SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.9 número1Cidadania juvenil, juventude e Estado Discursos do governo sobre seus significados: Government discourses over its meaningsIdéias de paz em jovens deslocados na cidade de Cúcuta índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Em processo de indexaçãoCitado por Google
  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO
  • Em processo de indexaçãoSimilares em Google

Compartilhar


Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud

versão impressa ISSN 1692-715Xversão On-line ISSN 2027-7679

Rev.latinoam.cienc.soc.niñez juv v.9 n.1 Manizales jan./jun. 2011

 

 

Segunda Sección: Estudios e Investigaciones

 

 

“Todo mundo conhece a gente agora”: cultura e identidade de jovens rurais em Minas Gerais (Brasil)*

 

“Todo el mundo nos conoce a nosotros ahora”: cultura e identidad de jóvenes rurales en Minas Gerais (Brasil)

 

“Everybody know us now”: culture and identity of young rural in Minas Gerais (Brazil)

 

 

Luca s Magno1, Sheila Maria Doula2, Neide Maria de Almeida Pinto3

1 Estudante de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Extensão Rural da Universidade Federal de Viçosa, Minas Gerais - Brasil. Geógrafo e membro do Observatório da Juventude Rural da Universidade Federal de Viçosa. Correio eletrônico: lucasgeoufv@yahoo.com.br

2 Professora do Programa de Pós-Graduação em Extensão Rural da Universidade Federal de Viçosa, Minas Gerais - Brasil. Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo e líder do Observatório da Juventude Rural da Universidade Federal de Viçosa. Correio eletrônico: sheila@ufv.br

3 Professora do Programa de Pós-Graduação em Economia Doméstica da Universidade Federal de Viçosa, Minas Gerais - Brasil. Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Correio eletrônico: nalmeida@ufv.br

 

 

Artículo recibido septiembre 27 de 2010; artículo aceptado diciembre 20 de 2010 (Eds.)

 


Resumo:

O objetivo do artigo é analisar a construção de identidades entre os jovens de um bairro rural de Viçosa (estado de Minas Gerais, Brasil) a partir da representação social que eles fazem do projeto artístico de percussão musical “Tambores do Buieié” e verificar como eles (re)significam a cultura como resposta ao estigma que a sociedade urbana construiu em relação à comunidade. Nessa pesquisa utilizamos como metodologia a observação não-participante e entrevistas com roteiro estruturado. O bairro do Buieié agrega uma população descendente de ex-escravos vivendo em condições precárias, o que faz com que a população da cidade construa sobre ele uma identidade baseada em categorias pré-concebidas associadas à localidade, o que acaba por sedimentar uma identidade conflitante com aquela que os próprios moradores do Buieié elaboram sobre si. O projeto cultural se coloca como uma alternativa aos jovens para a (re)construção e valorização da identidade territorial a partir da alteridade.

Palavras-chave: jovens rurais, representação social, identidade, políticas públicas.


Resumen:

El objetivo del artículo es analizar la construcción de identidades entre jóvenes de un barrio rural de Viçosa (estado de Minas Gerais, Brasil) a partir de la representación social que ellos hacen del proyecto artístico de percusión musical “Tambores do Buieié” y verificar como ellos (re)significan la cultura como respuesta al estigma que la sociedad urbana construyó en relación a la comunidad. En esta investigación se utilizó como metodología la observación no participante y entrevistas con un plan de trabajo estructurado. El barrio Buieié añade una población descendiente de ex-esclavos viviendo en condiciones precarias, lo que hace que la población de la ciudad construya sobre ellos una identidad basada en categorías preconcebidas asociadas al lugar, que resulta por sedimentar una identidad en conflicto con la que los propios residentes de Buieié elaboran sobre sí mismos. El proyecto cultural se presenta como alternativa a los jóvenes para la (re)construcción y valorización de la identidad territorial a partir de la alteridad.

Palabras clave: jóvenes rurales, representación social, identidad, políticas públicas.


Abstract:

The objective of this paper is to analyze the construction of identities among young people in a rural neighborhood in Viçosa (in Minas Gerais, a state in Brazil) from the social representation that they do with the musical percussion art project “Tambores do Buieié” (Drums of Buieié) and check how they (re) signify the culture as a response to the stigma that urban society has built in relation to that community. In this research it was used as methodology the non-participant observation and interviews with a structured script. The neighborhood of Buieié has a former slave’s descendant population living in precarious conditions, what leads the townspeople to build an identity on them based on preconceived categories associated with the location, which turns out to settle a conflicting identity to the one the Buieié residents themselves elaborate about them. The cultural project stands as an alternative for young people to the (re)construction and valorization of territorial identity from alterity.

Key words: rural youth, social representation, identity, public policy.


 

1. Introdução

 

Em uma sociedade globalizada estabelecemos uma constante relação dialética entre agentes sociais e lugares que, mesmo influenciados por padrões culturais universais, acionam e são acionados por representações sociais identitárias específicas que (re)significam modos de vida e espaços (Santos, 2004). Partindo desse pressuposto, este trabalho pretende compreender um determinado contexto no qual se constrói a representação social de um grupo de jovens, que tem como insígnia a valorização das origens (do território) mediante as quais reelaboram sua história e sua identidade enquanto afro-descendentes rurais. Para operacionalizar essa proposta recorremos a um referencial conceitual da antropologia e da sociologia que possibilite um melhor entendimento das categorias analíticas aqui utilizadas, a saber: juventude rural, representação social, identidade e políticas públicas.

Pesquisamos a representação social dos jovens moradores do Buieié, um bairro rural do município de Viçosa, região da Zona da Mata de Minas Gerais, no Brasil, formado por uma população majoritariamente negra vivendo em condições de precariedade socioespacial. Esses jovens participam do projeto cultural denominado “Tambores do Buieié”, realizado pelo Núcleo de Arte Viva (NAVI), uma Organização Não-Governamental (ONG) que desde o ano 2000 realiza trabalhos no bairro. Em 2004 recebem verbas do Ministério da Cultura do Governo Federal para financiar o desenvolvimento de atividades musicais de percussão, utilizandose apenas tambores, instrumentos que remetem à ancestralidade negra. Nesse contexto, o artigo busca analisar como se constrói a identidade do segmento juvenil participante do projeto e sua relação com o “outro” - os moradores das cidades e de outras localidades onde os jovens realizam apresentações culturais.

