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Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud

versão impressa ISSN 1692-715X

Rev.latinoam.cienc.soc.niñez juv v.9 n.2 Manizales jul./dez. 2011

 

 

Segunda Sección: Estudios e Investigaciones

 

Intolerâncias e in[ter]venções: "menores" e "crianças" no imaginário social brasileiro*

 

Intolerancia e in[ter]venciones: "los menores" y "los niños" en el imaginario social brasileño

 

Intolerance and in[ter]ventions: "underage" and "children" in brazilian social imaginary

 

 

Fernanda Telles Márques

Membro do corpo permanente do Programa de Mestrado em Educação da Universidade de Uberaba - Uniube, Brasil. Cientista Social com mestrado e doutorado em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho"–Unesp. Endereço eletrônico: fernanda.marques@uniube.br.

 

 

Artículo recibido junio 8 de 2011; artículo aceptado agosto 11 de 2011 (Eds.)

 


Resumo:

Elaborado em perspectiva interdisciplinar, o artigo propõe uma discussão teórica da apropriação cotidiana e ressignificada da categoria jurídica menor na sociedade brasileira. Para tanto, inicia-se com a análise de dois processos histórico-sociais opostos e complementares, a invenção/valorização da "infância ideal" e a intervenção/desvalorização da menoridade, concebida como "infância problema". No item seguinte é feita a problematização, historicamente contextualizada, da atuação política de serviços de assistência à menoridade e de seus reflexos no imaginário social. Ao final, busca-se na teoria psicanalítica elementos oportunos para a reflexão da resistência à adoção dos termos criança/adolescente quando aos sujeitos foram atribuídos determinados estigmas sociais, desvelando-se, assim, uma "cultura da violência" pela qual se justifica a negação da alteridade daqueles que não se encontram entre os beneficiários do sistema.

Palavras-chave: menoridade, institucionalização, violência, alteridade, imaginário social.

 


Resumen:

Elaborado desde una perspectiva interdisciplinaria, el artículo propone una discusión teórica sobre la apropiación y la resignificación de la terminología jurídica "menor" en el Brasil. Para ello, se comienza con el análisis de dos procesos históricos y sociales opuestos y complementarios: la invención de la "niñez ideal" y la intervención o la devaluación de la "minoridad legal", visto como la niñez/adolescencia "con problemas sociales". El siguiente punto es la discusión, contextualizada históricamente, de los servicios de atención a menores de edad y de sus reflejos en el imaginario social. Por último, se utilizan elementos de la teoría psicoanalítica para reflexionar sobre la resistencia a la adopción de la terminología "niño" o "adolescente" cuando a los sujetos fueron asignados estigmas sociales, revelando así una "cultura de la violencia" que justifica la negación de la alteridad de los que no se encuentran entre los beneficiarios del sistema.

Palabras clave: menoridad legal, institucionalización, violencia, alteridad, imaginario social.

 


Abstract:

Prepared from an interdisciplinary perspective, the article proposes a theoretical discussion of a daily and re-signified appropriation of legal category underage in Brazilian society. For that, it begins with an analysis of two social-historical processes which are opposites and complementary, the invention/valuation of the "ideal childhood" and the intervention/devaluation of the underage, conceived as "troubled childhood". In the following item the problematization is done, historically contextualized, of the political activities of support services to underage and their impacts on the social imaginary. At the end, we seek on psychoanalytic theory timely elements for the reflection on the resistance to adopt the terms child/adolescent when it was assigned to the subjects certain social stigmas, revealing, therefore, a "culture of violence" which justifies the denial of alterity of whom are not among the beneficiaries of the system.

Keywords: Underage. Institutionalization. Violence. Alterity. Social Imaginary.

 


 

1. Considerações Iniciais: a descoberta da infância

 

Se espiarmos as civilizações de padrão ocidental pela fresta deixada a descoberto pela história das mentalidades constataremos que nem sempre as crianças receberam um tratamento positivamente diferenciado em relação aos demais membros da coletividade. Estudos clássicos como os de Ariès (1981) e Badinter (1985) mostram que ao longo da história social da família e da infância é possível identificar o século XVIII como marco da processual transformação daqueles pequenos seres, antes vistos como adultos incompletos e miniaturizados, em crianças: uma categoria social específica, desenvolvida na Europa a partir das emergentes noções burguesas de "pudor" e de "decência" e enquanto parte do mesmo contexto político-ideológico que defendia a construção de uma oposição radical entre o mundo público e as questões privadas, entre o coletivo e o individual (Ariès, 1981).

O estudo do caso europeu demonstra que, com o germinar do capitalismo e de sua lógica privatista, várias transformações foram "privatizando" também a família, tornando-a idealmente nuclear e cada vez mais ensimesmada em relação à sociedade. A moradia, por exemplo, deixou de ser um lugar de realização concomitante do lazer e do trabalho, ao passo que este último, por sua vez, tornou-se socialmente reconhecido apenas quando efetivado no espaço público, cuja utilização como locus de sociabilidade ficou moralmente interditada às mulheres e às crianças - à exceção daquelas provenientes das chamadas "classes perigosas" (Rago, 1985).

Ariès (1981) e Badinter (1985) também estão entre os autores que nos mostram que, em referida ocasião, já seria perfeitamente possível observarmos, nas mais simples relações cotidianas, a consolidação de leituras de mundo muito apropriadas ao modo de produção que se firmava: a esposa do chefe da família, por exemplo, transfigurava-se em dona de casa, enquanto sua prole, cada vez mais admitida como vir-a-ser social, recebia tratamento de investimento a que deveriam se aplicar, com as devidas expectativas de rentabilidade, os capitais valorativos e ideológicos daquela sociedade.

