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Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud

versão impressa ISSN 1692-715Xversão On-line ISSN 2027-7679

Rev.latinoam.cienc.soc.niñez juv v.7 n.1 Manizales jan./jun. 2009

 

Segunda Sección: Estudios e Investigaciones

 

 

Jovens urbanos: ações estético-culturais e novas práticas políticas *

 

Jóvenes urbanos: acciones estético-culturales y nuevas prácticas políticas

 

Urban youth: aesthetic, cultural activities and new political practices

 

 

 

Profa. Dra. Silvia Helena Simões Borelli (PUCSP)1, Profa. Dra. Rose de Melo Rocha (ESPMSP e PUCSP) 2, Profa. Dra. Rita de Cássia Alves Oliveira (SENACSP e PUCSP)3, Prof. Dr. Marcos Rodrigues de Lara (PUCSP)4 1

 

1 Professora e pesquisadora Livre Docente do Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais (mestrado e doutorado) na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Pesquisadora do Grupo de Trabalho "Juventud y nuevas prácticas políticas en América Latina" (Clacso). Doutora em Antropologia, siborelli@gmail.com

2 Coordenadora adjunta do Mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPMSP e professora da PUCSP. Pesquisadora do Grupo de Trabalho "Juventud y nuevas prácticas políticas en América Latina" (Clacso). Doutora em Ciências da Comunicação (ECA-USP),rlmrocha@uol.com.br

3 Professoa Doutora do Departamento de Antropologia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) e também professora e pesquisadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Design do Centro Universitário SENAC de São Paulo. Pesquisadora do Grupo de Trabalho "Juventud y nuevas prácticas políticas en América Latina" (CLACSO). Doutora em Antropologia. ritacaoalves@gmail.com

4 Pesquisador do Grupo de Trabalho "Juventud y nuevas prácticas políticas en América Latina" (Clacso). Doutor em Educação, filósofo e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PUC-SP).. laramarc@uol.com.br

 

Primera versión recibida noviembre 15 de 2008; versión final aceptada marzo 9 de 2009 (Eds.)


Resumo:

O artigo consiste da apresentação de resultados parciais (anos 60 e 70) de pesquisa desenvolvida no Brasil, como parte de investigação latino-americana vinculada à CLACSO. A reflexão se organiza ao redor de quatro eixos teórico-metodológicos: campo teórico (marcos da produção acadêmica sobre juventude); políticas públicas (marcos de produção de uma legislação para a juventude); acontecimentos estético-culturais; consumo e culturas juvenis.

Palavras Chave: Juventude; Cultura; Estética; Política; Brasil.


Resumen:

El artículo presenta los resultados parciales (años 60 y 70) de la investigación desarrollada en Brasil y articulada a la investigación de Clacso sobre juventud y nuevas prácticas políticas en América Latina. La reflexión se compone de cuatro ejes teóricos y metodológicos: campo teórico (marcos de la producción académica sobre juventud); políticas públicas (marcos de la producción de una legislación para la juventud); acontecimientos estéticos y culturales y por último consumo y culturas juveniles.

Palabras clave: juventud, cultura, estética, política, Brasil.


Abstract:

The article focuses on partial researcher's results (60´s and 70´s) of an academic investigation developed in Brazil, related to a Latin- American research, on CLACSO´s working group's field. These results are articulated on four theoretical and methodological aspects: theoretical framework; public policies; esthetical and cultural events; consume and youth cultures.

Key-words: Youth; Culture; Aesthetics; Politic; Brazil.


Introdução

 

A investigação que dá origem a este artigo tem por objetivo analisar novas práticas políticas juvenis no Brasil considerando a crescente relevância de variadas intervenções estético-culturais como lócus possível de ação política na contemporaneidade. Fundada, nesta etapa em uma demarcação histórica - marcos e acontecimentos relativos às décadas de 1960 e 1970 -, a reflexão se organiza ao redor de quatro eixos, previstos no protocolo teóricometodológico contido no projeto original: campo teórico (marcos da produção acadêmica sobre juventude); políticas públicas (marcos de produção de uma legislação para a juventude); acontecimentos estético-culturais; consumo e culturas juvenis. Compete a cada eixo a construção de cartografias capazes de responder pela questão fundamental que conecta esta proposta ao grupo mais abrangente da CLACSO: quais são as práticas políticas - novas e originais - de jovens e coletivos juvenis na América Latina? Cada um dos eixos apresenta uma explicitação teórica e metodológica, uma primeira leitura dos dados coletados até o momento, assim como a indicação de possíveis tendências.

 

1. Campo teórico no Brasil: marcos da produção acadêmica sobre juventude

O objetivo deste eixo teórico-metodológico é analisar seletivamente a produção acadêmica sobre juventude no Brasil entre os anos 1960 e 1970. A metodologia adotada supõe uma varredura nos acervos das principais instituições de pesquisa, historicamente legitimadas como campos de produção intelectual no Brasil (Bourdieu, 1988). Não apenas a elaboração de um mapeamento quantitativo desta produção, mas também, e principalmente, a construção de uma cartografia qualitativa capaz de responder por oscilações e descentramentos teórico-conceituais: que concepções de juventude se apresentam nesta linha do tempo? Que "espíritos do tempo" marcam, em cada momento de uma "história em movimento" (Morin, 1984, pp. 166, 167-184), as afirmações e os estigmas que fizeram dos jovens e das juventudes um tema e um problema a ser deslindado pela produção acadêmica no Brasil?