A pesquisa abrangeu os jovens moradores do bairro participantes do projeto cultural. Para delimitar a faixa etária a ser pesquisada utilizamos como critério que o entrevistado tivesse idade entre 15 e 29 anos (faixa etária definida pelo Governo Federal para direcionar a Política Nacional da Juventude, criada em 2005). Em relação ao número exato de entrevistados, apesar de sabermos que há aproximadamente 60 residências no Buieié, não tínhamos a informação exata do total de jovens residentes no local; assim, tomamos uma amostra de 20% do total de residências, o que resultou em 12 entrevistados. Trata-se de uma pesquisa descritiva e explicativa, fazendo uso da observação não-participante e de entrevistas pessoais com um roteiro estruturado, dando relevância aos aspectos subjetivos da ação social face à configuração das estruturas sociais.

 

2. Juventude rural e políticas públicas

O tema juventude tem se afirmado nas discussões das ciências sociais a partir do final do século XX, principalmente referentes ao contexto urbano. No Brasil, especificamente, esse campo temático se tornou mais evidente a partir dos anos 90, quando inúmeras organizações da sociedade civil como ONGs, movimentos sociais e igrejas aproximaramse do universo juvenil, buscando compreendê-lo e interagir com ele, ao mesmo tempo em que os governos colocaram em suas agendas a necessidade de formular políticas destinadas a atender as demandas específicas desta população. Contudo, é possível afirmar que, no caso específico do Brasil, essas primeiras ações foram formuladas no sentido defensivo, com vistas a remediar um problema ou a evitar que ele se tornasse maior (Costa & Doula, 2009).

No ano de 2005 o governo federal criou a Política Nacional de Juventude, definida como um conjunto de diretrizes, metas e ações para orientar e potencializar as iniciativas públicas voltadas para a população brasileira com idade entre 15 e 29 anos. Tal política tem como objetivo organizar as ações do governo, criando programas para melhorar a qualidade de vida dos jovens brasileiros nas áreas de educação, cultura, saúde e lazer. No entanto, no Guia de Políticas Públicas de Juventude, elaborado pela Secretaria Geral da Presidência da República (2006), apesar das alusões à cultura, constatamos que a inclusão da juventude na agenda política do país é explicada, em grande parte, pelo fato de os jovens serem os mais atingidos pelas transformações no mundo do trabalho e também pelas diversas formas de violência física e simbólica. Assim, essa política voltase principalmente para ações nas esferas do trabalho e a da segurança e/ou prevenção da violência.

Na esfera acadêmica, Maria José Carneiro (2005) destaca que ainda há poucas pesquisas existentes a respeito da juventude, especificamente sobre jovens rurais. A autora constata que, dentro de um contexto em que são considerados membros de uma equipe de trabalho familiar - aprendiz de agricultor ou ajudante na complementação da renda da família -, quando o jovem rural é visto, o é na perspectiva do trabalho. Soma-se a isto o fato de que não se trata de qualquer trabalho, mas principalmente do trabalho agrícola. Nesse sentido é interessante observar que, em se tratando do governo federal, as políticas públicas para os jovens rurais estão concentradas, sobretudo, no Ministério do Desenvolvimento Agrário, subsidiando a produção agrícola de base familiar. Além disso, a juventude rural brasileira é constantemente associada ao problema da migração do campo para a cidade. Segundo Castro (2009):

    Ser jovem rural carrega o peso de uma posição hierárquica de submissão, em um contexto ainda marcado por difíceis condições econômicas e sociais para a produção familiar. Diversos estudos no Brasil e em outros países apontam para a tendência da saída, nos dias atuais, de jovens do campo rumo às cidades […]. Se essas pesquisas confirmam o deslocamento dos jovens, outros fatores complexificam a compreensão desse fenômeno. O “problema” vem sendo analisado através de dois vieses. Há certo consenso nas pesquisas quanto às dificuldades enfrentadas pelos jovens no campo, principalmente quanto ao acesso à escola e trabalho […]. Outro viés tem como principal leitura a atração do jovem pelo meio urbano, ou ainda, pelo estilo de vida urbano (Castro, 2009, p. 189).

De fato, a construção da identidade do jovem rural é constantemente influenciada pelo universo urbano; essa confluência se deve às novas experiências espaciais e comunicacionais que vivenciamos atualmente, colocando “o trânsito” entre o rural e o urbano como um processo constante. Assim, não podemos analisar esse segmento da população rural como se estivesse isolado, tão pouco devemos conduzir políticas públicas apenas na esfera econômica, somente à produção agrícola, por exemplo. Castro et al. (2009) chamam a atenção para a necessidade de

    […] refletir sobre certas repartições estanques existentes no senso comum e também no meio acadêmico acerca da juventude rural. É necessário perceber as transformações da noção de juventude, assim como ter melhor entendimento das práticas e significados distintos do que seja ser jovem em diferentes contextos e grupos (Castro et al, 2009, p. 61).

A reprodução da hierarquia urbano/rural tem perpetuado a construção de preconceitos e de relações de subalternidade, nas quais se considera o morar e o trabalhar no campo como uma condição desvalorizada cultural e socialmente. Além disso, não se resolve o “problema” do “ficar” ou do “sair” do campo apenas com ações no mundo do trabalho agrícola, como pretendem as atuais políticas públicas brasileiras destinadas à juventude rural.

Nesse sentido, segundo Castro (2009), uma das primeiras considerações a serem feitas quando direcionamos políticas públicas para o segmento juvenil da população rural é avaliar as demandas dos próprios jovens, a necessidade de observar a diversidade e especificidades da realidade da(s) juventude(s) rural(is). Segundo a autora, as pesquisas com a juventude rural brasileira têm apontado que os jovens preferem permanecer no campo, desde que não seja para trabalhar exclusivamente nas atividades agrícolas e que sejam satisfeitas suas necessidades básicas de educação, lazer e cultura.

É nessa pluralidade de demandas que se nota o descompasso das políticas públicas, notadamente as políticas culturais. A esse respeito Costa e Doula (2009) destacam que a pesquisa Perfil da Juventude Brasileira, ao indagar sobre o acesso dos jovens aos projetos e atividades culturais oferecidos pelo poder público ou por ONGs, revelou que entre os jovens rurais 94% afirmaram nunca ter participado de projeto algum nesta área. Tal dado confirma que esses jovens ainda se encontram desprovidos de políticas públicas alternativas como, por exemplo, as que focalizem a dimensão da cultura, da arte e do lazer. Entretanto, os autores advertem:

    […] embora se defenda que a juventude rural também deva ser contemplada com as políticas culturais, é necessário destacar os desafios que elas comportam […] a política cultural não deve ser sinônimo de espetacularização da cultura. Neste caso, as políticas culturais serviriam para criar mais obstáculos e impedir a população de usufruir de bens culturais (Costa & Doula, 2009, p. 09).