Não causa estranheza que aquele tenha sido também um período de severa regimentação dos contatos físico, emocional e social, logo, uma nova fase de intensa repressão das crenças e dos desejos pessoais ou mesmo representativos de categorias politicamente minoritárias. Considerando a inegável origem histórica subalterna da emergente classe dominante -e possíveis sentimentos de inadequação social gerados na comparação com os rechaçados (e muito imitados) modelos comportamentais aristocráticos- proliferaram manuais de etiqueta social e recomendações de modos adequados a homens, mulheres e crianças. As relações interpessoais, evidentemente, não escaparam ao ritmo imposto pelo novo baile de máscaras caracterizado pela (re)produção de um imaginário social fortemente "normalizador" e, portanto, tendente ao desenvolvimento de estratégias disciplinares para aqueles que não atendessem às novas expectativas de "normalidade" (Márques, 1997).

É interessante notar que, do processo chamado por Ariès (1981) de "descoberta da infância", resultaram condições que hoje, também por ação de um mecanismo de naturalização das produções sócio-históricas, o mundo ocidental entende como indissociáveis do adequado preparo para a vida adulta, como é o caso da educação escolar. Iniciada na Europa do século XVI e em princípio executada a cargo de religiosos, a escolarização tornou-se um elemento fundamental à formação moral dos futuros adultos daquela sociedade.

No final da Idade Moderna, já bem caracterizado como um treinamento para a vida social a ser executado por terceiros e sob a orquestração do Estado, o ensino formal, realizado no ambiente escolar, acabou sendo oportuno ao enaltecimento de um individualismo de perfil liberal-burguês, o que não pode ser analisado sem que se considere a ocorrência de um duplo processo: a institucionalização formal das crianças e a desvalorização dos saberes tradicionais.

    […] A criança deixou de ser misturada aos adultos e de aprender a vida diretamente, através do contato com eles. A despeito das muitas reticências e retardamentos, a criança foi separada dos adultos e mantida à distância numa espécie de quarentena, antes de ser solta no mundo. […]. Começou, então, um longo processo de enclausuramento das crianças (como dos loucos, dos pobres e das prostitutas) que se estenderia até nossos dias; e ao qual se dá o nome de escolarização (Ariès, 1981, p. 10).

No Brasil da mesma época, entretanto, considerando-se primeiro a manutenção do antigo sistema colonial e a decorrente ausência de uma noção de privacidade nos moldes europeus e, mais adiante, a conjunção da chegada tardia da industrialização com a ausência de políticas para a infância negra e mestiça e os expressivos fluxos de imigração, a escolarização formal adquiriu outros contornos.

Conforme explicam Del Priori (2002) e Viveiros (2006), desde o início da colonização as escolas jesuítas eram escassas e atendiam a um público selecionado a partir de sua origem social1. O ensino realizado a cargo do Estado só teve início no governo Pombalino, na segunda parte do século XVIII, e por ser ofertado a uma população "livre e vacinada", não se destinava às crianças escravas. Até mesmo as vagas para as crianças pobres ficavam condicionadas à expectativa de que estas, provavelmente "pardas ou mulatas", conseguissem demonstrar uma "acentuada destinação e capacidade" (Viveiros, 2006, p. 4).

No século XIX, um pequeno número de crianças beneficiadas com a Lei do Ventre Livre tiveram, no ensino profissionalizante, oferecido em oficinas e escolas tanto privadas quanto atreladas a grupos religiosos, sua possibilidade de educação formal. Educação esta para a obediência e para a realização, dócil e barata, de algum ofício manual (Márques, 1997).

Referida lei estabelecia que a menoridade do filho da escrava deveria estender-se até os 21 anos de idade, período em que permaneceria como tutelado do senhor de sua mãe e, portanto, vivendo em condição análoga à escravidão: prestando obediência e serviços sem paga, ainda que "formalmente" liberto. A lei permitia, entretanto, que aos oito anos de idade o senhor separasse estes meninos de suas mães e os enviassem aos cuidados do Estado em troca de uma indenização. Ora, como os senhores poderiam optar por sua livre escolha e, como aos oito anos já conheciam o "potencial" de trabalho daquelas crianças, prevalecia a prática de mantê-las cativas por mais treze anos, usufruindo assim das vantagens de um trabalho não remunerado que, naquela idade (entre os oito e os 21 anos) era tendencialmente "saudável" e, portanto, economicamente mais vantajoso do que a indenização estatal.

Fachinetto (2004) explica que os poucos destes meninos que foram entregues ao governo imperial ao atingir oito anos2, acabaram sendo encaminhados para colônias agrícolas e institutos profissionais originariamente destinados a meninos livres desvalidos. A maioria, entretanto, teve sua mão de obra "aproveitada", pelo maior tempo possível, pelo senhor de sua mãe.

Neste sentido, quando Del Priori (2002) argumenta que os filhos dos pobres brasileiros tinham por "saída" não a educação, mas "sua transformação em cidadãos úteis e produtivos", sobretudo na lavoura, nos faz ponderar que, desde então, instituições que se apresentam como tendo fins "educacionais" também encarregam-se da condução de referida "transformação", ainda que tendo em mente uma atuação no espaço urbano. Em outras palavras, com a crescente industrialização do país na segunda metade do século XIX, o tipo de instituição educacional disponibilizada aos pobres, aos negros, aos mestiços, objetivava basicamente um treinamento para a manutenção de uma postura dócil e servil naqueles que viriam a constituir as classes trabalhadoras urbanas.

No Brasil Republicano, tanto o atendimento à criança, tecnicamente vista e reconhecida como um "adulto em formação", quanto o convencimento social acerca da necessidade de referido atendimento, atrelavam-se a aspectos socioeconômicos. Nas camadas abastadas, para quem o conhecimento era admitido como importante ferramenta para o acesso e a manutenção no poder, a desvalorização dos saberes tradicionais mediante sua associação a "atraso" social e intelectual foi um importante incentivo à valorização da instituição escolar. Em contrapartida, nas camadas menos favorecidas, a justificativa para uma ingerência institucional pouco preocupada em disponibilizar conhecimentos e bastante comprometida com a formação de habilidades atitudinais específicas, esteve diretamente relacionada à preocupação para com a ordem pública (Márques, 2011).

