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Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud

versão impressa ISSN 1692-715X

Rev.latinoam.cienc.soc.niñez juv vol.11 no.2 Manizales jul./dez. 2013

 

Segunda Sección: Estudios e Investigaciones

Perpetrador e vítima: o adolescente que cometeu ofensa sexual*

The sexual offender teenager, both perpetrator and victim

Perpetrador y la víctima: el adolescente que cometió delito sexual

Bruno Nogueira-da Silva Costa1, Liana Fortunato-Costa2

1 Psicólogo Universidade de Brasília, Brasília, Brasil. Psicólogo, Mestre em Psicologia Clínica e Cultura. Centro de Atendimento e Estudos Psicológicos do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (CAEP/IP/UnB). Correo electrónico: psico_brunocosta@yahoo.com.br

2 Professora Universidade de Brasília, Brasília, Brasil. Psicóloga, Doutora em Psicologia Clínica. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (PPGPsiCC/ IP/UnB). Correo electrónico: lianaf@terra.com.br

Artículo recibido en febrero 18 de 2013; artículo aceptado en mayo 2 de 2013 (Eds.)


Resumo (analítico):

Trata-se de uma investigação qualitativa, mas concretamente um estudo de caso, sobre um adolescente de 14 anos de idade, que estudava no sexto ano primário e cometeu abuso sexual contra seu irmão. O objetivo do estudo foi aprofundar a compreensão sobre a dinâmica do abuso sexual na situação adolescente com história de ter vivido em albergue pra crianças e de abandono afetivo. Espera-se que os resultados possam aclarar o fenômeno ainda pouco conhecido no Brasil. Os dados foram coletados durante uma entrevista semi-estruturada, como parte de uma intervenção grupal. Foi adotada uma perspectiva de exemplaridade que se caracteriza pela intensidade do conhecimento produzido e pelo reconhecimento da complexidade, que evidencia as ambiguidades presentes no debate. Os resultados focam a relação de abandono vivida com sua mãe, as consequências das várias institucionalizações e o potencial dos recursos de seu meio ambiente. Encontramos aspectos que coincidem com a literatura internacional e, as particularidades da realidade brasileira, especialmente nas condições sociais e econômicas.

Palavras chave (Biblioteca Virtual em Saúde-BVSPSI-Brasil): desenvolvimento do adolescente, abuso sexual, estudo de caso.


Abstract (analytical):

This is a qualitative research, more concretely one of a case study, about a 14-year old, who was studying in the sixth grade of primary school and committed sexual abuse against his brother. The objective of the study was to deepen the understanding of the dynamics of sexual abuse in the situation of a teenager with a history of having lived in a shelter for children suffering from affective abandonment. The results are expected to shed light into this still little-known phenomenon in Brazil. The information was collected during a semi-structured interview, as part of a group intervention. The perspective adopted is that of the exemplarity that is characterized by an intensity of the knowledge produced and by the recognition of complexity, which evidences the ambiguities present in the discussion. The results focus the relation of abandonment experienced with their mother, the consequences of the several institutionalizations, and the potential of the resources of their environment. We found aspects that coincide with the international literature and the particularities of the Brazilian reality, mainly in the social and economic conditions.

Key words (Biblioteca Virtual em Saúde-BVSPSI-Brasil): adolescent development, sexual abuse, case report.


Resumen (analítico):

Se trata de una investigación cualitativa, más concretamente de un estudio de caso, sobre un adolescente de 14 años de edad, que estudiaba el sexto año de primaria y cometió abuso sexual en contra de su hermano. El objetivo del estudio fue profundizar la comprensión acerca de la dinámica del abuso sexual en la situación de adolescente con historia de haber vivido en albergue para niños y de abandono afectivo. Se espera que los resultados puedan clarear ese fenómeno aún poco conocido en Brasil. La información fue recogida durante una entrevista semiestructurada, como parte de una intervención grupal. Se adopta la perspectiva de la ejemplaridad que se caracteriza por una intensidad del conocimiento producido y por el reconocimiento de la complejidad, que evidencia las ambigüedades presentes en la discusión. Los resultados enfocan la relación de abandono vivida con su madre, las consecuencias de las varias institucionalizaciones, y el potencial de los recursos de su medio ambiente. Encontramos aspectos que coinciden con la literatura internacional y las particularidades de la realidad brasileña, especialmente en las condiciones sociales y económicas.

Palabras clave (Biblioteca Virtual em Saúde-BVSPSI-Brasil):desarrollo del adolescente, abuso sexual, estudio de caso.


1. Introdução

No Brasil ainda estamos, de forma muito tímida, iniciando a sistematização do conhecimento sobre o adolescente que cometeu ofensa sexual. Algumas iniciativas de pesquisadores na área da Psicologia estão sendo publicadas: Bianchini e De Antoni (2012), Costa (2011), Costa, Junqueira, Ribeiro e Meneses (2011), Costa, Ribeiro, Junqueira, Meneses e Stroher (2011), Costa, Ribeiro e Moura (2012), Costa et al. (2012). Excetuando a área de criminologia, que oferece um número maior de publicações, em relação à Psicologia é possível encontrarmos produções referentes a adultos ofensores sexuais, como as produzidas por: Telles, Teitelbaum e Day (2011), Sattler (2011). Consideramos importante essa contextualização porque, até então, somente tivemos acesso a autores internacionais de língua inglesa e francesa principalmente (Chagnon, 2008, Marshall, 2001, Roman, 2012, Seto, 2009, entre outros), e necessitamos de um conhecimento que leve em consideração as questões familiares, sociais, econômicas e culturais que reflitam as condições do Brasil.