Para os autores, as políticas culturais para o meio rural não devem ser entendidas como “levar a cultura” para lá, reificando uma suposta superioridade das manifestações culturais urbanas; adotar esse viés implicaria aceitar que tais políticas teriam como foco apenas o financiamento de espetáculos, disseminando o gosto das classes urbanas, priorizando os espaços culturais somente disponíveis nos grandes centros e fazendo da cultura um veículo de marketing para os financiadores.

Assim, os autores defendem que a democratização cultural não significa induzir os 100% da população a fazerem determinadas coisas, mas sim oferecer a todos - colocando os meios à disposição - a possibilidade de escolher entre gostar ou não de algumas delas. Mas, isso exige uma mudança de foco fundamental, ou seja, não se trata de colocar a cultura ao alcance de todos, mas sim de fazer com que todos os grupos possam viver sua cultura. A tomada de consciência desta realidade deve ser uma das bases da elaboração de políticas culturais, pois o público é o conjunto de públicos diferentes: o da cidade é diferente do rural, os jovens são diferentes dos adultos, assim por diante; essa diversidade de públicos exige uma pluralidade cultural que ofereça aos indivíduos possibilidades de escolha (Costa & Doula, 2009).

Nessa mesma perspectiva Brenner et. al. (2005) sustentam que as políticas culturais para a juventude rural não devem apenas oferecer alternativas socioeconômicas mais amplas e nem somente contribuir para a contenção da migração dos jovens para a cidade. O mais importante seria oferecer condições para uma vivência contemporânea rural do tempo da juventude em termos de uma cidadania plena.

A nossa pesquisa no Buieié, como se pretende demonstrar, evidencia o desejo dos jovens em permanecer no bairro rural e a procurarem a cidade para estudo, trabalho e lazer, corroborando o argumento de Castro (2009). A pesquisa aponta também que os jovens do bairro não cogitam um projeto de vida voltado para a agropecuária, o que torna o discurso das políticas públicas brasileiras voltadas para a juventude rural muito distante do que os jovens de fato almejam.

Dissertamos no sentido de encarar o desafio de formular políticas públicas culturais para os jovens do meio rural que considerem o campo como um espaço cultural diferenciado, produtor e consumidor de um repertório próprio e diverso. Assim, a atenção que se deve ter ao formular políticas culturais para o meio rural é a de não imaginá-lo como um lugar sem cultura ou de fazer dessas políticas um mero canal de acesso para as ofertas culturais da cidade. Reconhecer que existem sujeitos culturais residentes no campo, portadores de múltiplas formas, conteúdos e saberes culturais organizados historicamente na relação de homens e mulheres na mediação do trabalho, das festas e dos rituais com a natureza, é condição para não entendê-los como sujeitos “da falta”. A cultura urbana, nesse sentido, não deve se apresentar como superioridade artística diante do que muitas vezes é considerado “folclore” e artesanato rural, mas como um outro registro, que se coloca em relação de diálogo e complementaridade com o fazer cultural dos sujeitos do campo.

Assim, defendemos nesse trabalho que a cultura e a arte têm a potencialidade de diminuição de barreiras urbano/rural, global/local, etc., e é esse movimento que o jovem rural quer fazer, mas não eliminando com isso o desejo expresso de permanecer na localidade de origem. Nesse aspecto concordamos com Wanderley (2009) e Stropasolas (2006) que consideram que os estudos rurais, especialmente aqueles voltados para a juventude, devem analisar o espaço local como lugar de convergência entre o rural e o urbano, como o encontro entre esses dois mundos.

    Nele, porém, as particularidades de cada um não são anuladas; ao contrário, são fonte de integração e cooperação, tanto quanto de tensões e conflitos. O que resulta dessa aproximação não é a diluição de um dos pólos […], mas a configuração de uma rede de relações recíprocas, em múltiplos planos que, sob muitos aspectos, reitera e valoriza as particularidades (Stropasolas, 2006, p. 83).

     

3. Que lugar é esse? O Buieié - delineamentos socioespaciais e identidades territoriais

No bairro do Buieié, há mais de cem anos, as terras foram parte integrante de uma antiga fazenda de engenho de açúcar de propriedade de uma rica senhora conhecida como Nhanhá do Paraíso. Com o declínio do escravismo no Brasil essa antiga proprietária repassou (por meio de doação ou de compra)1 duas grandes áreas de terras a seus escravos libertos, que àquela época haviam constituído um pequeno aglomerado de casas nos arredores da propriedade. Com a aquisição das terras se instaurou um processo de reterritorialização2, com a possibilidade de reconstituição de uma cultura tradicional em terras já antes habitadas por aquela população, mas que até então não era proprietária da mesma. A partir daí, o espaço passou a ser palco de um novo processo de construção das relações sociais, das relações de trabalho e das relações com a natureza. Figura 1

 

 

 

Atualmente o Buieié é constituído por dois núcleos: uma parte localizada no relevo mais alto das terras e uma parte mais rebaixada. A parte alta, denominada “Joãozinho”, é a que recebe menos influência da cidade, uma vez que não possui nenhum tipo de comércio. Na parte mais rebaixada do bairro, há maior aglomeração populacional com um comércio incipiente e uma estrutura menos rústica.

No bairro há, aproximadamente, sessenta (60) casas. Inicialmente elas foram construídas de “paua- pique”3 e barreadas, grande parte delas, pelo sistema de mutirão, conforme evidenciou o estudo de Pereira (2000)4. Com o passar dos anos, as antigas moradias foram sendo substituídas por casas de alvenaria. Atualmente, são poucas as casas que mantêm a antiga arquitetura, estando localizadas na parte mais alta do bairro (Figuras 2 e 3).

 

 

 

 

No Buieié, nos arredores das casas, constatouse um mesmo arranjo físico-funcional: a casa ou casas de uma mesma família, o quintal, o paiol, o terreiro para a horta e uma pequena área para cultivo de gêneros básicos ao consumo de toda a família. Essa disposição espacial das habitações influencia as relações sociais entre os moradores (e é influenciada por elas), dado que no bairro grande parte dos moradores tem vínculo de parentesco, muito embora atualmente haja inserção de pessoas “de fora” do Buieié.

Apesar de incipientes e rústicos, alguns serviços estão presentes no bairro (na parte baixa): dois estabelecimentos comerciais para revenda de produtos à comunidade5 (o barzinho do “Zé de Nega” e o barzinho do “Maucinho”, onde também os moradores, principalmente os jovens, se reúnem para conversas e diversão), um telefone público, uma igreja católica e outra evangélica e o campo de futebol.