Governo e segmentos dominantes preocupavam-se muito com os desperdícios e os riscos representados por "braços inativos" que poderiam ser postos a serviço de "mentes desocupadas". E tanto era assim que a primeira metade do século XX acabou sendo o momento em que a tese, pretensamente científica, de que a criminalidade seria uma disfunção hereditária disseminada predominantemente entre os pobres, encontrou como aliada a defesa da institucionalização da criança pobre como forma de profilaxia contra uma conduta criminosa (Bazílio, 1985, Márques, 1997).

No Brasil, a crença no poder de educar e organizar atribuído a escolas, asilos e educandários e, conseqüentemente, a liturgia da devoção, da aceitação acrítica da instituição e do Estado, cresceu ainda mais com a ação de alguns políticos, cientistas, juristas e reformadores sociais defensores das idéias higienistas. Discursando de dedo em riste acerca dos malefícios do "modo de vida promíscuo" que adotavam as classes populares, estes personagens muito contribuíram para que crianças abandonadas, idosos, enfermos do corpo ou da mente, dissidentes políticos e pobres em geral - gente cuja "inadaptação à ordem" denegria a imagem que se desejava construir das cidades - acabassem vistos e tratados como causadores dos problemas sociais e políticos dos quais também eles eram vítimas.

    Foi com a disseminação da prática positivista de desconsiderar analiticamente o contexto (em seus aspectos objetivos e subjetivos), para, em seu lugar, proceder à dissecação dos corpos e das almas dos indivíduos apontados como dissonantes, que a mentalidade dominante encontrou suas melhores armas também para o desafio de "urbanizar" imigrantes, indolentes, prostitutas e ignorantes autóctones. Em nome da manutenção da ordem, o asséptico escrutínio e a conseqüente patologização da diferença fizeram com que a institucionalização disciplinadora e a asserção moralista e higiênica do trabalho se estendessem a todos os segmentos cuja manifestação poderia incitar dúvidas quanto à correção e à (pretensa) infalibilidade do sistema (Márques, 1997, p. 49).

No que refere à criança e ao adolescente, o principal mecanismo utilizado era simples e de baixo custo material, resultando, a médio prazo, na formação de uma mão de obra convenientemente mansa e, a curto prazo, na promoção de personalidades políticas às custas da ação caritativa que se apresentava em forma de espetáculo público. Não obstante, sua pior e mais perversa faceta, silenciosamente gerada dia após dia entre as quatro paredes das instituições, relacionava-se ao respaldo popular dado ao assujeitamento de determinado segmento social a continuadas e sutis microviolências.

No caso dos internatos e asilos para menores, que proliferavam naquele momento, essa modalidade atualíssima da violência disciplinar já se iniciava na expropriação de tudo e na ausência de um sentimento de pertencimento a algo que não a impassível "abstração-Estado". Obrigatoriamente despidos de suas referencias culturais, de preferências e gostos pessoais, da gestão de seus próprios corpos, essas crianças e adolescentes tinham violentado seu direito à acolhida e ao pertencimento. E enquanto isso, àqueles menores pobres que, por estarem inseridos em seus grupos familiares, tiveram por destino não o asilo ou o educandário, mas os bancos escolares, era ofertado o aprendizado da cantilena positivista de uma certa "vocação" para o trabalho pouco qualificado e para o comportamento resignado. Era ofertada a crença na manutenção da ordem como única via racional de acesso ao esperado "futuro melhor", tão bem representativo da noção Comteana de progresso.

Se também no Brasil houve um momento de euforia em torno da valorização política de uma "infância ideal", incensada como forma embrionária da razão, da virtude, da ordem e do progresso - e por isso correspondente às expectativas narcísicas das novas classes dominantes - , não se pode negar que também tenha havido, como parte do mesmo processo, um movimento de racionalização da rejeição sentida por outras infâncias, aquelas que se manifestavam na contra-mão do desejo eleito.

Uma vez descoberta a "infância ideal", suas especificidades e demandas materiais, higiênicas, morais e afetivas, a mentalidade dominante acirrou a demarcação de diferenças existentes entre esta e as outras infâncias. Isso porque, ainda que o anúncio da valorização da criança combinasse com a discursividade liberal-burguesa, a possibilidade de extensão do "sentimento de infância" a toda e qualquer família em nada combinava com as práticas do capitalismo industrial (Márques, 2010).

Em uma sociedade onde a criança pobre deveria ser "educada" para e pelo trabalho, esta mentalidade que autorizaria nossa indignação frente à infância maltratada e ferida em sua dignidade, não poderia estender-se até aqueles pequenos seres que alimentariam as máquinas com sua força de trabalho, precocemente explorada. O funcionamento do sistema precisava ter garantida a reprodução de uma infância de "segunda categoria", para a qual o treinamento e o ingresso nas responsabilidades e agruras do mundo adulto e do trabalho fosse valorizado como redenção das garras da miséria, da criminalidade e dos vícios que assombravam o imaginário dos que mais alto bradavam em nome da virtude.

 

2. In(ter)venção da menoridade e Cultura narcísica

O esforço de compreensão da menoridade vista como categoria sociocomportamental, nos leva a aliar a análise das mentalidades que foram elaboradas na formação do capitalismo industrial a reflexões acerca das relações estabelecidas pelo Estado com os segmentos sociais considerados como potencialmente desestabilizadores da ordem vigente.

No século XX, há muito descobertas as especificidades da infância ideal e já tendo sido criada a noção jurídica de menoridade, desenvolveram-se novos significados e usos sociais para o termo menor, originalmente cunhado na linguagem funcionalista que acompanhou o projeto liberal. De simples identificação técnica e discursiva do indivíduo com idade inferior a dezoito anos, estudos realizados a partir da década de 80 demonstram que o termo passou a figurar, no imaginário popular brasileiro, como apontamento de uma condição social secundária e marginal, ficando impregnado dos tons da violência, da pobreza material e moral, da origem étnica afrobrasileira e dos fluxos migratórios originados em regiões com baixo desenvolvimento econômico e tecnológico.

