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Opinión Jurídica

versión impresa ISSN 1692-2530versión On-line ISSN 2248-4078

Opin. jurid. vol.21 no.44 Medellín ene./jun. 2022  Epub 19-Mar-2022

https://doi.org/10.22395/ojum.v21n44a14 

Artigos

O princípio da solidariedade social como um referencial teóricoestrutural na erradicação do trabalho escravo contemporâneo

El principio de la solidaridad social como un referente teóricoestructural en la erradicación del trabajo esclavo contemporáneo

The Social Solidarity Principle as a Structural and Theoretical Reference in the Eradication of Contemporary Enslaved Labor

* Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC, Santa Cruz do Sul, Brasil sreis@unisc.br https://orcid.org/0000-0001-8820-6385

** Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC, Santa Cruz do Sul, Brasil gustaques@uol.com.br https://orcid.org/0000-0003-1000-2256


RESUMO

O presente estudo tem como objetivo refletir sobre a solidariedade social enquanto referencial teórico-estrutural para a erradicação do trabalho escravo contemporâneo. Para tanto, utilizou-se o método de abordagem dedutivo e o método de procedimento monográfico. O surgimento da solidariedade é uma superação do individualismo que predominou durante muito tempo no direito privado. A mera lógica de lucro a qualquer custo tem de ser banida, ante o valor social do trabalho e os demais valores constitucionais da sociedade, em prol do respeito aos direitos humanos e na prevalência da solidariedade social. Por outro lado, atualmente, há novas formas de escravidão, não necesariamente vinculada à restrição física da liberdade. Nesse contexto, percebe-se a importancia da solidariedade social como elemento fundante da sociedade, a fim da proteção dos direitos humanos e do direito ao trabalho.

Palabras-chave: direitos humanos; fraternidade; solidariedade social; trabalho escravo; trabalho digno

Resumen

El presente estudio tiene como objetivo reflexionar sobre la solidaridad social mientras referencial teórico-estructural para erradicación del trabajo esclavo contemporáneo. Para ello, se utilizó el método de enfoque deductivo y el método de procedimiento monográfico. El surgimiento de la solidaridad es una superación del individualismo que predominó por mucho tiempo en el Derecho Privado. La simple lógica de lucro a cualquier costo tiene que ser banida, ante el valor social del trabajo y de los demás valores constitucionales de la sociedad, hacia el respeto de los derechos humanos en la incidencia de la solidaridad social. Por otro lado, actualmente, se da nuevas formas de esclavitud, no necesariamente vinculada hacia la restricción física de la libertad. En este contexto, se evidencia la importancia de la solidaridad social como elemento fundante de la sociedad, a fin de proteger los derechos humanos y los derechos al trabajo.

Palabras clave: derechos humanos; fraternidad; solidaridad social; trabajo esclavo; trabajo digno

ABSTRACT

This study has as its main objective performing a reflection on social solidarity as a theoretical and structural reference for the eradication of contemporary enslaved labor. For that, the study employed a deductive approach and the monographical procedura method. The appearance of solidarity is an overcoming of the individualism that predominated in the Private Right for a long time. The mere logic of profit at any cost must be banida in the light of the social valueo labor and the rest of constitutional values of society, towards the respect of human rights in the incidence of social solidarity. In the other hand, currently, new forms of slavery are taking place, not necessarily linked to physical restrctions of freedom. In this context, the significance of solidarity as a fundamental element of society is evident, as well as its usefulness for protecting human and labor rights.

Keywords: human rights; fraternity; social solidarity; enslaved labor; decent work

INTRODUÇÃO

O presente artigo é resultado das investigações realizadas no Grupo de Estudos “Relações de Trabalho na Contemporaneidade”, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Direito - Mestrado e Doutorado - da Universidade de Santa Cruz do Sul.

A solidariedade é um guia essencial para se vencer a indiferença e pensar em atingimento para todos das condições mínimas de vida, especialmente pelo acesso a um trabalho digno e livre de qualquer forma de escravidão. A sociedade passou por transformações em vários âmbitos (culturais, sociais, econômicos e tecnológicos). Também, o Constitucionalismo evoluiu de uma visão meramente formal e mais liberal, assegurando prioritamente os direitos e liberdades individuais negativas para uma posição de maior atuação estatal, com implementação de direitos sociais. O surgimento da solidariedade é uma superação do individualismo que predominou durante muito tempo no direito privado.

Nesse contexto, percebe-se a importância da solidariedade social como elemento fundante da sociedade, a fim da proteção dos direitos humanos e do direito ao trabalho. É preciso humanizar o ser humano e fazer com que o discurso solidarista seja algo praticado constantemente na vida dos atores sociais. O projeto solidarista depende de visão positiva da solidariedade social, com esclarecimento das diferenças e compreensão mútua para entendimento, não bastando uma ótica negativa, de abstenção de atitudes não solidárias. É inadiável a busca pela evolução mundial da sociedade como um todo. Nessa linha de raciocínio, a mera lógica de lucro a qualquer custo tem de ser banida, ante o valor social do trabalho e os demais valores constitucionais da sociedade, em prol do respeito aos direitos humanos e na prevalencia da solidariedade social.

O preâmbulo da Constituição brasileira de 1988 contextualiza o Estado Democrático em uma sociedade fraterna, pluralista, sem preconceitos e fundada na harmonia social. É objetivo fundamental da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária (Constitução do Brasil, Art. 3º, I, 1988). Percebe-se, desse modo, que o constituinte estabeleceu um novo paradigma para o sistema jurídico, qual seja a solidariedade.

Tal projeto constitucional endossa o discurso solidarista e fornece elementos consistentes para se sustentar a solidariedade como pilar social, jurídico e ético capaz de estruturar a erradicação do trabalho escravo contemporâneo, na medida em que o Constituinte sinalizou ao legislador ordinário e ao intérprete do direito o camino a ser seguido.

A escravidão contemporânea não está necessariamente vinculada à restrição física da liberdade ou do direito de ir e vir. Ela caracteriza-se pelo trabalho forçado, a jornada exaustiva, a condição degradante e também a restrição de liberdade, e ocorre tanto nos meios urbanos quantos rurais. A escravidão contemporânea decorre de um histórico de discriminação cultural e social das pessoas mais simples frente a um certo modelo econômico, enraizado no modo de agir de alguns empresários, do predomínio do capital a qualquer custo, mesmo que com violação do ser humano.

Formalmente, o trabalho escravo está extinto desde 1888. Entretanto, tal vedação legal não impede a continuidade da prática de exploração do trabalho humano em condições análogas a de escravo, conforme previsão do Código Penal brasileiro. Nessa linha, Brito Filho (2006, p. 133) leciona que, além das restrições em relação à liberdade do trabalhador, o desrespeito aos direitos mínimos para o resguardo da dignidade do trabalhador caracterizam a escravidão contemporânea.

Partindo dessas considerações, a pesquisa justifica-se pelas situações corriqueiras de escravidão contemporânea, nos mais variados segmentos e regiões geográficas, e que representam uma grave violação aos direitos humanos e a dignidade da pessoa.

2 EVOLUÇÃO, ORIGENS E TIPOS DE SOLIDARIEDADE SOCIAL-JURÍDICA

Inicia-se o estudo, pela importância da solidariedade social-juridica como valor fundante de um sistema jurídico democrático, com uma reflexão-indagação da realidade social e da coisificação humana, como forma de não se esquecer que ainda há muito a se transpor em termos de sociedade livre, justa e plural: “O que se pode dizer a respeito de um pai ou de uma mãe, que no auge da miséria humana, olham para os seus filhos chorarem porque passam fome, e nada podem fazer para conter as lágrimas inocentes?” (Cardoso, 2010, p. 103). A solidariedade é um guia esencial para se vencer a indiferença e pensar em atingimento para todos das condições mínimas de vida, especialmente pelo acesso a um trabalho digno e livre de qualquer forma de escravidão.

