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Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud

versão impressa ISSN 1692-715Xversão On-line ISSN 2027-7679

Rev.latinoam.cienc.soc.niñez juv v.6 n.2 Manizales jul./dez. 2008

 

 

 

Primera Sección: Teoría y metateoría

 

 

Discursos sobre juventude e práticas psicológicas: a produção dos modos de ser jovem. Brasil *

 

Discursos sobre juventud y prácticas psicológicas: la producción de los modos de ser joven. Brasil

 

Discourses on youth and psychological practices: the production of ways of being young. Brazil

 

 

 

Zuleika Köhler Gonzales1, Neuza Maria de Fátima Guareschi 2

1 Professora colaboradora da Faculdade de Tecnologia no Transporte FATTEP e do Instituto de Pastoral de Juventude Porto Alegre. Mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, Correo electrónico: zuleika3012@yahoo.com.br

2 Professora/Pesquisadora do Programa de Pós - Graduação em Psicologia da PUCRS, Coordenadora do Grupo de Pesquisa "Estudos Culturais e Modos de Subjetivação". Doutora em Educação pela University of Wisconsin-Madison Correo electrónico: nmguares@pucrs.br

 

 

Primera versión recibida marzo 26 de 2008; versión final aceptada julio 24 de 2008 (Eds.)


 

Resumo:

O jovem tem sido foco de atenção de instituições sociais, sejam públicas ou privadas. Nos discursos da sociedade sobre essa população, o jovem aparece associado, mais recentemente, à idéia de inserção nos processos sociais. No campo acadêmico, vê-se uma grande produção de pesquisas e de conhecimento em torno da juventude. Nas produções de conhecimento sobre a juventude, circula um discurso de "preocupação" com relação aos jovens no tocante à sua integração na ordem social, envolvendo a produção econômica e a constituição familiar. Assim, neste artigo, nos remetemos às concepções de juventude que foram sendo veiculadas em diferentes momentos sociais e a como foi se visibilizando um determinado discurso sobre a categoria juventude, articulado à noção de problema. Buscamos discutir a implicação do modo como as práticas psicológicas foram prescrevendo e legitimando esse discurso e como os jovens estão sendo afetados por determinadas práticas sociais presentes no contemporâneo, gerando diferentes formas de subjetivação que, por sua vez, serão pensadas, investidas e implicadas em relações de poder e verdade, sustentadas por saberes, como, por exemplo, o psicológico. Ainda, procuramos evidenciar como esses sujeitos, neste contemporâneo, estão sendo foco de investimento do mercado capitalista como consumidores potenciais.

Palavras-chave: juventude, história, contemporâneo, práticas psicológicas.

 


Resumen:

La persona joven ha sido centro de atención por parte de las instituciones sociales, tanto públicas como privadas. En los discursos de la sociedad sobre esta población, el joven o la joven se asocia, actualmente, a la idea de inserción en los procesos sociales. En el campo académico, se percibe una importante producción de investigaciones y de conocimiento acerca de la juventud. En las producciones del conocimiento sobre la juventud circula un discurso de "preocupación" con relación a los jóvenes y a las jóvenes, en cuanto a su integración en el orden social, económico y familiar. En este artículo, se hace referencia a las concepciones de juventud que fueron legitimadas en diferentes momentos sociales y se pretende comprender cómo se ha visibilizado un determinado discurso sobre esta categoría, generalmente asociado a la noción de problema. En el proceso, se busca discutir las implicaciones de este discurso en las prácticas psicológicas e indagar cómo los jóvenes y las jóvenes están siendo afectados y afectadas por determinadas prácticas sociales contemporáneas, generando diversos modos de subjetivación, que al mismo tiempo son pensados, fomentados y resignificados en relaciones de poder y verdad, sustentadas por saberes como el psicológico. También se pretende evidenciar cómo esos sujetos han sido intervenidos por el mercado capitalista como consumidores y consumidoras en potencia.

Palabras clave: juventud, historia, contemporáneo, prácticas psicológicas.

 


Abstract:

The young person has been a center of attention for social institutions both public and private. In social discourses on this populatin, the young man or woman is currently associated with the idea of insertion in social processes. In the academic field, there are numerous research projects and wide knowledge on youth. In the production of knowledge on youth there is a "discourse of worry" related to young men and women as regards their integration in the family and in the social and economic order. This paper displays the conceptions of youth that were legitimized in different social moments and undertakes to understand how a certain discourse on youth has been presented, often associated to the idea of a problem. The article discusses the implications of this discourse on psychological practices and explores the ways in which young men and women are affected by certain current social practices that generate various subjectivation modes. These modes are simultaneously thought, fostered and resignified in power and truth relationships, sustained by various types of knowledge, such as psychological knowledge. The article also seeks to show how these subjects have been visualized by the capitalistic market as potential consumers.

Keywords: youth, history, contemporaneous, psychological practices.

 


 

I - Introdução

 

O jovem tem sido foco de atenção por parte das instituições sociais, sejam públicas ou privadas. Nos discursos da sociedade sobre essa população, o jovem aparece associado, mais recentemente, à idéia de inserção nos processos sociais. Assim, por exemplo, por parte de órgãos oficiais do governo e da sociedade civil, vemos a convocação para uma grande mobilização de diferentes parceiros, como relatado na pesquisa realizada pelo IBASE e Instituto Polis (2006), tais como a escola, redes institucionais, legisladores, tomadores de decisão, meios de comunicação e opinião pública em geral, para que se possa legitimar a institucionalização de políticas públicas e potencializar seus benefícios, ressaltando que a exclusão dos jovens não é um problema somente deles, mas do conjunto da sociedade. No campo acadêmico, vê-se uma grande produção de pesquisas e de conhecimento em torno da juventude1. Nas produções de conhecimento, circula um discurso de "preocupação" com relação aos jovens no tocante à sua integração na ordem social, envolvendo a produção econômica e a constituição familiar.

Neste texto, nos remetemos a algumas concepções sobre juventude produzidas em momentos específicos da sociedade, sobretudo nas últimas décadas do século XX, para evidenciarmos a maneira como foram sendo visibilizados determinados discursos sobre essa categoria, articulados à noção de valores que prescrevem a ordem social. Ainda, objetivamos mostrar como foram se legitimando esses discursos a partir de práticas inscritas em campos de saber que, posicionados na confluência de linhas de força e jogos de poder, prescrevem modos de ser jovem na sociedade. Em especial, buscamos discutir a implicação das práticas psi na prescrição legitimada pelos discursos psicológicos na produção desses sujeitos e o investimento do mercado capitalista nessa população como consumidores potenciais. Finalmente, com base em uma concepção de novidade presente nos escritos de Hannah Arendt, apresentamos algumas questões para se pensar essa categoria.

 

II - Algumas concepções de juventude

Pressupomos, para esta discussão, que cada época profere discursos relativos aos seus jovens. Tais discursos denotam modelos e expectativas que irão produzir formas de ser e agir a partir de interesses específicos do momento histórico, cultural e social vigente. Os jovens, nesse sentido, são sujeitos concretos que se aproximam ou não, em seus modos de vida, dos sentidos produzidos por esses discursos em cada época particular.

Se prestarmos atenção nos sentidos produzidos por um determinado discurso que circulava na sociedade dos anos 1960 sobre a juventude no Brasil, veremos que essa categoria era tomada como "o futuro do amanhã". Nela se embutia a esperança da concretização dos projetos de "desenvolvimento e progresso" do pujante capitalismo desenvolvimentista de então: os jovens tornar-se-iam modelos de "chefes de família", "profissionais de carreira", "filhos", "estudantes", etc. (Souza, 2005).

Em contrapartida, em falas como "é proibido proibir" e "revolução do desejo", vinculavam-se sentidos produzidos por discursos propagados nos episódios sociais dos últimos anos da década de 1960. A partir de 1968, a imagem preponderante veiculada sobre o jovem é a do revolucionário e militante, relacionada à noção de contracultura ou de vanguarda, em uma perspectiva de transgressão ou contestação à ordem e em uma posição de recusa, de "aversão a toda prática autoritária e utilitarista" (Abramo, 1997, p. 6). Esse discurso vinha associado com "a busca de modos alternativos de viver, com o desejo de criar uma contracultura" (Semeraro, 1994, p. 21), sentido também presente no texto de Muller (2005).

Outros autores (Souza, 2005) situam a segunda metade da década de 1980 como o momento em que o jovem deixa de ser "o futuro do amanhã" para ser "o problema de hoje". Essa mudança de concepção seria efeito da "crise urbana do trabalho", em que o jovem estaria às margens do processo econômico-social. Ainda na década de 80, associase a juventude ao movimento das "diretas já", como se todos os jovens estivessem mobilizados nas questões políticas e sociais da época.

Assim, é possível ver que, para cada momento histórico, é apresentada uma idéia iconizada da juventude, que passa a valer, em âmbito geral, como o modelo de análise do jovem concreto em suas relações. Instaurase determinado ícone acerca da juventude, o que denota uma maior visibilização de determinado modo de ser como efeito do campo de forças em constante luta no qual nos situamos. O que queremos dizer com isso é que cada noção de juventude veiculada como sendo uma visão hegemônica do modo de ser jovem desconsidera a produção de sentidos e modos de ser engendrados no exercício do embate entre forças situadas e datadas em condições históricas e culturais de cada tempo; portanto, podem ser produzidas inúmeras e singulares formas de subjetivação ou modos de ser em cada momento específico.

Em boa parte das análises tradicionalmente formuladas no decorrer do século XX, a emergência da concepção de juventude articula-se a um discurso político e acadêmico que enfatiza as dimensões de transgressão, de crises, dos excessos, dos conflitos e das explosões, reforçado ao longo dos anos por teorias científicas que apontam a juventude como sendo foco e germinação de problemas sociais (Abramo, 1997; Gonçalves, 2005; Quiroga, 2005). Tal perspectiva parece ter vindo ancorada, sobretudo, em discursos presentes na primeira metade do século XX sobre a "juventude transviada" americana ou naquele dos "rebeldes sem causa" da Europa, articulados a um discurso científico proveniente de uma psicologia do desenvolvimento. Relacionava-se determinada fase do desenvolvimento humano - como a adolescência e a juventude - com um período marcado por contestação aos "padrões familiares e culturais herdados das gerações anteriores, principalmente a de seus pais" (Quiroga, 2005, p.8). Dessa forma, grande parte das mazelas sociais acabava por ser creditada a essa parcela da população.

Algumas formulações tradicionais em torno dos segmentos juvenis têm sido mais fortemente reiteradas nas últimas décadas por discursos oficiais de Estado e de procedência acadêmica no entendimento e explicação dos comportamentos juvenis. Os jovens ora são vistos como geradores de problemas, ora como um setor vitimizado da população que precisa ser objeto de maior atenção. Preocupações destinadas a manter a paz social ou preservar a juventude? Controlar a ameaça que determinados segmentos juvenis oferecem ou considerá-los como seres em formação, ameaçados por problemas decorrentes de fatores sociais, econômicos e culturais da sociedade? (Novaes e Vannuchi, 2004; Sposito e Carrano, 2003).