Também, no que se refere ao Brasil, ainda estamos atrasados quanto a uma noção precisa, assim como atualizada, dos números referentes à violência praticada por adolescentes que cometem ofensas sexuais. Encontramos alguns estudos que identificam regionalmente esse montante. Por exemplo, a Vara da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (VIJ-DF), Brasil, identificou uma maior incidência de abuso sexual cometido por adolescentes do que por adultos (VIJ, 2010). Esse dado é inusitado e representa, provavelmente, uma mudança de direção na ocorrência desse fenômeno. No Rio Grande do Sul, em um estudo local, Bianchini e De Antoni (2012) encontraram dados interessantes que tanto ajudam a formular a dimensão do fenômeno quanto suscitam questões que necessitam maior aprofundamento: a idade do adolescente ofensor sexual é bem próxima da idade da criança abusada; a maior parte dos abusos ocorre intrafamiliarmente ou com crianças que transitam pela casa; a escola é o seguimento mais próximo do acesso que os adolescentes têm sobre possíveis crianças abusadas. Mesmo a literatura internacional, admite que os dados não são precisos, porém reconhece que aproximadamente um terço dos autores,que cometem violência sexual contra crianças,são adolescentes (Marshall, 2001, Oliver, 2007). Esse dado corrobora a importância de se estudar esse sujeito.

Nesse texto, vamos apresentar um estudo de caso de um adolescente de 14 anos, 6ª série do ensino fundamental, que cometeu ofensa sexual contra seu irmão, descrevendo sua curta história, suas relações em família, seu contexto sócio econômico. Na discussão dos elementos que compõem sua história de vida e a história da violência sexual, utilizamos o referencial do Pensamento Sistêmico (Esteves de Vasconcellos, 2002) para compreender seu contexto e enfocar a intersubjetividade de suas relações, e agregamos o enfoque do pensamento de Winnicott (1987), que se interessa pela qualidade do estabelecimento das relações primitivas desse adolescente, em especial com sua mãe.

2. Marco teórico sobre adolescente que cometeu ofensa sexual

Um intenso esforço é realizado por pesquisadores nacionais e internacionais para identificar as características das vítimas, das relações familiares, do perfil das pessoas que cometeram as agressões e das experiências que compõem a história de vida desses sujeitos. Além de sabermos, hoje, que não há um perfil do adolescente que cometeu ofensa sexual, essas pesquisas contribuíram no sentido de identificar e analisar os fatores de risco no desenvolvimento de um comportamento sexualmente ofensivo. Os resultados alcançados desmistificaram algumas suspeitas, como o fato de que todo adolescente que comete ofensa sexual foi abusado sexualmente (Marshall, 2001, Seto, 2009). Os autores internacionais apontados até agora, bem como autores de nacionalidade brasileira (Costaet al., 2012), mostram que embora essa assertiva possa ser verdadeira em muitos casos, ainda que não se possa generalizar, esses adolescentes, mesmo que não tenham sido abusados sexualmente, vivenciam um ambiente familiar repleto de conflitos e violências físicas e psicológicas (Zankman & Bonomo, 2004). Do mesmo modo, sabe-se que a ausência de uma expressão empática por parte do adolescente está associada ao comportamento de ofensa sexual (Moura & Koller, 2010, Pithers, 1999,Worling & Langström, 2003).

Algumas pesquisas identificaram que os adolescentes que cometeram abuso sexual contra crianças possuem poucos amigos, estão em uma situação de isolamento social e se relacionam mais com crianças pequenas ou se interessam mais por assuntos relacionados à masculinidade (Miner & Munns, 2005, Miner & Swinburne-Romine, 2004). Oliver (2007) compreende que as características descritas acima representam sinais de alerta que podem desencadear um comportamento de ofensa sexual contra crianças. Essas características precisam ser identificadas precocemente e reorientadas por adultos.

Daversa e Knight (2007) observaram que os adolescentes que cometeram abuso sexual infantil apresentavam comportamentos hostis para os seus pares e para com os adultos, como também vivenciavam sentimentos de inadequação social, inadequação sexual, rejeição, dependência e submissão. A pesquisa sugere que esses adolescentes lutam intensamente contra os desafios da masculinidade, e eles se sentem envergonhados com a própria aparência física, sentem dificuldades para lidar com a frustração da rejeição em uma tentativa de conquista, e que uma das formas de compensar a inabilidade e competir com os demais adolescentes é violentar sexualmente aqueles que não têm condições emocionais de dizer não ao assédio sexual, como é o caso de crianças. Os autores ainda identificaram que histórias de maus tratos na vida dos adolescentes contribuíram no desenvolvimento desses comportamentos.

Tanto a literatura internacional como a brasileira tem reconhecido que histórias de violências nas relações entre pais e filhos configuram uma característica constante na vida dos adolescentes que cometem abuso sexual infantil. Os pais dos adolescentes que cometem ofensa sexual utilizam recursos violentos na imposição de limites (Chagnon, 2008, Marshall, 2001, Penso, Conceição, Costa & Carreteiro, 2012, Schmickler, 2006). A observação dessa dinâmica relacional não tem a intenção de identificar culpados ou responsabilizar os pais pela atitude dos filhos. Até mesmo porque ao contextualizar a atitude desses pais é possível identificar que eles se encontram em situações limite e de significativo estresse (Costa, 2012). Mas a importância de identificar as características da dinâmica familiar pode responder como se desenvolve o comportamento violento.

