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Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud

Print version ISSN 1692-715X

Rev.latinoam.cienc.soc.niñez juv vol.12 no.2 Manizales July/Dec. 2014

https://doi.org/10.11600/1692715x.1222271113 

 

Primera sección: teoría y metateoría

DOI:10.11600/1692715x.1222271113

 

Música underground e resistência cultural nas periferias do Rio de Janeiro-um estudo de caso *

 

Underground music and cultural resistance in the peripheries of Rio de Janeiro-a case study

 

Música underground y resistencia cultural en las periferias de Rio de Janeiro-un estudio de caso

 

 

Alexandre Bárbara-Soares1, Lucia Rabello-de Castro2

 

1Doutorando Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Doutorando do programa de Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mestre em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Psicólogo graduado pela Universidade Federal Fluminense (1998). Endereço eletrõnico: braleprofissional@yahoo.com.br

2 Professora Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Doutora (Ph. D., 1988) e Mestrado (M.Sc., 1978) em Psicologia pela Universidade de Londres, Grã-Bretanha, Psicóloga graduada pela PUC-Rio (1974). Atualmente é Professora Titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e professora do Programa de Pósgraduação em Psicologia desse Instituto. Endereço eletrõnico: lrcastro@infolink.com.br

 

Artículo recibido en junio 11 de 2013; artículo aceptado en noviembre 27 de 2013 (Eds.)

 


Resumo (descritivo):

Este artigo curto discute as noções de dominação e resistência como aspectos do percurso profissional de dois músicos moradores da cidade de São João de Meriti, Baixada Fluminense, região metropolitana e proletária próxima à cidade do Rio de Janeiro. Eles fazem parte de um movimento cultural underground chamado Hardcore, oriundo da cultura punk. A partir de um estudo de caso, discute as relações entre cultura e juventude sob a perspectiva da dominação e levanta possibilidades de exercícios de resistência no âmbito cultural, neste contexto urbano. Os resultados apresentados mostram que as resistências percorrem caminhos de tensionamento entre constituir-se como ferramenta de tomada de consciência de si, de seu lugar no mundo e de abertura a outras possibilidades de existência, assim como de recurso para produzir uma distância ou "pureza" em relação a outros modos de existir.

Palavras-chave: juventude, resistência, ação cultural (Tesauro de Ciências Sociais da Unesco).

 


Abstract (descriptive):

This short article discusses the notions of domination and cultural resistance as key aspects of the professional trajectory of two musicians who are part of an underground cultural movement called Hardcore, and live at São João de Meriti City, a poor and working class area near Rio de Janeiro. Based on a case study, the article discusses the relationship between youth and culture from the standpoint of cultural domination, and interrogates about eventual practices of cultural resistance in this urban context. The results presented show that the paths of resistance oscillate between the tension of either favouring the conscientization of one self, of one‘s position in the world, and of one‘s possibilities, or inducing the separation, the distance or "purity" between one‘s own and others‘ ways of living.

Key words: youth, resistance, culture action (the Unesco Social Science Thesaurus).

 


Resumen (descriptivo):

Este artículo corto discute las nociones de dominación y resistencia como aspectos de la trayectoria profesional de dos músicos residentes en la ciudad de São João de Meriti, Baixada Fluminense, una región proletarizada próxima à la ciudad de Río de Janeiro. Ellos hacen parte de un movimiento cultural underground llamado Hardcore, que és derivado de la cultura punk. Desarollado a partir de un estudio de caso, se analiza la relación entre la cultura y la juventud bajo la perspectiva de la dominación, y se levantan las posibilidades de ejercicio de resistencia en el ámbito cultural de ese contexto urbano. Los resultados presentados muestran que las resistencias recorren caminos de tensionamiento entre constituirse como una herramienta de tomada de consciencia de si mismo, de su lugar en el mundo y de apertura en relación a otras posibilidades de existencia, así como de recurso para producir una distancia o "pureza" en relación a otros modos de existir.

Palabras clave: juventud, resistencia, acción cultural (Thesauro de Ciencias Sociales de la Unesco).

 


 

1. Introdução

Neste trabalho buscamos explorar as tensões entre resistência e dominação em termos de três dimensões articuladas: o território físico, as expressões culturais e as possibilidades de encontros, tendo como base de análise o percurso profissional de dois músicos da Baixada Fluminense, estado do Rio de Janeiro, Brasil. Eles fazem parte de um conjunto musical oriundo de uma das mais pobres e precárias cidades da região (São João de Meriti), que em quinze anos se tornou um dos maiores grupos de seu estilo na América Latina. Além de terem se apresentado em diversas cidades do continente e da Europa, são acompanhados por jovens pelo mundo com um estilo musical considerado underground e fora do roteiro reconhecidamente popular da produção cultural. Suas letras tratam de temas de difícil aceitação, como os limites da propriedade privada, a ocupação de terras, a reforma agrária, o veganismo e os direitos dos animais. Com três discos lançados, quatro tournées européias e três pela America do Sul, tocando em Squats1 e em grandes festivais, um grande número de álbuns distribuídos em toda a América latina, a banda de hardcore2 Confronto é um ente estranho na cultura da Baixada Fluminense, mas o alcance de seu discurso e de sua música é uma incógnita. Seus integrantes, desde o início, denominam o grupo como uma "centelha de resistência da Baixada". Mas em que reside esta afirmação? Que elementos podem apontar para tal resistência?

Pretendemos discutir algumas facetas contemporâneas da dominação e de possibilidades de exercícios de resistência no âmbito cultural neste contexto urbano. O foco sobre o percurso de vida de atores específicos, no caso, estes dois músicos, busca explorar as tensões e contradições de ações de oposição por parte de indivíduos, em contraposição às "grandes narrativas" dos movimentos historicamente considerados revolucionários, ou a ações de indivíduos que ganharam visibilidade como referencias de luta, como seus mártires (Freire-Filho, 2007). O foco privilegia as possibilidades de um agir frente a imposições coercitivas ou compulsórias da estrutura social no cotidiano.