No que diz respeito ao acesso a serviços e à infraestrutura, na parte mais alta da comunidade não há telefones públicos ou pontos de ônibus próximos. Para ter acesso ao ônibus ou quando retornam da cidade, os moradores precisam atravessar uma “pinguela”6, passar por uma trilha no meio da mata e ainda percorrer um longo trecho do ponto final do ônibus até suas casas. Esse percurso fica mais desgastante, pois há uma subida íngreme sem nenhum calçamento e, quando chove, a terra vira lama, prejudicando inclusive a ida dos moradores para o trabalho. Segundo depoimento de moradores do Joãozinho, que trabalham na cidade de Viçosa, algumas vezes, eles chegam a “perder o dia” (perder o dia de trabalho), pois quando chove “o acesso é quase impossível” (Figuras 4 e 5).

 

 

 

Para análise da infraestrutura do Buieié considerou-se os aspectos relativos ao acesso que os moradores têm aos serviços públicos básicos: água tratada, destino final do lixo, serviço de captação do esgoto, energia elétrica, escolas, serviços de saúde e lazer.

Quase 90% possuem o serviço de água tratada pelo SAAE (Serviço Autônomo de Água e Esgoto) como fonte de abastecimento. Desses, aproximadamente 20% afirmaram importante ter também o poço artesiano e a cisterna para a captação da água da chuva para o abastecimento da residência. Em torno de 10% somente utilizam a água de cisterna, pois consideram esse abastecimento melhor que o serviço do SAAE.

O bairro não conta com uma rede de captação de esgoto: cerca de 80% jogam o esgoto no rio que atravessa o bairro e em torno de 20% depositam-no em fossas próximas às casas. Um morador afirma que “sabia que fazia mal ao rio, sujar ele”, mas alega não saber outra forma alternativa de lidar com o problema. Agravando o impacto ambiental, além do esgoto doméstico, o córrego também recebe os dejetos das criações de porcos, comuns naquela região, sem tratamento algum. No bairro também não há coleta de lixo: os moradores fazem a queima dos dejetos.

Todas as casas da comunidade possuem luz elétrica através da prestação de serviço da Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig). No entanto, não há iluminação nas vias públicas do bairro. A escuridão das ruas à noite é objeto de muitas reclamações dos moradores, sobretudo dos jovens que estudam nesse período e têm que fazer o percurso a pé, ou quando alguém adoece e tem que ser levado a um posto de saúde na cidade7. Quando alguém passa mal, “o jeito é pagar um taxi”, gasto este que representa um custo a mais na renda mensal das famílias que, em média, é de um salário mínino8.

O número de integrantes de cada unidade familiar é, em média, de seis pessoas: os pais, os avós, os filhos e, eventualmente, os netos. É comum no bairro os filhos residirem com suas famílias recém constituídas na casa dos pais para, posteriormente, construírem suas próprias casas no mesmo terreiro. Essa característica se apresenta também como uma estratégia das famílias do Buieié, uma vez que quando os pais conseguem trabalho e têm que permanecer o dia fora de casa, os avós ou tios são os responsáveis por cuidar das crianças das casas. Esse fato evidencia que as redes sociais de parentesco têm um importante papel na sociabilidade dos moradores e principalmente na reprodução sóciocultural e econômica das famílias.

A reprodução econômica do grupo se dá, principalmente, a partir do assalariamento fora do bairro, seja em atividades agrícolas, seja na prestação de serviço nos arredores da comunidade ou na cidade de Viçosa; alguns moradores vão para o trabalho na sede urbana do município, diariamente, em ônibus de horários escassos. Outros, porém, mantêm uma casa na cidade e outra no Buieié, mesmo com os gastos financeiros que isto representa.

O Buieié não possui escolas. Em função disso, os jovens em idade escolar buscam a prestação desse serviço no bairro mais próximo (quando estão no ensino fundamental) ou na cidade de Viçosa (para frequentarem ensino médio).

O número de moradias no bairro já foi maior no passado. Segundo os moradores, muitos foram embora à procura de oportunidades de trabalho, estudos e renda, pois as possibilidades no Buieié são escassas.

É nesse contexto, apesar de tantas carências visíveis, que devemos entender os processos ou fontes de significados que teriam possibilitado a construção de um sentimento de pertencimento, que compôs uma identidade territorial9, fazendo com que os moradores reconheçam o Buieié como sendo o seu lugar.

Esse sentimento evidenciou-se na valorização e referência frequente do bairro como o lugar de residência de “uma família bem grande”, já que quase todos têm relações de parentesco, como um lugar tranqüilo para se morar e, principalmente, como sendo o “meu lugar”, no sentido de serem donos da terra. Esses dois elementos, propriedade da terra e relações sociais de parentesco, além da ancestralidade étnica, explicam o vínculo dos moradores com aquele território10.

A formação da identidade territorial entre os moradores, portanto, está diretamente ligada não apenas à posição e ocupação geográfica, mas, principalmente, ao intercâmbio entre as famílias, à sua história enquanto afro-descendentes e aos laços antigos de propriedade e vivência naquela terra.

No entanto, para olhares da população urbana, o bairro é representado como um “aglomerado de exclusão” devido à marginalização do seu território, formado por uma população de “despossuídos” que, em vários sentidos, fica à margem do processo de capitalização (Haesbaert, 2002). Mas o fenômeno da exclusão deve ser analisado, segundo Martins (1997), também pelo prisma de uma inclusão precarizada, em virtude do fato de um grupo social poder estar submetido a determinadas formas de privação material e, ainda assim, ter outras formas de inclusão na sociedade, como aquelas derivadas do mundo do trabalho flexível e da representação da cultura (re)valorizada. Como veremos mais adiante, esse é o caso do bairro Buieié.

Partindo dessas premissas esse estudo busca, especificamente, entender em que medida se coloca a “exclusão” dos jovens rurais e como eles representam sua identidade através do projeto “Tambores do Buieié”. Nossa hipótese é que esses jovens utilizam a cultura - especificamente o projeto artístico de percussão musical - para valorizarem positivamente suas identidades e que essa reconstrução identitária surge como resposta ao estigma11 criado pela sociedade urbana em relação ao bairro que, além de rural, é visto como “pobre” e “de negros”.

Nossa hipótese nos conduz, portanto, ao campo de estudo das representações sociais. O conceito de representação parte do pressuposto que o mundo é compartilhado e construído por diferentes sujeitos; assim as representações são constantemente elaboradas e reelaboradas, inscrevendo-se na esfera da moral social, carregadas de conteúdos que estão presentes na memória dos indivíduos num contexto relacional. Ou seja, as representações sociais estão atreladas a valores simbólicos que podem ser ativados para fins políticos e sociais no confronto entre diferentes categorias e grupos (Jodelet, 2001).