Outra característica das famílias de adolescentes que cometem abuso sexual é o apoio familiar e social restrito, ou seja, são famílias de limitado relacionamento com outros parentes distantes, com reduzidas trocas afetivas, de modo que essas relações não oferecem um suporte emocional nas situações conflituosas. Essas famílias não fazem uso dos recursos sociais da comunidade, não possuem relações emocionalmente significativas com pessoas e instituições da comunidade, como vizinhos, entidades desportivas e colegas de trabalho (Worling & Langström, 2003).

Ainda cabe apontar que as relações familiares podem se constituir como um dos elementos fundamentais para o desenvolvimento de atos transgressores do adolescente. Em outras palavras, a forma como a família estrutura as fronteiras relacionais, o exercício dos papéis de cada membro e os recursos utilizados para desenvolver a dinâmica relacional concorre para a violência, e o adolescente responderá a essa estrutura familiar por meio da transgressão familiar ou social (Segond, 1992). É importante clarificar que o ato infracional, ou qualquer outra expressão de sofrimento psíquico do adolescente, são meios / recursos de expressão do sofrimento que este sujeito vivencia. Então, pode-se compreender que a transgressão representa tanto uma denúncia como um pedido de ajuda (Marshall, 2001, Penso et al., 2012, Winnicott, 1987). A ofensa sexual praticada por adolescentes é categorizada no sistema judicial brasileiro como ato infracional, esse aspecto é relevante porque o Ministério Público (MPU, 2008) oferece uma estatística dos adolescentes que estão respondendo por atos infracionais, considerando o total dos atos infracionais, sem discriminação dos atos de natureza social e dos de natureza sexual. Compreendemos que a dinâmica relacional familiar, o significado do ato infracional e a intervenção indicada são diferentes nos dois casos específicos (Chagnon, 2008, Marshall, 2001, Penso et al., 2012). Considerando que se possui pouca informação contextualizada sobre o adolescente que cometeu ofensa sexual, assume-se a necessidade de estudo de forma mais individualizada sobre esse sujeito. Por isso, a importância do estudo de caso.

3. Método

3.1 Situando o estudo de caso

O sujeito em específico do estudo, um adolescente que cometeu ofensa sexual, faz parte de uma pesquisa mais ampla -Grupos Multifamiliares com Adolescentes que Cometeram Abuso Sexual-, que tem como objetivo investigar e sistematizar uma metodologia de intervenção psicossocial para este público em uma perspectiva familiar e grupal.

Essa pesquisa acontece no contexto dos atendimentos oferecidos por uma instituição pública de referência de atendimentos a crianças e adolescentes,na cidade de Brasília, capital do Brasil. Trata-se do Centro de Orientação Médico Psicopedagógico-Compp-, uma unidade executiva de saúde mental infanto-juvenil da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal, que tem como clientela crianças e adolescentes de 0 a 18 anos (incompletos), com dificuldades de ordem mental. A intervenção nessa instituição voltase prioritariamente a famílias pertencentes às classes D (dois a quatro salários mínimos) e E (dois salários mínimos) e se configura em um contexto de cumprimento de atendimento sob obrigação, a partir de demanda judicial.

Dentre os atendimentos oferecidos no Compp, destacamos o Programa de Atenção à Violência-PAV-, que atende a pacientes em situação de violência (negligência, abandono, violência física, psicológica e sexual). O Compp, portanto,participa do atendimento a crianças e adolescentes vítimas e vitimizadores sexuais. Como critérios de inclusão para atendimento na instituição, e também desta pesquisa em particular, definiu-se: ser do sexo masculino; ter idade entre 12 e 18 anos (incompletos); morar na cidade; ter sido encaminhado por qualquer entidade pertencente à Rede de Proteção da Criança ou do Adolescente; estar com os vínculos familiares preservados; ter denuncia de envolvimento em situações de violência sexual contra crianças.

A intervenção grupal, durante a qual ocorreu a pesquisa, voltou-se para adolescentes e suas famílias. Essa orientação do atendimento em família é uma opção metodológica amparada por pesquisadores, como Marshall (2001), que estudam sujeitos em condições semelhantes aos investigados por nós.

A intervenção constitui-se em cinco encontros onde são desenvolvidos temas específicos pré-determinados, comuns a todas as famílias: proteção; sexualidade; violência sexual como crime; transgeracionalidade; projeto de namoro futuro. Cada encontro dura em média três horas e sua programação é quinzenal. Os participantes são os adolescentes, suas famílias nuclear e extensa, os pares e outras pessoas consideradas importantes como recurso de ajuda ao adolescente. O procedimento dessa intervenção segue uma rotina que se inicia com uma entrevista semi-estuturada,com o objetivo de conhecer a realidade socioeconômica do adolescente e sua família, as relações familiares, bem como sua inserção social, suas relações com os pares e as condições da violência praticada. Após os cinco encontros, segue-se uma avaliação que tem por finalidade conhecer o alcance da intervenção e a necessidade de encaminhamentos.

Portanto, o estudo de caso a ser apresentado em seguida contou com a participação do adolescente e de sua mãe. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria de Saúde ao qual a instituição de referência está vinculada, com o número 331/09, no dia 04 de julho de 2011. Apresentouse ao adolescente e seu responsável, antes da realização da primeira entrevista, o sentido de pesquisa que seu atendimento teria.Foi lido em voz alta o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e explicou-se que a não adesão à participação da pesquisa não implicava no não atendimento do adolescente e da respectiva família na instituição (Compp) e no programa (PAV).