Dentre as hipóteses mais recorrentes do que teria motivado este processo de ressignificação negativa do termo, contamos hoje com a defesa de que a associação da menoridade a determinados comportamentos e perfis sócio-econômicos é de ordem defensiva, decorrente do medo originado de nossa experiência cotidiana com a violência urbana. Esta é uma idéia, entretanto, que pouco se sustenta quando observada a cronologia dos dois fenômenos, afinal, no momento em que a violência urbana assumiu, de fato, os índices alarmantes de que muito se fala, a menoridade já estava caracterizada nos discursos e sentimentos populares como condição irregular. O sinal de alerta já havia sido acionado.

Não pretendemos subestimar a realidade vivida e tão pouco os impactos das subjetividades produzidas com a interiorização de riscos e ameaças representados na violência urbana, contudo, para atender os objetivos da discussão, nossas análises serão desenvolvidas em um outro sentido. Seguindo os passos de Adorno (1993) e de Silva (2005), optamos por buscar na histórica da nossa organização jurídico-política - e não fora dela - as raízes deste processo perverso de ressemantização do termo. Raízes estas que, cremos nós, estão fincadas nas bases do próprio discurso que o origina.

Em 1921, a Lei 4.242 prenunciava o tratamento da menoridade por uma ótica francamente reformista. Anunciando a organização dos serviços de assistência e proteção à infância abandonada e delinqüente, referida Lei foi uma das fontes de inspiração para a elaboração do Código de Menores de 1926, este último bem caracterizado pela ênfase dada à internação e pela arbitrariedade conferida aos Juizes de menores.

Apresentando a menoridade como problemática pertinente a sujeitos adjetivados como "abandonados" e "delinqüentes", o próprio ordenamento jurídico já estava orientando o imaginário coletivo no entendimento hoje consolidado. Entendimento este, em franco desacordo com a vigente Lei 8.069 de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Quando, na segunda metade do século XX, a doutrina do Direito do Menor foi substituída pela teoria da Situação Irregular, a abordagem social-darwinista da anterior não foi superada, mantendose seus fundamentos assentados na tese perversa da "associação natural" entre abandono/pobreza e delinqüência. Assim, como explica Silva (2005), os Códigos de menores "estabeleceram as regras do desvio social a partir das quais se justificava a intervenção do Estado na família brasileira e especialmente na família pobre", dando continuidade à uma lógica que havia sido iniciada ainda em 1832, no Código do Império, e fortalecida pelo Código Penal de 1940. Nestas normas estava enunciado um "protótipo do possível violador de direitos: o sujeito não-branco, não-cristão, nãoproprietário e não-letrado" (Silva, 2005, p. 290).

Tudo isso contribui para que, fora do ambiente jurídico, o termo menor não seja associado à criança e ao adolescente "ideais", passando a restringir-se a um tipo bem específico de pessoa não-adulta,

    […] aquela procedente das classes populares, em situação de miséria absoluta, expulsa da escola desde a tenra idade, que faz da rua seu habitat e lugar privilegiado de reprodução cotidiana e imediata de sua existência. […] A criança cuja existência social e pessoal é reduzida à condição de menoridade, passível, por conseguinte, da intervenção ‘saneadora’ das instituições policiais de repressão e das instituições de assistência e reparação social (Adorno, 1993, pp. 183-184).

Na década de 60 e em parte dos anos 70, em um contexto que inclui a reforma do sistema educacional com base nos acordos MEC-Usaid3, a necessidade de propagandear as vantagens e a eficácia da administração militar favoreceu a transformação da menoridade em assunto de competência do poder Executivo, reforçando ainda mais a leitura segundo a qual as crianças e adolescentes usuários da assistência social (ou seja, desfavorecidos economicamente) são fontes de problemas, já que tratados, abertamente, como "problemas de ordem estratégica" (Márques, 2010).

A Funabem (Fundação Nacional do Bem- Estar do Menor), instituição governamental criada em 1964 no governo Castelo Branco para redimir a imagem do desgastado SAM (Serviço de Assistência a menores), discursava o bemestar e a "segurança pela disciplina" ao mesmo tempo em que executava a apartação em nome da ordem pública. O papel estrutural deste órgão, vinculado à Escola Superior de Guerra, exigia a reafirmação da ideologia militar no tratamento proposto aos "menores marginalizados", o que, equivocadamente, era feito colocando em um mesmo plano de análise e de ação dois conceitos francamente distintos: o de marginalização social e o de marginalidade.

O internato era o carro-chefe da modalidade interventora a que os militares chamavam de "tratamento". E esta era uma prática que se mostrava oportuna tanto por reafirmar a imagem de "faxina social" (tirando de circulação a incômoda visão daquilo que não correspondia à imagem ideal de infância e de adolescência), quanto por recuperar a velha crença de que a marginalidade consistiria em uma "degeneração", possivelmente hereditária, para a qual o melhor a ser feito era garantir a proteção dos ameaçados, os ditos "cidadãos de bem" (Bazílio, 1985, Márques, 1997, 2010).

Para legitimar a prática de recolher em estabelecimentos distantes das suas famílias e da comunidade aquelas crianças que cabiam no estereótipo da menoridade -tivessem elas cometido ou não ilícito penal-, foi disseminada, "nos meios oficiais do Bem-Estar do Menor, a visão negativa e estigmatizante da família assistida" (Fachinetto, 2004, p. 33-34), entendida cada vez mais como:

    […] desorganizada, incapaz de educar e criar seus filhos, que queria se ver livres dos filhos, com disfunção familiar, que agia com indiferença e insensibilidade. Situação que era confirmada e reforçada através de sistemáticos ‘estudos’ sobre a composição familiar dos internos e assistidos, bem como pela produção legislativa e jurídica vigente.

Tipicamente parciais e fundamentados em metodologia questionável, não se pode negar que estes estudos e dossiês familiares ajudaram a reforçar a idéia de que a pobreza, em si, deveria ser examinada, vigiada e penalizada, tanto em nome da manutenção da ordem coletiva quanto pelo bem dos próprios pobres. Ao estratificar e rotular as populações necessitadas da assistência do Estado, o corpo técnico destas instituições jurídico-assintenciais aderiu ao uso sistemático de categorias classificatórias advindas da Psiquiatria ou de vertentes mais positivistas da Psicologia, de onde resultou o costume, lamentavelmente ainda visível nos meios jurídicos e assistenciais, de tratar diferenças culturais e mesmo político-ideológicas como se fossem, via de regra, "sintomas" de psicopatologias - nestes casos, quase sempre "estudadas" ou conhecidas nos limites dos já populares "manuais de diagnósticos".