A sociedade passou por transformações em vários âmbitos (culturais, sociais, econômicos e tecnológicos). Também, o Constitucionalismo evoluiu de uma visão meramente formal e mais liberal, assegurando prioritamente os direitos e liberdades individuais negativas para uma posição de maior atuação estatal, com implementação de direitos sociais. Nessa perspectiva, surge o discurso solidarista “condicionado pela crise do modelo liberal, provocada pelas transformações econômicas e sociais a partir da segunda metade do século XIX” (Farias, 1998, p. 196).

Para melhor assegurar as liberdades e a implementação dos direitos sociais, além da dignidade da pessoa humana, o vetor da solidariedade merece valorização. O ser humano é um ser social, de forma que a visão egoística do “eu” deve ceder para uma vida justa a todos, isto é, uma visão do “nós”, integrativa. Dessa maneira, como pontuam Reis e Freitas (2017, p. 174), “a solidariedade liga-se com a ajuda ao próximo, a buscar o benefício de todos”, aspecto até mesmo necessário para a harmonia social, pois como afirma Proudhon (1840, p. 151) que “L’homme n’est homme que par la société, laquelle, de son côté, ne se soutient que par l’équilibre et l’harmonie des forces qui la composent”1.

Surpreende que ainda há muito que avançar no debate a respeito da solidariedade e, talvez, é cabível dizer que sequer se avançou significativamente quanto à temática. Por isso, o destaque dado por Farias (1998):

É espantoso constatar que o discurso solidarista, embora seja um dos discursos fundadores de nossa contemporaneidade, foi em larga escala ignorado pelo homem contemporâneo. Temos a impressão de que estamos entrando no século XXI sem ter passado pelo século XX, pois o homem deste século viu com muita dificuldade o que alguns filósofos, sociólogos e juristas já vislumbravam no decorrer do século XIX: a possibilidade de uma democracia social e pluralista cuja força motora está no pluralismo da vida social e na solidariedade. (p. 285)

Percebe-se que faz sentido tal comentário de Farias (1896), na medida em que um dos principais estudiosos da Solidariedade no mundo foi o francês Léon Bougeois, há mais de dois séculos, na obra Solidarité, e já destacava que o ser humano não vive isolado, fundado na premissa da noção de solidariedade social:

[...] L’État est une créa-tion des hommes: le droit supérieur de l’Etat sur les hommes ne peut donc exister ; il n’y a pas de droits là où il n’existe pas un être, dans le sens naturel et plein du mot, pouvant devenir le sujet de ces droits. (...) Pas plus que l’Etat, forme politique du groupement humain, la so-ciété, c’est-à-dire le groupement lui-même, n’est un être isolé ayant en dehors des individus qui le composent une existence réelle et pouvant être le sujet de droits particuliers et supérieurs opposables au droit des hommes. Ce n’est donc pas entre l’homme et l’Etat ou la société que se pose le problème du droit et du devoir; c’est entre les hommes eux-mêmes, mais entre les hommes conçus comme associés à une oeuvre commune et obligés les uns envers les autres par la nécessité d’un but commun. Il ne s’agit pas de définir les droits que la société pourrait avoir sur les hommes, mais les droits et les devoirs réciproques que le fait de l’association crée entre les hommes, seuls êtres réels, seuls sujets pos-sibles d’un droit et d’un devoir2. (p. 36-37)

Dessa maneira, há que se relevar a noção de um novo paradigma na sociedade, a solidariedade social, já que os homens estão associados e, logo, estão relacionados a um direito e um dever, sob a perspectiva da dignidade da pessoa humana, constituindo a responsabilidade social e dever de cooperação as bases deste paradigma.

Nessa linha, Cardoso (2010) sintetiza:

Em síntese, por ser a dignidade da pessoa humana a interface entre os Direitos Público e Privado, e mais que isso, o fundamento de todos os demais fundamentos do Estado Social e Democrático de Direito, a solidariedade e seus consectários lógicos - responsabilidade social e dever de cooperação - é o paradigma que se impõe, funcionalizando toda a ordem jurídica em prol do valor da ética, da justiça e da fraternidade. Que façamos, enfim, algo para que nossos filhos e demais descendentes tenham um futuro melhor. (p. 241)

O paradigma da solidariedade, pensando em uma sociedade que leva a sério os direitos dos cidadãos e, por exemplo, a igualdade e a liberdade de acesso ao mercado de trabalho, servirá de base para participação de todos na construção de patamares mínimos de dignidade que erradiquem qualquer forma de trabalho escravo contemporâneo, porquanto incompatível com um Estado Democrático Social de Direito. Também, a postura atual dos atores sociais modifica o futuro e afeta as próximas gerações, de forma que um comportamento impregnado de solidariedade social provocará mudanças não só agora - com o banimento da crueldade do trabalho não-livre, e, além disso, a vedação de qualquer ideário de retorno para esta chaga social, em uma sociedade multicultural.

Nesse contexto, “o direito de solidariedade é uma prática alimentada pela sua própria complexidade social, que exige uma sociedade aberta, flexível e pluralista” (Farias, 1998, p. 186). Assim, a solidariedade é perfeitamente harmonizada com o ámbito social, porquanto o ser humano vive em sociedade e as relações não só entre particulares, mas, da igualmente, entre particular e Estado não podem ser consideradas insuladas. Logo, válida a observação de Bougeois (1896: 36), quando afirma que a destruição da noção de homem isolado também leva a destruir “la notion également abstraite et a priori de l’Etat, isolé de l’homme et opposé à lui comme un sujet de droits distincts ou comme une puis-sance supérieure à laquelle il serait subordonné”3.

Percebe-se que o surgimento do discurso solidarista está relacionado a varias perspectivas, as quais são apenas indicadas, dados os limites-objetivos do presente estudo (Farias, 1998, pp. 188-189): vertentes intelectuais (estoicismo e cristianismo primitivo), laço que une os devedores (responsabilidade solidária - jurista romanos), dever de prestar ajuda aos necessitados (Revolução Francesa) - dever de assistência, dever social (dívida social, Comte), solidariedade federativa (Proudhon). Também, o solidarismo teve foco por vários estudiosos, por exemplo, pela forma sistematizada apresentada, León Bourgeois e Emilé Durkheim, e, no Brasil, pelo destaque, o jurista Rui Barbosa. Centrando-se na visão mais admitida recentemente, o discurso solidarista decorre do embate das correntes de pensamento liberal e social, delineando os múltiplos aspectos do movimento operário e, por isso, na visão de Farias (1998, p. 196) surge da crítica à democracia burguesa, mas, também, é “o mais poderoso agente do reconhecimento e ampliação do sufrágio universal, das liberdades políticdas, dos direitos sociais e da democracia representativa”.

Nessa perspectiva, e se afastando da mera ideia de caridade ou filantropia, Farias (1998, p. 190), destaca a descoberta da solidariedade social, vinculada a uma nova forma de pensar a sociedade e as políticas sociais tendo por fio condutor o novo paradigma:

É apenas no fim do século XIX que encontramos a descoberta da solidariedade. A partir do fim do século XIX, quando se fala de solidariedade, pretende-se, com essa palavra, designar algo bem diferente. Trata-de de uma nova maneira de pensar a relação indivíduo-sociedade, indivíduo-Estado, enfim, a sociedade como um todo. É somente no fim do século XIX que aparece a lógica da solidariedade com um discurso coerente que não se confunde com “caridade” ou “filantropia” (grifo do autor).