Esse incômodo lugar destinado aos jovens por uma determinada leitura social atualiza-se em tempos mais recentes. A associação entre a população juvenil e a violência é apontada pela educadora Marilia Sposito, ao ser entrevistada pelo Jornal Brasil de Fato, em abril de 2006. A autora aponta o fato de que tal associação é visibilizada, principalmente, na década de 1990, a partir de dois episódios: as rebeliões nas Febems, centralizadas no Estado de São Paulo, em 1995, e o assassinato do índio pataxó Galdino, em Brasília, no ano de 1997. Sposito diz como essa associação produz todo um aparato de legitimação de um discurso a partir de instituições públicas, citando, como exemplo, as pesquisas realizadas pela Unesco que tomam por base a ligação "juventude e violência" a partir do final da década de 1990.

A ONU, por meio da Unesco, inaugurou em 1997, aqui no Brasil, o seu setor de Pesquisa e Avaliação. Já no ano seguinte, iniciaram-se pesquisas voltadas à população juvenil, inscrita em um contexto de problemas sociais e, muitas vezes, de perigo ou risco social, e a juventude aparecia relacionada predominantemente à temática da violência social. Foi, então, publicado o primeiro "Mapa da Violência - os jovens do Brasil" (Waiselfilz, 1998), um estudo que já está na sua quarta edição. Dentre os temas focalizados pela Unesco, centralizam-se a problemática da violência, referindo-se ora às "formas emergentes de sociabilidade transgressora" entre os jovens (Waiselfisz, 1998), ora às questões de "vulnerabilidade do jovem" à violência (Unesco, 2004). Além desses temas, violência e juventude também se apresentam associadas com discursos sobre a sexualidade, as drogas e a educação no cotidiano escolar, relacionando-se essas questões, principalmente, com os jovens em situação de pobreza. Um dos últimos relatórios apresentados pela Unesco em 2006 tem como tema os jovens no "Cotidiano das Escolas: entre violências".

É interessante observar que, nos objetivos apresentados para a realização de tais estudos, o discurso de regulação social é bastante claro ao dizer que as pesquisas buscam "contribuir para a modelagem de políticas públicas para a juventude, enfatizando-se a participação do jovem como produtor e como consumidor cultural" (Castro et al, 2001). As pesquisas objetivam, ainda, "ampliar a visibilidade social de experiências no trabalho com jovens - particularmente aqueles em situação de pobreza" (Unesco, 2006).

Assim, o que se vê nesse contexto é a produção de maneiras de ser e viver relacionadas à juventude que, por sua vez, em cada época, emergem de uma correlação de forças que produzem efeitos de visibilidade no campo social. É na cristalização de um determinado modo de ser, colado à concepção de juventude de uma determinada época social e histórica, que em muitas situações se produz a essencialização da condição juvenil. Esperam-se, então, certos modos de ser ou manifestações dos jovens de forma contínua e estereotipada nas produções sociais em que o jovem está presente. Nesse sentido, também visualizamos essa forma contínua e estereotipada em diversos programas do governo brasileiro dirigidos aos jovens, os chamados "programas de inserção da população juvenil nos processos sociais", frase veiculada na apresentação do Plano Nacional da Juventude.

Investigando, portanto, a forma como se concebe a juventude na contemporaneidade, encontramos que ela vem principalmente vinculada ao chamado período de educação formal e de entrada das pessoas no mundo do trabalho. Enfatizamos, no entanto, que as concepções veiculadas em épocas e lugares variados diferem sob o ponto de vista social e epistemológico. Em seu livro História Social da Criança e da Família, Philippe Ariès (1981), em uma perspectiva européia, fala do tema das idades da vida e dos vários nomes usados durante a Idade Média para identificar o período relacionado ao que hoje denominamos, por exemplo, adolescência e juventude. Numa concepção em que os fenômenos da natureza estavam unidos ao sobrenatural num determinismo universal, situava-se dos 14 anos até por volta dos 30 anos a idade da adolescência - era assim chamada porque a pessoa já estava grande o suficiente para procriar e, ao mesmo tempo, tinha "os membros moles e aptos a crescerem e a receber força e vigor do calor natural". Depois, vinha a idade que estava "no meio das outras idades", a assim denominada juventude, a idade que tinha a "plenitude das forças" e em que, justamente por isso, se podia "ajudar aos outros e a si mesmo" - período que se situava por volta dos 30 até os 50 anos de idade (Ariès, 1981, p. 6). Com a modernidade ocidental, surge, então, uma rígida cronologização do curso da vida individual, com vistas à obtenção de um critério objetivista e naturalista para a determinação da idade de cada indivíduo, o que gerou uma profusão de saberes científicos, jurídicos e, por fim, criminalistas sobre estágios da vida (Groppo, 2000). A noção de idade, no entanto, na perspectiva discursiva que empreendemos neste estudo, pode ser tomada como uma marca que nos posiciona no mundo, um marcador identitário que se inscreve como símbolo cultural que diferencia, agrupa, classifica e ordena as pessoas conforme marcas inscritas na cultura - sobretudo, na cultura do corpo, "cujos significados nem são estáveis nem têm a mesma importância ou penetração relativa, combinam-se e recombinam-se permanentemente entre si" (Veiga-Neto, 2000, p. 215). Com essa noção relativa às idades, questionamos a visão instituída por um pensamento psicológico desenvolvimentista que estabelece características inerentes para cada uma das etapas da vida. Da mesma forma, a constituição e objetivação da vida cronologizada em etapas a serem percorridas são frutos dessa vertente psi de cunho evolutivo. Se, por um lado, é na modernidade que se produz a concepção de juventude como a conhecemos hoje, por outro, a própria constituição da sociedade moderna - com instituições como a escola, o Estado, o direito e o trabalho industrial - assentou-se no reconhecimento das faixas etárias e na institucionalização do curso da vida. Isso nos mostra um mútuo engendramento de mudanças e de institucionalizações na rede social no período moderno, configurando, dessa forma, um período também fértil para a constituição e objetivação das idades em etapas bem definidas (Groppo, 2000).

Assim, colocam-se as questões: se o discurso veiculado é o de busca da inserção e da participação do jovem nos mais variados segmentos da sociedade, em que condições de emergência esses discursos sobre a juventude se apresentam? Quando o jovem se faz visível e em nome de que essa visibilidade toma seu lugar? A visibilização da juventude estaria dotando-a de um espaço próprio, convertendo-a, assim, em um campo de possível intervenção e controle? Estaria no fato de se visibilizarem mais as questões juvenis a preocupação em exercer sobre elas um maior controle através de instâncias legitimadas de governo e de mecanismos de vigilância no meio social? Que lugar é este designado à juventude?

É pensando nesse sentido que nos contrapomos a este lugar que a juventude vem ocupando, de "foco e germinação de problemas sociais" (Gonçalves, 2005), e recorrermos assim a uma concepção de novidade apontada por Hannah Arendt (2001). Para a autora, o lugar da novidade instaura-se no espaço público, no campo onde se dá a condição para a ação humana, atividade que ocorre através do discurso e sob a condição de pluralidade, o que implica ser singular entre os outros. Aí também a ação humana investe-se de caráter político ao produzir efeitos, estar em relações de poder e ter uma dimensão ética. No entanto, impõe-se a questão: com a ampliação da esfera privada e da descrença na esfera pública, que efeitos estão sendo produzidos na população juvenil e nos seus modos de agir no que concerne às práticas de saber e regulações sociais em contraposição a uma possível novidade?

 

III - O Campo Psi: prescrições nas concepções de juventude

A discussão sobre o jovem e a categoria juventude em relação às práticas psi remete-nos ao que Foucault (1999) chamou de "corpo político". Ou seja, considerar a inscrição do jovem e a produção de uma concepção sobre juventude é pensar em um "conjunto de elementos materiais e das técnicas que servem de armas, de reforço, de vias de comunicação e de pontos de apoio para as relações de poder e de saber que investem nos corpos humanos e os submetem a uma condição de objetos de saber" (Foucault, 1999, p. 27). Analisar o investimento político-estratégico dos jovens a partir de um campo de saber e de relações de poder é pressupor que existe uma implicação mútua entre "sujeito que conhece, os objetos a conhecer e as modalidades de conhecimentos" e que esses "são outros tantos efeitos dessas implicações fundamentais do poder-saber e de suas transformações históricas" (Foucault, 1999, p. 29). É nesses termos que discutimos a implicação das práticas psicológicas como ferramentas conceituais e de intervenção no investimento e disciplinarização sobre os corpos jovens na perspectiva de que estes se tornem adultos bem adaptados, sadios e integrados à ordem social.

É nesse percurso que o instrumental da Psicologia foi e é de grande valia para o esquadrinhamento e classificação de condutas dos jovens. A Psicologia, "como um corpo de discursos e práticas profissionais, como uma gama de técnicas e sistemas de julgamento e como um componente de ética, tem uma importância particular em relação aos agenciamentos contemporâneos de subjetivação" (Rose, 1999, p. 146). Assim, exerce também o papel de definir as características e os critérios balizadores para a classificação da população jovem.

No século XIX, a produção de conhecimento sobre a vida, demarcada, sobretudo, pelas Ciências Naturais, pretendia "desvendar" as leis naturais que regeriam o corpo, a mente e a sociedade. Tal como na prática da biologia evolucionista, emergem práticas psicológicas destinadas ao controle dos sujeitos por meio da disciplina ou pela valorização da busca de um suposto indiiduo autônomo, remetendo-o a uma ordem do natural. Nesse processo, a Psicologia duplica conceitos empíricos para legitimar seus próprios conceitos em uma função transcendental, instituindo bases fundamentais para a compreensão da natureza humana e do desenrolar evolutivo das idades - da infância à idade adulta -, gerando saberes e práticas em torno desse homem-indivíduo. Cada indivíduo, segundo essa lógica, passaria a ter certeza de que, em determinado momento, o sinal da natureza iria despertar em si transformações bio, psico e sociais pré-diagnosticadas pelas ciências médicas e psicológicas. É nesse sentido que as disciplinas psi, como diz Rose (1999, p. 147), "estabeleceram uma variedade de ‘racionalidades práticas’, envolvendo-se na multiplicação de novas tecnologias e em sua proliferação ao longo de toda a textura da vida cotidiana: normas e dispositivos de acordo com os quais as capacidades e a conduta dos humanos têm se tornado inteligíveis e julgáveis".

É principalmente ancorada nessa lógica desenvolvimentista - que preconiza um progresso contínuo da humanidade, no qual o indivíduo, a partir de seus "estágios iniciais", vai se desenvolvendo em etapas predefinidas cada vez mais rumo à maturidade do adulto - que a Psicologia vem prescrevendo e legitimando concepções acerca da juventude, ordenando-a e objetivando-a em uma ordem social em que ela seria uma fase de transição entre a infância e a maturidade do período adulto. Foi com a crença na transição dos indivíduos para uma maturidade que as ciências humanas e sociais, do século XIX ao século XX, produziram uma juventude de transição, a ser controlada por meio de instituições preocupadas em proteger e diagnosticar os indivíduos considerados ainda não maduros e diagnosticados como portadores de fragilidades, criando-se ainda outras instituições interessadas na possibilidade de intervir na potencialização das capacidades desses indivíduos. É sob essa visão que a juventude passa a ser considerada como um estágio que pode ser perigoso ou frágil, propício para contrair toda espécie de males. Tal concepção contribuiu para a vigilância e regulação social dos indivíduos no período denominado de juventude.

É nesse processo de cerceamento político, moral, policial, empírico e científico do indivíduo, próprio da modernidade, que as ciências médicas e a Psicologia buscaram "uma definição exaustiva, detalhada e objetiva das fases de maturação do indivíduo, bem como (propuseram) métodos de acompanhamento apropriados a cada fase dessa evolução do indivíduo à maturidade ou idade adulta" (Groppo, 2000, p. 59). Dentro desse processo de definição objetiva e naturalizante das pessoas, a categoria juventude passou a carregar em si, do ponto de vista das ciências modernas, a função social de "maturação" do indivíduo, pressupondo a tarefa emergente de socialização desse jovem, com vistas a torná-lo um "indivíduo autêntico e integrado à sociedade moderna" (Groppo, 2000, p. 60).

Grande parte dos estudos desenvolvidos com relação à juventude entende essa categoria pela marca da transitoriedade, como uma fase da vida que se encontra entre a chamada dependência infantil e a propagada autonomia adulta, um período de pura mudança e de inquietude (Levi & Schmitt, 1996; Muller, 2005), fundamentado em uma concepção adultocentrista. Essa transitoriedade implica a consideração do estado adulto como aquele definitivo, estável, em contraponto ao instável, inscrito na juventude. Nesse mesmo sentido, a estabilidade colada ao sujeito adulto denota, por contraposição, uma instabilidade aos outros momentos da vida humana. Essa visão acarreta, em muitas leituras, um conjunto de responsabilidades inerentes ao mundo do adulto, concepção que vem avalizar boa parte de estudos realizados sobre a juventude, como descrito pelos autores Pais, (1993) e Novaes e Vannuchi (2004). Na situação apontada por Muller (2005), atrelam-se os jovens à moratória social - um tempo de espera em que o jovem se prepara para assumir as responsabilidades do mundo dos adultos. Vincula-se a concepção de moratória social com aquela em que os jovens estariam num período em que teriam um tempo autorizado para fazer coisas não toleradas quando feitas pelos adultos. Dessa forma, define-se a juventude por elementos que, de forma naturalizada, são tidos como constituintes da vida juvenil e que não são tolerados na vida adulta. Constituir família, entrar no mercado de trabalho e ter autonomia com relação ao pai e à mãe são passos hegemonicamente reconhecidos como sendo aqueles com os quais o jovem passa a ser adulto.

Assim, a concepção de juventude como sendo um período marcado por instabilidades e impulsividades, entendidas como naturais, demandou todo o cuidado e atenção na vigilância desse "período transitório", pois se, de alguma forma, essas marcas permanecessem, seriam sinal de imaturidade de um processo vital, o que, escapando ao tempo previsto, representaria riscos para aquilo que deve ser a finitude do humano. Como invenção do pensamento moderno, a finitude humana é aquilo que possibilita esclarecer o seu aparecimento, sua constituição e os movimentos presentes para visibilizar momentos futuros. Esse controle sobre a natureza humana coloca-a na ordem do pensável para diferentes campos do conhecimento. Porém, para a Psicologia, essa concepção configurar-se-á no ponto de apoio para os diversos diagnósticos que elencarão as constantes e renováveis patologias e para a divulgação de um arcabouço de padrões de normalidade (Hüning & Guareschi, 2005). Assim, a emergência de um discurso de valorização da juventude por parte das instituições públicas ou privadas, legitimadoras e reguladoras dos modos de ser e viver dos jovens na sociedade, remete-nos às produções das práticas sociais e institucionais também impostas pela ordem dos processos econômicos, culturais e políticos que vêm sendo construídos em diferentes momentos históricos.

 

IV - A inscrição do jovem no contemporâneo: de sujeito problema a sujeito consumidor

Se a modernidade propiciou uma concepção relativa à juventude como uma fase de transição, composta por um conjunto de etapas normatizadoras que conduziriam progressivamente em direção ao mundo adulto, em uma seqüência linear em que a sucessão e a ordem das etapas a serem percorridas estariam ligadas à certeza do projeto dessa modernidade, no contemporâneo, a possibilidade de entender a juventude como um encadeamento contínuo e necessário em relação às experiências dos jovens, articulando-as às exigências do mundo das instituições sociais e políticas, dissolve-se perante as transformações e mudanças ocorridas neste tempo. A primeira dessas transformações é a própria impossibilidade de se ter continuidade e certeza sobre a noção de tempo e espaço, gerando ao mesmo tempo diferentes experiências espaço-temporais.

A modernidade entende as experiências concretas e imediatas como sendo particulares, mas inseridas em espaços gerais, abstratos, infinitos e ideais. O que se pode chamar de lugar é o espaço vivido e definido pelo sensorial, pelo imediato e, ao mesmo tempo, ideal, em contraposição à lógica medieval, em que as práticas diárias dependiam de um espaço físico concreto, onde a dominação dependia da posse de um espaço físico. Segundo Veiga-Netto, é "a esse cenário particular, sensorial e imediato do espaço, (que) chamamos de lugar" (2002, p. 169).

Já na lógica espaço-tempo estabelecida no contemporâneo, importa cada vez mais o produto dessa relação - a velocidade -, que toma a frente nas formas de subjetivação, valorizando sempre mais a mobilidade, a velocidade de acesso a todas as coisas, com efeitos de "hiperconsumo", presente nas práticas econômicas e políticas.

Outra condição, nesse mesmo cenário, é o que Veiga-Netto (2002) aponta como sendo a volatilidade nas experiências vividas no cotidiano, um estado de sempre mudança sentido na sua inconstância. Bauman (2001) refere-se a um estado de leveza e fluidez em contraponto ao sólido presente numa lógica espacial e temporal com mais durabilidade e com limites bem definidos na modernidade. Com a mobilidade e o volátil demarcando posições no campo subjetivo, o que se mostrava de longo prazo, com grande durabilidade e definitivo, apresenta-se com um caráter cada vez mais transitório, supondo "uma crescente aceleração no ritmo de se relacionar com as coisas e com as pessoas, transformando o cotidiano num caleidoscópio de apelos, exigências e possibilidades" (Souza, 2005, p. 101).

Considerando que a noção de juventude vem inscrita em discursos proferidos em cada momento particular da sociedade, que produz modos de ser jovem de acordo com interesses próprios de um momento histórico, o que vemos a partir da metade do século XX, segundo Ribeiro (2004), são jovens sendo disputados por duas forças antagônicas: por um lado, a idéia de revolução, colocando-os no lugar de rebeldia, contestação, desvio à norma, etc.; por outro lado, o campo da publicidade, constituindo a juventude como destinatária por excelência de anúncios e propagandas para um mercado em expansão. Para ilustrar, o autor cita o filme Made in USA, de Godard, que chama os jovens parisienses dos anos 1960 de filhos de Marx e da Coca-Cola.

Morin (1997) indica a década de 1960 como um período que se fez marco no aumento dos bens de consumo, da indústria cultural e da valorização social do tempo livre, o que produziu como efeito o investimento na construção e visibilização de novos atores sociais, dentre os quais, a juventude. Esta é tomada como alvo e solo fecundo para uma potencial fatia de mercado consumidor, vinculando-se a essa população a idéia de "uso do tempo livre" e de "produtor e consumidor cultural", marcador ainda presente em documentos publicados pela Unesco (Castro et al., 2001).

Ribeiro (2004), ao buscar o processo histórico de como a juventude e, por conseguinte, como o ser jovem passa a ser algo valorizado, aponta o período pós-Revolução Francesa como a emergência de uma oposição sentida de forma cada vez mais intensa entre o que se remetia ao novo - naquele momento, o sentido de liberdade, democracia - e o que conotava o antigo, velho - a servidão, a mentira, os privilégios de poucos. Desde então, segundo esse autor, a juventude tem sido um valor importante - ela "passa a ser algo positivo, e mais que isso, prioritário na agenda" (p. 23).

No contexto de Brasil, Kehl (2004, p. 90) diz que o prestígio da juventude é mais recente. Essa autora cita Nelson Rodrigues, a partir de uma crônica escrita sobre a infância deste, em que o dramaturgo relata: "O Brasil de 1920 era uma paisagem de velhos; os moços não tinham função nem destino. A época não suportava a mocidade". Eram tempos em que os jovens buscavam ostentar sinais de seriedade e "respeitabilidade", vinculados aos adultos da época, tais como o uso do bigode, ternos escuros e guarda-chuva, marcadores identitários de determinados homens, os "bem-sucedidos" da primeira metade do século XX. Em tal contexto, "homens e mulheres eram mais valorizados ao ingressar na fase produtiva/reprodutiva da vida do que quando ainda habitavam o limbo entre a infância e a vida adulta chamado de juventude".

Já na segunda metade do século XX, a juventude passa a ser situada nos anos dourados da vida. Se pensarmos nas condições de possibilidade para a visibilidade dos jovens como algo a ser desejado, investido e valorizado, principalmente a partir do pós-guerra, na segunda metade do século XX, podemos apontar o auge do modelo centrado na economia capitalista, florescendo com toda a força a invenção de produtos a serem consumidos e de mercados a serem conquistados, bem como a expansão da indústria cultural - cinema, televisão -, produzindo e capturando sentidos na lógica da economia de mercado. Assim, mesmo com o estigma produzido sobre os jovens como sendo uma geração problemática, a juventude passa a ser investida como um novo e gigantesco mercado para os novos "fetiches da felicidade" - Coca-Cola, chicletes, discos, cosméticos, carros, etc. Tomando-se a juventude como uma "fatia privilegiada" do mercado consumidor, produz-se como efeito um jovem consumidor - o teenager americano -, rapidamente difundido por todo o mundo capitalista ocidental via publicidade e televisão, numa associação com a imagem de "liberdade, busca intermitente de prazeres e novas sensações", oferecendo-se como modelo para todas as classes sociais e faixas etárias da população (Ribeiro, 2004, p. 24).

É nesse sentido que alguns autores ressaltam a ênfase colocada na juventude nos tempos atuais, como um vetor de incidência na subjetivação dos sujeitos, abarcando, sobretudo, a dimensão relacionada ao corpo, concretizando-se no comércio da "juvenilização" - um produto almejado por muitos e balizador de uma estética hegemônica prescrita como modelo ideal (Margulis, 2000; Muller, 2005).

Em análise sobre a produção de uma estética juvenil globalizada a partir do mercado de consumo, Oliveira (2001, p.38) aponta o jovem, nos tempos contemporâneos, como aquele sobre o qual se vinculou a idéia de "máxima potência de afetar e ser afetado", numa referência à obtenção de um prazer mais imediato, mais narcisista e menos utópico do que aquele experimentado por gerações anteriores. Nesse sentido, o mercado midiático encarregou-se de transformar a juventude em modelos de consumo, passando de um consumidor preferencial a um agente catalisador e propagador de estilos que fazem proliferar uma estética juvenil entre todas as gerações. Com isso, o mercado encarrega-se de definir e cristalizar grupos de estilos juvenis variados, demarcando "a filiação do desejo do consumidor" em diferentes tribos a serem investidas com suas marcas identitárias já capturadas pelo sentido do consumo. É assim que "consumir os produtos ofertados para cada uma dessas tribos passa a ser um modo de existir e de ser notado na vida pública" (Oliveira, 2001, p. 38). Proliferam, então, os surfistas, os nerds, os mauricinhos, as patricinhas, etc., com suas etiquetas visíveis e bem demarcadas, tornando-os reconhecidos e pertencentes a uma determinada tribo.

Sarlo (1997), ao fazer uma analogia entre a velocidade de circulação na lógica do consumo e o valor simbólico impresso na juventude com relação a um prazer imediato, sempre em busca do novo nos tempos atuais, refere-se ao mercado como o lugar em que as mercadorias necessariamente devem ser novas, conotando o estilo que está na moda. Nesse sentido, a autora aponta o mito da "novidade" presente nesse modelo, com a renovação incessante de necessidades-mercadorias produzidas pelo mercado capitalista, como um elo articulado à noção de juventude em que se cola o mito da novidade permanente. Juventude surge como um valor potencializado na trajetória da existência do homem, nessa lógica do imediato, da busca incessante pelo novo e pela novidade para suprir necessidades criadas na chamada sociedade do consumo.

Essa lógica descrita acima se articula à noção de transitoriedade citada por Veiga-Netto (2002), no modo de viver o tempo no contemporâneo, supondo uma crescente aceleração no ritmo de se relacionar com as coisas - e com as pessoas - e "transformando o cotidiano num caleidoscópio de apelos, exigências e possibilidades" (Souza, 2005, p. 101). Nessa conformação presente nas relações atuais, desponta com vigor o caráter efêmero e mutante do que vem a ser consumido, sejam coisas, idéias, "atitudes" ou comportamentos, entrecruzados com o mesmo vigor com que se desenvolvem as tecnologias que operam na produção e sustentação do cenário atual.

Numa perspectiva foucaultiana, o tempo insere-se na discussão das técnicas criadas na chamada sociedade de controle como um elemento a ser controlado para o funcionamento dos mecanismos inerentes a um modelo de produção da subjetividade ou constituição dos sujeitos dessa sociedade, numa determinada direção. Em um de seus textos, Foucault aponta o modelo de mercado presente no capitalismo como pano de fundo para o controle do tempo. Ali ele diz que "é preciso que o tempo dos homens seja colocado no mercado, oferecido aos que o querem comprar, e comprá-lo em troca de um salário; e é preciso, por outro lado, que este tempo dos homens seja transformado em tempo de trabalho" (Foucault, 1996, p.116). Nests sentido é que se controla, se vigia e se demarca o tempo das pessoas nos mais diferentes espaços e momentos de suas vidas. Podemos pensar também num tempo capturado por um modelo de mercado que totaliza as mais diversas faces da existência humana em modelos hegemônicos a serem ofertados num grande mercado de consumo.

É no sentido dessa captura de novos "nichos de mercado" a serem conquistados que Bauman (2004, p. 88) se refere aos "mercados modernos", em uma analogia aos Estados modernos, que, "ocupados em ordenar e classificar, não podiam suportar a existência de ‘homens desgovernados’ e, (...) ávidos por territórios, não podiam suportar a existência de terras ‘de ninguém’"; da mesma forma, "os mercados modernos não toleram bem a ‘economia de não-mercado’: o tipo de vida que reproduz a si mesma sem que o dinheiro troque de mãos".

Institui-se, assim, um modo de vida em que usar e descartar em seguida, a fim de abrir espaço para outros bens e usos, dita funcionamentos em que a leveza, a velocidade e o imediatismo pautam a existência humana, modos constituintes no campo subjetivo. Se, por um lado, instauram-se os "incluídos" na sociedade de consumo, no dizer de Bauman (2004, p. 68), "aqueles que não precisam se agarrar aos bens por muito tempo, e decerto não por tempo suficiente para permitir que o tédio se instale, os chamados bem-sucedidos, por outro, se institui os excluídos, os consumidores falhos, os inadequados, os incompetentes, os fracassados". Nesse aspecto, podemos ver como um alerta a implicação das práticas psi tradicionais no controle e ordenação do mundo, mundo este onde se inscreve a sociedade do consumo ao prescrever modos de existência "adequados" a essa ordem, "ao dar especial atenção àqueles que devem ser incluídos nos sistemas normativos e normalizadores dessa sociedade" (Hüning & Guareschi, 2005, p. 116).

 

V - A Guisa de Conclusão: uma categoria de juventude a ser pensada...

Assim, se o social vale-se da demarcação binária entre incluídos/ excluídos, que grupo social vem ecoando insistentemente nos discursos sociais de inclusão social e inserção no mercado? Que novo nicho a ser conquistado estaria ainda além fronteiras da regulação de mercado nas últimas décadas? É pensando na tradução da categoria juventude como aquilo que busca o novo de modo incessante, sendo isso o que a faz visível e valorizada, tornando-a um campo desejável de investimento para produções de subjetividade, que se procura uma possibilidade de olhar a juventude de uma forma diferente e ao mesmo tempo deslocada daquela que impõe as relações de força e de poder dos movimentos midiáticos e conformistas da sociedade.

Retomando a idéia de Arendt (2001), que apresentamos no início deste artigo, pensamos que o conceito de novidade, pode auxiliar para refletirmos sobre a possibilidade de uma direção inversa ao novo que se institui como forças motrizes nesta sociedade do consumo. A novidade, segundo esta autora, está inscrita nos espaços de tensionamento entre o público e o privado. É no espaço público, no entanto, que o lugar da novidade se instaura, no campo onde se dá a condição para a ação humana, atividade esta que ocorre através do discurso, na singularidade da produção humana e também em uma condição de pluralidade. Para essa autora, é no público que a ação humana é investida de um caráter político por produzir efeitos, estar em relações de poder e ter uma dimensão ética.

Em contraponto ao público, no espaço privado, é excluída a possibilidade da ação humana. Esse espaço representa a privação do humano e a não-condição do seu aparecimento na pluralidade, ao mesmo tempo, o não ser singular entre os outros. É onde o homem se comporta e se regula conforme um interesse comum e uma opinião unânime presente no espaço doméstico. No espaço privado, não há lugar para o inusitado, o imprevisto, o desconforme. Com a assunção do modelo doméstico na esfera pública, Arendt (2001) aponta a substituição, em nossa sociedade, da ação pelo comportamento na forma de relação entre os homens, fazendo com que se espere de cada um dos humanos certo tipo de comportamento, com inúmeras e variadas regras, mas todas tendentes a normalizá-los. É nesta ordem, a dos sujeitos privatizados, que podemos situar os mandatos de consumo, velocidade e descartabilidade presentes no contemporâneo como os destituidores do caráter político da ação humana e da afirmação no espaço público do que é singular em troca da homogeneização e da normatização.

Então, se o espaço público é também espaço político, deve ser pensado como ação, como acontecimento, como irrupção, como uma interrupção de todos os processos automatizados e totalizantes. E é aí, então, que pode emergir uma concepção de juventude com a novidade como possibilidade do improvável e da surpresa. A questão que se coloca é: com a ampliação da esfera privada na sociedade contemporânea e a descrença no espaço público, do poder político, que efeitos estão sendo produzidos na população juvenil e nos modos de ela agir em relação ao novo? Se a juventude ocupa no discurso político o lugar acadêmico e social que é, paradoxalmente, o das crises, dos excessos, dos conflitos e das explosões - lugar reforçado ao longo dos anos pelas ciências, com a juventude sendo foco e germinação de problemas sociais -, mas também é o foco de investimento de mercado que a produz como objeto e sujeito do consumo, não estaria aí também o contraponto, ou seja, o lugar da novidade como possibilidade de um solo fértil para o surgimento de algo novo que gere mudanças no campo social?

Ao conformar os excessos juvenis a uma regulação social, a uma norma instituída, a um comportamento esperado no espaço público, e ao se avaliarem os jovens com o potencial extraordinário de produtores e consumidores no mercado capitalista, não se estaria também retirando a possibilidade da existência de algo que inova, que inventa, que excede e que irrompe nos modos de ser juvenil, para além da conformidade social, impossibilitando-se, assim, que se instaure a novidade? Ao aproveitar-se a oportunidade que a novidade dispõe, seria possível utilizá-la como estratégia para pensar a imprevisibilidade em uma chance de vida para transformar a opacidade do futuro em ações presentes, intensas e finitas. Ou a idéia de finitudes do conhecimento moderno, que coloca a natureza humana na ordem do previsível, poderia ser transposta para uma idéia de tempo futuro não-dissociada do tempo presente, do indeterminado, da pulverização de experiências e da possibilidade de exploração do provisório como forma de emergir e potencializar a novidade.

Finalmente, cabe-nos colocar em questão as práticas psicológicas que instituem e legitimam modos de ser juvenil por meio de procedimentos e técnicas ancoradas em um discurso científico sobre a interioridade do indivíduo psicológico e de caracterizações naturalizadas na perspectiva de um sujeito normal, adaptado e governável. Problematizar concepções de juventude fundamentadas em definições e caracterizações atreladas a uma etapa universal, natural e homogênea para todos impõe a necessidade de uma postura crítica às reificações totalizantes produzidas no campo psi.

 


 

Notas

* Este artigo remete ao estudo "Protagonismo: Formas de Governo da População Juvenil", dissertação de mestrado realizada no grupo de pesquisa Estudos Culturais e Modos de Subjetivação, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES.

1 Ver produção de pesquisas da Unesco, Instituto Cidadania, Instituto Akatu, Ação Educativa, Projeto Juventude, entre outros, nos sites http://www.unesco.org.br; http://www.icidadania.org.br; http://www.akatu.org.br; http://www.acaoeducativa.org.br; http://www.projetojuventude.org.br./novo/index.html Acessado em: 30.12.2006.

 


 

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