Esta transposição abusiva de categorias conceituais das ciências biológicas para o campo social, lidando com toda e qualquer diferença como sendo um adoecimento mental ou desvio proveniente da índole do indivíduo e/ou da moral de sua família, reforçou ainda mais a crença de que nas camadas de baixa renda proliferariam os "genes" da incapacidade, da indolência, da instabilidade, da agressividade, da promiscuidade sexual, do "desvio de caráter" etc. Tratava-se, pois, do revigoramento de uma caduca mentalidade positivista, cujo auge se deu com o cientificismo europeu do século XIX, em pleno Brasil mestiço da segunda metade do século XX (Márques, 2011).

As dúvidas sobre o discernimento e a capacidade de auto-gestão dos mais pobres, assim como a estigmatização de suas crianças, aumentaram na mesma proporção em que, para estar em "situação irregular", bastava o sujeito existir em condições diferentes daquelas imaginadas como "naturalmente corretas" por legisladores, aplicadores da lei e técnicos assistenciais. Dos arquivos da Funabem se pode tirar amostras de preconceitos e de graves generalizações, como a citada por Bazílio (1985) em sua pesquisa documental:

    Ora, essa criança traumatizada pelo somatório de problemas, sob suspeita de ter predisposição genética para a vida associal, que nunca soube o que é a alegria de comer carne quando se está com fome a não ser assaltando o açougue ou matando o gato da casa, já apresenta danos irreparáveis que jamais poderão ser consertados (Funabem, Setor de Relações Públicas, 1971, apud Bazílio, 1985, p. 54).

A previsível crise em que se encontrava este modelo de assistência, já era, em meados da década de 70, de franco conhecimento por todo o meio político, tanto que coube ao Congresso Nacional instaurar, em 1976, a CPI do Menor. E as conclusões a que chegou esta Comissão Parlamentar de Inquérito foram ainda mais graves do que o quadro encontrado nos momentos derradeiros do SAM, o órgão representante do modelo anterior.

Além dos técnicos do Direito e dos demais profissionais que lidavam diretamente com as instituições assistenciais de atendimento ao menor, também a produção acadêmica esteve, até a transição para os anos 80, um tanto comprometida com uma abordagem disseminadora de estereótipos. Isso é o que demonstra a presença de um expressivo número de estudos, sobretudo sociológicos e psicossociais, em que a violência urbana era analisada de forma reducionista e descontextualizada, tomando como "objeto/ causa" um isolado sujeito social: a família pobre.

A mudança de enfoque tornada visível na década de 80 guardava relações evidentes com os ventos da redemocratização. O processo de discussão da Doutrina da Proteção Integral, hoje bem representada na Lei 8.069 de 1990, alimentou os novos estudos e posicionamentos que já vinham sendo engendrados por alguns segmentos da academia, da sociedade organizada e do mundo jurídico. Assim, mesmo que nossas vaidades acadêmicas (e decorrentes dificuldades para colocar em prática a dialogicidade esperada frente à adesão discursiva ao paradigma democrático) não sejam muito favorecedoras da interdisciplinaridade e do melhor aproveitamento do revigoramento representado por tais ventos, hoje já é possível propor um estudo do sujeito não-adulto levandose em conta o concreto e, ao mesmo tempo, as subjetividades de que também se tecem as relações sociais nele manifestadas.

O autores até aqui trabalhados nos apontam que, quando a criança e o adolescente são representados socialmente pelo o filtro da categoria menor, acabam reduzidos a um perfil estereotipado e a um tipo específico de questão social, pois são atrelados à ocorrência, presente ou futura, de comportamentos infratores. Assim, no que refere à construção do imaginário coletivo, a terminologia menor seria reelaborada a partir da crença na necessidade de uma intervenção pública junto a estes sujeitos como forma de proteger os demais, enquanto que as noções de criança e de adolescente, conforme enaltecidas pela Lei especial, ficariam associadas aos direitos à acolhida e ao tratamento especial, ou seja, consideram-se os graduais limites de entendimento -e de responsabilizaçãocolocados pela formação ainda incompleta dos sujeitos.

É sabido que a norma não propõe o tratamento diferenciado, por exemplo, ao adolescente autor de ato infracional cuja família está entre os beneficiários do sistema; e que, tão pouco, valida o tratamento desumano àquele que apresenta, na carne, os estigmas de uma vivência pauperizada ou distanciada dos "modelos idealizados". Em contrapartida existe, sobretudo entre os segmentos economicamente mais favorecidos, um clamor surdo para que esta diferenciação ocorra.

Neste sentido ressaltamos a tese de Baratta (1994), para quem, a forma como as sociedades contemporâneas lidam com referidos comportamentos está relacionada a um tipo de "análise" social, presunçosamente psicologizante, cujo fundamento real se esgota na constatação do pertencimento dos "analisados" a uma determinada identidade coletiva, a um certo território geopolítico ou mesmo a uma classe social.

Para este representante da criminologia crítica, a questão da estigmatização de determinadas categorias sociais não pode ser dissociada da questão da reprodução da política e da violência como espetáculos, de onde "o sentimento de insegurança e de medo" é, com a ajuda de um esquema midiático, "projetado num medo genérico da criminalidade" (Baratta, 1994, p. 16).

O autor entende que esta generalização do medo seja um fenômeno beneficiado pelos "fluxos da opinião pública condicionados pela dramatização do problema da criminalidade e pela função simbólica do direito penal" (idem). Razão pela qual, conclui ele, a formação deste imaginário, por nós identificado como persecutório, provoca a ampliação de espaços para a transmissão de mensagens sobre a segurança pública. Destas mensagens, que não raro são radicais e discriminatórias, também sairão, mais adiante, o voto e o apoio de um eleitorado conduzido pelo pânico.