Para Jodelet (2001) é fundamental desvendar o universo das representações sociais, pois ele é um saber construído em relação a uma ação, a palavras ou a imagens que são informativas sobre uma determinada realidade social. Para a autora, a análise das representações contribui com os estudos sobre a identidade, no sentido de que elas são codificadoras dos mecanismos de expressão da realidade, a exemplo da cognição, da linguagem, da comunicação, do discurso e da memória. Elas devem ser compreendidas como parte de um sistema articulado aos elementos afetivos, mentais e sociais, que também contribuem para elaboração de diferentes interpretações do real. Compartilhadas, as representações proporcionam aos grupos a aproximação de uma idéia em comum, de um vínculo social e de uma identidade que confere à coletividade um sentimento de pertencimento.

O termo imaginário, sob o ponto de vista da história cultural, é utilizado por Pesavento (1995) para definir o conjunto de imagens e discursos que tentam retratar a realidade. Mas, adverte a autora, estes recursos não a expressam integral e fielmente, pois as representações também abarcam julgamentos e interesses que o grupo considera de maior relevância, nos quais os atores sociais investem suas estratégias de poder e manipulação.

Desse modo, o imaginário se constitui como elemento que engendra processos de transformações, tornando-se instrumento de poder, conflitos e de lutas sociais por reconhecimentos. Para Stropasolas, a construção social da realidade por meio das representações

    […] é pautada nas inumeráveis ações, antagônicas, que os agentes operam, a cada momento, nas suas lutas individuais ou coletivas, espontâneas ou organizadas, para impor a representação do mundo social que seja mais adequada a seus interesses (2006, p. 34).

Nesse sentido, o autor argumenta que o local ou uma comunidade rural, por exemplo, configuramse “[…] como “arenas” de representações diversas, muitas vezes em conflitos, posto que o que se produz nas relações estabelecidas entre os atores sociais é uma resultante, não um consenso, do processo que define os interesses em jogo” (Stropasolas, 2006, p. 35).

Analisando especificamente as representações sobre o mundo rural que os jovens elaboram na contemporaneidade, Stropasolas afirma ainda que essa opção conceitual e teórica pode ser utilizada em

    […] situações específicas, pois permite uma interação entre a ação local e os processos econômicos e políticos que estão além da localidade e que possui uma influência importante. Este conceito se constitui num meio privilegiado para o exame das noções e práticas diversas e conflitantes (Idem).

Desse pressuposto é que surge uma característica do processo de construção de identidades muito relevante para nosso estudo. Ao contrário de interpretações do senso comum e mesmo científicas, que enfatizam a aparente estabilidade dos constructos identitários, eles são dinâmicos, estão sempre em curso. Nesse sentido é que alguns autores, a exemplo de Cuche (1999), preferirem falar em estratégias de identidade, baseadas em usos diferenciados que se pode fazer das representações disponíveis em um dado contexto e momento histórico.

Para esse autor, a identidade nunca é construída a partir da diferença ou de características “próprias”, singulares; há nesse processo de construção um caráter reflexivo, isto é, identificar-se implica em identificar-se com alguém ou com algo, num sentido relacional, dialógico. Assim, a identidade, por mais estável que pareça, é múltipla e está aberta a (re)construções e o ponto de partida para o entendimento do seu caráter estratégico é o de que ela é sempre produto da história.

Nesse sentido, podemos perceber que o conceito de identidade não se restringe às noções de originalidade, de tradição ou de autenticidade, pois processos de identificação e os vínculos de pertencimento se constituem tanto pelas tradições (memória, herança, imaginário, passado, etc.) como pelas traduções (estratégias, projetos, mudanças, rumos, etc.). As identidades, portanto, nunca são fixadas ou unificadas. Elas são construídas ao longo de práticas, discursos, posições sociais que podem se cruzar ou ser antagônicas, numa constante relação de poder.

No caso específico desse estudo, percebemos que os moradores do Buieié incorporam em sua historia também as imagens negativas de suas identidades construídas pelos residentes na zona urbana de Viçosa, em função da precariedade do bairro e do mesmo ser constituído majoritariamente por negros (a tradição). Assim, uma das tarefas do projeto “Tambores do Buieié” é, justamente, desfazer tal constructo no imaginário tanto da população da cidade como entre os próprios moradores do lugar (as traduções), colocando-se, portanto, como uma estratégia identitária e de reconhecimento social no sentido definido por Cuche (1999).

 

4. A construção da identidade territorial dos jovens a partir do projeto “Tambores do Buieié”: o contraponto às características socioespaciais do bairro e à imagem dos “de fora”.

As análises de Carneiro (1998) mostram que as relações sociais estabelecidas entre a população rural e urbana não diluem algumas diferenças ou as especificidades das identidades rurais. Na perspectiva dessa autora, a população rural se manteria ancorada em uma base territorial em constantes relações com o urbano, e mesmo assim, mantendo uma lógica alternativa a esse espaço e é isso o que lhes garante a manutenção de alguns elementos das identidades baseadas na tradição.

    […] as transformações na comunidade rural provocadas pela intensificação das trocas com o mundo urbano (pessoais, simbólicas, materiais…) não resultam, necessariamente, na descaracterização de seu sistema social e cultural como os adeptos da abordagem adaptacionista interpretavam. Mudanças de hábitos, costumes, e mesmo de percepção de mundo, ocorrem de maneira irregular, com graus e conteúdos diversificados, segundo os interesses e a posição social dos atores, mas isso não implica uma ruptura decisiva no tempo nem no conjunto do sistema social (Carneiro, 1998, p. 57).

O que essa autora destaca, e que corrobora Wanderley (2009) e Stropasolas (2006), é o processo de (re)construção dos espaços que possibilita à população, especialmente a rural, fazer releituras de valores urbanos e rurais, onde papéis sociais são redefinidos e projetos são reformulados sob novos contextos. As demandas dos jovens, por exemplo, é de um espaço rural integrado ao espaço urbano, sem, contudo, diluir as diferenças. Assim, dentro dessa perspectiva de diferenciação inter-relacional de identidades e espaços (rurais e urbanos), construímos as análises sobre representação social dos jovens participantes do projeto “Tambores do Buieié”.