A produção sobre juventude nos anos 1960 mostra-se estreitamente conectada à militância estudantil, e os jovens são reconhecidos, questionados e/ou legitimados pela sociedade, como um segmento fortemente participativo. Presentes e inseridos nas práticas políticas cotidianas, os jovens foram, ainda, protagonistas de um leque variado de ações culturais que marcaram o período e o transformaram em referência emblemática para a história político-cultural do país. Referendados e inseridos na reflexão dentro do campo acadêmico, os jovens emergem, hegemonicamente nesta década, como sujeitos sociais ativos e são concebidos como potenciais agentes políticos de um processo de intervenção e transformação em uma sociedade em crise. Nota-se que a tendência do debate no Brasil acompanha a reflexão sobre o papel da juventude em muitas partes do mundo; e não é a toa que maio de 1968 passa para a história como um grande acontecimento mundial.

Ainda que escassa do ponto de vista quantitativo, é possível localizar, em princípio, dois grandes marcos da reflexão no período: O jovem radical, de Octavio Ianni (1963) e O poder jovem: história da participação política dos estudantes brasileiros, de Arthur Poerner (1968). Em ambos, guardadas as especificidades de cada análise, encontram-se jovens sujeitos históricos, aptos a transformar a realidade por meio da participação ativa nas lutas sociais; juventude de vanguarda, organizada e atuando politicamente pela via dos movimentos estudantis.

Reiterando o movimento estudantil como caminho predominante de rebelião e lugar de expressão vital da política, os jovens assumem o papel de agentes dinâmicos da história, também no trabalho de Marialice Foracchi, O estudante e a transformação da sociedade brasileira (1964): juventude como sinônimo de estudante universitário; e jovens capazes de assumir responsabilidades históricas, contestando as condições políticas, econômicas e culturais que levaram o país a uma profunda conjuntura de subdesenvolvimento. Segundo Foracchi, é na condição juvenil que o indivíduo se encontra, de fato, diante das trajetórias e opções de vida oferecidas pelo sistema e deve escolher o tipo de adulto que será no futuro. Uma vez que as alternativas são limitadas ou estão na contramão dos ideais e valores legitimados por um modelo particular de juventude hegemonicamente constituído, nem sempre os jovens conseguem responder pelos propósitos de criação, busca e improvisação.

Ressalta-se que tanto Ianni (1963), preocupado com o pleno desenvolvimento da consciência juvenil, quanto Foracchi (1964), centrada nos processos de radicalização do movimento estudantil, tratam as temáticas com o merecido cuidado evitando generalizações e concordando que estas características não dizem respeito a uma juventude em geral, mas apenas a uma minoria de jovens submetidos a condições sociais específicas.

É a esses jovens que o foco da reflexão se dirige neste período: estudantes universitários, provenientes das camadas médias da população em ascensão social. Nesse sentido, é possível considerar que a produção acadêmica brasileira na década de 1960 contribuiu para disseminar, no campo do conhecimento, uma noção de juventude que, de fato, se restringe a um segmento bastante específico da população juvenil; nada a ver com o jovem, trabalhador/ estudante das camadas subalternas, ou dos adolescentes e jovens dos ensinos primários e secundários, ou mesmo de jovens vivendo fora da escola. Além do corte de classe, esta noção de juventude supõe, ainda, uma segmentação etária, considerando que o ingresso nas universidades normalmente só era possível depois dos dezoito anos; antes disso, os indivíduos das camadas médias eram tidos como adolescentes e os das camadas subalternas, concebidos como menores.

Foracchi retoma a temática na década seguinte, em A juventude na sociedade moderna (1972); e admite que, além desta rejeição à condição adulta, a rebelião juvenil reflete uma crise de toda a sociedade, que vive densas transformações; e, neste contexto, os jovens seriam os mais suscetíveis às contradições inerentes às mudanças, assim como os mais atingidos pelas incertezas, que tornam também vulneráveis as instituições encarregadas de sua socialização, entre elas, a família e a universidade. Nota-se que, neste trabalho, já se pode ver esboçada uma crítica recorrente no pensamento intelectual brasileiro: crítica contundente a um modelo de "sociedade moderna" proposto, desde o golpe militar de 1964, e consolidado nos sucessivos planos de modernização e desenvolvimento dos anos de ditadura. Daí resulta, em especial, a expansão das indústrias culturais e dos mercados de bens simbólicos em todo país, envolvendo, particularmente, os campos das telecomunicações, estratégicos para a sustentação do padrão de modernização. Boa parte da produção acadêmica brasileira segue a tradição da "teoria crítica" e a denominada Escola de Frankfurt torna-se um importante referencial teórico-conceitual para a produção do conhecimento na época; e textos de T. W. Adorno, Max Hockheimer e Walter Benjamin passam a ser traduzidos por editoras que tiveram um importante papel nesta atmosfera de modernidade crítica e contestadora.

Na década subseqüente, 1970, permanece a associação entre a noção de juventude e a condição de estudante e alguns jovens pesquisadores - em seus mestrados e doutorados, nas áreas de Ciências Sociais, Serviço Social e Psicologia - passam a problematizar, por exemplo, a juventude oscilando entre o comportamento radical e o conformista (Gouvea, 1971); os jovens referidos às mudanças nas condições de sociabilização proporcionadas pelo ingresso na vida universitária (Azevedo, 1978); e, ainda, inseridos nos processos de urbanização das grandes cidades (Whitaker, 1979).

A representação social e a mudança comportamental, relacionadas à rebeldia e à negação da condição adulta, estimularam a reflexão de Maria Stella Orsini em Juventude paulista: suas atitudes e sua imagem, estudo sobre a representação social da juventude (1977); ainda que com o objeto de estudo territorialmente localizado, a pesquisa buscou captar a forma como a sociedade concebe os jovens, já então pré-definidos como problemáticos; e, via representação, torna-se possível mapear preconceitos e pré-juízos que colaboraram para uma usual concepção negativa e estigmatizadora da juventude.

Há, entretanto, um marco significativo da produção acadêmica nesta década: A 'Geração AI-5': um ensaio sobre autoritarismo e alienação, de Luciano Martins (1979); o autor propõe um (des)centramento no rumo da reflexão, questionando aquilo que considera a mitificação da juventude universitária dos anos 1960, e apontando para o esvaziamento dos movimentos estudantis, diante da truculência do regime militar. O objetivo é o estabelecimento de articulações entre as noções de autoritarismo, alienação e carência de consciência crítica; ou, em outras palavras, de como uma parcela de jovens aderiu aos movimentos contraculturais - cujos fenômenos mais expressivos foram, para Martins, o culto às drogas, a desarticulação do discurso e o modismo psicanalítico - como forma de rejeição ao autoritarismo. Ocorre, então, uma cisão, antes improvável, em que ser estudante já não era mais sinônimo de ser agente político de transformação da realidade social.

Um dos marcos predominantes da década de 1970 vincula-se à percepção de que a juventude passou a viver na apatia e na alienação, depois de anos de efervescência política participativa. Reverbera nas análises sobre a juventude aquilo que posteriormente se caracterizaria para a década como um todo: anos 1970, tempos de vazio político e cultural, de carência de participação, de ausência de projetos de intervenção e de projeção para o futuro, marcos históricos imprescindíveis na caracterização da década anterior. Esta visão deixa de herança para as gerações futuras o peso de que tudo já tinha sido testado, experimentado, realizado; e que quase nada restava a ser feito. Com isso, os jovens perdem seu lugar de sujeitos ativos dos processos de transformação, parecem vagar sem rumo, afastando-se do agir, tirando a política de seu horizonte de expectativas e transformando a participação em coisa do passado, levada a cabo pelas geração 68 que os precederam. É óbvio que se trata de uma perspectiva polêmica que recebe a adesão de alguns intelectuais, mas também o questionamento de outros, nas décadas subseqüentes; e isto será tema da próxima etapa desta investigação.

 

2. Juventude brasileira nos anos 1960 e 1970: políticas públicas

Esse eixo metodológico guarda sua importância no fato de ser, pela via das políticas públicas, o caminho legal que a sociedade civil tem de exigir de seus governantes ações objetivas de apoio às questões sociais que se apresentam. O foco desta observação histórica encontra-se na busca da composição de um mosaico representado pelas ações legais e políticas dos vários governos que assumiram o poder central no Brasil ao longo deste período. O objetivo é o de identificar uma trajetória possível para a composição do conceito de juventude em nosso país que faça sentido sob as análises sociais dos determinados momentos políticos. Temos aqui um claro interesse em contribuir com a construção de uma trajetória na construção deste conceito e que sua evolução possa encontrar seus significados nas mudanças políticas conduzidas na trajetória da formação da sociedade. A ênfase conceitual deste estudo é colocada nas relações das forças políticas e nas manifestações sociais capazes de moldarem novos ambientes coletivos (Morin, 1984, Canclini, 1995; Martín-Barbero, 2001, Williams, 1992, Bourdieu, 1986). Para a metodologia de reconstrução e leitura dos vários ambientes históricos deste período foram montados bancos de dados referentes às leis e projetos oficiais em relação ao tema da juventude. Eles apresentam as leis e os projetos completos com destaque aos artigos referentes ao tema apontando tratamento, benefício, beneficiário e beneficiado.

A construção do conceito de juventude

A construção social do conceito de juventude é, na verdade, uma luta histórica cujo percurso é marcado pelos vieses e contrapontos que bem caracterizam as lutas dos diversos grupos sociais na defesa de seus direitos individuais e coletivos. Nesse sentido, no Brasil, a incorporação da juventude como tema específico de ação governamental, centrada na formulação de políticas públicas, é recente e pouco consolidada. Por essa razão, o período compreendido entre as décadas de 1960 e 1970 é caracterizado pela ausência de ações governamentais que tivessem como objetivo uma figura social de direito identificada como sendo o jovem.

Obviamente que a inexistência de políticas públicas claramente estabelecidas, tanto nos objetivos como nas práticas, não anula a existência de camadas sociais que respondem a determinados estímulos quando motivadas. Nos anos 1960 e 1970, a juventude era lida como a camada da população escolarizada da classe média com acesso ao ensino médio e à universidade.

Partindo-se dessa primeira leitura do conceito de juventude, podemos estabelecer seu desdobramento em quatro etapas históricas cujas atenções políticas estão intimamente ligadas às constituições dos ambientes históricos, sendo elas: 1) ampliação da educação e o uso do tempo livre (entre 1950 e 1980); 2) controle social de setores juvenis mobilizados (entre 1970 e 1985); 3) enfrentamento da pobreza e a prevenção do delito (entre 1985 e 2000); 4) inserção laboral de jovens excluídos (entre 1990 e 2000).

Historicamente vive-se a simultaneidade de tempos no debate sobre a juventude, o que faz conviver, em qualquer época, muitas vezes dentro de um mesmo aparelho de Estado, orientações tais como as dirigidas ao controle social do tempo juvenil, à formação de mão-de-obra e também as que aspiram à realização dos jovens como sujeitos de direito. Os jovens ora são vistos como problemas ou como setores que precisam ser objeto de atenção. Manter a paz social ou preservar a juventude? Controlar a ameaça que os segmentos juvenis oferecem ou considerá-los como seres em formação ameaçados pela sociedade e seus problemas? As formulações diferenciais que pressupõem formas de interação com os atores jovens não são construídas apenas com base em uma imagem do que se pensa sobre a juventude na sociedade, mas decorrem, também, de uma clara concepção de modos de praticar a ação política, do exercício do governo e das relações com a sociedade civil na construção da esfera pública.

Juventude revolucionária

Os anos 1960 foram marcados desde seu início por fortes movimentos de contestações políticas por parte da classe operária que reivindicava maiores benefícios no conjunto dos resultados do crescimento da economia nacional. O início dos anos 1960 é marcado pelo forte movimento de urbanização das capitais e pela formação de grandes pólos industriais que foram criados pelos elevados investimentos internacionais no Brasil, principalmente no setor de mineração e siderurgia. Esses são a base para a produção de bens de consumo de massa. Esse ambiente de inchaço dos grandes centros urbanos, a formação de uma classe operária numericamente representativa (embora desorganizada), a criação de um mercado de consumo de massa e as fortes disparidades de ganhos econômicos entre as atividades, criam um cenário político caracterizado por fortes embates ideológicos e de práticas distintas. O grande marco de ruptura política acontece no ano de 1964 com a tomada do poder pelo regime militar em um golpe de estado que vai impor novas lógicas de atuações sociais e políticas a todo o conjunto da sociedade.

Como dissemos, nos anos 1960 e 1970, a juventude era lida como a camada da população escolarizada da classe média com acesso ao ensino médio e à universidade. Essa juventude ganha espaço na cena política pelo seu engajamento nos movimentos estudantis, dos trabalhadores, nas atividades dos partidos políticos ou nos movimentos da contracultura que apoiavam ou combatiam a ditadura militar. Nesta lógica de atuação política, a juventude passa a ser vista pelos governos militares, principalmente pela sua capacidade de mobilização e resistência como foco de atividade revolucionária a ser combatida e controlada.

Na rotina da vida, dentro deste ambiente político, várias são as atividades e os campos que se oferecem como possibilidades de combate ao regime militar e à lógica de mercado capitalista que ele representa. Muitas são as batalhas travadas nas ruas das grandes cidades protagonizadas pelos estudantes universitários, muitos são os sindicatos que se mobilizam em movimentos de greve, as universidades se transformam em campos de ação política de luta aberta contra o regime. Estudantes universitários pegam em armas contra o regime e adotam práticas terroristas contra o sistema tais como assalto a bancos na busca de formação de fundos para suas atividades clandestinas e seqüestro de diplomatas pata negociações internacionais de troca de presos políticos.

Como resposta, o regime militar articula o desmanche das organizações estudantis como UNE e UMES, tendo nelas, claramente a figura do inimigo do regime. Seus líderes são caçados, presos e deportados. As instituições são legalmente extintas e fisicamente demolidas. As universidades são controladas, invadidas e administradas de fora. O corpo docente sofre pesadas punições através de demissões, prisões, exílios e controle do trabalho com eliminação de significativas atividades de pesquisa no país nos mais diversos campos.

As artes se apresentam como uma das poucas possibilidades de manifestação ainda possível para esse coletivo, embora sob forte vigilância. Os festivais universitários, a música, o teatro e o cinema passam a representar uma possibilidade, ainda que estreita, de manifestação intelectual da e para a população universitária. Sua maior angustia é ampliar essa possibilidade para as camadas mais populares da sociedade, que se encontra sob pesado controle policialesco.

O regime militar, através de seus 17 Atos Institucionais do período, recrudesce a violência aos jovens, o combate aberto se desarticula, as lideranças estudantis e políticas são exiladas, a economia cresce e a sociedade imerge no período de maior obscurantismo político de sua história.

Juventude na resistência

Os anos de 1970 foram marcados pelo período de maior obscurantismo político da história brasileira devido à ampla atuação do regime militar em sua fase de maior violência contra os direitos individuais dos cidadãos. À juventude restou o espaço político da resistência; resistência esta que foi sendo costurada por instituições de cunho humanista e de visibilidade internacional como a Igreja Católica, a Imprensa e organismos internacionais ligados à ONU. As artes se mostraram como um setor privilegiado de manifestações políticas capaz de capilarizar imagens e mensagens fossem elas cifradas ou abertas.

O pequeno espaço dado pelo regime militar para essas mobilizações políticas fez com que os jovens engajados nas atividades políticas procurassem as pulverizadas organizações que pudessem oferecer qualquer meio de manifestação, agora desarticulada e pulverizada em sua forma. Essa nova condição de ação levou os jovens a se articularem em torno de agendas focadas. Exemplos destes focos de agendas podem ser vistos na pressão pela ampliação das vagas nas universidades, briga por mais verbas para ações dos jovens no campo cinematográfico e teatral, movimentos contra a censura dos meios de comunicação e luta pela anistia política. Foi nesse movimento de elaboração de agendas políticas possíveis que a sociedade civil brasileira articulou uma verdadeira rede de cidadania que ao final dos anos 1970 começam a ganhar representatividade no jogo político e começam a exigir nova postura e mudanças por parte do regime militar.

Alguns desdobramentos significativos do ambiente propiciado pela forte repressão militar foram: o afastamento das lideranças políticas historicamente estabelecidas com o conseqüente vácuo de proposições, entrega da condução dos temas nacionais ao capital internacional, forte mordaça aos movimentos sociais, desarticulação dos movimentos trabalhistas e de suas lideranças. Quando se junta tudo isso a um forte crescimento econômico, é de se esperar que uma ampla camada da população sob tais efeitos crie um sentido de ajustamento às novas regras principalmente quando motivados e premiados pelas melhorias materiais disponíveis a camadas significativas da população.