Referido pânico advém de uma conjunção de fatores, como a dramatização da vida real, a transformação da violência e da criminalidade em entretenimento, a rotulação de determinados sujeitos coletivos como "tendentes" ao crime, etc. Ainda a partir de Baratta (1994), ponderamos que, mesmo a violência estando presente em toda a sociedade e manifestando-se de diversas formas, o processo de espetacularização ignora muitas delas. Do contrário, se reconhecidas como violentas também as práticas que adotam os "sujeitos morais típicos" (Costa, 1994) em nome de seu messiânico projeto de "combate ao mal", uma vez (re)conhecido o potencial nocivo uns dos outros, não tardaria para que toda a sociedade se visse mergulhada em uma hobbesiana e inadministrável "guerra de todos contra todos (Marques, 1997, 2010).

Vários são os meandros e as implicações do quadro retratado. Dentro dos limites e dos objetivos deste trabalho, chamamos a atenção para a tecitura de uma cultura predominante que se mostra, ao mesmo tempo, narcísica e violenta, tal como fora denunciado por Costa (1988, 1989, 1994).

Caracterizada, por um lado, pela crença na onipotência do pensamento ocidental, na validade absoluta de seus padrões estéticos, na superioridade moral de seu ideário e na justeza de suas práticas -ou, em termos Freudianos, pela hipercatexia de um narcísico Eu (Freud, [1914] 1969) que nada (re)conhece além de seus (e)feitos-, e, por outro lado, ainda pautada no recurso à violência como mecanismo cabível na lida humana com a conflitividade, tratar-se-ia de uma cultura em que a negação da alteridade aparece como recusa necessária.

A partir da leitura feita por Costa (op. cit) podemos dizer que, por ser narcísica e violenta, esta é uma cultura que se privilegia da existência de um Outro que figure como representação sociocomportamental do nãovalor, da "inadequação" e da "ameaça". Da precariedade de tal "aproximação narcísica" e de seu caráter meramente discursivo, o que se obtém é tanto a auto-referenciação (narcisista) da cultura predominante, quanto a elaboração de justificativas, encontradas na ameaça vista no Outro, para o recurso à violência mesmo quando se foi produtor de discursos fundamentados em valores tão exemplarmente "superiores".

 

3. Cultura e negação da Alteridade

Com o processo de redemocratização e a expansão do discurso, bastante em voga, da inclusão e da tolerância, temos convivido com um conjunto de idéias e de disposições aparentemente muito propícias ao reconhecimento da alteridade. As mudanças normativas ocorridas no Brasil com o término da ditadura militar favoreceram novas políticas públicas e novos olhares sociais e, em relação à antiga "questão do menor", já não restam dúvidas de que, formalmente, não se pode tolerar que aos filhos das famílias empobrecidas seja dado um tratamento jurídico e político diverso daquele considerado como adequado para quaisquer outras crianças e adolescentes. A realidade concreta, entretanto, tem meandros que os formalismos legais dificilmente alcançam.

Pela ótica da Antropologia compreendemos que não é possível efetivar uma "alteração cultural" que tenha sido implementada por decisões legislativas ou mesmo por ordens judiciais. Frustrando as expectativas de legisladores e juristas, se o instrumento utilizado com o propósito de intervir em determinadas práticas culturais (ainda que representativas de um pequeno grupo) estiver limitado à demonstração do seu poder coercitivo ou do "peso" da sanção prometida, é mais provável que, com ele, se chegue a sujeitos ainda mais fragmentados, o que os torna melhor dispostos à dissimulação, à manutenção do "jeitinho", à cisão entre discursos e práticas.

Esta situação pode ser melhor explorada se lembrarmos que, segundo a Psicanálise, a manutenção do Outro na condição de "estranho" a ser hostilizado, temido ou desprezado não é um fenômeno recente e tão pouco inusitado nos agregados humanos. O reconhecimento da alteridade, a desejada transformação daquela criatura que acabou de ser flagrada em suas "estranhas diferenças" em "meu semelhante", demanda mais do que norma e sanção. Demanda um tipo de investimento emocional e cultural que uma ética social oscilante entre utilitarista e compassiva, com fortes traços competitivos e individualistas, tende a pouco favorecer.

Neste sentido, Kehl (2007) nos chama a atenção para o importante fato de que, se nosso Eu originariamente já não suporta o diferente, tende a suportar menos ainda aquele que possa ser considerado como "discretamente" diferente e que por isso surpreende (e incomoda) muito mais quando manifesta a quê veio. Sem a intervenção da cultura a este "diferente", este Outro, seriam atribuídos apenas os signos da oposição, da invasão ao nosso campo narcísico e da ameaça às certezas que queremos manter a nosso respeito (Márques, 2010). E é por isso, por ser ao mesmo tempo tão semelhante e também tão incomodamente diferente, que este Outro

    […] vem sempre nos deslocar de nossa identidade (uma ilusão narcisista), pois traz inevitavelmente a questão: se eu sou este e ele se assemelha tanto a mim, mas não é eu, quem é ele? Diante dele, quem sou eu? Só depois de nos desestabilizar dessa maneira -e se agüentarmos o tranco- é que o "próximo" pode se revelar também uma fonte de aprendizado, ou de experiências compartilhadas, de novas identidades (Kehl, 2007, p. 20).

Com Freud ([1929] 1974) compreendemos que ao mesmo tempo em que a cultura, em seus aspectos mais coercitivos, nos impele ao desprazer (como é imediatamente percebida a renúncia à satisfação irrefreada do Eu), também será por meio dela -seja no encontro de compensações substitutivas seja no desenvolvimento do recalque do gozo-, que o poder do Eu poderá dar lugar ao poder do "nós", representado na Lei. E sendo assim, a cultura nos humaniza quando nos obriga a enxergar e a reconhecer o Outro e a (re) dimencionar a nós mesmos a partir da relação estabelecida.

Demonstrando que a diferença entre o individual e o social é antes de escala do que de natureza, Freud também nos chama a atenção para a existência e a atuação de um superego cultural, originado de forma similar ao superego dos indivíduos de uma dada comunidade. Segundo ele, este superego cultural, que seria baseado "na impressão deixada atrás de si pelas personalidades dos grandes líderes", teria um importante papel na realização da vida social: o de estabelecer "exigências ideais rigorosas" cuja desobediência seria fortemente punida pelo "medo da consciência", o sentimento de culpa (Freud, [1929] 1974, p. 107).

Porém, se a nossa hoje é uma cultura narcisista, como diz Costa (1988, 1989) inspirando-se em Lasch, cabe questionar o quanto estaríamos culturalmente dispostos ao árduo trabalho de enxergar além daquilo que "normalizamos", que nos foi dado como familiar. E se é violenta, cabe ponderar o quanto estaríamos aptos a reconhecer nas diferenças algo além de ameaças ou afrontas. Com nossos mecanismos de auto-defesa do Eu exageradamente intensificados, o desenvolvimento da capacidade a que se antes referia Kehl (2007), de "agüentar o tranco", também estaria profundamente comprometido. O resultado disso é que, uma vez desestabilizados, permaneceríamos assim: incapazes de compreender e de superar o mal-estar sentido a partir do confronto com outras razões e interpretações da realidade, com outras necessidades e modos de vida, com um outro ideário que não o nosso.

Podemos dizer que a recusa da "dívida simbólica" para com o Outro, com aquele "diferente" que viria a favorecer nossa constituição como sujeitos, equivale à recusa da manifestação da diversidade entre os seres de uma mesma sociedade. Segundo a "teoria da sociedade" encontrada na psicanálise freudiana, uma vez negada esta diversidade, negada estará a possibilidade de estabelecimento de laços sociais verdadeiros, que não se confundam com expressões de benemerência prepotente ou de autoritarismos temerários.

A resistência narcísica (vigorosamente auto-centrada) à tudo o que possa implicar em reconsiderações e transformações caracteriza muito bem estes contextos sócio-culturais mais conservadores, nos quais o Outro pode até ser tolerado por prudência ou cálculo, mas não é admitido como diferença desejável. E esta premissa será fundamental para chegarmos ao nosso entendimento das motivações pelas quais, decorridos vinte e um anos, o Estatuto da Criança e do Adolescente ainda esteja esboçado no imaginário coletivo com os improcedentes traços da impunidade e do incentivo à delinqüência juvenil.

Elaborado em consonância com a Doutrina da Proteção Integral, o Estatuto favorece uma concepção alteritária, pela qual o adolescer, enquanto processo de desenvolvimento infanto-juvenil, só pode ser tratado juridicamente se (re)conhecidas e consideradas as tramas da realidade concreta. O Estatuto está, assim, entre as leis brasileiras que favorecem que se leve em conta a diversidade dos momentos históricos e dos contextos culturais e econômicos sem que isso se torne justificativa para a desconsideração daquilo que nos torna iguais (Márques, 1997).

Todo este respeito ao multiculturalismo, entretanto, não parece condizente com os tempos vividos. Se a mencionada doutrina nos alerta que não existem "a" infância e "a" adolescência ideais, convidando-nos a reconhecer as diversas formas possíveis de ser criança e adolescente como igualmente merecedoras do tratamento digno cabível às infâncias e adolescências que povoam o imaginário hegemônico, dela também advém um duplo desafio. Somos desafiados a não negar a pluralidade, as especificidades e diferenças que constituem o conjunto de seres a que se refere a doutrina e, ao mesmo tempo, a enxergar a condição humana de todos eles - inclusive daqueles que tenham praticado atos entendidos como desumanos.

Baseado na filosofia de Lévinas, também Freire (apud Silva e Aquino, 2004) destaca a responsabilidade que uma ética da alteridade nos impõe e as dificuldades enfrentadas em um modelo societário que acentua o consumismo, o hiperindividualismo e a espetaculalização do sofrimento humano. A "alergia à alteridade" de que padeceríamos, diz o autor, alimentaria "a ilusão inconsciente de um mundo quase perfeito para uma elite", agudizando a violência que aparta e "confronta as elites e os não mais apenas marginalizados, mas verdadeiramente excluídos do mercado e da vida social" (op. cit. 2004, p. 42). Sendo assim,

    Se o alheiamento do Outro pelas elites pode dar-se de maneira inconsciente, seus reflexos na vida cotidiana são sentidos na pele, ora pela violência explícita das ruas, ora pelo ressentimento travestido de submissão. Homens sem sonho, sem trabalho e sem honra tornam-se empecilho para os anseios, a ociosidade e a vaidade de elites inconseqüentes (idem, p. 43).

Sujeitos cada vez mais egocentrados com o firme respaldo de ideologias valorizadoras do individualismo, da hostilidade ou do alheiamento em relação às questões sociopolíticas (e, portanto, em relação ao Outro), temos por desafio o enfrentamento do impulso culturalmente alimentado de fazer da "desumanização" do diferente uma cínica estratégia útil também para nos dirimir de eventuais culpas por nossas ações e omissões sociais.

Neste sentido cabe frisar que destituir o Outro de sua humanidade não é, necessariamente (ou imediatamente), tirar-lhe a vida. É excluir a pessoa ou categoria social da condição de semelhante, e portanto de criatura/grupo inteligível. Segundo Costa (1994), em nossa cultura este é um processo do qual participamos como quem pratica um jogo, por ele chamado de "jogo organizado da crueldade".

E se é "organizado", o jogo não prescinde de regras. A regra fundamental é a internalização de uma hierarquia em que o topo cabe aos sujeitos morais "típicos", àqueles que, projetivamente, serão considerados como dignos de proteção a ataques à sua integridade física, moral, emocional. É preciso então, que tenhamos internalizada uma imagem do sujeito merecedor de toda empatia: de nossa indignação pelas injustiças sofridas, de nossa compaixão pelas faltas cometidas, de nossas lágrimas pelo sofrimento sentido etc. Tecida por atributos historica e culturalmente valorizados, esta construção passará a ser identificada como "meu igual" ou "semelhante". Cuidando-se para que nela não haja espaço significativo para atributos tipicamente não hegemônicos, como os que identificam grupos minoritários.