Um dos elementos dessa diferenciação espacial pode ser evidenciado pelo fato de os jovens não possuírem bens materiais, “coisas modernas da cidade”, como eles dizem, que significa para alguns a exclusão, o retrocesso. Percebe-se o sentimento de inferioridade em relação aos moradores da cidade que têm esses bens, que emerge nas falas dos entrevistados:

    Sinto falta de coisas modernas. Se você não tem isso, você vai ficando só pra trás! Não ter acesso a isso é andar para trás. Aqui na roça é difícil, na cidade é mais fácil. (Evandro,18 anos, nascido e criado no Buieié ).

    Assim, achar importante eu acho né. Mas não tenho é dinheiro, né menino! Sem dinheiro nada feito, né? Essas coisas na cidade gastam muito (Maria Marta, 25 anos, nascida e criada no Buieié).

    Seria importante ter internet aqui. Não só eu, mas tem muitos jovens aí que quer ter isso sim, o pessoal aqui vai na cidade usar internet (Heliene, 21 anos, nascida e criada no Buieié).

Entre os jovens entrevistados foi significativo o número daqueles que queriam permanecer no bairro, mas mantendo vínculos, especialmente de trabalho e educação, na cidade (10 dos 12 entrevistados). A maior parte deles gosta da vida tranqüila no bairro e se sente ligado a ele pelos laços de amizade e de parentesco e, devido a isso, gostariam de continuar morando no Buieié. No entanto, reconhecem as carências estruturais relacionadas ao lugar, como a falta de trabalho e a ausência de serviços e de infraestrutura, por isso gostariam de ter acesso ao trabalho na cidade ou a outras oportunidades, como, por exemplo, os estudos e o lazer. Ou seja, os jovens do Buieié gostariam de poder transitar pelos mundos da cidade e do bairro rural, manter uma casa no Buieié e um trabalho na cidade, esta vista como o lugar das oportunidades. As falas, que são referências importantes para essas aferições, também corroboram as análises de Castro (2009) no tocante à questão do “ficar” ou “sair” dos jovens moradores de zonas rurais no Brasil:

    Me sinto muito bem aqui, não gostaria de sair do Buieié não! Ah, porque eu não ia conseguir morar em outro lugar não, eu acostumei aqui mesmo, ta bom. Às vezes durante a semana é meio parado aqui Mas é isso mesmo, o que eu queria caçar na cidade é um trabalho, trabalhar na cidade e morar aqui mesmo (Natalia, 21 anos, nascida e criada no Buieié).

    Me sinto bem demais, uai! Ah, aqui eu vou ao campo de futebol, tem lugar em Viçosa que nem tem campo, vou nadar no rio lá em cima, tenho muitos amigos aqui e minha família. Tem muita coisa aqui que eu não tenho na cidade, e eu gosto muito disso! […] O que é bom na cidade é que tem como estudar e arrumar um emprego bom, eu queria sim estudar e trabalhar (Reginaldo, 16 anos, nascido e criado no Buieié).

    Eu acho que moraria na cidade, mas continuando com uma casa aqui por causa do jeito de vida, aqui é mais tranqüilo, dá pra viver com mais qualidade, dá pra se tratar com remédios mais caseiros, lá na cidade é mais trabalho que eu queria mesmo (Natalice, 17 anos, nascida e criada no Buieié).

Esses discursos são reveladores das mudanças sociais destacadas por Carneiro (1998); os vínculos de parentesco e de amizade, o sentimento de pertencimento ao lugar e à terra e o patrimônio familiar se apresentam como fortes justificativas para a permanência dos jovens no bairro, já a precariedade na infraestrutura e os limites em termos de trabalho e de estudo justificam o desejo de transpor as fronteiras. O que não significa dizer, abandonar o bairro rural.

No Buieié, como se procurou demonstrar pelos dados construídos a respeito da reprodução social, da infraestrutura e das formas de organização espacial, as identidades são construídas em um contexto marcado pela história comum (enquanto negros descendentes de ex-escravos), pelos laços familiares (relações de parentesco) e pelas condições materiais precárias características que, de certa maneira, contribuem para a criação de estigmas, como argumentou Goffman (1982).

Por outro lado, percebemos que entre os moradores jovens do Buieié há a exacerbação de uma imagem positiva do “nós”, que se coloca enquanto uma contraposição à imagem que acreditam que os demais, os “de fora do lugar”, tenham em relação à comunidade e aos moradores: negros, pobres, desempregados, desorganizados politicamente. Dentro dessa escala de desvalorização, os jovens enobrecem o bairro e as relações aí construídas:

    […] ah, o povo de fora vê muito aqui com o olhar de crítica. Tipo assim, eles são vagabundos, não gostam de trabalhar, só brigam, não participam de nada, se faz alguma festa não chama ninguém. O povo daqui, todo mundo se conhece. Acho que pelo fato de ser todos parentes aqui a gente se conhece bem demais. Quem não é daqui não entende o povo daqui não! (Marcelina, 21 anos, nascida e criada no Buieié).

    Pra mim é o lugar que eu moro e que eu estou aqui pra mudar ele, mas não sozinho, tem muita gente que pode, mas para as pessoas de fora é um lugar que não se deve ir porque tem muita briga, confusão, mas estas pessoas não sabem de nada, pois elas não moram aqui pra ver a realidade.(Natalice, 21 anos nascida e criada no Buieié).

A imagem de “vagabundos”, “preguiçosos” e “brigões” se contrapõe à imagem que os moradores querem veicular de si mesmos e da comunidade: um “lugar não violento”, um “lugar tranqüilo”, um “lugar de gente boa”, “um lugar de cultura” e “uma família bem grande”. Ou seja, a representação do “nós” feita pelos moradores do bairro e aquela construída pelo “outro”, os de fora do lugar, entram em conflito, são mediadas por relações de poder, como colocado por Pesavento (1995).

Essa contraposição de imagens alimenta o desejo de reconstrução de uma identidade que seja valorizada positivamente e reconhecida aos olhos do “outro”. Esse processo de reconstrução transparece na avaliação que os jovens fazem a partir da participação no projeto “Tambores do Buieié”. Para eles esse projeto é uma forma de os “outros” conhecerem um pouco mais sobre o “povo do Buieié”, sobre sua cultura e valores estéticos. Principalmente quando os jovens fazem apresentações musicais fora da cidade de Viçosa, estas se constituem como momentos de embate e negociações, de afirmação das diferenças e das semelhanças, é quando se colocam em marcha estratégias identitáras para (re)construir a imagem de toda a coletividade. A esse respeito as falas transcritas dos entrevistados nos aproximam das ideias de Cuche (1999):

    Porque não é só tocar tambor que a gente aprende. Aprende organização de outros grupos e culturas. A gente já viu até índio em São Paulo e eu achei muito louco, eles são muito diferentes (Marlene, 15 anos, nascida e criada no Buieié).

