instruções, orientações e outros atos normativos destinados ao aperfeiçoamento dos órgãos do Poder Judiciário dos serviços extrajudiciais, foi instado a regulamentar o procedimento de alteração do nome e do sexo/gênero das pessoas transexuais, nos respectivos assentos de registro civil.

A importância de ampla averiguação das diversas relações jurídicas integradas pelo requerente da alteração, tanto quanto da atualização dos dados cadastrais públicos, foram o fundamento justificante da larga exigência documental para deferimento do pedido. O provimento ainda confere a prerrogativa de indeferimento do pedido pelo oficial de registro, quando este suspeitar de fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade ou simulação, sem indicar quais situações ensejam suspeita da prática dos atos mencionados.

Todo individuo, enquanto sujeito de direitos e deveres, estabelece um complexo de relações jurídicas ao longo de sua vida, que permitem a correspondente individualização e identificação da pessoa a partir dos elementos essenciais de qualificação, tais como: o nome (prenome e sobrenome), a nacionalidade, a naturalidade, o estado civil, a data de nascimento, a filiação, o registro geral de identificação, o cadastro de pessoas físicas, o passaporte, a carteira de trabalho, o título de eleitor, dentre outros.

Para que seja possível a imputação de direitos e deveres, é essencial a individualização dos sujeitos jurídicos envolvidos. Partindo do pressuposto de que, atualmente, todos gozam de um rol mínimo de garantias decorrentes da própria personalidade, é imprescindível que todo ser humano seja adequadamente individualizado, não apenas no seio da família, mas perante toda sociedade. A individualidade, nesse sentido, é um direito decorrente da própria personalidade, e enfeixa as características que tornam a pessoa única, ao mesmo tempo que a distingue dos demais membros da sociedade e da família. São três os elementos de individualização da pessoa natural: o nome, o domicílio e o estado. (Kumpel, 2017, p. 191)

Estabelecida tal premissa, importa refletir sobre a forma mais adequada de tornar exequível o direito das pessoas transexuais, sem descuidar da necessária proteção à estabilidade das relações jurídicas, garantindo sua continuidade por mecanismos de delimitação da vida pregressa da pessoa na ordem jurídica e, posterior comunicação aos terceiros - nas esferas pública e privada - com legítimo interesse, das alterações promovidas nos elementos nome e sexo/gênero do assento de registro civil.

A busca pelo equilíbrio entre valores igualmente tutelados na ordem jurídica exige elevada ponderação do intérprete, sob pena da medida proposta subjugar ou sobrelevar em excesso os valores envolvidos. Neste aspecto, o Provimento 73/2018 é passível de crítica quanto aos excessos cometidos na regulamentação do direito de alteração do nome e/ou sexo/gênero nos assentos de registro civil das pessoas transexuais.

Resta evidente que tais precauções não foram tomadas na redação do Provimento nº 73/2018, que tanto obstaculiza a efetivação de um direito fundamental, quanto não afasta por completo o risco de manejo do procedimento para a prática de fraudes e demais comportamentos ilícitos. O largo rol de documentos e certidões exigidos para admissibilidade do pedido de alteração do assento não confere profilaxia à qualificação das relações jurídicas pretéritas do requerente, por questão de abrangência espacial e temporal.

A residência como critério delimitador da circunscrição judiciária para emissão das certidões dos distribuidores dos feitos judiciais é inapta à finalidade de esgotar o conhecimento das relações processuais integradas pelo requerente, pois a competência processual pode ser estabelecida com fundamento em diversos critérios (Donizetti, 2019, p. 357). Do mesmo modo afigura-se inviável identificar toda especie de apontamentos de protestos a partir da certidão fornecida apenas pelo tabelionato da residência do requerente, dada a possibilidade da atribuição para protesto pertencer a serventia de localidade diversa (Brasil, 1997).

Até mesmo o registro geral de identidade (RG) poderá escapar à qualificação do oficial de registro, ante a ausência de intercomunicação entre as bases de dados das secretarias de segurança pública estaduais. Nada impede, portanto, que o mesmo indivíduo possua um registro geral de identificação em cada um dos vinte e seis estados federados, mais o Distrito Federal, circunstância que somente chegará ao conhecimento do oficial por informação do próprio requerente.

De tal modo, o já extenso rol de documentos e certidões imprescindíveis à admissibilidade do processamento pela via extrajudicial do pedido de alteração do nome e sexo/gênero nos assentos de registro civil, obstaculiza a efetivação da dignidade da pessoa transexual e, de outro lado, não cumpre satisfatoriamente a finalidade de resguardo da segurança jurídica.