Interrogamos se, por meio de dispositivos culturais, diferentes e particulares falas cotidianas podem dar visibilidade a conflitos e tensões de nosso tempo histórico, provocando o deslocamento do olhar da política institucional ou representativa na direção da politização da cultura. Este deslocamento promove a luta por significados e representações configurando um campo de conflito e disputa por sentidos que se trava entre os jovens e as instituições sociais hegemõnicas (escola, família, etc.) Por esta via percorremos as trajetórias destes dois músicos no sentido de identificar possíveis elementos da resistência que se faz como processo de construção de si e de alternativas de vida.

 

2. Exercícios da dominação

Falar da dominação significa colocar em cena valores. Tais valores constituem uma seara que tende a produzir o outro como objeto na qual se reduzem as possibilidades deste outro resistir, uma vez que o processo de dominação engendra dispositivos próprios de se passar como natural e necessário. Os processos de dominação demandam uma permanente legitimação de valores, resultantes de um poder que deve buscar continuamente formas novas de se legitimar para sua manutenção (Rabello de Castro, 2012).

Há, portanto, distintas formas de exercício da dominação -algumas mais explícitas e outras mais sutis e subjetivas. Scott (1990) propõe três níveis de exercício do poder que justificam o exercício da dominação: um seria o de coerção e pressão; o segundo, o da intimidação; o terceiro seria o desenvolvimento e a legitimação do controle através de processos de subjetivação, realizados pelos meios de comunicação e pelas instituições de socialização. Cria-se uma hegemonia ideológica que legitima e, até certa medida, justifica a dominação: assim, se faz valer uma única "história oficial" que acarreta, por outro lado, uma invisibilidade dos movimentos e momentos de lutas e resistências dos subordinados.

Ao mesmo tempo, a construção da dominação pela produção da submissão, através do medo, da autoridade e da obediência ao poder constituído não opera apenas marcas visíveis, comportamentos imediatos, mas produz uma ancoragem na estrutura psíquica, na constituição de certo sujeito e de seu outro (Benjamin, 1988). Neste processo de subjetivação o outro não somente valida e reconhece minha existência, mas, pelo poder de reconhecimento de que é portador, se torna capaz de impedir a diferenciação e a separação. Desta forma, o eu permanece capturado pelo outro, e a ele submetido. O processo de validação da existência depende do reconhecimento do outro, o que implica aceitar a dependência a ele tolerando a tensão entre separação e dependência.

No entanto, tal reconhecimento pode encontrar na cultura e nas manifestações culturais uma poderosa ferramenta de enfrentamento e resistência, quando elementos culturais podem ser utilizados para simbolizar e permitir dizer da captura do eu nas engrenagens da dominação. As experiências de subordinação, ao se tornarem "traduzidas" por manifestações culturais que lhes dão visibilidade, encontram respaldo na ação de grupos específicos. A produção de textos e músicas, por exemplo, são respostas de grupos a tensões ocasionadas por experiências de subordinação.

A dominação também pode ser exercida através da normatização de estilos de ser e estar na cidade. Uma das formas de legitimação da dominação seria por meio da ideia de uma ordem social inevitável e natural a qual todos devem se adequar e participar. A dominação ganharia forma através da instituição de lugares aos quais os indivíduos são remetidos e que apontam para formas cristalizadas de agir coletivamente, seja nos territórios, seja nas possibilidades de deslocamento. Atualmente, os indivíduos se subjetivam conformando seus estilos de vida, aspirações e expectativas à crença de felicidade depositada nos bens materiais e imateriais -como arte e cultura. O lazer e o entretenimento se tornaram formas de reconciliar a insatisfação e a revolta com formas culturalmente aceitas de ousar e aventurar-se. Adorno (1999) já havia abordado a dimensão imaterial da dominação em seus estudos sobre a indústria cultural, que estaria transformando o homem em instrumento de trabalho e consumo, moldando suas ações segundo uma estrutura social dominante.

Entretanto, nos interessa interrogar se são possíveis movimentos de indagação sobre a ordem fixa e cristalizada dos lugares que são ofertados aos indivíduos no espaço urbano contemporâneo. Para uma grande parcela de moradores de regiões periféricas das grandes cidades do Brasil, o bairro e a cidade de moradia se tornam veículos de uma dominação exercida sobre seus corpos desde muito cedo, pela escassez de recursos físicos e simbólicos e pela falta de um horizonte de possibilidades de convivência. O depauperamento físico e psicológico produz profundas transformações nas maneiras como os indivíduos percebem a si e ao outro no mundo.

Ao mesmo tempo, ancorados em um território identificado por diversas "faltas", enraízam-se percepções comuns de como "ser e estar" nestes lugares, em todas as dimensões da vida cotidiana -por exemplo, no lazer e na arte. A música funk e o pagode, por exemplo, são ritmos musicais imediatamente associados, no Brasil contemporâneo, aos grupos populares e são manifestações dominantes nas cidades e bairros periféricos, assim como o Reggaeton no restante da America Latina. Existem poucos espaços ou pouca penetração para outras manifestações culturais além daquelas que são "naturalmente esperadas" das camadas populares.

Mas, em meio ao movimento de homogeneização da cultura capitalista contemporânea, podem emergir expressões de resistência que Scott (1990) denomina de "gestos mínimos". A noção de resistência cultural trata de alguns destes gestos e movimentos, que podem ser motivadores de outras ações de resistência quando não se configuram, por si só, como um ato de resistir.

 

3. Dominação e Resistência Cultural

Diversos autores como Eagleton (2003) e Williams (1979) se debruçaram sobre as relações entre cultura e a vida social cotidiana, suas expressões e conexões com a política. Outros como Thompson (1998) exploraram os conteúdos simbólicos das diferentes expressões culturais e sociais dos indivíduos, como maneiras de ser e estar visíveis socialmente. A noção de violência simbólica (Bourdieu, 1975) tem sido útil para ilustrar e analisar as relações de dominação, presentes entre as pessoas e grupos sociais, que não implicariam, necessariamente, em alguma forma de coerção física. A matriz da violência simbólica se materializaria nos símbolos e signos culturais, a partir do reconhecimento de uma autoridade exercida por certas pessoas e grupos sobre outros, através das normas internas do mundo social as quais os sujeitos aderem e que terminam por se incorporar em seus hábitos.

Para nossa análise, recorremos a Duncombe (2002) que trabalha com a noção de resistência cultural de modo a articular a relação entre política e cultura. Esta perspectiva se estrutura em torno das ideias de dissidência dos jovens e de seus movimentos em relação a normas impostas, a padrões instituídos e a regras. Esta noção aponta para a vivência da opressão e da injustiça das quais os jovens se sentem vítimas frente ao poder instituído. Entendem-se tais movimentos como rotas possíveis frente à ausência de perspectivas (de participação, de trabalho e de expressão) de parte da juventude. Para o autor, a cultura e, em especial, a criação artística, podem ser profundamente políticas ao expressarem tradições e experiências vividas por um conjunto de pessoas. Esta noção abre margem para um tensionamento inicial: a cultura tanto pode ser um poderoso aliado na reprodução de comportamentos e normas adequadas ao bom funcionamento institucional e macro político, quanto uma válvula de escape para a expressão de grupos minoritários, de enfrentamento ao establishment e de confrontação ao status quo. Desta forma, a política na cultura não seria predeterminada: a cultura é maleável. Como é usada é o que importa, para Duncombe, que pode ser como um "campo de oferta e procura" de símbolos, signos e identificação, como define Bauman (1997).

A noção de resistência é tomada como um conjunto de forças opostas ao poder dominante, transcrições ocultas da fala e do comportamento manifestando outras formas de ver e perceber o mundo por trás da história oficial e das transcrições públicas hegemõnicas (Duncombe, 2002). No mesmo compasso, Freire-Filho (2007) nos coloca as possibilidades contemporâneas de pensar a noção de resistência como plural, diversa e polimorfa, vinculada a experiências temporárias de empoderamento, de relativização de identidades e de recusa das formas convencionais de comunicação e de relacionamento cotidianos. Bleiker (2000) caminha pela mesma trilha ao conceituar a dissidência e a cultura de resistência como sendo "localizadas em inúmeras práticas nada heróicas que compõem a esfera do cotidiano e suas múltiplas conexões com a vida contemporânea em geral" (Bleiker, 2000, p. 278).

Duncombe (2002) sugere que a noção de resistência cultural pode ser vista positivamente como um espaço de desenvolvimento de ferramentas para a ação política, um ensaio geral para o ato político atual, ou, como uma ação política em si, redefinindo a própria noção de política em ato ou, por outra via, reconfigurando suas possibilidades de impacto. Equipados de novas ideias, habilidades, confiança e comparsas, o passo adiante no terreno da resistência política pode parecer menos amedrontador, por esta perspectiva.

Nesse sentido, a resistência cultural funciona como uma espécie de trampolim para o ativismo político, através da ampliação do arsenal lingüístico e intelectual fora dos canais formais de transmissão -como a escola e a família (Duncombe, 2002) Para Freire-Filho (2007) a música underground ou alternativa tem sido um elemento deste engajamento juvenil, em especial na construção de elos entre resistências microscópicas, cotidianas (um evento, uma música, uma forma de vestir ou uma ação pontual) e movimentos ampliados de contestação a certa ordem global hegemõnica.

Scott (1990) defende que os grupos subordinados podem utilizar estrategicamente a cultura como forma de expressar e construir seus discursos e práticas em espaços "seguros" como, por exemplo, os espaços culturais. Desta forma, ele irá defender que o lazer e os rituais coletivos podem se configurar como nichos de autonomia onde se asseguram, minimamente, a liberdade de expressão e a segurança em relação ao que se pensa e se diz, materializando discretas formas de resistência através de formas indiretas de expressão, do uso subversivo da linguagem como arma de defesa, das ambigüidades e discursos duplos. Seriam, portanto, diferentes formas de diálogo com o poder ou, como ele denomina, dizeres ocultos, expressando tentativas das camadas subordinadas de dialogar e negociar sua existência, voz e expressão. A voz e a expressão próprias, autõnomas, de grupos subordinados são entendidas aqui, portanto, como um exercício político de tais grupos.

A ritualização de identidades através dos eventos culturais, por exemplo, colocaria em cena figuras simbólicas que permitiriam as camadas subordinadas criarem momentos de reconhecimento coletivo. Sandlin e Milam (2010) irão caminhar por esta mesma percepção defendendo que o engajamento político pode advir destas experiências de participação em grupos e coletivos culturais através da formação, nestes, de uma consciência crítica de sua condição coletiva, via o compartilhamento de situações e percepções comuns. Esta percepção comum seria expressa através de diferentes formas, além dos canais institucionais constituídos: música, teatralidade, estética, rituais -configurando formas de falar e fazer distintas. Rabello de Castro (2011), abordando as possibilidades de atuação política dos jovens, afirma que esta se daria por um processo de produção e articulação de narrativas com potencial de subverter o silenciamento destes jovens na vida coletiva. A ação política estaria articulada com as possibilidades de fala dos diferentes atores sociais. Entendendo a noção de fala como a articulação pública de um discurso por parte de um sujeito coletivo, constituindo o sujeito como político neste mesmo ato (Rabello de Castro, 2011, p. 301). é, assim, a maneira pela qual apostamos que a resistência cultural pode se configurar como resistência política, na medida em que esta se compõe de signos e símbolos compartilhados, compreendidos de maneira comum e disseminados entre os coletivos: "compartilhando percepções, sentimentos e saindo da posição de isolamento para outra, comunitária" (Duncombe, 2002, p. 4).

Entretanto, tais expressões apresentam limites e modulações. Qual seria, aqui, o marco divisório entre uma expressão de oposição e uma ação política? Seria a própria dissidência uma ação política? Duncombe (2002) começa a oferecer pistas ao afirmar que, para ele, seria a transição da transcrição oculta para a transcrição pública que ofereceria a chave para a existência de um impacto político significativo. Freire- Filho (2007) contribui afirmando que, em muitos casos, respostas individuais a opressão tem sido hipervalorizadas terminando por obscurecer ou desbancar modalidades coletivas de solidariedade e luta política, processuais e de longo prazo.

Os ritos coletivos culturais podem servir justamente ao processo de reencontro de indivíduos, tornados invisíveis, que compartilham histórias comuns, fortalecendo um sentimento de identificação. Assim pequenos atos subversivos pontualmente localizados podem obter ressonância social mais ampliada a longo prazo. Não necessariamente todos os atos expressam a recusa declarada em obedecer a uma dada ordem política e social hegemõnica, mas podem expressar de maneira sutil sentimentos de desobediência e inconformismo. Se estes atos podem reconfigurar o mapa político e a distribuição de forças é que parece ser um dos entraves ou encruzilhadas do debate. Freire-Filho (2007) vai afirmar, por exemplo, em relação à música punk, que esta pode operar como um chamado ao combate contra o sistema social e as formas de oposição institucionalizadas, encorajando a constituição de novas comunidades de dissenso artístico e político. Mas isso não é um fim em si mesmo.

Desta forma, aderimos a perspectiva da resistência cultural colocada a partir de dois eixos que se tensionam: como um trampolim, uma ferramenta, provendo a linguagem, as práticas e os parceiros, ou a comunidade, para facilitar o caminho até a atividade política. No limite, ela pode ser pensada ela mesma como uma atividade política, uma ação da juventude sem intermediários, sem a necessidade de aprendizagem de códigos de acesso a participação, um campo de construção cotidiana de relações entre os indivíduos e suas possibilidades de expressão, diálogo e negociação com a sociedade ampliada. Ou, por outra via, uma fuga do mundo da política e dos seus problemas concretos e determinantes, um "refugio em um mundo sem coração" (Duncombe, 2002, p. 8), um fechamento em si mesmos demarcando fronteiras quase intransponíveis entre "nós" e "eles". Esta tensão se estabelece sem, necessariamente, ser uniforme ou permanente -pode-se oscilar entre as diferentes perspectivas de acordo com o momento, o contexto e as ações de cada coletivo.

Diferentes caminhos podem conduzir tal resistência cultural: o conteúdo (o que se diz), a forma (como se expressa), a interpretação (como as informações e as relações com o mundo em geral se dão nas e a partir das expressões culturais) e a atividade (a ação de produzir cultura como uma forma mesma de mensagem). Estes conteúdos aparecem misturados e entremeados no discurso de dois personagens de um território definido, que apresentamos em seguida, oferecendo algumas imagens que nos ajudam a avançar nas análises.

 

4. Percurso metodológico

Os depoimentos utilizados nesta análise foram colhidos em uma entrevista semiestruturada, com membros da banda Confronto3, transcrita e analisada através do método da análise de discurso. Também foi utilizado como elementos de análise parte do documentário "Meriturope"4. Todas as falas foram categorizadas e classificadas por saturação, relacionando os assuntos que se repetiam ou as falas que constantemente retornavam no discurso dos entrevistados. Algumas das falas dos jovens, transcritas ao longo do texto, preservam o conteúdo original da gravação, da forma como foram ditas, com suas gírias, vícios de linguagem e expressões particulares.

 

5. "O capital nos separa e a pobreza nos iguala"5: o caso do Confronto

"Eles precisam que a gente saia da baixada, vá lá pro centro do Rio, trabalhe, faça o capital girar, o dinheiro circular, e volte pra baixada -‘não venham muito pra cá não‘. De Segunda a Sábado ta bom, de oito as cinco, quando chegar a hora, volta pra casa" (Felipinho, 33 anos, músico, morador de São João de Meriti).

Felipe Chehuan, 31 anos e Felipe Ribeiro (Felipinho), 33, se conhecem há 16 anos. Ambos moradores da cidade de São João de Meriti, Baixada Fluminense, município do estado do Rio de Janeiro. Com uma população de 459.356 habitantes, segundo dados do Ibge (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) (2010), é conhecido como "Formigueiro das Américas", pois sua densidade demográfica (número de habitantes dividido pela área em quilõmetros quadrados) é uma das mais altas do continente6.

Os dois rapazes fazem parte de um conjunto musical chamado Confronto. A música que tocam (o "Metalcore", ou hardcore com elementos de Thrash Metal) não é popularizado maciçamente entre os jovens, não circula em veículos de comunicação tradicionais, como emissoras de tevê e rádios, nem é trilha sonora da indústria de consumo, através de propagandas e comerciais. Também não é de fácil aceitação por produtores culturais em geral, devido ao caráter extremo do som e o aspecto de contestação de suas temáticas. Mas o Confronto, em 15 anos, conseguiu gravar três discos e um DVD, feitos e lançados de maneira independente, sem apoio de grandes corporações ou empresas e efetivados através do esquema cooperativo de membros do movimento underground. Já realizou cerca de 180 shows mundo afora, em países da America Latina e em quatro tournées pela Europa. Tudo feito e viabilizado através do esquema cooperativo e de forma independente. Suas letras sobre vegetarianismo, direitos dos animais, ativismo político do MST e dos Zapatistas e pobreza repercutem entre jovens de diferentes nacionalidades. Além disso, o Confronto foi um dos conjuntos pioneiros no meio da cultura underground brasileira a levantar explicitamente a bandeira do veganismo7, postura adotada pelos quatro integrantes da banda e considerada por eles uma das formas de enfrentamento, possíveis, às grandes corporações.

Entretanto, Felipe e Felipinho continuam morando em São João de Meriti. Sua música, ancorada neste território e nas problemáticas dele, ganha expressão para muito além. A cidade e sua precariedade desde cedo produzem uma percepção de valor nos indivíduos, naqueles que nela habitam. Os elementos que se destacam no seu discurso dão visibilidade tanto a distintas esferas concretas e simbólicas da dominação, quanto das possibilidades de emergência de ações de resistência. A forma como ambos narram este percurso nos oferece, daqui em diante, algumas pistas sobre tais expressões de opressão e resistência.

A cidade, seu contexto e seus habitantes

A contínua e maciça produção de precariedade física das cidades periféricas têm sido um forte aliado da dominação sobre estas populações, legitimando a relação entre (ausência de) condições materiais e condições simbólicas de existência. Esboçam-se subjetivações subordinadas àqueles que detêm as relações de produção e, principalmente, parece criar-se um aprisionamento simbólico ao território pela impossibilidade de encontro com a diferença, com outra realidade viável, possível. Estas condições, tanto de isolamento físico e simbólico quanto de uma subordinação material transparecem quando os dois músicos falam de sua cidade de origem:

"A imagem que eu tenho da cidade é de ver São João ser asfaltada. Só o centro era asfaltado.

Lembro de gente saindo pra rua com saco de supermercado amarrado no calçado pra sair pra trabalhar no centro, por causa da lama e terra. De 10 anos pra cá que começou a ter um pouco mais de dignidade -ou não" (Felipe).

"Um lugar como esse, o que mais tem aqui é loja de material de construção. As famílias ganham um dinheiro, ele vai dar um jeito na casa dele, vai terminar a cozinha, é assim que as pessoas vivem. Quando sobra alguma coisa é pra família, pra dentro de casa. E o sonho de conhecer outros mundos, de viajar, de entrar em um avião que seja já é uma conquista absurda" (Felipe).

Aliada a este isolamento e somando novos elementos a esta condição, ganha visibilidade a série de precariedades que submetem desde cedo os que moram ali, reforçando a associação entre território e vida cotidiana ao discurso da falta e do déficit:

"São João é uma cidade muito pequena. Aqui não tem quadra, campo, nada que te ofereça diversão, lazer. Um amigo nosso de Portugal, quando veio ao Brasil e conheceu a baixada, viu as casas, como as pessoas moram, ele disse: ‘eu sou o cara mais feliz do mundo, eu descobri que eu não tenho problemas‘" (Felipinho).

"Eu casei tem quatro anos e construí minha casa -bem típico da Baixada isso, você mesmo construir sua casa. Geralmente acontece nas lajes das famílias, sempre pra cima. A cidade tem uma densidade demográfica imensa, quando eu era pequeno tinham campos de futebol, hoje só tem casa com duas, três lajes. Eu construí tudo do zero, da fundação da casa, uma ‘obra eterna‘, sem fim. As pessoas vivem com nada, entram na casa vazia. E a gente vive cercado disso" (Felipe).

Em meio a tal cenário emergem análises produzidas pelo músico sobre os efeitos destas condições de vida no cotidiano como as pessoas se relacionam e nas alternativas que constroem neste território:

"Você passa em uma rua de São João, tem em uma rua, três, quatro igrejas e três, quatro bares, na mesma rua. Vira a rua, tem mais três igrejas. Vira a outra rua, tem mais quatro igrejas. E aí mais três biroscas8. Céu e inferno, não tem real" (Felipe).

Os primeiros encontros com a cultura juvenil underground

Fanon (2005), falando de sua condição de submissão pela raça, afirmava que "uma vez que o outro hesitava em me reconhecer, só havia uma solução: fazer-me conhecer" (Fanon, 2005, p. 13). Este caminho de fazer-se conhecer pressupõe provocar uma ação, uma resposta no mundo em forma de ação no mundo. A alternativa que os dois músicos apresentados no texto têm explorado para "fazer-se conhecer" foi a da cultura e da música. Este caminho se deu inicialmente sem uma razão lógica atravessando as ações. Os caminhos foram espontâneos e permeados por afetos -seus discursos são repletos de "eu gostei", "mexeu comigo", "me abriu a cabeça"- sem que necessariamente fosse um movimento voluntário, lógico ou racional motivado pelas condições de vida precárias e subalternizadas:

"Meu primeiro contato com a cultura rock foi no (bar do) Juvenal, um festival punk. Tocaram várias bandas. Eu tinha 14, 15 anos. Nesse dia mexeu comigo… foi meu primeiro contato com o ‘faça-você-mesmo‘, com fazer música sem a necessidade de saber música, com as pessoas que tocavam ajudando as outras a montar palco, a preparar equipamento, tudo aquilo era novo pra mim" (Felipe).

A perspectiva colocada por Duncombe (2002) sobre as noções de comunitarismo e símbolos compartilhados expressando caminhos da resistência, etapas, começa a ganhar contornos no percurso. Este autor também vai afirmar que nem sempre os indivíduos ou grupos têm plena consciência de que seus atos se constituem, por exemplo, em atos de resistência. Isto se dá a posteriori da ação. Um dos elementos que motiva estas ações pode ser a própria relação com distancias e espaços. A ampliação das perspectivas de encontros, descoberta de novos territórios e de outras relações através da reconfiguração dos significados dos espaços públicos e coletivos por parte dos jovens através de atividades artístico-culturais é uma possibilidade de resistir ao isolamento físico e simbólico. O quanto o ir e vir pela cidade e as formas de ocupar seus espaços e o estabelecimento de formas de comunicação e interação podem ser, em alguma medida, expressões de resistências destes grupos. Esta perspectiva aparece no discurso de Felipe:

"A gente vivia na baixada e tocava na baixada. Aí quando uma banda da baixada tocava no Garage9 eu ficava admirado com isso, eu ficava pensando ‘um dia eu vou chegar lá, vou tocar lá no Rio, no Garage‘. O sonho era tocar no Garage" (Felipe). "A minha banda começou quando eu fui a um show da banda do Max (guitarrista do Confronto), o Detrito Urbano. Eu me amarrei no show e a gente trocou fita demo. Aí beleza, mas o Marcelo, que tocava no Detrito, aqui de São João mesmo, me escreveu uma carta e começamos a trocar cartas. Ele me mandou 200 flyers10, das bandas que se correspondiam com ele na época. De 1996 a 1998 rolou muita carta entre nós, eu entrei feroz nessa parada de carta11" (Felipe).

Interessante perceber aqui que a troca de cartas, em um período em que a internet ainda iniciava sua expansão pelo país, se dava dentro da própria cidade e também com atores de fora, de outros estados. Esta forma de comunicação foi uma das características da formação de redes contraculturais underground nos anos 80 e 90 e possibilitou a expansão do que Uzcátegui (2012) denomina "uma rede sem centro e de fluxos livres, que, ao menos em sua arquitetura básica e em sua intencionalidade, anteciparia a internet" (Uzcátegui, 2012, p. 4).

Ao mesmo passo, a entrada em um universo cultural de certa forma pouco conhecido, com um apelo visual e estético muito forte, provocava reações externas e promovia reconfigurações na própria percepção de mundo e de si.

"Quando eu terminei a 8° serie, cada um dos amigos meus foram para um lado. E meus amigos não entenderam muito quando eu entrei pra esse lance do rock. Foi mais por causa da parada da atitude mesmo, sabe… tipo, era agressivo (…) eu queria aquilo. Meus pais sempre estiveram comigo, nunca ficaram preocupados nem nada, mas sempre acompanharam de perto" (Felipe).

Informação e novas experiências

Alguns elementos que Duncombe (2002) apresenta para discutir a noção de resistência cultural se mostram, algumas vezes timidamente, outras de forma mais explícita, no discurso dos dois rapazes com os quais dialogamos. Um deles é a ampliação do arsenal lingüístico e intelectual, fora dos canais tradicionais de transmissão cultural, como a família e a escola. E também um canal de interpretação da realidade. A experiência enfatizada por eles da troca de cartas e da busca no outro, naquele que vivencia as mesmas experiências e sensações, de informação, apoio e interlocução se configura como a tentativa -precária, parcial, efêmera- de formulação de uma direção, de um caminho alternativo de circulação de conhecimento e de percepções. Este percurso foi reforçado tanto pelo contato com indivíduos quanto pelo encontro com novos territórios -cidades e estados:

"Meu mundo era aquilo ali (São João do Meriti). Eu só tive uma dimensão do que o mundo pode te proporcionar no dia que eu peguei um õnibus e fui pra São Paulo (tocar). Quando eu conheci aquela cidade gigante, quando cheguei lá, vi aquele caos, aquilo me instigou. Abriu (a cabeça). Eu falei ‘quero ir mais longe, conhecer outros lugares assim" (Felipe).

"Quando eu vi o primeiro zine falando sobre anarquismo, já vinha junto anarquismo, o MST ocupando, zapatismo, veio tudo de uma vez só. Naquela de carta, chegava muito zine, muita fita e eu passava tudo pros caras (que vieram a ser da minha banda)" (Felipe).

"Eu nunca tinha pensado em viajar pra Europa, pra Argentina, pra tocar. Só a música me proporcionou isso, conhecer outras ideias, outras culturas. Conhecer cidades do interior da Alemanha, ser recebido na prefeitura de uma cidade de 2.000 habitantes. Interior do Brasil a gente conheceu menos, só no nordeste, mas foi outra experiência forte. E me fez pensar pra burro" (Felipinho).

A proposta de Duncombe de "escalas de resistência" nos parece oportuna aqui. Ele defende que, dentro das ações de resistência cultural, podem-se observar etapas na direção da atividade política contra o poder instituído. Entre elas, a apropriação de informação, a construção de autoconsciência política, uma caminhada do sentido individual para o comunitário e, então, para um espectro social mais ampliado. Esta perspectiva da apropriação ganha contornos a partir do contato com novas perspectivas e da adesão racional a algumas.

"E no final dos 90‘s em comecei a curtir as bandas mais sérias, mais políticas. As bandas chamadas ‘for fun‘12 não me cativavam tanto quanto de outras bandas mais sérias, pela mensagem. O contato com cartas me fez ter contato com o lance mais libertário, anarquista, me fez começar a ficar mais atento a essa coisa política, a leitura de zines, etc. Ali comecei a conhecer zapatismo, desigualdade, combate ao racismo, vida livre de drogas… e eu comecei a pensar ‘como assim, cara‘? Abriu a mente, um horizonte. E eu fiquei com sede de buscar mais conhecimento sobre aqueles assuntos" (Felipe).

A música e a banda

A contestação também pode se dar através de certos processos de distanciamento em relação às estruturas tradicionais morais, como defende Pinto-Tomás (2010). A relação entre arte e lucro estabelece uma fronteira que tensiona as noções de produção capitalística e propõe outra forma de percepção do que se denomina trabalho, atividade humana. O fato de não ganhar a vida com a música sempre se coloca como um questionamento, ora para os jovens que a fazem, ora para aqueles que os rodeiam e não entendem o porquê de permanecerem fazendo arte sem ganhar por isso -ao menos o suficiente para sobreviver.

"E aí teve aquele momento que meu irmão saiu disso, saiu da banda, porque viu que não ia dar grana. Eu fiquei porque eu gosto pra caralho. Ele achava que em algum momento a gente ia virar um ‘Raimundos‘13. Eu, por ter contato com muitas bandas, por carta, que eram ‘pé no chão‘14, tinha mais contato com a realidade. é difícil pras pessoas digerirem isso, eu mostro meus vídeos pro meu pai tocando em Quito pra 70.000 pessoas e ele me vê no Brasil trabalhando em escritório e ele não entende. Porque esta pergunta ‘você vive dessa porra?‘ é sempre. Não incomoda responder a essa pergunta, mas nego acha que estar bem é viver disso, ganhar grana com isso. Pra mim a banda e a música são outra coisa" (Felipe).

Segundo López-Cabello (2013) a música punk funciona como uma tela que permite aos jovens vislumbrar e reconhecer uma realidade oferecendo recursos para nomear e distinguir situações e sujeitos com quem se relacionam. Aqui, a opção pela música e pela cultura como forma de expressão de um discurso público que se tornou próprio, autõnomo, entra em conflito constantemente com as visões e percepções hegemõnicas sobre este campo -a figura do "artista" que "vence" ao ter uma superexposição de sua obra e acumular muito ganho financeiro é conflitada com outras percepções e formas de pensar e conceber a arte e a cultura. O constante incõmodo em responder aos amigos e familiares sobre "dar certo" com a música encontram um elemento de tensionamento da resposta negativa, mas que não se encerra em uma conclusão, deixando uma dúvida no ar- "porque eles ainda fazem isso?"

"Como a gente está a tanto tempo dentro disso, vivendo a música e a coisa toda do underground, as pessoas acham que isso dá certo (financeiramente). As pessoas nos vêem viajando pra Europa, fazendo muitos shows, então na própria pergunta delas ta embutida a resposta -tipo, isso aí dá certo (dá grana). Não entra na cabeça deles que o sucesso pra gente não é ir no Faustão15. Mas no fim eles chegam à conclusão que ‘no mundo deles, isso aí dá certo‘, muda o conceito de ‘dar certo‘ deles" (Felipinho).

Finalmente, os músicos também dão grande ênfase na entrevista ao papel de conhecer outros países sobre a forma como viam o seu próprio território, e ao mesmo tempo as implicações difíceis que tais desafios colocavam.

"Primeira vez que eu voltei da Europa eu voltei triste. Dá vontade de chorar. Você vê que não precisa ser assim, tem outra vida que dá pra levar, sem tanto sofrimento pras pessoas" (Felipinho).

"Da primeira vez que a gente foi pra Argentina a gente foi só com o dinheiro da ida e 60 camisas pra vender e tentar grana pra voltar. Conseguimos juntar pra volta e voltamos nos dois anos seguintes pra tocar lá e no Chile" (Felipinho).

As limitações da forma de vida VEGAN/ Straight Edge

Os dois músicos também são adeptos, dentro da cultura underground, da corrente Straight Edge16 e do veganismo. Em meados dos anos 90, o veganismo passou a fazer parte das reivindicações difundidas pelas culturas underground. Para grande parte dos straight edges, a abstenção do consumo de qualquer produto de origem animal seria, principalmente, uma expressão de boicote às grandes indústrias capitalistas que lucram através da destruição do meio ambiente (O‘Hara, 2005, p. 59). Esta atitude faz parte do arsenal de convicções e referências coletadas ao longo do percurso de ambos na cultura underground e os coloca frente a impasses cotidianos para manterem-se fiéis a tais princípios.

"às vezes é mais caro pra mim comer verdura que seria se eu comesse, sei lá, bife, fígado todo dia ou porcaria de lata. Porque a feira é longe de casa, no mercado é caro ou está estragado. Mas eu estou nessa (veganismo) há muito tempo e a gente se acostuma a viver nesse perrengue, nesse constante embate com a indústria" (Felipe).

"A Sadia lançou uma linha vegetariana. Mas daí ela colocou os preços lá no alto e com poucos mercados vendendo. Assim eles podem falar: ‘viu, essa parada não vende, não funciona‘. E eles continuam vendendo mais porcaria industrializada, carne podre, pras pessoas" (Felipe).

 

6. Concluindo: legados e aprendizados

Duncombe (2002) havia colocado uma encruzilhada a respeito da noção de resistência cultural: se constituir como uma ferramenta, ou a própria resistência cultural sendo uma atividade política, ou ainda, por outra via, uma fuga do mundo da política e dos problemas concretos e determinantes, um fechamento em si mesmos demarcando fronteiras quase intransponíveis entre "nós" e "eles". Esta tensão permanece na leitura do percurso dos integrantes da banda Confronto e de suas percepções. Ao mesmo tempo em que o contato proporcionado aos jovens pela cultura underground com outras pessoas e territórios se configurou, segundo eles mesmos, em portas para outros mundos e ações, as condições concretas de vida as quais estão submetidos parecem se manter intactas sob a procura de uma certa "pureza" em atos e discursos. Como exemplo, estaria a rejeição aos canais comerciais convencionais de difusão da música que se torna um obstáculo ao acesso a maiores públicos, ao passo que mantém o grupo protegido do assédio uniformizante da indústria do entretenimento.

"Desde aquela infância de canela na lama na vila Roseli até agora e só ver a realidade de fora e de outras culturas através dos filmes até agora, pisar na Europa, conversar com as pessoas, mudou minha vida. Isso faz com que você tenha uma autoanálise da sua vida, da sua sociedade, você descobre que tudo que você achava que era verdade absoluta, não é. No caso da gente, com muita informação, com mais referência, a gente consegue discernir melhor o que é bom e ruim pra gente. Antes, quando eu era um simples fã das bandas que eu curtia, e quando eu tive contato com o D.I.Y. com essa ideia de que eu estou em uma comunidade e podemos fazer juntos, na nossa, as coisas sem depender do governo, dos caras que tem o poder… esse universo da música, me fez acreditar que é possível fazer as coisas mesmo com todas as dificuldades" (Felipe).

Freire-Filho (2007) chama a atenção para o fato de que o papel do posicionamento de classe como elemento de diferenciação dentro das culturas juvenis tem sido omitido, em vez de analisado, na intersecção complexa com outros fatores sociais relevantes. Este parece ser um elemento presente neste tensionamento entre o que se fala, como se fala e as condições concretas subjacentes a isso.

Se, para Scott (1990), na maior parte dos casos na vida política o que está em jogo é a conquista de outro mundo, de outras formas de ser neste mundo que reconfigurem as relações hegemõnicas existentes (Scott, 1990, p. 130), o ato de não conformidade com os padrões pode ser o apontamento de uma direção. Ou seja, se há legitimação do controle e da dominação através de processos de subjetivação, também podem-se afirmar outras possibilidades de viver em sociedade como forma de resistência.

"A gente vive completamente fora da realidade convencional, a gente não vive uma vida igual a dos outros. A gente vive um outro mundo, diferente da maioria das pessoas. E tenta fazer com que eles entendam e aceitem né, que como nós há muitos" (Felipinho).

A identificação de aliados ("Como nós tem muitos") reforça a posição de rejeição aos padrões dominantes. Ainda que permeado pelas contradições de um processo fragmentário de construção de uma direção de resistência, equilibrando-se entre um processo ativo e um possível fechamento em torno de círculos próprios "ensimesmados", há no percurso e nos relatos apontados uma tentativa de afirmar uma potência de si frente às condições que procuram dessubjetiva-los (Rabello de Castro, 2012, p. 84), mantendo-se vivos de uma maneira que provoca, causa estranheza, não segue scripts todo o tempo. Com sua banda Confronto e seu estilo de vida, os dois rapazes tem se mantido convictos em um caminho contra-hegemõnico pagando, em certos momentos de vida, um preço afetivo e concreto por isso: os questionamentos familiares, a ausência de recursos financeiros estáveis, a permanência em seu território de origem, enfrentando as dificuldades do local. Mas, se um dos princípios da resistência é de questionar a própria realidade, talvez tecer, silenciosamente e entre poucos, inicialmente, outras vozes e outros "modos alternativos de conceber a historia" (Said, 2011, p. 338), seja uma das apostas possíveis que ambos estão trilhando. E conquistando aliados neste caminho.

 


 

Notas:

 

*Este artigo curto é parte da pesquisa de doutorado em curso que desenvolvemos no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, inscrito na área da Psicologia, na subárea da Psicologia Social. Apresenta resultados preliminares de pesquisa de caráter qualitativo, realizada com entrevistas semi estruturadas, iniciada em Março de 2011, sob o título "Juventude, cultura e resistência: a experiência juvenil nos movimentos culturais underground". Tem apoio para seu desenvolvimento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), desde 31 de Agosto de 2012.

1Squats são ocupações feitas em prédios abandonados por jovens da cultura punk que fazem destes espaços local de moradia e de mobilização cultural em cidades, principalmente da Europa.

2 Estilo musical oriundo da cultura Punk que apresenta características musicais mais agressivas que o punk original.

3 Entrevista realizada em 01/03/2013, na cidade do Rio de Janeiro no Estudio Superfuzz, com Felipe Chehuan e Felipe Ribeiro.

4 Documentário realizado pelos próprios membros da banda Confronto, ainda em fase de edição, sobre os contrastes observados por eles entre seu local de origem e dos locais pelos quais a banda passou em suas viagens de tournée.

5 Trecho da canção "Vale da Morte", da banda Confronto.

6 Fonte: web Page Ibge - http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=330510 Acessado em 05/03/2013

7 Veganismo é um estilo de vida em respeito aos animais. Um vegan não come alimentos de origem animal, carnes de todas as cores e tipos, ou que contenham qualquer resíduo: leites, queijos, salsichas, ovos, mel, banha, manteiga, etc. Também não veste roupas ou sapatos feitos de animais: couro, seda, lã, etc., evita o consumo de cosméticos e medicamentos testados em animais ou que contenham componentes animais na formulação: sabonetes feitos de glicerina animal, maquiagem contendo cera de abelha, etc., profissionalmente não trabalha com exploração animal, seja vivo ou morto. Fonte: site veganismo.org.br. Acessado em 15/05/2013.

8 Bares pequenos e geralmente de estrutura precária característicos nas cidades periféricas e favelas das grandes cidades brasileiras.

9 Casa de shows underground na Praça da Bandeira, centro da cidade do Rio de Janeiro, que existiu entre 1991 e 2002.

10 Filipetas em que bandas e fanzines colocam suas informações e contatos.

11 Na década de 90 do ultimo século se tornou comum a troca de materiais (fanzines, releases, flyers de bandas) entre pessoas ligadas a cultura underground através de cartas sociais -de valor pequeno e destinatário pessoa-física.

12 Eram chamadas "for fun" as bandas do universo do Rock alternativo que apresentavam letras puramente lúdicas, sem nenhum conteúdo político ou social.

13 Banda brasileira de grande apelo comercial.

14 Realistas e conhecedoras do cotidiano da cultura underground.

15 Programa popular televisivo de imensa audiência no Brasil.

16 Movimento que prega um estilo de vida livre de drogas, de oposição a atitude "hedonista" que caracterizava o comportamento de inúmeros jovens que faziam parte do punk - que incluíam no seu repertório, o consumo abusivo de drogas (licitas e ilícitas) e um forte apelo à violência e ao que eles denominam "autodestruição" (O‘Hara, 2005).

 


 

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    Referencia para citar este artículo: Bárbara-Soares, A. & Rabello-de Castro, L. (2014). Música underground e resistência cultural nas periferias do Rio de Janeiro-um estudo de caso. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, 12 (2), pp. 535-547.