    O pessoal da rua [a população urbana] fala coisas melhores da gente, eles vêem que a gente não briga só, que a gente faz outras coisas boas também. Os Tambores foi muito bom nesse sentido. (Marcelina, 21 anos, nascida e criada no Buieié).

    Olha, eu nunca tive vergonha de morar aqui, hoje quando eu falo pra alguma gatinha [jovem do sexo feminino] que eu sou do Buieié, elas vão logo perguntando se eu toco nos Tambores e tal. Todo mundo conhece a gente agora. (Evandro, 18 anos, nascido e criado no Buieié).

Esse último entrevistado deixa claro que a participação dos jovens no projeto Tambores do Buieié, além de representar uma forma de afirmação da identidade do grupo perante os de fora do lugar, é também uma maneira de obter status dentro do próprio bairro. Os jovens relatam que a participação no projeto é uma oportunidade que eles têm de viajar para outros lugares, de sair de casa para conhecer novas pessoas e novas culturas, o que fortalece sobremaneira o sentimento de pertencimento com o grupo de origem, justamente nesse contato com o “outro”. Em segundo lugar, as apresentações artísticas possibilitam o encontro com outros jovens, urbanos e rurais, público e artistas, promovendo relações de troca e reciprocidade dentro do próprio segmento juvenil. Castro et al (2009, p. 192), ao analisarem a participação dos jovens nos encontros promovidos pelos movimentos sociais rurais, chegaram a uma conclusão que também é válida para o nosso caso: nesses momentos de encontro “ (…) a identificação como jovens reforça diálogos e aproximações entre distintos contextos e “juventudes””.

Finalmente, vale destacar que o projeto permite que os jovens do bairro descubram em si qualidades e atributos positivos valorizados pela sociedade em geral, ou seja, a arte. Essa descoberta e essa valorização têm contribuído para restaurar a autoestima dos jovens do Buieié. “Tambores”, portanto, passa a funcionar como uma palavra mágica, como símbolo de uma nova estratégia identitária, como define Cuche (1999), que visa transformar as representações e as práticas na interação de processos sociais locais e também para além da localidade (Stropasolas, 2006).

Dessa maneira, podemos dizer que os “Tambores” representam para estes jovens muito mais do que uma diversão ou uma forma de lazer; significam uma oportunidade de aprendizagem e de espelhamento que podem transformar os significados do que é ser jovem, negro, rural e do Buieié. Figura 6

 

 

 

5. Considerações finais

Pelos dados da pesquisa podemos inferir que os moradores do Buieié não permanecem no bairro tomando como referência apenas valores econômicos. Pelo contrário, o pertencimento se revela principalmente pelo peso que os elementos simbólicos têm na construção das relações sociais internas e externas.

Embora a precariedade na infraestrutura e nos serviços e os limites em termos de trabalho e de estudo no bairro justifiquem o desejo dos jovens de sair em busca dessas oportunidades, isso não motiva um projeto de abandonar o mundo rural. A valorização do Buieié pelo seu “sossego e tranqüilidade”, pela “ausência de barulhos e do trânsito” e pela presença de toda a família, reafirma o desejo de manutenção não só da casa no bairro, mas também de alguns valores tradicionais.

Os resultados da pesquisa evidenciam os processos de alteridade engendrados na construção histórica da comunidade. A exacerbação de uma imagem positiva construída principalmente pela valorização que os jovens atribuem ao projeto “Tambores do Buieié” se colocou como possibilidade de afirmação em contraposição à imagem que os não residentes do Buieié, os “de fora”, elaboraram em relação à localidade, baseada em preconceitos étnicos, econômicos e espaciais. Buscando, pois, um contraponto dentro dessa escala depreciativa, os jovens do bairro enobrecem a comunidade (o “nós”) e as relações aí construídas justamente no momento de encontro com o “outro”, nas apresentações artísticas do projeto dentro ou fora da cidade.

Esse estudo nos permite comprovar a argumentação desenvolvida por Santos (2004) de que, ao lado da tendência a uma homogeneização global, há também uma diferenciação ancorada na cultura e no território, dando margem a manifestações de alteridade. Nesse contexto, juntamente com o impacto do global, emerge um novo interesse pelo local, que explora a diferenciação.

Alguns aspectos em relação ao Buieié, especificamente, comprovaram essa tendência como, por exemplo, o desejo dos jovens de terem acesso aos produtos do mundo moderno e urbano (como computador, internet, etc.), mas também da permanência no local, dada a valorização da organização social familiar e, mais recentemente, pelas atividades colocadas a partir do projeto “Tambores do Buieié”, que permitiram a divulgação da cultura local para o” mundo lá fora”.

Reiterando as considerações de Stropasolas (2006, p. 331), concluímos que os depoimentos dos jovens mostram a valorização das instituições sociais e das manifestações culturais e artísticas locais. Elas são de grande importância na socialização e identificação desses jovens e “devem ser envolvidas nas iniciativas e projetos implementados pelas entidades governamentais ou mesmo pelas Organizações Não- Governamentais nessas comunidades”.

Assim, além das políticas educacionais e de geração de emprego - fatores apontados em vários estudos como justificativas para a saída dos jovens do campo - há também a necessidade de políticas culturais que, prioritariamente, permitam um duplo movimento: promover a abertura da cultura rural para o mundo e valorizar a cultura rural perante o mundo. Para os jovens rurais cultura e arte podem e devem se constituir em fontes alternativas de renda; o mais importante, porém, é que as políticas públicas culturais se estendam à juventude rural com o sentido da inclusão social e do exercício de uma cidadania plena.

 


Notas:

* Este artigo de reflexao é resultado do projeto de pesquisa denominado “Território e cultura: a construção de identidades negras em uma comunidade rural da Zona da Mata Mineira”, realizado entre 13/11/2007 e 12/11/2008, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) sob número de processo APQ-1520-5.05-07 e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) com número de registro 401786/2007-2, Brasil.

1 Existem duas versões para a aquisição das terras na comunidade. Uma delas é a de que as terras foram repassadas para os moradores por meio da compra e a outra é de que as terras foram doadas pela antiga proprietária.

2 Territorialização, segundo Haesbaert (2002), é o processo de construção de vínculos territoriais materializados no espaço sob a forma de objetos e ações que atendam as necessidades das populações que se apropriam de determinada área. Assim, a re-territorialização se configura como a construção de nova territorialidade ou a manutenção de antigas em novos espaços.