No Brasil, em pronunciamento em 1919, quando candidato à Presidência da República, Rui Barbosa (1919) destacava a importância de vencer o individualismo em prol da solidariedade humana:

A concepção individualista dos direitos humanos tem envolvido rapidamente, com os tremendos sucessos deste século, para uma transformação incomensurável nas noções jurídicas do individualismo restringidas agora por uma extensão, cada vez maior, dos direitos sociais. Já não se vê na sociedade um mero agregado, uma justaposição de unidades individuais, acasteladas cada qual no seu direito intravável, mas uma entidade naturalmente orgânica, em que a esfera do indivíduo tem por limites inevitáveis, de todos os lados, a coletividade. O direito vai cedendo à moral, o indivíduo à associação, o egoísmo à solidariedade humana. (p. 380)

Dessa forma, o surgimento da solidariedade é uma superação do individualismo que predominou durante muito tempo no Direito Privado. Por isso, Cardoso (2010, p. 2) comenta que “por um sistema positivo de cláusulas gerais, o princípio da solidariedade, surge como o novo paradigma do Direito Privado, hoje calcado nos ideais de bem-estar e justiça sociais”. Nesse contexto, em relação à origem do solidarismo, conectando a fraternidade universal e o respeito pelo ser humano, Reis (2007) pontua:

De igual maneira, embora a origem do solidarismo, segundo Francesco Lucarelli, na sua obra Solidarietá e Autonomia Privata, publicada em 1970, possua conexão com os princípios sociais do cristianismo, não é no seu sentido religioso que a constituição o ampara, mas sim no sentido de tratamento de fraternidade em relação às outras pessoas no sentido universal, no dever de respeito à pessoa humana que com outra estabelecer eventual relação jurídica. (p. 2039)

Por outro ângulo, todavia no mesmo norte de fundamentalidade do discurso solidarista, o prisma ético ganha relevância, já que o direito representa o interesse objetivo e inconsciente dos homens em se ajudarem mutuamente, de forma que a vida de todos se torne mais fácil, com a formação de ente coletivo capaz de atender aos anseios comuns e corrigir as mazelas da desigualdade (Cardoso, 2010, p. 56), equilibrando-se, assim, a liberdade com a responsabilidade e os deveres éticos de solidariedade, no intuito de se alcançar a almejada justiça social.

Avançando, a solidariedade passa a ser vista também sob o prisma jurídico, pois é no fim do século XIX e início do século XX, a tese da solidariedade ganhou espaço como um fato objetivo, científico e moral e conforme Farias (1998, p. 221) “na medida em que a solidariedade era apresentada como um direito e um dever, era preciso traduzi-la no plano jurídico. O discurso solidarista passa, então, a exercer forte influência sobre alguns juristas”.

E o discurso solidarista não é apenas uma forma de ver o direito, mas, sim, uma maneira da política ter um parâmetro coerente com um Estado Democrático de Direito, sendo a solidariedade um fundamento de uma democracia material, e não somente no plano formal. Nessa linha, conclui Farias (1998), abordando a importancia do solidarismo jurídico para a democracia, tendo em conta um direito de solidariedade sobreposto ao individualismo:

O solidarismo jurídico almeja ser o discurso do Estado de Direito: não de um Estado de Direito liberal, mas de um Estado de Direito Democrático, onde se trata da soberania de um direito de solidariedade engendrado pela comunidade política subjacente à organização sobreposta. A subordinação dos atos dos governantes e da administração a um controle jurídico é baseada não mais numa lógica individualista ou formalista, mas na lógica solidarista. O direito de solidariedade se sobrepõe ao individualismo em matéria de organização social e política. Trata-se de uma ruptura na história do Estado de Direito. (p. 277)

A respeito de um estudo dos tipos solidariedade, destaca-se a obra De la division du travail social, de 1893, de Émile Durkheim (1858-1917, sociólogo francês, considerado o fundador da sociologia ou, pelo menos, de uma corrente de estudos sobre a natureza do fato social e as leis da evolução da sociedade), sendo a referida obra Da divisão do trabalho social uma das suas principais obras. Durkheim (2004, prefácio, p. X) analisa a coesão e a permanência da interação social entre as pessoas e como isso repercute na sociedade considerada a coletividade ao longo do tempo. A sociedade só se sustenta com base em consensos, ainda que sujeito a variações, mas fruto da imposição de limites por regras, pois uma regra não é apenas uma maneira habitual de agir, mas, muito antes disso, uma maneira de agir obrigatória, que escapa ao arbítrio das pessoas enquanto individualidades.

Assim, a sociedade necessita de consenso e supremacia para imposição da lei às pessoas, a fim de ter continuidade, ordem e paz sociais, como afirma Durkheim (2004, prefácio, p. X), e daí decorre a relevância da solidariedade social para coesão e regularidade:

Ora, somente uma sociedade constituída desfruta da supremacia moral e material que é indispensável para impor a lei aos indivíduos; pois a única personalidade moral que está acima das personalidades particulares é a formada pela coletividade. Além disso, apenas ela tem a continuidade e, mesmo, a perenidade necessárias (sic) para a manter a regra além das relações efêmeras que a encarnam cotidianamente. E mais: seu papel não se limita simplesmente a erigir em preceitos imperativos os resultados mais gerais dos contratos particulares, ela intervém de maneira ativa e positiva na formação de todas as regras. Em primeiro lugar, ela é o árbitro naturalmente designado para resolver os interesses em conflito e atribuir a cada um os limites que convêm. Em seguida, ela é a primeira interessada em que a ordem e a paz reinem: se a anomia é um mal, é antes de mais nada porque a sociedade sofre desse mal, não podendo dispensar, para viver, a coesão e a regularidade.

O consenso sofre alternâncias conforme os tipos de solidariedade social. Há dois tipos de solidariedade: mecânica e orgânica. Conforme Durkheim (2004, pp. 39, 85), a solidariedade mecânica (ou por similitudes) está assentada nas sociedades primitivas - grupamentos tribais, nos quais as pessoas compartilham os mesmos valores e crenças formando, em consequência, a coesão social. Já a solidariedade orgânica (devida à divisão do trabalho), prevalente nas sociedades complexas (modernas, capitalistas), nas quais as pessoas não compartilham os mesmos valores e crenças, porquanto há bastante diferenças e predomínio da visão individual. Quanto à preponderância progressiva e a consequente mudança da maneira como as pessoas são solidárias nas sociedades multifacetadas, Durkheim (2004, p. 157) enfatiza que é uma “lei da história a de que a solidariedade mecânica, que, a princípio, é única ou quase, perde terreno progresivamente e que a solidariedade orgânica se torna pouco a pouco preponderante”.

A divisão do trabalho social se visualiza nas diferentes profissões em sociedades complexas, com inúmeras diferenças sociais, mas que, ao mesmo tempo, há uma interdependência para o funcionamento do todo. Quanto maior a divisão social do trabalho, maior a será esta conexão de vinculação entre as pessoas (por exemplo, na solidariedade mecânica, todos sabem fazer uma rede de pesca e são considerados pelo conjunto do resultado, enquanto na solidariedade orgânica, cada um faz uma parte da rede e, assim, há uma maior dependência entre todos para obtenção do resultado final).