Em consonância com o princípio da continuidade, que orienta os atos praticados no âmbito dos serviços registrais, o provimento determina que a alteração do nome e do sexo/gênero no registro de casamento se dará em sequência à prévia averbação no assento de nascimento. Naturalmente, para tanto, será dispensada a renovação dos documentos e certidões listados no provimento, bastando seja apresentada certidão de inteiro teor atualizada do registro de nascimento conjuntamente com demonstração de anuência do cônjuge.

O provimento inaugura nova exigência dissonante da conclusão obtida no acórdão da ação direta de inconstitucionalidade nº 4.275/DF, ao fazer necessária legitimação especial - anuência do cônjuge -, como pressuposto indispensável ao deferimento do pedido de alteração do assento de casamento da pessoa transexual. Inexiste direito subjetivo do cônjuge que justifique a imprescindibilidade da sua manifestação de vontade, a alteração pretendida alcança única e exclusivamente a esfera dos direitos da personalidade da pessoa requerente, não tem aptidão para irradiar efeitos na esfera jurídica do cônjuge.

A título de fomento ao debate dialético, ainda que reconhecida a existência de direito subjetivo ao cônjuge, não obstante a dificuldade latente de identificar seu conteúdo e natureza diante das circunstâncias apresentadas, um rápido exercício de ponderação dos valores em contraste garante primazia à efetivação da dignidade da pessoa humana, como fundamento basilar do Estado Democrático de Direito.

No que diz respeito ao status jurídico-normativo no âmbito da ordem constitucional, notadamente, se a dignidade da pessoa humana assume simultáneamente a condição de valor, princípio e/ou regra (além de operar como direito fundamental), importa destacar alguns aspectos. Numa primeira perspectiva (não excludente das demais) a dignidade da pessoa humana, na acepção de Miguel Reale, consiste de uma espécie de valor-fonte, o que também foi objeto de reconhecimento pelo STF, alinhado com a tradição consagrada no direito constitucional contemporâneo, para quem a dignidade da pessoa humana constitui ‘verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo.’ (Sarlet, Marinoni e Mitidiero, 2015, p. 417)

Neste contexto, cumprirá ao oficial de registro averiguar a observância dos pressupostos indicados e conduzir o procedimento nos termos previstos no ato regulamentar, por adstrição ao princípio da legalidade. É vedado ao oficial de registro fazer exigências que não estejam previstas no parâmetro normativo, devendo, em caso de indeferimento do pedido apresentar nota devolutiva que identifique, de forma clara e objetiva, as pendências a serem cumpridas para deferimento da pretensão.

Há pouca margem discricionária na atuação do oficial de registro, que terá prerrogativa para realizar juízo de valor apenas quando suspeitar de fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade, ou simulação quanto ao desejo real da pessoa requerente. Ainda assim, não escusa de fundamentar sua recusa, encaminhando o pedido ao juiz corregedor permanente para decisão.

6. A AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 4275/DF E A PROMOÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA

A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4275/DF provocou o Supremo Tribunal Federal a manifestar-se sobre o artigo 58 da Lei nº 6.015/73, que já foi previamente apresentado neste trabalho. De plano, discutiu-se sobre o cabimento ou não da supracitada Ação Direta, indagando-se se este artigo possuía caráter polissêmico, para a definição quanto à possibilidade de ser realizada a técnica de interpretação conforme a Constituição Federal. A Advocacia-Geral da União, como sói acontecer, defendeu o ato impugnado posicionando-se pela impossibilidade de sua submissão ao rito da ADI, mas tal asserção preliminar foi rejeitada pelo relator do Acórdão, ministro Marco Aurélio, cujo entendimento pelo cabimento da Ação baseou-se na amplitude da autorização legal para a substituição do nome por apelidos públicos notórios.

Nesse talante, o cerne da questão posta em juízo voltou-se à possibilidade de alteração de prenome e sexo/gênero no registro civil independentemente de cirurgia de transgenitalização. Importa asseverar que o mérito da questão já havia sido colocado sob apreciação do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 670.422, Tema 761 (possibilidade de alteração de gênero no assento de registro civil de transexual, mesmo sem a realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo).

Em seu voto, o relator defendeu a autonomia privada e o direito a uma existencia feliz e criticou a marginalização a que são submetidas as pessoas transgêneros, em âmbitos pessoal e profissional. Por essa ótica, defende ser insustentável a ideia de exigência de submissão à procedimento cirúrgico para que seja permitida a alteração registral. Como reforço ao seu entendimento, o ministro apresentou fragmentos da Resolução nº 1.955/2010 (Conselho Federal de Medicina, 2010).

É importante frisar que houve recente e importante alteração na abordagem médica da transexualidade. Segundo Abdala, a transexualidade foi classificada como doença mental pela Organização Mundial da Saúde por 28 anos (Abdala, Marins e Santos, 2019, p. 97). No Brasil, a Resolução nº 2.265/2019 (Conselho Federal de Medicina, 2019) do mesmo Conselho deixa de tratar a transexualidade como patologia, mudando inclusive a terminologia adotada, deixando de utilizar o termo “transexualismo”, como consta da Resolução de 2010 colacionada pelo Supremo Tribunal Federal. O intuito é oferecer um tratamento mais adequado às pessoas com incongruência de gênero. O referido ministro dispôs que as exigências da Resolução nº 1.955/2010 deveriam ser aplicáveis aos casos de alteração registral sem a realização de cirurgia, no que coubesse.

A mudança na concepção da incongruência de gênero reflete nas condições exigidas pelo órgão médico para cirurgia/atendimento. Explica-se: em 2010, exigia-se a idade de 21 (vinte e um) anos, mais consentânea com a maturidade necessária, segundo explicação do ministro Marco Aurélio (diversa, portanto, da idade de 18 anos na qual ocorre a aquisição da capacidade civil de fato) para submissão ao procedimento cirúrgico. Ainda, era necessário um acompanhamento prévio durante 2 (dois) anos por equipe multiprofissional. A partir de 2019, a idade mínima para submissão à cirurgia passa a ser de 18 (dezoito) anos e o acompanhamento prévio por equipe multiprofissional passa a ser exigido por 1(um) ano.

Em que pese se defenda neste trabalho a desnecessidade de procedimento cirúrgico para alteração registral, essas mudanças ilustram a modificação na compreensão da transexualidade, que vem se tornando mais “natural” e menos estigmatizada. O direito comparado fora trazido à discussão na ADI nº 4275/DF, com clareza, no voto dos ministros Alexandre de Moraes e Rosa Weber. Na legislação estrangeira também se verifica a superação da exigência de cirurgia de transgenitalização, a exemplo da Alemanha (Bundesverfassungsgericht , 2007) e da Grã-Bretanha (Gender Recognition Act, 2004). O ministro Edson Fachin, por sua vez, salientou que a decisão deveria ir além da interpretação conforme a Constituição para ser alcançado pelas disposições do Pacto de São José da Costa Rica e que a atuação do Supremo Tribunal Federal na prolação de decisões interpretativas com efeitos aditivos coaduna com uma linha jurisprudencial progressiva.

(...) a Corte Interamericana deixa estabelecido que a orientação sexual e a identidade de gênero, assim como a expressão de gênero, são categorias protegidas pela Convenção. Por isso está proibida pela Convenção qualquer norma, ato ou prática discriminatória baseada na orientação sexual, identidade de gênero ou expressão de gênero da pessoa. Em consequência, nenhuma norma, decisão ou prática do direito interno, seja por parte das autoridades estatais ou por particulares, podem diminuir ou restringir, de modo algum, os direitos de uma pessoa à sua orientação sexual, sua identidade de gênero e/ ou sua expressão de gênero. (Corte IDH, parágrafo 78)

Entretanto, entende-se que a atuação legislativa por parte do Poder Judiciário deve ser analisada com parcimônia, sob pena de estremecer, em algumas hipóteses, a organização e a separação entre os Poderes.

Feita essa ressalva, até para não agastar em demasia o leitor, assevera-se que quanto à possibilidade de alteração registral em virtude de transexualidade independientemente de submissão à cirurgia não houve maiores divergências para o Plenário do STF. Nos detalhes procedimentais é que o Supremo Tribunal Federal passou a debater, especialmente quanto à necessidade ou não de um procedimento de jurisdição voluntária, mais precisamente para evitar óbices em órgãos e entidades administrativas quando da alteração feita diretamente no Registro Civil das Pessoas Naturais. Além disso, o sigilo do ato e a preocupação com a segurança jurídica, especialmente no que se refere a documentos pretéritos, também tiveram lugar na discussão, a exemplo do serviço militar obrigatório, prazos para o exercício de direitos previdenciários e reflexos na seara trabalhista. Necessário mencionar, ainda, que houve uma ampliação terminológica, de transexuais para transgêneros, no intuito de ampliar o alcance da decisão, justificada por se tratar de um processo objetivo.

Em que pese as questões adjacentes à possibilidade de alteração registral tenham sido mencionadas no julgamento da ADI nº 4275/DF, a decisão do Supremo Tribunal Federal limitou-se a permitir a alteração de nome e sexo independentemente de redesignação sexual cirúrgica diretamente no registro civil de pessoas naturais, dispensando-se o procedimento de jurisdição voluntária. Foram feitas observações sobre o sigilo do ato e a privacidade do requerente, sendo inaceitáveis menções à condição de pessoa transgênero ou à prévia alteração, exceto para o próprio solicitante e em caso de necessidade de apreciação judicial. No entanto, o STF não definiu, no dispositivo da decisão, como deve ocorrer essa alteração.