Mas o "jogo da crueldade" não se deflagra sozinho. O psicanalista ressalta que, para que aconteça, é necessária a atuação de mecanismos que ajudem a superestimar a percepção, sempre egocentrada, de que o Outro representa ameaça; de que sua incompreensível forma de existir anuncia perigos. Do vivido persecutório e da dúvida permanente sobre aqueles (transformados em "aquilo") com quem o Eu não se identifica é que advém fundamentação para a manutenção, ainda que formalmente negada, do direcionamento da hostilidade ou do desprezo coletivos contra o núcleo que ostenta a marca da diferença.

Assim, estamos falando de um jogo social que é favorecido e favorecedor da atuação de mídias (formais ou informais) comprometidas com a espetacularização da violência e com a reprodução de uma leitura de mundo pela qual as diferenças são decodificadas como perigosos defeitos. Um jogo cuja continuidade depende diretamente da transformação, em entretenimento coletivo, de grandes tragédias ou de pequenas desgraças cotidianas.

No caso da criança e do adolescente na sociedade brasileira atual, frente à assimetria no tratamento dispensado aos sujeitos a partir de critérios socioeconômicos e culturais, é como se o estudo de nossa discursividade formal pudesse registrar que aqui se promove um novo e celebrado jogo -o da "inclusão social"- , enquanto que a análise de nossas motivações e de nossa discursividade espontânea denunciasse que em nosso "software mental" ainda não desabilitamos as regras e principalmente os objetivos do jogo anterior. Ao defender solenemente os direitos das crianças e dos adolescentes, mas, ao mesmo tempo, justificar a permanência, aberta ou velada, de um padrão classificatório pelo qual se possa definir o que seja uma criança/adolescente "aceitável" como sujeito de direitos, não jogamos outro jogo que não o da exclusão. Se há alguma diferença, esta reside no fato de que, agora, o fazemos sustentados na "razão cínica" que, nos dizeres de Costa (1988), tenta fazer da realidade existente "uma instância normativa da realidade ideal", decretando como universal e permanente a moral da violência e ainda nos convidando, a todos, para que assinemos embaixo.

 

4. Considerações Finais: a descoberta do Outro

 

"A luta dos povos longamente colonizados ou
oprimidos apresenta, com grande ampliação, a exigência
comum a todas as juventudes do mundo: não serem tratados
como objetos e fazerem reconhecer sua personalidade
própria contra qualquer tentativa de integração a um
sistema exterior, opressivo e repressivo.[…] Esta atitude
da juventude sugere uma nova atitude perante a vida:
a metamorfose do destino em poema".
Roger Garaudy
4

Considerada como uma ciência da alteridade, uma das principais contribuições da Antropologia à compreensão do bicho que somos nós reside na premissa de que a nossa é uma espécie animal que não é - mas que está. E que, por estar em ininterrupta forja sócio-histórica e cultural não poderia ser reduzida analiticamente às dimensões que em um dado momento a constituem5.

Seguindo esta premissa, no presente trabalho pretendemos demonstrar que o des/tratamento reservado a crianças e adolescentes cuja existência se dá em condições que se contrapõem às representações culturais hegemônicas não é decorrente do aumento da violência urbana, ainda que dele faça largo uso para justificar-se. Produção de um longínquo processo cujas bases, entendemos nós, também não poderiam ser adequadamente compreendidas se negligenciado o dinamismo de nosso funcionamento psíquico, a desumanização daqueles que não se encaixam em um ideal de "sujeito moral" é um antigo desafio à nossa humanização.

Não obstante, se em nossa versão tardiamente moderna ainda nos deparamos com tantos discursos e práticas excludentes e estigmatizadores, cabe atentar também às notáveis conquistas - individuais e coletivas - quanto à renúncia a qualquer "potência nefasta" que, porventura, nos orientasse em sentido oposto ao do reconhecimento de um "semelhante" no "diferente".

Uma ética da alteridade se faz necessária e possível. Sua manifestação concreta, entretanto, deverá se dar em conjunção a fatores como o contexto socioeconômico e o papel social e político atribuído à violência. Sendo assim, para que por esta "nova" ética seja possível "metamorfosear destino em poema", bem urdidos sistemas sociais e políticos deverão dela fazer parte.

 


 

Notas:

* Este artigo de reflexão é parte de uma pesquisa maior sobre menoridade e violência urbana desenvolvida na Universidade de Uberaba, entre março de 2005 e março de 2007, com o apoio do Pape-Uniube (Programa de Apoio à Pesquisa), e do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Referido projeto foi aprovado pelo Comitê local de Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos e está registrado no Sisnep sob o protocolo no. Caae – 0012.0.227.000-05.

1 -Reconhecemos exceções como a existência de um colégio de catecúmenos na cidade de São Vicente, SP, que teria sido fundado em 1554 para acolher, letrar e orientar órfãos portugueses e "mestiços da terra", bem como a criação, em 1645, da primeira escola do Brasil destinada a crianças negras e fundada pelos dominadores holandeses.

2 -Lembra o autor que dos mais de 400.000 filhos de escravas registrados até 1885, apenas 113 meninos foram entregues ao governo (Fachinetto, 2004).

3 -Firmados entre 1964 e1976, estes acordos da United States Agency for International Development (Usaid) com o Ministério da Educação brasileiro (MEC) estabeleciam convênios de assistência técnica e cooperação financeira para a reorientação da educação nativa de acordo com as necessidades do capitalismo internacional, o que colocava em primeiro plano o enquadramento moral e ideológico dos brasileiros em formação (Márques, 1997).

4 Garaudy (1972).

5 -Uma interessante reflexão sobre a interface Antropologia-Psicologia a partir do clássico debate da relação entre natureza e cultura pode ser lida em: Nuernberg y Zanella (2003): A relação natureza e cultura: o debate antropológico e as contribuições de Vygotski.

 


 

Lista de referências

 

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    Referencia para citar este artículo: Márques, F. T. (2011). Intolerâncias e in[ter]venções: "menores" e "crianças" no imaginário social brasileiro. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, 2 (9), pp. 797 - 809.