Assim, procedeu-se a entrevista inicial, que na oportunidade foi realizada a árvore genealógica da família para subsidiar o conhecimento da história familiar e a provável repetição da violência nas várias gerações. Importa destacar que o relatório encaminhado pelo Conselho Tutelar do município no qual o adolescente reside para a instituição responsável pelo atendimento foi de grande valia, pois ajudou a estruturar o sentido cronológico dos acontecimentos de sua vida. Vale ainda esclarecer que a construção deste estudo de caso adotou a perspectiva de exemplaridade (Demo, 2001),que tem como fundamento o reconhecimento de que a realidade é dinâmica, caótica e não-linear, e que a busca do conhecimento ocorre por meio de uma construção histórica do fenômeno estudado,enfatizando-se a complexidade das relações humanas, bem como seus aspectos singulares.

3.2 O caso

O adolescente estudado chama-se Nivaldo (nome fictício), tem 14 anos, cursa a 6ª serie do ensino fundamental, reside com sua mãe, padrasto e irmãos por parte de mãe - um de doze anos e outro de nove. A família pertence à classe social E. A única fonte de renda da família é oriunda da atividade laboral do padrasto. É importante relatar que as informações sobre o pai biológico de Nivaldo não foram apresentadas pela família por terem nenhum contato com ele.

Os avós maternos de Nivaldo casaram-se cedo e, por meio de muito trabalho, construíram um patrimônio que resultou em uma fazenda. Eles permaneceram casados por 65 anos. Seus filhos perderam tudo que os pais construíram porque brigavam muito. Atualmente, existem irmãos que não se falam. A mãe de Nivaldo tem sérios conflitos com as irmãs. Ela foi criada pelos avôs paternos, era muito agressiva quando menina e conviveu pouco com seus pais. Fugiu de colégio interno e engravidou de Nivaldo quando tinha 15 anos. Nessa ocasião, foi morar com as tias. Nivaldo não tem contato com seu pai biológico. Um tempo depois, sua mãe conheceu outro homem com quem teve dois filhos, Frederico e Rubinho, de 12 anos e 9 anos.

Nivaldo cometeu vários episódios de ofensas sexuais. Sua vida passou-se em várias residências. Até quatro anos de idade, ele morou com a mãe. Por questões financeiras, nessa idade foi morar com a tia materna por dois anos (até os seis anos de idade). Depois voltou a morar com a mãe por alguns meses, ainda quando ele tinha seis anos. Dos seis anos aos dez, Nivaldo voltou a morar com a tia materna. E é por volta dos sete anos que os episódios de ofensa sexual têm início. Nessa idade, ele abusa sexualmente de uma criança de quatro anos da vizinhança. O relato do Conselho Tutelar não oferece detalhes de como foi o ato abusivo, até porque esse episódio não foi notificado ao Conselho naquela ocasião. O fato foi mantido com muita reserva entre a família da criança envolvida e a família de Nivaldo.

Aos 10 anos, Nivaldo volta a morar com a mãe. Nesse período, furtou determinada quantidade de dinheiro da mãe. O meio utilizado pela mãe para corrigir o filho foi queimando sua mão. O tio materno de Nivaldo, que já há algum tempo queria a guarda do sobrinho, com essa atitude da mãe, denunciou a irmã ao Conselho Tutelar por maus tratos, e solicitou a guarda de Nivaldo. A justiça acatou o pedido e concedeu a guarda ao tio materno.

O adolescente morou na casa do tio por volta de um ano. E é nesse período que acontece o segundo e o terceiro episódio de ofensa sexual. Aos 11 anos, Nivaldo abusou sexualmente das duas filhas desse tio (uma criança de nove anos e outra de sete anos). Com esses eventos, o tio entrega o adolescente ao Conselho Tutelar do município que o interna em um abrigo, no qual permaneceu por 13 meses aguardando decisão judicial.O motivo para o adolescente ter sido internado nessa instituição foi por estar em situação de risco, com os direitos violados e com vínculos familiares fragilizados e rompidos. Foi relatado também que o adolescente apresentou comportamento sexual incompatível com a idade e por ter colocado outras crianças em situação de risco.

No abrigo, Nivaldo teve muitas dificuldades de adaptação. O relatório da instituição afirma que o adolescente apresentou dificuldades de convívio com outras crianças, que exigiu dos cuidadores atenção exclusiva, apresentando ainda comportamento alimentar compulsivo (sobrepeso). Os profissionais do abrigo promoveram o fortalecimento da relação entre mãe e filho. Após o período no abrigo, a justiça determinou que o adolescente voltasse a viver com a família de origem.

Dessa forma, no ano de 2009 o adolescente volta a morar com a mãe, o padrasto e os dois irmãos, filhos do casal. O padrasto passa pouco tempo com a família, prioritariamente nos finais de semana, uma vez que ele opera máquinas em fazendas distantes do município onde reside. Nesse ano, Nivaldo comete mais uma ofensa sexual, dessa vez contra o seu irmão mais novo (a criança tinha oito anos). Com este evento, a própria mãe notifica Nivaldo ao Conselho Tutelar, que o encaminha para o centro de referência para atendimento. Os atendimentos oferecidos a Nivaldo foram realizados no grupo de adolescentes ofensores sexuais e no grupo de transtornos alimentares. Nos relatos do Conselho Tutelar há ainda a informação de que houve uma quinta vítima neste ano, mas não oferece maiores informações sobre esse episódio. Os dados indicam que esta criança também teve relações sexuais ativas com ele e a mãe de Nivaldo flagrou a cena.