Pelo lado dos empresários, produzir, lucrar, ampliar, investir e empregar representam claramente o progresso. Pelo lado das pessoas, consumir, poupar, experimentar, possuir, trabalhar, viajar e consumir são fatores de possíveis realizações pessoais e grupais. Por esses fatores é muito importante que possamos relacionar esse eixo metodológico aos de marcos estéticos e culturais e ao de consumo, mídia e urbanidade, pois nos possibilitarão a visualização das práticas sociais motivadas por esta dinâmica das políticas públicas. Dinâmica essa que vai encontrar fortes mudanças de ambiente ao entrar na próxima década.

 

3. Juventude brasileira nos anos 1960 e 1970: acontecimentos e marcos estéticos e culturais

Este eixo metodológico e analítico investiga, dentro de uma perspectiva histórica, os principais acontecimentos e marcos estéticos e culturais que evidenciam a presença e o protagonismo juvenil por um lado e, por outro, a ressonância que tenham tido sobre os jovens e as culturas juvenis. A ênfase principal encontra-se na cultura como prática cotidiana e experiência vivida (Williams, 1992) que envolve a produção e o consumo de bens culturais (Certeau, 1996, Canclini, 1995), assim como a dimensão sensível que compreende a apreensão e a representação dessas experiências cotidianas (Martín-Barbero e Rey, 2001). Estes aspectos são centrais para o entendimento do jovem contemporâneo e também dos processos de constituição do protagonismo das culturas juvenis do ponto de vista da produção e apropriação culturais, das transformações políticas e sociais que se atrelam aos jovens por meio da música, teatro, cinema, literatura, arte urbana, usos do corpo, modas, etc. Considera-se ainda a importância da cultura e da estética nas práticas políticas e na construção da cidadania juvenil (Reguillo, 2003). A metodologia de constituição dessa cartografia parte da busca pela recuperação das experiências, das práticas juvenis e da voz dos jovens no contexto político brasileiro a partir de levantamento e análise da bibliografia e outras fontes como filmes documentários, reportagens, obras de ficção literária, sites e acervos museológicos.

Marcos estéticos e comunicacionais

A juventude brasileira dos anos 1960 e 1970 foi embalada, especialmente, pela música e pelo cinema. O chamado Cinema Novo repercutiu de maneira contundente nos jovens mais engajados politicamente. Os filmes de Glauber Rocha estimulavam discussões intermináveis em mesas de bar e universidades, propondo uma nova estética de experimentação radical de linguagem e questões temáticas vinculadas ao povo e à denúncia social.

No plano musical a Jovem Guarda e o Tropicalismo envolveram a juventude brasileira de forma marcante e histórica nos anos 1960. A Jovem Guarda, vinculada à televisão, representou a versão nacional da energia rebelde do rock and roll, introduzindo no Brasil a cultura pop e criando os primeiros ídolos jovens do país. Os festivais de música, associados às emissoras de TV, mobilizavam a juventude dos anos 1960 de forma barulhenta e conflituosa; a sonoridade das guitarras do tropicalista Caetano Veloso, encarada como elemento estrangeiro, causava polêmica; sua música foi rejeitada por parte do público estudantil que o acusavam de omissão ante o avanço da ditadura (Hollanda, 1982). Na década seguinte o grupo musical Os Novos Baianos foi a mais perfeita tradução da filosofia hippie do momento e da geração pé-naestrada; viveram em comunidades, com alimentação natural, muitos filhos, muita música que bebia direto na fonte da contracultura e no tropicalismo. Por outro lado, a Onda Disco - de Discotheque - envolveu parte considerável da juventude dos grandes centros urbanos marcada por excentricidades, excessos na moda e pela emergência de drogas como a cocaína, mais cara e considerada chique (Carmo, 2003). Na periferia do Rio de Janeiro a música black começava a abarcar milhares de jovens, em sua maioria negros e pobres, com o funk e soul music; acompanhando esse fenômeno musical toda uma geração incorporou cabelos afro, visual e estilo que constituíram a identidade negra e juvenil brasileira.

Na cena teatral do final dos anos 1960 busca-se romper com a postura passiva e tradicional de teatro para provocar o público, tornando-se referência aos jovens engajados na denúncia e na busca de mobilização social. Na década seguinte nasciam os grupos de criação coletiva centrados na experimentação estética e conteúdo articulado ao cotidiano juvenil. A dança foi muito além dos pas-de-deux, partindo para coreografias inovadoras, cenários realistas, movimentos de protesto, trazendo à cena grupos até então invisíveis, como negros e índios.

Na literatura, Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir informavam os jovens dos anos 60 que se interessavam pelas questões literárias, políticas e comportamentais. O poeta russo Maiakóvski era leitura obrigatória de parte dessa geração que desprezava roupa, adornos e optava por um estilo mais despojado e simples. Compreendida como uma forma de resistência, a poesia dos anos 70 corria pela margem e circulava de mão em mão em livrinhos da Geração mimeógrafo: grupo de poetas que editavam seus trabalhos com recursos próprios e em pequenas tiragens; uma produção artesanal vendida pelas mãos dos próprios autores em bares, ambientes universitários, portas de cinema e teatro.

Nos anos 70 o mercado editorial passa a fazer parte do cotidiano juvenil de forma marcante. A Revista Pop, da Editora Abril, era especializada em comportamento jovem apresentava críticas sobre bandas e shows de rock, abordava temas como sexo, novidades musicais, moda, aparelhos de som, sugestões de LPs, livros, hit parade, carros e motos (Carmo, 2003). No auge da ditadura o jornal O Pasquim foi o mestre no novo tipo de comunicação que pressupunha a leitura das entrelinhas para se entender o significado; representou uma revolução cultural para aquela geração por meio do seu humor crítico.

Modificações comportamentais

A chegada da pílula anticoncepcional promoveu uma ruptura e uma transformação no comportamento dos jovens dos anos 60. A sexualidade passou a ser vivida de um modo intenso e inusitado, marcada pela experimentação e o desejo de não reproduzir o padrão de relacionamento paterno. As mulheres, especialmente as jovens, sentiam-se agora donas do seu próprio corpo; tabus como a virgindade e pudores relacionados ao próprio corpo começavam a ser questionados.

A moda trazia novos ares àquela juventude, incorporando o vestuário antes associado apenas ao movimento hippie e seu principal traje: jeans e camiseta. O jeans popularizou-se nos anos 60 entre os jovens que buscavam um estilo de vida mais livre e menos opressor; ligava-se ao culto ao corpo e à busca da sensualidade mais espontânea. Os que o adotaram eram rebeldes às normas convencionais, manifestando sua postura de crítica à ostentação capitalista. As camisetas, complemento indispensável dos jeans, passaram a ser usadas como símbolo de contestação e ousadia. As minissaias reforçaram a moda como status de afirmação de um determinado estilo de vida e padrão de comportamento, relacionando-se também a um processo de emancipação feminina, liberdade e autonomia. Naquela década o biquíni atingiu o auge de popularidade tornando-se, ao lado da minissaia, símbolo da cultura pop da época.

A emergência da emancipação feminina verificada na moda e no comportamento da década de 60 ganha mais evidencia na década seguinte. Leila Diniz, estrela do cinema nacional e da TV tornou-se símbolo dessa emancipação e despontou como um ícone na liberação dos costumes. A liberação da sexualidade fora do casamento e a possibilidade de sustentarse sozinha foram os dois pilares da superação de tabus promovida pelas mulheres da década de 70. Nesta ruptura com os padrões sexuais, homem podia "experimentar" homem, mulher com mulher e todos com todos (Dias, 2004).

Nos anos 70 a camiseta foi adotada por jovens como veículo de defesa do meio ambiente e como um dos elementos da moda unissex que emergia. Prevalecia a ambigüidade sexual; homens e mulheres usavam cabelos longos e roupas unissex em muitas cores vivas, calças boca de sino, jeans manchado e apertado.

Um dos principais cenários dessa nova relação com o corpo nos anos 70 era o pier de Ipanema, que se tornou a praia hippie de Ipanema, um grande underground a céu aberto e freqüentado por gente de todo tipo. As conversas tratavam de mapa astral, macrobiótica, orientalismo, comunidades alternativas, drogas, a "nova era" e a peça Hair; compravam-se sanduíches naturais, livros de poesia da geração mimeógrafo, gibis e revista alternativos (Castro, 1999).

Os hippies dos anos 70 assumiram a preferência pela revolução comportamental à revolução social por meio de suas roupas, adereços e consumo de drogas associado à libertação da mente e à experimentação. Emerge a vida em comunidade com a adoção de um estilo de vida mais natural, comida vegetariana e macrobiótica, prática de meditação e ioga, negação das bebidas alcoólicas e preferência ao uso da maconha, ácido e cogumelos. Muitos jovens fizeram a opção por um estilo de vida alternativo, deixando cedo a casa de seus pais em busca de independência e novas experiências. Fugiam das cidades grandes, apenas de mochila, pedindo caronas, acampando e dirigindo-se ao litoral brasileiro. Crítica ao consumismo, essa geração pé na estrada vestiu-se com roupas de brechós e adereços de feiras hippies. Lia-se Castaeda, Aldous Huxley e filosofia oriental (Dias, 2004).

Mobilizações políticas

Os anos 60 marcaram o momento em que a cultura fez política (Dias, 2004). O Centro Popular de Cultura (CPC) visava formar no trabalhador brasileiro uma consciência revolucionária e nacionalista por meio da música, teatro, cinema e literatura. Envolvendo toda uma geração de estudantes, investiu também no desenvolvimento da produção artística de ação política de esquerda.

Tropicalismo e passeata se confundiam nos anos 60, as pessoas eram as mesmas. Multiplicavam-se as passeatas em São Paulo e no Rio de Janeiro. O ano de 1968 foi marcado por diversas manifestações públicas contra o regime militar e o movimento estudantil segue se organizando e sofrendo a forte pressão policial. Na "batalha da Maria Antonia" estudantes de filosofia da USP enfrentaram violentamente os alunos do Mackenzie e integrantes do CCC (Comando de Caça aos Comunistas). Os conflitos acentuaram-se, as diferenças ideológicas aprofundaram-se.

Na década seguinte os movimentos estudantis enfatizaram a resistência à ditadura militar que buscava desmobilizar os estudantes, que continuavam a organizar seus encontros nacionais; em represália, a tropa de choque investia violentamente contra os estudantes, como na invasão da PUC-SP em 1977. Parte dos jovens do movimento estudantil envolve-se na guerrilha urbana embalados pelos ideais socialistas, inspirados pela revolução cubana e pelos Tupamaros. Alguns deles, muito jovens, sequer tinham tido sua primeira namorada e já estavam inscritos em alguma organização. (Dias, 2004). Após a bem sucedida ação de seqüestro do embaixador norte-americano, cujo objetivo era a libertação de quinze dirigentes revolucionários, os seqüestros tornaramse uma constante, consolidando-se como uma marca da guerrilha urbana.

A LIBELU, abreviação de "Liberdade e Luta", corrente do movimento estudantil dos anos 70, era uma combinação de política e comportamento; o trotskismo convivia com o rock e o uso de maconha. Esses jovens discutiam Walter Benjamin, Adorno e Foucault; anulavam seus votos, freqüentavam cineclubes e os bares paulistanos, admiravam os surrealistas e passavam os carnavais na Bahia assistindo os shows de Gilberto Gil e Caetano Veloso (Dias, 2004).

As décadas de 60 e 70 foram marcadas pela forte articulação entre cultura e política. Os "anos de chumbo" marcaram a trajetória do movimento estudantil e a vida de toda uma geração de jovens. Foram anos em que as experiências estéticas derivadas do cinema, música, teatro e literatura falavam de política, de visões de mundo, de desejos de transformação. As mudanças no universo feminino, a liberação da sexualidade, os novos usos do corpo e a moda foram encaradas por aqueles jovens, agora responsáveis pelo seu presente e futuro, como um processo libertário e transformador. Fez-se política com passeatas, seqüestros, morte e tortura, mas também com cabelos compridos, minissaia, maconha, sexo e rock and roll.

 

4. Juventude brasileira nos anos 1960 e 1970: consumo, mídia e urbanidade

Nas décadas de 60 e 70 manifestações culturais, produtos de consumo, peças publicitárias são percebidas como componentes vitais na tessitura de um contexto de urbanidade bastante peculiar. Nele, política, cultura, contestação, resistência e visibilidade participam de um período ímpar, no qual se confrontam, via ação política e intervenção cultural, a disputa por modelos possíveis de identidade nacional e recursos bastante concretos de produção de subjetividades. Os segmentos juvenis disputavam regimes políticos e simbólicos com o poder institucional - e ditatorial - e conviviam com a inserção cada vez mais expressiva de meios de comunicação massiva no cotidiano dos brasileiros.

Não por acaso, exatamente no final da década de 60, mais precisamente no dia 1º de setembro de 1969, vai ao ar o longevo Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão, primeiro jornal em rede colocado no ar. Na voz dos locutores Hilton Gomes e Cid Moreira, o telejornal apresentava-se como integrador do Brasil novo, com imagem e som de todo o país. Fechando a edição, reafirmavase como um serviço de notícias do primeiro jornal realmente nacional da tevê brasileira. Como notam Borelli e Priolli (2000),

Não seria demais registrar que a arrancada da TV Globo, seu grande salto rumo á consolidação da audiência, dar-se-ia num contexto de junção da modernização tecnológica das comunicações, do impacto de um período de estabilização econômica e da, por assim dizer, nacionalização da emissora. Essa nacionalização efetiva-se realmente em 1969, quando Roberto Marinho vê-se forçado a romper sociedade com o capital estrangeiro. "Conjugava-se, ao nítido apelo popular, a positivação da experiência de urbanização brasileira, com a valorização do cenário urbano como paradigma da modernização desejada". (Borelli e Priolli, 2000: 53-4).

É também imperativo considerar como o universo do consumo permite a construção de uma verdadeira cartografia dos usos culturais. As narrativas aí forjadas possuem uma função especular, constituindo-se como mediadores significativos de discursos disciplinares, mas, igualmente, sinalizando uma massificação do acesso às possibilidades de expressão subjetiva. Neste sentido,

(...) assumir uma leitura essencialmente política deste perene casamento entre comunicação e consumo (...) inevitavelmente significa falar em mídia. Significa, ademais, defender uma concepção de mídia associada à percepção de seu inegável espraiamento social, seja enquanto prática concreta, seja como mecanismo simbólico, seja como sistema-mundo capaz de oferecer lógicas mediadas de percepção e ação cultural.

(...) Consumir, neste caso, é muito mais do que mero exercício de gostos, caprichos ou compras irrefletidas, mas todo um conjunto de processos e fenômenos socioculturais complexos, mutáveis, através dos quais se realizam a apropriação e os diferentes usos de produtos [e] serviços (...). (Rocha, 2008).

A passagem das décadas de 60 para 70 é um momento paradigmático na articulação entre culturas juvenis e culturas do consumo. Epifenômeno social e analítico, assistem à inauguração de uma linhagem discursiva-social relevante, na qual as práticas, hábitos e bens de consumo, material e simbólico, tornam-se elementos decisivos na construção narrativa e na visibilização do que seria um modo de ser juvenil no Brasil. Permeando estas narratividades midiáticas, a linguagem publicitária, como se verá a seguir, é componente de grande força, tomando para si o equacionamento de tensões fundantes deste "ser jovem" nas décadas de 60 e 70.

Longe de nos referirmos a narrativas como lugares abstratos, interessanos assumir sua vinculação a efetivas ações comportamentais levadas a cabo por jovens inseridos na vida social, em suas dimensões políticas, culturais e cotidianas. Assim, a construção narrativa propriamente midiática coloca-se inevitavelmente em contato com as atuações concretas capitaneadas por grupos, segmentos e jovens particulares. A estes, por sua vez, o campo midiático passa a ser oferecido como espaço possível e legítimo de vinculação.

A cena urbana dos "anos dourados", potente imaginário social alentado ao longo da década de 50, é desbancada. Mutação comportamental. Protagonismo juvenil. Explosão cultural. O que fazer com esta rebeldia de mil faces desenhava-se como verdadeira questão - política - nacional. O terror de minissaias e fuzis. A maconha e o LSD convivendo com a ideologia antisistêmica: anti-drogas, anti-consumo, anti-alienação. O engajamento político dos estudantes insurgentes no pós-golpe militar não parecia tolerante com os cuidados estéticos clássicos, mas tampouco forjava uma identificação pacífica com a estética contracultural.

As estratégias de enfrentamento e os meios de contestação eram vários. O pânico dos cabelos longos e os exercícios de liberdade que se faziam tipicamente juvenis tinham trilha sonora. E era variada: a liberdade comportamental nem sempre caminhava de mãos de dadas com a defesa da libertação política. Interessa-nos, contudo, destacar a sincronicidade de tais fenômenos contestatórios e o quanto eles, exatamente por sua pluralidade, contribuíram para um deslocamento da apreensão idílica do juvenil como lugar do sonho e do encantamento pacífico.

A adolescência e a juventude parecem, pouco a pouco, tomar para si a sua própria definição identitária. Tratava-se menos de percebê-las como um lugar das experimentações tateantes e mais como um campo de vivências intensivas que tomavam o aqui e o agora como o verdadeiramente possível. Um possível daqueles que já sabiam a hora e, exatamente por isso, não estavam mais dispostos a esperar2·.

Utilizando a propaganda como ferramenta analítica, agora relacionando-a à emergência do entendimento contemporâneo de "juventude", é interessante notar, nos anos 60, a escassez de propagandas direcionadas especificamente ao jovem. No Brasil, as propagandas dirigidas a este público começam a proliferar e a constituir um perfil comunicacional mais específico no início da década de 70. E é sintomático que grande parte destas primeiras propagandas façam referência clara e direta aos movimentos contraculturais que tiveram seu grande boom nos anos 60. Uma propaganda da US Top de 72, por exemplo, afirma que "liberdade é uma calça velha, azul e desbotada". A Pepsi entra no mercado com um paradigmático jingle, que levaria, aos lares brasileiros, um pouco do espírito desse tempo, obviamente que em sua "tradução" midiática:

    Hoje existe tanta gente que quer nos modificar Não quer ver nosso cabelo assanhado com jeito Nem quer ver nossa calça desbotada, o que é que há? Se o amigo está nessa ouça bem, não tá com nada Só tem amor quem tem amor para dar (...) Nós escolhemos Pepsi e ninguém vai nos mudar.

Algumas propagandas da Hering, publicadas na revista Pop, na década de 70, são paradigmáticas no que se refere à imbricação juventude, contracultura e práticas de consumo. Uma delas, por exemplo, anuncia: "malhas Hering dão à juventude todo o direito de contestação. E os meios para isso [as camisas na quais os jovens podem pintar dizeres]".

É interessante notar que o violão aparece como marcador "jovem", elemento que o identifica, do mesmo modo que a "vestimenta jovem", totalmente dispare da roupa "adulta", que está começando a aparecer. Os homens representados trocam a calça social pelo jeans e, depois, a camisa social pela t-shirt - câmbio que, pode-se perceber pelas nomenclaturas, ecoa um american way of dressing com vocações globalizantes. As jovens, além do conjunto unissex e universal, aparecem também com minissaias, calças cigarrete, vestidos de corte geométrico etc. O corpo jovem também entra em evidência e tipifica-se mais fortemente - a modelo Twig, magérrima para a época, é normalmente citada como um marco neste sentido -, prenunciando a onda fitness dos anos 70.

Se o Pasquim, primeira publicação underground de longo alcance, também nascida nos 70, conclama com ironia e acidez narrativa a insurgentes de várias frentes e faixas etárias, uma frase do editorial da primeira edição da revista Pop (apud Borges, 2003), denunciando os pressupostos que seguem a inicial delimitação do público - "feita para você jovem de quinze a vinte e poucos anos de idade" - é esclarecedora: "indicações para você comprar as últimas novidades em discos, livros, aparelhos de som e fotografia, máquinas e motocas, roupas incrementadíssimas". O consumo aparece, então, como esfera privilegiada de diferenciação, apresentando-se como recurso eficaz na definição e mediação das identidades juvenis. Os "comportamentos contestadores" são vendidos por toda a revista e, visualmente, faz-se referência à estética "psicodélica". Se, inicialmente, nos anos 60 e início dos 70, o importante era quebrar estética e politicamente com a ordem tradicional, com o passar do tempo, a "juventude" vai gradualmente se integrando ao mainstream enquanto se segmenta em "tribos" cada vez mais díspares.

Ao lado da liberação sexual feminina, a androginia como recurso estético entra em cena. Esse jovem em trânsito recebe insumos significativos ao seu estilo-de-vida na conjunção consumo/tecnologia. A década de 70 é também a era dos gadgets, da possibilidade de carregar consigo pequenas engenhocas, como os walkmans e as câmeras super-oito. As primeiras intervenções de pichações-poéticas tomam conta das ruas. Em 1972, dois anos antes da posse do general Ernesto Geisel na presidência do Brasil, Raul Seixas, ícone nacional de uma forma debochada, agressiva e escrachada de se fazer crítica ao sistema, lança seu LP Krig-ha Bandolo!. Em 1977 e 1978, as manifestações estudantis e os movimentos grevistas do ABC paulista ocupam a cena política. No mesmo período, os jovens "ganhariam" um carro ideal, o corcel, melhor ainda se dentro dele estivesse uma bela aparelhagem de som. A cocaína, droga da aceleração, também se populariza. E é neste exato momento que o tráfico organizado começa a ganhar força nas cidades brasileiras.


Notas

* Este artigo baseia-se na investigação em andamento "Jovens urbanos: ações estético-culturais e novas práticas políticas" inserida no Grupo de Trabalho del Consejo Latinoamericano de Ciências Sopciales (CLACSO), "Juventud y nuevas prácticas políticas en América Latina" (abril de 2007-2010).

1 A equipe de investigação é composta, ainda, pelas bolsistas de iniciação científica (PIBIC/CNPq/ PUCSP) Ariane Aboboreira, Ana Carolina V. Laguna, Maria Carolina Fernandes; pelo mestrando Daniel Bittencourt Portugal e pelo assistente de pesquisa Lucas Bonini (ESPMSP), todos efetivos colaboradores na produção deste texto.

2 Referência à clássica canção interpretada por Geraldo Vandré: "Quem sabe faz a hora, não espera acontecer".


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