Em razão disso, haverá uma diferenciação na coesão social, mecânica quando se compartilham os mesmos valores e crenças, naturalmente, em comparação com a coesão social da solidariedade orgânica, porquanto não originária, adstrita, em decorrência, às regras de comportamento para regulação de direitos e deveres, sendo fundamentais as normas jurídicas. Logo, cabível examinar a sociedade moderna em uma visão de solidariedade social-jurídica. Nesse sentido, Durkheim (2004, p. 31) afirma que o direito é o símbolo visível da solidariedade social e que quanto mais os membros de uma sociedade são solidários, maior o número de relações diversas entre eles, pois se os encontros fosse raros, o grau de dependência diminuiria muito, tornando fraca a solidariedade. Dessa maneira, Durkheim (2004) conecta a vida social principalmente ao direito, incluindo os costumes ou os considera secundários:

De fato, a vida social, onde quer que exista de maneira duradoura, tende inevitavelmente a tomar uma forma definida e a se organizar, e o direito nada mais é que essa mesma organização no que ela tem de mais estável e de mais preciso. A vida geral da sociedade não pode se estender num ponto sem que a vida jurídica nele se estenda ao mesmo tempo e na mesma proporção. Portanto, podemos estar certos de encontrar refletidas no direito todas as variedades essenciais da solidariedade social. [...] Normalmente, os costumes não se opõem ao direito, mas, ao contrário, são sua base. [...] Portanto, se pode haver tipos de solidariedade social que tão-somente os costumes manifestam, esses tipos são bastante secundários; ao contrário, o direito reproduz todos os que são essenciais, e são eles os únicos que precisamos conhecer. (p. 32)

Nesse cenário, Durkheim (2004, p. 216) conclui a primeira parte da obra, mais relacionada ao estudo da solidariedade, propondo que “a vida social deriva de uma dupla fonte: a similitude das consciências e a divisão do trabalho social”. A pessoa é socializada no caso da similitude, porque, não tendo individualidade própria, confunde-se à coletividade, com seus semelhantes, sendo que no caso da divisão do trabalho, por haver uma distinção dos demais, depende deles justamente por isso e tal aspecto da sociedade resulta em união de esforços pelo bem comum.

A fim de se de ampliar o foco de uma visão solidarista, mesmo sabendo que é passível de críticas dentro de um ordenamento jurídico mais formal, há exemplo judicial, citado por Maximiliano (2017, p. 87), na sua obra sob o título da “jurisprudencia sentimental”. Trata-se do magistrado francês, Paulo Magnaud (1848-1926), conhecido como “o bom juiz Magnaud”, o qual, chocando os parâmetros da época, era famoso pelas decisões polêmicas, porém imbuídas de juízos de solidariedade e humanidade. Sob um olhar amplo do contexto histórico, percebe-se uma preocupação solidarista do magistrado, em uma visão da sociedade como um todo, em detrimento do mero caráter individualista das ações. Apenas a título exemplificativo, ao julgar uma mulher (Luisa Ménard) que furtou pães em uma padaria, Magnaud considerou os aspectos sociais: filho de 2 anos e estava desempregada. Entendeu o juiz que a sociedade deveria, coletividade, propiciar elementos para que a mãe pudesse dar sustento ao seu filho.

Em função disso, absolveu Luisa, com base na coação irresistível (art. 64 do Código Penal francês), tendo a sentença confirmada em grau recursal. Mesmo assim, houve grande repercussão na sociedade francesa, dada a visão individualista e repressiva da época. O desemprego ou o trabalho indigno viola o dever jurídico de solidariedade dos particulares e do Estado com os particulares, de forma que é uma responsabilidade social a busca de patamares mínimos de valorização para todos.

E um dos pontos necessários de avanço da solidariedade é a conexão com o direito ao trabalho, a fim de superar a indiferença na relação entre prestador e tomador de serviços (nas diversas formas de vínculo estabelecido, inclusive, de emprego), e assim a solidariedade pautar o agir humano com intuito de concretizar uma responsabilidade social, apta a banir qualquer tipo de comportamento empresarial não solidarista com o trabalhador e, logo, distante da precarização do ser humano, como a escravidão contemporânea. Por intermédio do reconhecimento do valor absoluto da dignidade da pessoa humana, dos direitos fundamentais e dos preceitos de justiça distributiva e social, dando sentido à funcionalização social dos institutos de Direito Privado, Cardoso (2010, p. 1) sustenta a “solidariedade como possível solução para uma sociedade desigual e injusta”.

Portanto, a relação de trabalho não precisa ser vista como uma relação de polos antagônicos, mas, sim, interdependentes e complementares, com igual importancia enquanto seres humanos integrados a uma sociedade. A solidariedade pode ser o norte que impregna o ambiente laborativo e estimula a cooperação de ambas partes, no intuito de uma convivência produtiva e realizadora dos valores sociais e da libre iniciativa, para que as atuais e futuras gerações seja mais humanizada, implicando uma vida digna a todos.

3 A SOLIDARIEDADE SOCIAL COMO REFERENCIAL FUNDAMENTAL DE DIREITOS HUMANOS E DO DIREITO AO TRABALHO

Albert Einstein, na obra Escritos da Maturidade, na publicação da Editora Nova Fronteira, tratou de temas importantes, como ética, religião, racismo, educação e relações sociais e, especialmente, defendeu a ideia de um socialismo centrado na liberdade. Liberdade que é justamente o contraponto da escravidão contemporânea, que afeta o que há de mais caro ao ser humano, que é a sua dignidade.

E como afirma Einstein, a respeito de opinar sobre questões sociais, explicando que há um método essencial a ser seguido em qualquer área do conhecimento e responde se seria aconselhável alguém que não é especialista, responder questões econômicas e sociais, ao dizer que “Por uma série de razões, acredito que sim. Primeiramente, consideremos a questão do ponto de vista do conhecimento científico” (Einstein, 1994, p. 129).

A respeito de uma visão solidarista, Einstein (1994) analisa a crise do “nosso tempo” (ainda continua muito atual), mencionando que tal crise está ligada às relações das pessoas com a sociedade e faz uma crítica ao egoísmo, pregando a devoção à sociedade como sentido da vida:

O indivíduo tornou-se mais consciente que nunca de sua dependência para a com a sociedade. Não vive essa dependência, contudo, como uma vantagem, um vínculo orgânico, uma força protetora, mas antes como uma ameaça a seus direitos naturais, ou até a sua existência econômica. Além disso, sua posição na sociedade é tal que as tendências egoístas de sua constituição vão sendo constantemente acentuadas, ao passo que suas tendências sociais, por natureza mais fracas, deterioram progressivamente. [...] Prisioneiros de seu egoísmo sem o saber, sentem-se inseguros, solitários e privados da pura alegria de viver, simples e sem sofisticação. O homem só pode encontrar sentido na vida, breve e perigosa como é, devotando-se à sociedade. (p. 133)

Na referida obra, Einstein (1994, p. 135) correlaciona a forma do sistema de trabalho capitalista vigente como origem do mal social, ao mencionar que “a anarquia econômica da sociedade capitalista tal como ela existe hoje é, na minha opinião, a verdadeira fonte do mal” (p. 134), e explica as razões quando refere que há uma “oligarquia do capital privado, cujo enorme poder não pode ser efetivamente controlado nem mesmo por uma sociedade política democraticamente organizada”, já que há o financiamento, ainda que indireto, de campanhas eleitorais e “a consequência é que os representantes do povo não protegem suficientemente, de fato, os intereses dos setores desfavorecidos da população” (Einstein, 1994, p. 135).

Outro aspecto destacado por Einstein (1994, p. 136) é a questão da educação, hoje voltada para uma atitude exageradamente de competição entre os alunos, com o culto do sucesso material. Sustenta o cientista que a educação, além do desenvolvimento das habilidades inatas do ser humano, “buscaria desenvolver nele um senso de responsabilidade por seus semelhantes, no lugar da glorificação do poder e do sucesso de nossa sociedade atual” (Einstein, 1994, p. 136).

Os escritos de Einstein (1994) foram publicados há décadas, mas continuam atuais pela constante necessidade de crescimento da sociedade e do respeito aos direitos humanos e à uma vida digna de trabalho e manutenção econômica. Expressiva a mensagem que Einstein (1994) deixou para a posteridade, a fim de que a sociedade tenha um olhar mais inteligente e voltado para todos, com a produção de algo útil para a comunidade:

Nosso tempo é rico em mentes inventivas, cujos inventos poderiam facilitar consideravelmente as nossas vidas. [...] No entanto, a produção e distribuição de bens está inteiramente desorganizada, de tal modo que todos têm de viver no temor de ser eliminados do ciclo econômico e, com isso, ver-se privados de tudo. Mais ainda, pessoas que vivem em diferentes países matam umas às outras a intervalos irregulares de tempo, de tal modo que, também por essa razão, todo aquele que pensa no futuro está condenado a viver no medo e no terror. Isso acontece porque a inteligência e o caráter das massas são incomparavelmente inferiores à inteligência e ao caráter dos poucos que produzem algo de valioso para a comunidade.

Nesse contexto, percebe-se a importância da solidariedade social como elemento fundante da sociedade, a fim da proteção dos direitos humanos e do direito ao trabalho. É preciso humanizar o ser humano e fazer com que o discurso solidarista seja algo praticado constantemente na vida dos atores sociais. Assim, Arendt (2003) enfatiza a necessidade de aprendermos a ser humanos, razão pela qual a solidariedade é essencial:

O mundo não é humano simplesmente por ser feito por seres humanos e nem se torna humano simplesmente porque a voz humana nele ressoa, mas apenas quando se transforma em objeto de discurso. [...] Nós humanizamos o que se passa no mundo e em nós mesmos apenas falando sobre isso, e no curso desse ato aprendemos a ser humanos. Esse humanitarismo a que se chega no discurso da amizade era chamado pelos gregos de filantropia, o amor do homem, já que se manifesta na presteza em compartilhar o mundo com outros homens. (p. 31)

O projeto solidarista depende de visão positiva da solidariedade social, com esclarecimento das diferenças e compreensão mútua para entendimento, não bastando uma ótica negativa, de abstenção de atitudes não solidárias. É inadiável a busca pela evolução mundial da sociedade como um todo, apta a resultar em algo, como diz Arendt (2003, p. 64), “mais promissor do que um tremendo aumento do ódio mútuo e uma irritabilidade um tanto universal de todos contra todos, então é preciso que ocorra um processo em escala gigantesca de compreensão mútua e progressivo autoesclarecimento”.

E essa compreensão recíproca exige a inclusão do outro, no âmbito de uma sociedade pluralista, com inúmeros contrastes multiculturais e numa comunidade de riscos. Por isso, a visão da solidariedade social como elemento fundamental de direitos humanos e do direito ao trabalho ganha relevo, merecendo destaque a defesa de Habermas (2002, p. 7) de um “conteúdo racional de uma moral baseada no mesmo respeito por todos e na responsabilidade solidária geral de cada um pelo outro”. A marca da sensibilidade das diferenças e, em consequência, a inclusão e o respeito pelo Outro é elementar na noção de solidariedade social (por exemplo, coisificar uma pessoa, seja trabalhadora, ou não, é demonstração de total desrespeito ao Outro). Nesse contexto, Habermas (2002) exalta o “nós”, ao invés do “eu”, em uma sociedade complexa e de riscos:

O mesmo respeito para todos e cada um não se estende àqueles que são congêneres, mas à pessoa do outro ou dos outros em sua alteridade. A responsabilidade solidária pelo outro como um dos nossos se refere ao “nós” flexível numa comunida de que resiste a tudo o que é substancial e que amplia constantemente suas fronteiras porosas. (...) Antes, a “inclusão do outro” significa que as fronteiras da comunidade estão abertas a todos - também e justamente àqueles que são estranhos um ao outro - e querem continuar sendo estranhos. (grifos do autor) (pp. 7-8)

Dessa maneira, a consideração do Outro implica se responsabilizar pela evolução social e, particularmente, no campo do direito do trabalho, “a precarização desse direito compensador e tuitivo caminha na contramão da história, justamente quando o direito privado se direciona inexoravelmente para o lado social” (Camino, 2003, p. 41). Assim, o empreendedor deve estar imbuído da solidariedade social para conviver em uma sociedade plural e igual.

Da mesma forma, o Estado detém responsabilidade social para contribuir com a superação das desigualdades sociais e a garantia de acesso a todos ao mercado de trabalho digno, já que o direito do trabalho surge na perspectiva dos direitos fundamentais com a progressiva intervenção estatal para atenuar as tais desigualdades e proteger a autonomia da vontade, porquanto esta é relativa dada a necessidade de sobrevivência dos trabalhadores que, pelo menos em sua maioria, tudo aceitariam para se manter vivos, mesmo que isso implicasse falta de dignidade de condições de trabalho.

Isso porque, como assevera Sampaio Rossi (2019, p. 216) pela lógica do Direito Privado, o “capitalismo concorrencial entrega, aos sujeitos da esfera privada, a capacidade e a autonomia para regular as relações entre particulares”. No entanto, nas relações laborais essa lógica não se aplica, na medida em que uma das partes está em condição desigual. Do contrário, se permitiria a exploração do trabalho humano tal e qual ocorria na época da escravidão, violando, assim, os direitos humanos e fundamentais.

O incremento dos direitos humanos e a noção de desigualar os desiguais são caminhos para a solidariedade social. Como esclarece Camino (2003), a luta pelas conquistas sociais é uma tarefa de todos:

Temos de enfrentar a tarefa de direcionar o direito do trabalho, extraído a fórceps do ventre do Estado Liberal Burguês, para a pessoa humana do trabalhador, enfatizando seu lado tuitivo. Esse instigante desafio conclama os legisladores, os governantes, os operadores do direito e, fundamentalmente, aqueles segmentos sociais diretamente envolvidos - empreendedores da atividade econômica e a trabalhadores, estes últimos alicerçados no testemunho da História, onde ocupan lugar proeminente nas lutas pelas conquistas sociais da Humanidade. Mais do que nunca, a ideia de desigualar os desiguais, como síntese de Justiça, deberá prevalecer numa nova e mais abrangente visão. (p. 42)

Na perspectiva da responsabilidade estatal, inclusive pela imposição da solidariedade para atingir valores fundamentais, Reis e Freitas (2017, p. 77) afirmam que a solidariedade “pode decorrer do sentimento de pertencimento e de responsabilidade para com a coletividade, ou, na ausência desse sentimento, pode ser imposta pelo Estado, visando assegurar o bem comum de todos”. Logo, incumbe ao Estado o desenvolvimento de políticas públicas de pertencimento, de inclusão de todos e de acesso aos bens essenciais, no intuito de se galgar a concretização do valor solidariedade.