Inicialmente, o que mais chama atenção é a instabilidade de um espaço de convivência, aproximação e afastamento da figura materna e de outras pessoas de referência. A dinâmica identificada foi que, enquanto o contexto estava social e/ou financeiramente estável ou o adolescente não produzia algum tipo de infortúnio, ele tinha um espaço reservado no lar, mas quando algo saía de controle, Nivaldo era enviado para outro lugar. A mãe demonstrou durante as entrevistas não conseguir administrar sua rotina sem problemas desde que ele era pequeno, e, mais ainda, com o surgimento de impasses em sua educação. Um exemplo foi quando no período em que estava morando com sua tia, esta ficou noiva, e ele foi enviando de volta para a casa da mãe. Esse evento nos mostra como esse padrão de ser acolhido e ser rejeitado estendeu-se também para outras pessoas que tentaram ser responsáveis por ele. Houve também eventos de uma pessoa que pedia para a mãe cedê-lo por um tempo, ou seja, ele ia morar por pouco tempo em outra casa, por exemplo, um vizinho. Nessas ocasiões a mãe consentia.

A família de Nivaldo é marcada por muitos episódios de violência e hostilidade, entre seus próprios membros. A mãe perdeu seus pais ainda muito cedo, e tem-se a suspeita de que foi abusada sexualmente pelo pai; saiu de casa com 11 anos e está na quarta união. Não consegue conversar com Nivaldo; no máximo, chama-o para ver televisão.

Ao longo dos atendimentos, além das histórias de ofensas sexuais, identificamos que Nivaldo praticava outros tipos de violências. Estas eram dirigidas ao irmão do meio, por meio de maus tratos contra os animais domésticos de estimação desse irmão. Nivaldo maltratava galinhas, gatos, cachorros que andavam pelo quintal da casa. Em especial, em relação a um gato, ele o matou com requintes de maldade em um ritual que reuniu sufocamento, afogamento e, finalmente, colocou o gato morto em um saco de plástico no congelador da geladeira, deixando-o lá por um tempo. Ninguém na família percebeu as atitudes de Nivaldo. Somente depois de algum tempo é que a mãe descobre toda a história e ela disse ainda suspeitar que Nivaldo tenha feito sexo com o gato antes de matá-lo. Pelo relato da mãe, supõe-se que ela apresenta sintomas depressivos (ainda que sem um diagnóstico realizado), pois disse, dentre outras informações, passar a maior parte do tempo dormindo no quarto. Há uma suspeita da equipe do centro de atendimento de que Nivaldo possui algum comprometimento cognitivo a ser averiguado.

4. Resultados e discussão

Nossa discussão se organiza basicamente em torno de dois pontos que possibilitam melhor visualização dos aspectos que ordenam as condições de vulnerabilidade e de risco para a reincidência dos atos violentos: (1) relação de violência entre pais e filhos e o ato infracional; (2) possíveis relações de suporte. Todos os autores, com maior presença na literatura internacional, enfocam, sobremaneira, a equação da violência nas relações familiares de adolescentes que cometeram ofensas sexuais: Marshall, 2001, Rich, 2009,Oliver, 2007, Seto, 2009,Ward, Gannon e Birgden, 2007.

Worling e Langströn (2012) indicam a necessidade de que o adolescente seja adequadamente avaliado para se obter um resultado exitoso no atendimento. Essa posição tem um valor inquestionável, a nosso ver, porque esses autores admitem inclusive a possibilidade de que esses adolescentes sejam monitorados sem rompimentos dos laços familiares e comunitários, isto é, podem permanecer em seus lares e não necessitam serem internados em instituições para o cumprimento da medida reeducativa. Mas, para isso é importante que sejam avaliados corretamente, em uma dimensão do melhor conhecimento da possibilidade da reincidência do ato violento. Devemos admitir a existência de uma distância considerável da adoção dessa sistemática no Brasil.

Consideramos que o caso apresenta várias situações de violência e abandono que caracterizam a vida do adolescente ofensor sexual (Chagnon, 2008, Costa et al., 2011, Marshall, 2001, Zankman & Bonomo, 2004). Provavelmente há uma mãe depressiva, acrescida de uma condição de obesidade, distante afetivamente de Nivaldo e mais próxima dos outros dois filhos. Nivaldo não tem contato com o pai biológico, o padrasto permanece muito tempo fora de casa, e não assume (nem com ele e nem com seus próprios filhos) uma posição de autoridade presente e atuante. Temos, portanto, lacunas de autoridade nas funções materna e paterna. Nivaldo, aos 14 anos, tem uma experiência de pertencimento com rompimentos constantes, ou seja, de não pertencimento, ao ser levado de um lar para outro. Isso nos faz pensar em um não investimento afetivo por parte de sua mãe, conforme descreve Winnicott (1980). Esse autor refere-se a uma identificação da mãe com seu filho, que permitirá, mais tarde, o filho se identificar com ela, reconhecendo sua vinculação. Essa dimensão não parece estar presente em Nivaldo, que foi criado perambulando entre várias casas, com pais substitutos e experiência de abrigamento sem que, de fato, ninguém o tivesse assumido como filho. Sua posição parece ser a de filho devolvido, e não de filho investido, na perspectiva winnicottiana.Cada adulto que pretendeu assumir sua responsabilidade acabou por devolvê-lo à condição de abandono. Por esta razão pensamos poder denominá-lo de filho coisificado. Ao longo de todo o relato sobre a vida de Nivaldo, ficamos com a impressão que, no final, ele é "filho de ninguém".

As soluções apresentadas pela família para resolver algum problema comportamental de Nivaldo sempre foram apresentadas no sentido de aloca-lo em algum outro lugar, em algum espaço, não necessariamente no espaço da família nuclear. Nivaldo é uma "criança de passagem", está sempre passando de um lugar para outro lugar, de um responsável para outro. Ele viveu em inúmeros lugares e teve vários "cuidadores", porém em nenhum lugar que fosse seu porto seguro, um espaço no qual ele poderia se sentir acolhido. Não teve a experiência de receber um sentido protetor, uma "preocupação maternal primária" no dizer de Winnicott (1980). Ele parece nunca ter tido uma figura de referência que mediasse a construção de valores, de expressão de sentimentos, do significado de família e que pudesse orientá-lo no seu desenvolvimento sexual. Mais do que isso, a família parece não ter oferecido um continente para a construção de um sentimento de pertencimento familiar, ajudando-o necessariamente na passagem para a sua inserção no mundo. A passagem aqui é entendida como o objeto transicional que simboliza a sua apresentação ao mundo e facilita seu processo de integração social (Winnicott, 1975).

Para melhor compreender os atos de Nivaldo, é necessário contextualizar quais as condições familiares e sociais que ele está inserido. O contexto familiar tem a seguinte configuração: o padrasto, por trabalhar na área rural, passa pouco tempo com a família; de fato, visita a família em finais de semana alternados. Dessa forma, pouco contribui na educação e no desenvolvimento de seus dois filhos e de seu enteado. A ausência do marido deixa a mãe sobrecarregada nas tarefas domésticas, de modo que ela vivencia sentimentos de incapacidade e sensação de estar sempre sozinha. Ela parece enfrentar essa solidão abstraindo-se do convívio familiar e dormindo a maior parte do dia. Na verdade, o adolescente e seus irmãos permanecem sozinhos todo o dia, limitados ao ambiente físico da casa e espaço ao seu redor, como quintal e jardim. Quem tem a responsabilidade de cuidar e oferecer alimentação aos filhos menores é Nivaldo. Pode-se perguntar se a ausência do padrasto e a presença invisível da mãe não estão representando fortes fatores de risco para os filhos, eles não estão protegidos mesmo no contexto do lar (Costa et al., 2011). De acordo com essas autoras, os adolescentes que cometeram ofensa sexual são alçados ao papel de protetor e cuidador das demais crianças das famílias, mas não se pode esquecer que estes adolescentes, ainda que exerçam essas funções, precisam de proteção de modo que esta funcione como prevenção de atos violentos como o abuso sexual.

A violência e o desentendimento familiar são preocupantes, pois dificultam a reorganização psíquica de Nivaldo. A presença de violência, brigas, disputas, rompimentos familiares está de acordo com a observação de todos os autores estudados sobre a presença de violência intrafamiliar nos adolescentes que cometem abuso sexual. A família é ponto chave na reorientação do adolescente (Borduin, Schaeffer & Heiblum, 2009, Hengeller, Chapman, Borduin, Schewe & McCart, 2009, Marshall, 2001). A nosso ver, Nivaldo depende da capacidade da família reformular sua comunicação, passando de uma postura violenta para uma possibilidade de dar atenção afetiva aos demais membros, à educação sexual e à presença de adultos que representem autoridade.

Zankman e Bonomo (2004), sobre o adolescente que cometeu ofensa sexual, colocam a família no centro do atendimento a esses sujeitos. Para eles, o ciclo de violência familiar e/ou do casal é indissociado do ciclo de violência do adolescente. A história de Nivaldo nos mostra que os episódios de abuso sexual estão associados aos momentos nos quais ele foi "dado" para que outra pessoa tomasse conta dele. Por exemplo, quando é entregue ao tio, ele abusa dos dois primos, filhos desse tio. Essa conexão dos ciclos de problemas -do adolescente, da família como um todo ou de algum membro da família- não devem ser vistos em separado. A partir dessa percepção podemos compreender que os abusos se constituem em um pedido de socorro de Nivaldo para ser cuidado, amado e acolhido (Winicott, 1987). Constitui-se também em uma comunicação de que essa estratégia de solução de problemas -ser passado adiante- não só não funciona como potencializa sua "raiva" por não ter um espaço e um lugar no qual ele é aceito.

Considerando ainda nossas observações sobre a dinâmica familiar de Nivaldo, o irmão de 12 anos é o principal responsável pelas tarefas domésticas. Enquanto Nivaldo cuida dos irmãos menores, Frederico limpa a casa, cuida dos animais domésticos e, algumas vezes, prepara o almoço. Este irmão apresenta conflitos com Nivaldo, sente muita raiva do irmão, pois Nivaldo maltrata os animais que Frederico cuida. Em termos da organização e rotina familiar, Nivaldo e o irmão mais novo (Rubinho, nove anos) ficam responsáveis por si mesmos durante todo o dia e, às vezes, cumprem tarefas determinadas pelo irmão de 12 anos. Essa rotina aponta uma falta de autoridade na família, mas também uma inversão rotineira de comando. Hora Nivaldo comanda os irmãos, hora ele é comandado por Frederico. Essa situação é importante de ser considerada, pois Frederico foi o irmão abusado sexualmente por Nivaldo. Vemos aí uma denúncia de uma situação de disputa de poder, já que os pais não exercem essa função.

Marshall (2001), autor chave na literatura internacional sobre ofensa sexual, aponta que esses adolescentes sofrem muitas violências físicas durante sua vida e não se identificam com os pais. Se relacionarmos essa colocação com aquela anteriormente citada de Winnicott (1980), de que o cuidado da mãe ao seu bebê implica numa identificação mútua, então podemos inferir que, no caso de Nivaldo, essa identificação de sua mãe com ele, foi bastante frágil e inconsistente. Convém lembrar que Nivaldo desconhece seu pai biológico. Marshall (2001) chega mesmo a dizer que esses adolescentes possuem vínculos paterno-filiais destrutivos, são relações familiares afetivamente pobres, ou ausentes. Os pais se mostram rejeitadores, insensíveis às necessidades das crianças, possuem dificuldades de demonstração de carinho e afeto, e respondem de modo incoerente aos comportamentos dos filhos. Considera-se a situação de Nivaldo: no passado foi entregue para que outros o cuidassem, e no presente fica entregue à própria sorte.

Winnicott (1980) aponta o começo da vinculação fundamental da mãe com o filho no que chama de "preocupação maternal primária", que é a fusão de habilidades de ambos que se complementam, identificam-se mutuamente, permitindo que a mãe empreste seu self para a criança, que por sua vez o tomará e devolverá na medida de sua identificação com a mãe.Essa fusão, que mais adiante se desfaz, garante à criança um desenvolvimento saudável e à mãe uma possibilidade de gradativamente ir "desistindo" do filho e permitindo que seu crescimento aconteça. Quando estamos apontando a relação "coisificada" de Nivaldo com sua mãe, estamos refletindo sobe a precariedade dessa fusão. A mãe de Nivaldo parece ter tido a condição permanente de desistir dele e de entrega-lo para que outros tomassem seu lugar, e isso se deu por diversas vezes.

Além da questão da desproteção, a presença invisível da mãe (e a ausência do pai) afeta a qualidade do investimento emocional nos filhos. Como os sintomas depressivos da mãe são intensos, o investimento afetivo positivo materno é muito fragilizado, e as trocas afetivas entre adultos e crianças, e entre as próprias crianças, também não se mostram consistentes. Pode-se também fazer a hipótese de que por ser um filho de passagem não lhe é ensinado e transmitido valores morais com relação aos cuidados consigo e com o outro. Chama nossa atenção a atitude da mãe de adotar como uma medida de punição a queima da mão de Nivaldo, quando ele furtou dinheiro da casa.

Zankman e Bonomo (2004) associam uma "performance incompetente" dos pais na orientação do filho adolescente com relação a sua sexualidade, a sintomas depressivos, ou presença de alta ansiedade, como é o caso da mãe de Nivaldo. Pensamos que as ofensas sexuais de Nivaldo e as atitudes destrutivas em relação aos animais representam uma estratégia de lidar com a carência que ele experimenta em sua família, uma forma de lidar com a falta de investimento emocional das figuras materna e paterna (Winnicott, 1987).

O ato infracional e as possíveis relações de suporte -Da história de Nivaldo, dois pontos chamam a atenção. O primeiro é a trajetória de cometimento de ofensa sexual que teve início de forma precoce e com um número relativamente grande de vítimas (quatro vítimas, mais uma da qual não se sabe a idade). É importante assinalar que, neste texto, estamos nos referindo a adolescentes que cometeram abusos sexuais envolvendo crianças dentro do âmbito familiar, sem cometimento de outro ato infracional de natureza social. No entanto, é preciso atentar para o fato de que Nivaldo cometeu violência com crianças fora da família nuclear, embora dentro de seu círculo de convivência rotineira. Esse contexto de abuso intrafamiliar, ou com crianças que transitam pela casa, caracterizase no que Chagnon (2008) define como violência praticada em consequência de práticas educativas erradas. Esse autor ainda defende, no que Seto (2009) e Marshall (2001) concordam, que nessa idade não é possível fazer um diagnóstico definitivo da conduta abusiva. Compreendemos que Nivaldo encontra-se num limiar de abandono, decisivo para que sejam desenvolvidos traços de conduta que possam caracterizar danos sociais. Seu pedido de socorro é de urgência urgentíssima.

Agregamos aqui as contribuições de Chagnon (2008a) que reconhece que o adolescente que cometeu ofensa sexual vivenciou graves dificuldades na infância na organização de seus recursos psíquicos, e classifica o abuso sexual como uma passagem ao ato para fazer frente ao que o autor chama de luta contra a passividade, ou seja, o domínio de fantasias viris para alterar fantasias de falta de virilidade e/ou expressões de feminilidade. Poderíamos acrescentar que seria um recurso para o enfrentamento das perdas sucessivas de laços afetivos, mesmo que frágeis e/ou inconsistentes. O que nos chama atenção nas construções desses autores é o quanto essas considerações fazem sentido ao pensarmos sobre a história de vida e a história familiar de Nivaldo.

Oliver (2007) chama atenção para a necessidade do adolescente ter uma orientação de adulto experiente e protetor no sentido de conversas sobre suas fantasias sexuais. Zankman e Bonomo (2004) insistem na associação entre o ciclo abusivo do adolescente e as alterações nas ações e/ou sentimentos dos pais. O adolescente que cometeu ofensa sexual é extremamente isolado dentro da família (Borduin et al., 2009,Marshall, 2001). Nivaldo encontra-se sozinho em rotina atual e ao longo de sua ainda breve vida. Um programa de atendimento a esse adolescente teria que considerar com ênfase a integração da família, dos pares, da família extensa e de todos os recursos da comunidade, para fazer frente a esse abandono. A solidão e o isolamento desse adolescente mascara uma intensa raiva que poderá ter sua explosão na forma de um ataque sexual (Marshall, 2001). A falta de autoridade, a presença de autoritarismo e violência nas relações familiares, a falta de orientação sexual, o afastamento afetivo e a vitimização infantil são preditores de muitos problemas ligados ao abuso sexual (Marshall, 2001, Oliver, 2007, Zankman & Bonomo, 2004).