Entende-se que o STF procurou facilitar a alteração registral, superando obstáculos procedimentais, como esteio no princípio irradiador da dignidade humana. Contudo, como o dispositivo da decisão não estabeleceu de maneira minuciosa a forma como isso deveria ocorrer, a atuação dos registradores, no mais das vezes, acaba por embasar-se no Provimento nº 73 do Conselho Nacional de Justiça, que exige diversos documentos do solicitante, pela preocupação com os Princípios da Segurança Jurídica e da Veracidade.

CONCLUSÕES

O reconhecimento do direito de adequação dos atributos da personalidade nome e gênero à identidade autopercebida da pessoa é, sem dúvidas, uma grande conquista no âmbito das liberdades civis, corroborando sobremaneira à delimitação prática do princípio da dignidade da pessoa humana.

Ainda que tal conquista provenha de interpretação conforme a constituição dada pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle de constitucionalidade e, não propriamente por iniciativa do Poder Legislativo, pode-se afirmar que os efeitos vinculante e erga omnes ínsitos ao acórdão da ação direta de inconstitucionalidade nº 4.275/DF, proporcionam efetividade ao teor da decisão.

Entretanto, tal efetividade tem esbarrado na regulamentação do procedimento para alteração do prenome e do gênero/sexo perante os cartórios de registro civil das pessoas naturais. Conforme exposição pretérita, o Provimento nº 73/2018, da Corregedoria Nacional de Justiça, fez prever largo rol de pressupostos e requisitos necessários ao deferimento da pretensão de alteração dos assentos de registro civil, em evidente descompasso com o propósito paradigmático ao qual deveria guardar adstrição.

Embora se reconheça que o intuito da regulamentação foi de prestigiar a segurança jurídica e o princípio da continuidade registral - e não o de marginalizar, ou, indiretamente, penalizar o solicitante -, não se pode admitir que o exercício de direitos fundamentais estejam sujeitos a exigências de tal envergadura, sob pena do apreço pela forma/procedimento sobrepor-se à consecução da alteração dos assentos civis da pessoa transexual.

Não se descuida da importância de observar e zelar pelos princípios regentes dos serviços extrajudiciais, todavia, existem outras alternativas que melhor garantem o equilíbrio desejado na efetivação dos valores jurídicos contrapostos. A dificuldade de identificação do complexo de relações jurídicas integradas pelo requerente da alteração tem assento na estanqueidade dos cadastros públicos de informação, uma vez que inexiste tecnologia implementada, em larga escala, que opere o cruzamento ou a interoperabilidade dos dados coletados pelos diversos órgãos, repartições, esferas e poderes estatais. De tal modo, a profilaxia da segurança jurídica importa em constrangimento ilegal à efetivação do direito da pessoa transexual, tendo em vista o enorme contingente de documentos e certidões necessários à análise verticalizada de sua vida jurídica pregressa.

A solução que parecer melhor solver a controvérsia é a colheita de declaração do requerente, sob as penalidades previstas na lei civil e criminal, a respeito das informações prestadas perante o oficial de registro, notadamente, sua identificação e qualificação civil, os documentos de identificação e cadastro públicos de sua titularidade - RG, CPF, Passaporte, CTPS e outros - ações judiciais em que figura como parte e demais relações jurídicas que façam exigir posterior comunicação pelo oficial quanto a alteração de prenome e gênero/sexo a ser promovida.

Além da desnecessidade do extenso rol de documentos exigidos, entende-se também pela inadequação de consentimento do cônjuge para alteração do registro civil de casamento, já que o livre desenvolvimento da personalidade, o direito à dignidade e o direito ao respeito nas relações familiares, como direitos públicos subjetivos, não podem ser condicionados ao posicionamento ou anuência de um terceiro.

A condição social da pessoa transgênero reclama uma atuação estatal mais firme, e neste ponto se justifica a atuação criativa do Poder Judiciário, tendo em vista a atuação insuficiente do Poder Legislativo. Nesse talante, entende-se pela necessidade de facilitação de alteração de prenome e sexo/gênero, administrativamente de preferência, para que o exercício de seus direitos seja facilitado, reconhecendo-se, naturalmente, o princípio da inafastabilidade da jurisdição, quando necessário.

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Cómo citar: Corrêa, A. P., & Fróis Rodrigues, V. (2022). Los desafíos para la concretización del derecho fundamental para la dignidad en la actuación extrajudicial: un análisis comparativo entre la desestimación 73 del CNJ y la ADI 4275/DF. Opinión Jurídica, 21(44), 260-278. https://doi.org/10.22395/ojum.v21n44a13

Recebido: 27 de Março de 2020; Aceito: 05 de Outubro de 2020

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