A solidariedade é um elemento fundamental para a realização do direito ao trabalho, junto com os demais princípios constitucionais e específicos do direito do trabalho, conforme destacam Reis e Freitas (2017):

A efetivação do direito fundamental ao trabalho, em sua acepção mais ampla, ainda encontra obstáculos, tendo em vista a inobservância aos princípios constitucionais e princípios específicos do direito laboral, bem como em decorrência da inobservância do princípio da solidariedade. (p. 80)

Outro ponto relevante que merece abordagem é a necessidade de se evitar a solidariedade às avessas, isto é, quando os empreendedores exigem atitudes solidárias dos ex-trabalhadores em benefício exclusivo da empresa, mas em detrimento da coletividade. Dowbor (2017) cita tais situações que fogem do controle estatal:

A rigorosa proibição dos empregados de divulgarem o que se passa no interior do grupo, inclusive depois de dele saírem; a justificativa do segredo sobre os processos tecnológicos; a perseguição que sofrem os eventuais whistleblowers - empregados que denunciam atividades prejudiciais aos consumidores ou ao meio ambiente - tudo isso gera um ambiente fechado, sem nenhum controle externo ou transparência. (p. 74)

Nessa linha de raciocínio, a mera lógica de lucro a qualquer custo tem de ser banida, ante o valor social do trabalho e os demais valores constitucionais da sociedade, em prol do respeito aos direitos humanos e na prevalência da solidariedade social. Tal visão meramente especulativa e financeira ficou mais nítida pelo desenvolvimento de inúmeros atravessadores na cadeia produtiva, tornando o capital improdutivo, como pondera Dowbor (2017):

O poder dos intermediários tornou-se planetário. São poucos grupos sistemáticamente significativos e a manipulação de preços se torna perfeitamente factível. [...] Aqui estamos claramente evoluindo para o que em outros trabalhos temos chamado de “economia de pedágio”, onde os maiores prejudicados são os produtores de um lado, e os consumidores de outro. Trata-se realmente de uma nova arquitetura de poder. Essa extrema concentração do poder financeiro em poucas mãos se dá de forma muito capilarizada. A partir de uma densa rede articulada e online, cobre-se milhões de pontos de captação de recursos, em todas as partes do mundo, por meio de coisas simples; (...) na falta de controle sobre os impactos sociais, ambientais ou até de respeito aos direitos humanos que geram custos assumidos pela sociedade (as chamadas “externalidades”, veja-se o exemplo da Samarco em Mariana, Minas Gerais). (p. 112)

Desse modo, a produção da mais-valia atualmente está absorvida, na maior parte, não pelo produtor ou pelo trabalhador, mas, sim, pelos intermediários, os quais constituem oligopólios, não submetidos a nenhum controle, porém com um poder paralelo e uma tentativa constante de captura dos poderes instituídos, da mídia e das organizações internacionais. Por isso, houve o deslocamento do lucro dos produtores para os intermediários (cobradores de pedágio), de forma que a “grande economia” como adverte Dowbor (2017, p. 113) dispõe “com as tecnologias modernas e o dinheiro eletrônico representado por sinais magnéticos, de fios dentro do bolso de cada um de nós. Tornou-se um mecanismo sistêmico de extração de mais-valia”.

Portanto, pensar a solidariedade social como elemento fundamental de direitos humanos e do direito ao trabalho é uma ação que transcende a interação entre particulares e, mesmo, a relação entre Estado e particulares, porquanto há que se considerar a realidade dos grandes e poderosos conglomerados econômicos, muitas vezes meros intermediários da atividade produtiva, e que exige investimento em educação e a presença de respeito mútuo, de forma que todos sejam responsáveis sociais, por intermédio de políticas públicas, na construção de uma sociedade mais livre, igual e solidária.

4 A FRATERNIDADE NO PREÂMBULO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA DE 1988 E A SOLIDARIEDADE COMO SEU OBJETIVO FUNDAMENTAL

O preâmbulo da Constituição brasileira de 1988 contextualiza o Estado Democráticoem uma sociedade fraterna, pluralista, sem preconceitos e fundada na harmonia social. É objetivo fundamental da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária (Constituição do Brasil, Art. 3º, I, 1988). Percebe-se, desse modo, que o constituinte estabeleceu um novo paradigma para o sistema jurídico, qual seja a solidariedade.

Quanto a este novo paradigma constitucional, irradiando efeitos para todos os campos, inclusive para o direito privado e, logo, para a relação entre empregador e trabalhador, Reis e Pereira (2017) destacam:

O princípio da solidariedade, a partir da Constituição Federal de 1988, surge como um fio condutor de todas as relações jurídicas sociais, e com a oxigenação do ordenamento jurídico sofrida pelo fenômeno da constitucionalização do direito privado, o instituto também passou a ser vislumbrado em todas as relações interprivadas. (p. 11)

Nesse contexto, a solidariedade não servirá como mero vocábulo com viés programático-constitucional, mas, sim, elemento de efetivação da constitucionalização do direito privado, apto a orientar o intérprete na colisão de direitos dos particulares, como afirmam Reis e Pereira (2017):

Assim, a partir das novas normas festejadas pela Constituição, e também com o advento do fenômeno da constitucionalização do direito privado, onde as normas privadas devem estar em conformidade com a lei maior, e o processo interpretativo deve levar ambas lado a lado em um conflito entre particulares. E é nesse âmbito que o princípio da solidariedade deve estar sempre presente, com atribuição do seu verdadeiro sentido e fazendo parte da pré-compreensão do intérprete, que a sustentará nesse processo. (p. 19)

O paradigma da solidariedade orienta a sociedade brasileira à colaboração mútua para o bem-comum, no intuito de se instituir um Estado Democrático, com desenvolvimento de todos, igualdade material e justiça social, erradicando-se, em consequência, qualquer comportamento hostil e de desprezo pelo ser humano. Por isso, sendo a solidariedade a expressão mais aguda da sociabilidade do ser humano, Cardoso (2010, p. 93) afirma que “não por outro motivo, a Constituição de 1988 exige que nos ajudemos mutuamente, conservando nossa humanidade, porque a construção de uma sociedade livre, justa e solidária cabe a absolutamente todos, sem exceção”.

Percebe-se que o constituinte inaugurou na ordem jurídica brasileira um novo princípio, apto a produzir efeitos em todo o sistema jurídico, dando novos ares para a interpretação jurídica e, também, para o Poder Executivo, na preparação e execução de medidas governamentais que impliquem redução das desigualdades sociais e maior índole coletiva e integrativa de todos. A expressa referência à solidariedade por iniciativa do Constituinte, orientando todos os membros da sociedade, como pontua Moraes (2003, pp. 110-111), “estabelece em nosso ordenamento um princípio jurídico inovador, a ser levado em conta não só no momento da elaboração da legislação ordinária e na execução de políticas públicas, mas também nos momentos de interpretação e aplicação do Direito”.

Dessa forma, afastando-se do viés patrimonial e individualista, está cristalizada a mudança topográfica dos objetivos fundamentais da República e a instauração de uma nova ordem paradigmática, a qual, com esteio no artigo 1º, III, da Constituição de 1988, faz preponderar a existência humana, denotando a solidariedade social, ao mesmo tempo, um direito e um dever de todos, enquanto princípio jurídico, mas, igualmente, um valor ético, embasado na fraternidade estabelecida no preâmbulo constitucional.

Constituindo a dignidade da pessoa humana o ponto central, a positivação da solidariedade, enquanto valor e princípio (ainda que implícito), conduz à responsabilidade social, conforme Cardoso (2010):

Assim, o princípio da solidariedade impinge ao particular alta dose de responsabilidade social e difusa, conduzindo o comportamento humano à evolução da consciência. Aliás, por essa consciência é que o valor da solidariedade, positivado implicitamente na Constituição como princípio, constitui um fenômeno totalmente moral, cujo símbolo é o direito. Essa é a condição evidente e necessária para a coesão social e quanto mais os membros de uma sociedade são solidários, mais mantêm relações diversas seja uns com os outros, seja como o grupo tomado coletiva e difusamente. (p. 136)

A positivação no texto constitucional da exigência de solidariedade como fundante do Estado Democrático de Direito implica repercutir tal aspecto em todos os ramos do direito e “deveras, sendo a Constituição a lei de todas as leis que o Estado produz, os valores nela positivados são também os valores de todos os valores que as demais leis venham a positivar” (Britto, 2012, p. 88). Dessa forma, a Constituição segue de referência para todo sistema jurídico e ganha importância a solidariedade estar nela cristalizada, dizendo, com isso, que a sociedade deve considerar este valor como condutor e estruturador da justiça social. Por isso, Britto (2012, p. 89) destaca o chamado Dirigismo constitucional ou Constituição dirigente, “a significar um tipo de Direito que atua no centro do poder político para conduzi-lo. Vinculá-lo com todo rigor ou sem possibilidade de escape. Imperativamente, por conseguinte”.

Além do dirigismo constitucional pela fraternidade e solidariedade, mencionados no preâmbulo e objetivos fundamentais, há outras referências no texto da Constituição. A título de exemplo, sob um viés de seguridade social e de financiamento de benefícios, mas no contexto da solidariedade, Schwarz (2008) afirma:

Nesse contexto, (...), à luz dos ideais de fraternidade e de solidariedade, pautados na ideia de igualdade entre os homens, que o sistema de seguridade social brasileiro, tal como concebido no ordenamento jurídico imposto pela Constituição de 1988, pauta-se em uma ideia de solidariedade que é inerente ao “Estado Providência” e à social-democracia, que, ao contrário do que faz supor o senso comum, se fundamenta a partir do reconhecimento da desigualdade entre os homens, os quais, vivendo em sociedade, obrigam-se, independentemente de sentimentos altruistas ou de verdadeiros propósitos caritativos, a concorrer para o financiamento de benefícios postos à disposição de toda a sociedade, inclusive à disposição daquelas pessoas que, não possuindo capacidade contributiva, não contribuíram para o financiamento desses mesmos benefícios.

Além disso, (...), no que diz respeito ao custeio desses mesmos benefícios, cujo ônus recai, a partir de 1988, sobre toda a sociedade (implicando limitações ao direito de propriedade), deve-se atentar para a efetiva existência de um principio estrutural de solidariedade fiscal, solidariedade que se consubstancia na imposição legal (constitucional), e não moral, de pagamento de contribuições que financiem a atividade estatal, em prol de toda a coletividade. (grifo do autor)

No caso, trata-se da imposição constitucional de solidariedade pela via do pagamento de contribuições. Nem sempre contar com a natureza humana resolve o problema da falta de visão solidária, porquanto o ser humano parece não refletir que atitudes egoístas possuem um efeito bumerangue na comunidade, sendo que outros seres vivos, mesmo não dotados de razão, muitas vezes, demonstram modo de agir mais preservadores nas suas interações. Desse modo, o ser humano se torna mais irracional que o animal. Nessa perspectiva, sob uma análise biológica, quando refere que até mesmo certas espécies de animais já se comportam com procedimentos solidários e que preservam a continuidade da vida, oportuna a observação de Waal (2010>):

Se parte do outro reside em nós, se nos sentimos unidos a ele como se fôssemos um só, então o ato de melhorar a vida do outro automáticamente repercute dentro de nós. E pode ser que isso não seja verdade somente em relação aos humanos. É difícil ver por que razão um macaco escolheria sistemáticamente os resultados pró-sociais, em vez dos resultados egoístas, se não houvesse algo intrinsecamente recompensador em relação aos primeiros. (p. 169)

Caso não se construa a solidariedade apenas pela mudança de paradigma interno do ser humano, pela via da racionalidade, em olhar para o próximo, ao menos, como base inicial, há a previsão constitucional estimuladora de políticas públicas que incrementem condutas solidárias. Conforme Hesse (1998, p. 176) “a atividade configuradora e concedente dos poderes estatais deve servir, à frente do objetivo, ao asseguramento da existência digna de um ser humano. Ela destina-se à igualdade no sentido de coordenação social”.

Assim, a solidariedade é uma das bases da organização da sociedade, sendo que Afonso da Silva destaca o pioneirismo da Constituição Federal de 1988, ao elencar os objetivos fundamentais:

É a primeira vez que uma Constituição assinala, especificamente, objetivos do Estado brasileiro, não todos, que seria despropositado, mas os fundamentais, e, entre eles, uns que valem como base das prestações positivas que venham a concretizar a democracia econômica, social e cultural, a fim de efetivar na prática a dignidade da pessoa humana. (Da Silva, 2014, pp. 109-110)

Avançando nas formas de interação humana, destaca-se uma das principais e correntes da vida em sociedade, apta a ensejar uma existência digna, a relação de trabalho entre iguais, enquanto seres humanos e distante de qualquer forma de coisificação. Nesse aspecto, correlacionando a solidariedade e o direito fundamental ao trabalho, em uma sociedade pluralista e que busca o bem de todos, Reis e Freitas (2017) afirmam:

Consoante a Constituição Federal de 1988, o direito fundamental ao trabalho consta como direito social, sendo assim correlacionado com o princípio da solidariedade, tendo em vista encontrar-se no Capítulo II (Dos Direitos Sociais) da carta magna. Nesta linha, salienta-se que a solidariedade busca asegurar o bem de todos, deixando de lado o individualismo e visando ao bem-estar da coletividade. As normas trabalhistas surgiram com a necessidade de a coletividade, nesse caso, trabalhadores, passarem a ter seus direitos protegidos, proibindo os empregadores de utilizarem, de modo exaustivo e mal remunerado, a mão de obra dos funcionários. (p. 64)

Os direitos fundamentais estão vinculados à ideia de proteção e reconhecimento por normas positivadas e, segundo Sampaio Rossi (2019., p. 220) sua composição “implica um conjunto de prerrogativas, reconhecidas pela ordem jurídica e constitucional de um Estado concreto e determinado, voltadas para o reconhecimento e proteção das dimensões de liberdade, igualdade e dignidade”.

Dessa maneira, a Constituição Federal de 1988, com a mudança topográfica dos direitos fundamentais, inaugura uma nova ordem jurídica, a qual tem por norte uma sociedade fraterna, calcada na dignidade da pessoa humana e no objetivo fundamental de construir a solidariedade entre todos e que busca tornar a vida mais humanizada e reciprocamente valorizada. E para tanto, há que se dar efetividade ao princípio da solidariedade, não bastando a importante, mas insuficiente (enquanto não vivenciada), previsão constitucional, isto é, precisa-se passar do plano normativo regulativo para a concretização no plano da realidade, como afirma Barroso (1992), ao dar o sentido do que se deve entender por efetividade:

Disto resulta que o Direito Constitucional, tanto como os demais ramos da ciência jurídica, existe para realizar-se. Vale dizer: ele almeja à efetividade. Efetividade, (...), designa a atuação prática da norma, fazendo prevalecer, no mundo dos fatos, os valores por ela tutelados. Ela simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social. Ao ângulo subjetivo, efetiva é a norma constitucional que enseja a concretização do direito que nela se substancia, propiciando o desfrute real do bem jurídico assegurado. (p. 119)

No mesmo sentido, a respeito da efetividade da solidariedade social, Moraes (2003, pp. 116-117) destaca que não se confunde com ação caridosa, pois é um principio geral do ordenamento jurídico, com força normativa e que deve ser observado por todos que integram a comunidade.

E a concretização da solidariedade social, mais comumente presente nos planos local e nacional, e prevista no texto constitucional, tem que superar os limites das barreiras para o universal, não podendo ceder ao fenômeno globalização, como pondera R. Leal (2006):

Em face destas particularidades, este fenômeno se contrapõe aos laços de solidariedade social existentes nos planos local e nacional, fragilizando com algunas tradições e crenças das Idades Moderna e Contemporânea, dentre as quais o de Estado-Nação, Soberania e, o próprio conceito de Federação, ao menos em suas feições mais tradicionais.[...] Trata-se agora de um processo que engloba, em seu movimento, o local e o global combinados, porém, com perversos efeitos para o local, já que ele, em regra, tende a perder suas feições e identidades próprias. (p. 186)

Nesse ponto, e indo além em termos da noção de solidariedade, Derrida defende “uma solidariedade mundial que não seja simplesmente uma solidariedade entre os cidadãos, mas que poderia ser também uma solidariedade dos seres vivos” (Derrida, 2001). Relevante a construção de Derrida no aspecto, porquanto propõe o respeito a todos os seres vivos, independentemente da condição de cidadão, ou não, para merecer a conduta solidária, dotada de hospitalidade, e afastada de intereses meramente econômicos.

Desse modo, o pensamento do referido autor amplia a noção de solidariedade, a fim de que todos os seres viventes sejam contemplados, sem excluir, por exemplo, o estrangeiro que visita um país. Há sentido na colocação de Derrida, porquanto se levar em conta que o ser humano convive com os animais, integrando um complexo de biodiversidade, ações solidárias com todos os seres vivos são necessárias, até como forma de preservação da natureza para o bem-estar atual e das próximas gerações - a incumbência é dos seres humanos, já que dotados de razão.

A respeito dessa “obrigação social”, Hesse (1998, p. 175), afirma que o estado de direito social fundamenta a obrigação da coletividade diante de seus membros e, também, dos membros da coletividade entre si. Dessa maneira, e buscando evitar “um sentimento de desconsideração e exclusão social” (Leal, 2006, p. 187), todos devem assumir a responsabilidade social, se solidarizando com o Outro.

Portanto, o projeto solidarista, fundado nos princípios constitucionais fundamentais, gradualmente principia a sua realização, por meio de normas ou com destinação de recursos, a fim de reduzir as desigualdades (Moraes, 2003, pp. 114-115). Tal projeto constitucional endossa o discurso solidarista e fornece elementos consistentes para se sustentar a solidariedade como pilar social, jurídico e ético capaz de estruturar a erradicação do trabalho escravo contemporâneo, na medida em que o Constituinte sinalizou ao legislador ordinário e ao intérprete do Direito o caminho a ser seguido. Portanto, que a dor, nem o injusto, pareça ao ser humano indiferente, e que na caminada de evolução social se consiga preencher o vazio do egoísmo com o suficiente em solidariedade, de forma que se veja o Outro como igual e, jamais, como um subjugado.

CONCLUSÕES

Tendo como norte o problema de pesquisa (a contribuição do princípio da solidariedade social como um referencial estrutural para erradicação do trabalho escravo contemporâneo), denota-se que a relação de trabalho não precisa ser vista como uma relação de polos antagônicos, mas, sim, interdependentes e complementares, com igual importância enquanto seres humanos integrados a uma sociedade. A solidariedade pode ser o norte que impregna o ambiente laborativo e estimula a cooperação de ambas partes, no intuito de uma convivência produtiva e realizadora dos valores sociais e da livre iniciativa, para que as atuais e futuras gerações seja mais humanizada, implicando uma vida digna a todos. Portanto, pensar a solidariedade social como elemento fundamental de direitos humanos e do direito ao trabalho é uma ação que transcende a interação entre particulares e, mesmo, a relação entre Estado e particulares, porquanto há que se considerar a realidade dos grandes e poderosos conglomerados econômicos, muitas vezes meros intermediários da atividade produtiva, e que exige investimento em educação e a presença de respeito mútuo, de forma que todos sejam responsáveis sociais, por intermédio de políticas públicas, na construção de uma sociedade mais livre, igual e solidária.

Dessa maneira, o projeto constitucional endossa o discurso solidarista e fornece elementos consistentes para se sustentar a solidariedade como pilar social, jurídico e ético capaz de estruturar a erradicação do trabalho escravo contemporâneo, na medida em que o Constituinte sinalizou ao legislador ordinário e ao intérprete do Direito o caminho a ser seguido.

Esses elementos estruturais são essenciais na erradicação do trabalho escravo contemporâneo, exigindo medidas de políticas públicas, orientadas pelo viés da solidariedade social, na perspectiva de um trabalho digno e universalizável focado na pessoa humana como valor primordial e o capital como meio, sob uma ótica solidária, para ser alcançado um trabalho em condições de bem-estar social. Logo, que a dor, nem o injusto, pareça ao ser humano indiferente, e que na caminhada de evolução social se consiga preencher o vazio do egoísmo com o suficiente em solidariedade, de forma que se veja o Outro como igual e, jamais, como um subjugado.

Por fim, a hipótese foi confirmada neste trabalho, de forma que, com a premissa da solidariedade social-jurídica e dos direitos humanos, é possível construir uma base sólida, por intermédio, inclusive, de uma política pública em prol da igualdade, da liberdade e do trabalho digno, como referencial teórico-estrutural de medidas em prol da erradicação do trabalho escravo.

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[27] Waal, F. (2010). A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais gentil. Companhia das Letras. [ Links ]

1 Tradução livre: “o homem não é homem senão pela sociedade, a qual, por seu lado, não se sustenta senão pelo equilíbrio e harmonia das forças que a compõem”

2Tradução livre: [...] O estado é uma criação de homens: o direito superior do estado sobre os homens não pode existir; não há direitos onde não há seres, no sentido natural e pleno da palavra, que possam se tornar sujeitos desses direitos. (...) Como o Estado, a forma política do grupo humano, a sociedade, isto é, o próprio grupo, não é um ser isolado, além dos indivíduos que o compõem, uma existência real e poder ser objeto de direitos particulares e superiores opostos aos direitos dos homens. Não é, portanto, entre o homem e o estado ou sociedade que surge o problema do direito e do dever; é entre os próprioshomens, mas entre homens concebidos como associados a um trabalho comum e obrigados um ao outro pela necessidade de um objetivo comum. Não se trata de definir os direitos que a sociedade pode ter sobre os homens, mas os direitos e deveres mútuos que o fato da associação cria entre os homens, os únicos seres reais, os únicos sujeitos possíveis de um direito e um dever. (grifou-se)

3Tradução livre: “a noção igualmente abstrata e a priori do Estado, isolado do homem e oposto a ele como um sujeito de direitos distinto ou como um poder superior ao qual ele estaria subordinado”).

Cómo citar: Reis, S. da S., & Jaques, G. (2022). El principio de la solidaridad social como un referente teórico-estructural en la erradicación del trabajo esclavo contemporáneo. Opinión Jurídica, 21(44), 279-301. https://doi.org/10.22395/ojum.v21n44a14

Recebido: 09 de Novembro de 2020; Aceito: 03 de Maio de 2021

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