Seto (2009), Marshall (2001), Chagnon (2008a), Costa (2012) e Penso et al. (2012) identificam na família as possibilidades de alguma reestruturação das condições de vulnerabilidade do adolescente. Chagnon (2008a) propõe que uma avaliação se paute por apontar comportamentos "do tipo", por exemplo, "do tipo psicopático" sem, contudo, firmar avaliações definitivas, ou diagnósticos finais. Esse autor centra suas preocupações com relação à definição da posição atual do sujeito a partir de três aspectos: "descrição da estrutura psíquica e sua gênese; hipótese da 'lógica' psicológica da passagem ao ato; proposições relativas às capacidades e aos recursos 'adaptativos' do sujeito" (p. 134). Esse ponto é fundamental, pois abre possibilidades de, a partir da reestruturação do ambiente familiar, outras orientações serem implementadas. Outro ponto, que remete à importância de uma supervisão continuada de Nivaldo, são as atitudes destrutivas em relação aos animais. Essas atitudes beiram à perversidade, de modo que o adolescente sente prazer e não demonstra empatia pela dor que os animais expressam. Potencialmente, a ausência de empatia também ocorreu quando o adolescente violentou sexualmente suas vítimas. A literatura aponta que adolescentes e adultos ofensores sexuais, pelo menos no momento do abuso sexual, não consideram os direitos e o bem-estar da outra pessoa. Eles desprezam os sentimentos, pensamentos e a humanidade das suas vítimas (Pithers, 1999). A ausência da expressão de empatia em adolescentes e adultos pode representar um forte preditor para a ocorrência de abuso sexual contra crianças e mulheres, no que concordam Marshall (2001) e Chagnon (2008). Chagnon (2008 a) indica que um adolescente com essas características necessita ser melhor acompanhado para que se estruture um melhor diagnóstico com o prosseguimento de observações.Nesse ponto encontramos a importância da reunião das várias possibilidades de opiniões advindas de diferentes contextos como escola, centros de acompanhamento, terapia, etc.

Ainda cabe relatar como as instituições às quais Nivaldo está vinculado, têm atuado. Tivemos acesso a Nivaldo durante o oferecimento de uma intervenção psicossocial em uma instituição governamental de saúde de referência ao atendimento médico, psíquico e pedagógico a crianças e adolescentes. Pudemos, assim, sequenciar tanto a trajetória do surgimento de problemas como as respostas institucionais. As primeiras instituições acionadas foram as de proteção, encaminhando Nivaldo para abrigo e para família substituta. Em seguida, a denúncia de sua mãe, sobre o abuso sexual perpetrado sobre seu filho mais novo, que gerou demanda ao Conselho Tutelar que pediu atendimento para a instituição de saúde. Uma vez inscrito na instituição foi feito um encaminhamento específico para atendimento em um grupo de atenção a transtorno alimentar. Nivaldo apresentava, na época, problemas de alimentação compulsiva. Diante da denúncia específica de abuso sexual, também foi atendido na intervenção psicossocial para violência sexual. Após o término dessa intervenção Nivaldo foi reencaminhado para o grupo de atenção a transtorno alimentar para dar continuidade ao processo de orientação. Após 8 meses de atendimento (atenção ao transtorno alimentar e violência sexual),a instituição acordou com o Conselho Tutelar, da cidade onde Nivaldo reside,no sentido de continuar acompanhando-o e recebendo notícias, para posterior decisão de volta ou não a algum atendimento.A dinâmica das relações institucionais deve estar atenta a não reproduzir a comunicação paradoxal de acolhê-lo e rejeitálo, situação presente em toda sua vida até então.

5. Considerações Finais

Para finalizar, construímos uma síntese em torno da dimensão de risco e da dimensão de proteção que retoma a equação anteriormente citada. Entendemos como fator de risco para Nivaldo as condições de violência intrafamiliar, seu histórico de abandonos múltiplos e vínculos afetivos rompidos. A organização familiar reúne problemas da mãe que merecem melhor avaliação, ausência do padrasto que não parece poder ser modificada, pois consiste em sua forma de sobrevivência, ausência de autoridade sobre o adolescente, afinal os filhos ficam durante todo o dia sob sua própria conta.No momento, não existem cuidadores disponíveis para se responsabilizarem por Nivaldo, ou para tratar de suas angústias de adolescente.

Se, por um lado, identifica-se a ausência de proteção familiar, por outro lado, os fatores de proteção parecem vir unicamente das instituições que o vêm atendendo. Butler e Seto (2002) afirmam que é fundamental a ação das instituições de proteção do Governo para os adolescentes que se envolvem com ofensas sexuais, pelo fato de que essa ação constituise, não raro, como único fator de proteção (e responsabilização) para os adolescentes. Dessa forma, há que ser bastante valorizada a proposta da instituição governamental se unir ao Conselho Tutelar para a construção de um vínculo permanente de diálogo e contato.

Por fim, há ainda um fator que merece ser investigado com grande acuidade e maior espaço de tempo, que é sua conduta de maltrato de animais. Butler e Seto (2002) distinguem dois tipos de ofensores sexuais adolescentes: aquele que cometeu unicamente ofensa sexual e aquele que, além disso, também cometeu atos com dano social. De acordo com os autores, esse último tipo apresenta maior gravidade e maior risco de reincidência. Pensamos que Nivaldo pode estar dentro desse segundo grupo, logo, ele não pode prescindir de um acompanhamento, pois se encontra em um ponto ainda indefinível de diagnóstico e prognóstico.


Notas:

* Artigo de pesquisa científica e tecnológica que apresenta parte dos resultados da Dissertação de Mestrado "Sexualidade e violência em famílias de adolescentes que cometeram ofensa sexual", defendida perante o Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (UnB), em agosto de 2012. Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria de Saúde do Distrito Federal, processo número 331/09. Fechas de inicio y finalización de la investigación: agosto 2011 a julho 2012.


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    Referencia para citar este artículo: Nogueira-da Silva Costa, B. & Fortunato-Costa, L.(2013). Perpetrador e vítima: o adolescente que cometeu ofensa sexual. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, 11 (2), pp. 633-645.