3 Casas construídas com pedaços de madeira e rebocadas com barro.

4 Mutirão é o nome dado no Brasil a mobilizações coletivas para lograr um fim, baseando-se na ajuda mútua prestada gratuitamente. É uma expressão usada originalmente para o trabalho no campo ou na construção civil de casas populares, em que todos são beneficiários e, concomitantemente, prestam auxílio, num sistema de rodízio.

5 Os proprietários dos estabelecimentos se abastecem dos produtos na cidade de Viçosa e revendem a mercadoria na comunidade. Esse fato aumenta muito o custo final do produto aos consumidores. Por causa disso, conforme colocaram os moradores, muitos preferem fazer suas compras na cidade.

6 Tronco de árvore estendido entre as duas margens de um pequeno rio.

7 O Buieié fica distante cerca de 15 Km da sede municipal de Viçosa.

8 Em abril de 2010 o salário mínimo no Brasil equivalia à R$ 415,00 (quatrocentos e quinze reais), U$ 230 (duzentos e trinta dólares). Em pesquisa anterior realizada por Magno et. al. (2008), quando se analisou a construção da identidade territorial dos moradores do Buieié, os autores obtiveram, a partir de entrevistas com 60% das famílias residentes no local, a renda mensal da população: 24% recebem menos de um salário mínimo; 35% um salário; 8% um salário e meio; 21,6% dois salários; 8% mais de dois salários; 2% não declararam.

9 Haesbaert (2007) chama atenção para a importância de se considerar as bases materiais, territoriais, nos processos de construção de identidades; esse autor redefine o conceito de identidade entendendo-o referente às coisas e às pessoas, num processo relacional de semelhanças, igualdades e diferenças.

10 Magno et. al. (2008) evidenciam especificamente tais fatores na construção do sentimento de pertencimento entre os moradores do bairro Buieié.

11 Segundo Goffman (1982), estigma é a discrepância entre a identidade virtual (criada a partir de características que os “de fora” atribuem para um grupo social como, por exemplo, o ambiente em que vivem) e a Identidade real (verdadeiros atributos que um indivíduo ou grupo prova ter). Como veremos mais adiante, teorias antropológicas mais recentes desvinculam o processo de criação de identidade calcado apenas nas diferenças.

 


 

Lista de referencias

 

Arenner, A. K.; Dayrell, J. & Carrano, P. (2005). Culturas do lazer e do tempo livre dos jovens brasileiros. In: Abramo, H. W. & Branco, P. o P. M. Retratos da juventude brasileira. Análises de uma pesquisa nacional, (pp. 215 - 242) .São Paulo: Fundação Perseu Abramo/Instituto Cidadania.        [ Links ]

Carneiro, M. J. (1998). Ruralidades: Novas identidades em questão. Revista Estudos Sociedade e Agricultura, pp. 53-75.        [ Links ]

Carneiro, M. J. (1998). O ideal urbano: campo e cidade no imaginário de jovens rurais. In F.C. Teixeira Da Silva et al. (orgs.), Mundo Rural e Política. Rio de Janeiro: Campus/Pronex.        [ Links ]

Carneiro, M. J. (1998). Juventude Rural: projetos e valores. In: Abramo, H. W. & Branco, P. P. M. Retratos da juventude brasileira. Análises de uma pesquisa nacional, (pp. 243 - 261). São Paulo: Fundação Perseu Abramo/Instituto Cidadania.        [ Links ]

Castro, E. G. de (2009). Juventude rural no Brasil: processos de exclusão e a construção de um ator político. Revista Latinoamericana de Ciências Sociales, Niñez e juventud. 1 (7), pp. 179 - 208. Disponível em: http://revistaumanizales.cinde.org.co/index.php/Revista-Latinoamericana/article/view/223. Acesso em 15 de abril de 2010.        [ Links ]

Castro, E. G. de (2009). Os jovens estão indo embora?: juventude rural e a construção de um ator político. Rio de Janeiro: Mauad X; Seropédica, RJ: Edur.        [ Links ]

Costa, W. T. & Doula, S. M. (2009). Jovens visões do passado: representação e participação juvenil em processos de preservação patrimonial. Anais do II Seminário Internacional sobre cultura, imaginário e memória da América Latina. Imaginários juvenis latinoamericanos: participação, cultura e sociabilidade. Curitiba - PR.        [ Links ]

Cuche, D. (1999). A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru-SP: EDUSP.        [ Links ]

Goffman, E. (1982). Estigma. Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4°Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed..        [ Links ]

Haesbaert, R. (2002). Territórios alternativos. São Paulo: Contexto.        [ Links ]

Haesbaert, R. (2007). Identidades territoriais: entre a multiterritorialidade e a reclusão territorial (ou: do hibridismo cultural à essencialização das identidades). In: Araujo, F. G. B. de & Haesbaert, R. (orgs.). Identidade e territórios: questões e olhares contemporâneos, (pp. 33- 56). Rio de Janeiro: Acess.        [ Links ]

Jodelet, D. (2001). Representações sociais: um domínio em expansão. In: Jodelet, D. (org.) As representações sociais. Tradução Lilian Ulup. Rio de Janeiro: Editora da UERJ.        [ Links ]

Magno, L. et al. (2008). Território e Cultura: a construção das identidades negras em uma comunidade rural da zona da mata mineira. In: Encontro Nacional de Geógrafos, 2008, São Paulo. Anais do XV Encontro Nacional de Geógrafos.        [ Links ]

Martins, J. S. (1997). Exclusão Social e a nova desigualdade. São Paulo: Paulus.        [ Links ]

Pereira, G. P. P. B. (2000). Homens, Mulheres e Masculinidade no Buieié. Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Economia Doméstica (PPGED). Viçosa, UFV.         [ Links ]

Pesavento, S. J. (1995). Em busca de uma outra História: Imaginando o Imaginário. Revista Brasileira de História. São Paulo, Anpuh: Contexto, 29 (15), pp. 09-28.        [ Links ]

Santos, M. (2004). Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 11°Ed. Rio de Janeiro: Record.        [ Links ]

Secretaria geral da presidência da república (2006). Guia de Políticas Públicas de Juventude. Brasília: Secretaria geral da presidência da república.        [ Links ]

Stropasolas, V. L. (2006). O mundo rural no horizonte dos jovens. Florianópolis: Editora da UFSC.        [ Links ]

Wanderley, M. de N. B. (2009). O mundo rural como um espaço de vida - reflexões sobre a propriedade da terra, agricultura familiar e ruralidade. Porto Alegre: editora da UFRGS.        [ Links ]

 


Referencia para citar este artículo: Magno, L., Doula, S. M. & Pinto, N. M. de A. (2011). La formación para el trabajo en la educación media en Colombia. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, 1 (9), pp. 305 - 319.


 


Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons