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Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud

versão impressa ISSN 1692-715X

Rev.latinoam.cienc.soc.niñez juv vol.12 no.2 Manizales jul./dez. 2014

https://doi.org/10.11600/1692715x.12213230114 

 

Segunda sección: Estudios e Investigaciones

DOI:10.11600/1692715x.12213230114

 

Jovens mulheres: reflexões sobre juventude e gênero a partir do Movimento Hip Hop*

 

Young women: reflections on youth and gender of the Hip Hop Movement

 

Mujeres jóvenes: reflexiones sobre la juventud y el género del Movimiento Hip Hop

 

 

Maria Natália Matias-Rodrigues1, Jaileila de Araújo-Menezes2

 

1 Professora Universidade Federal de Alagoas, Brasil. Psicóloga. Mestre em Psicologia (Universidade Federal de Pernambuco). Professora Substituta Universidade Federal de Alagoas. Endereço eletrônico: natalia.mrodrigues@hotmail.com

2 Professora Universidade Federal de Pernambuco, Brasil. Psicóloga. Mestre em Psicologia (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Doutora em Psicologia (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Professora Efetiva da Universidade Federal de Pernambuco. Endereço eletrônico: leilaufrj@hotmail.com

 

 

Artículo recibido en noviembre 14 de 2013; artículo aceptado en enero 23 de 2014 (Eds.)

 


Resumo (analítico):

Este trabalho é resultado de pesquisa realizada no mestrado em Psicologia onde discutimos a vivência de jovens mulheres Rappers. Utilizamos a abordagem qualitativa e realizamos observações de eventos do Movimento Hip Hop de Recife, cidade do Nordeste do Brasil, entrevistas semiestruturadas com jovens mulheres Rappers e análise de dez letras de Rap produzidas por mulheres. Percebemos que ainda que valorizado, o Movimento continua reproduzindo discursos hegemônicos ligados às desigualdades de gênero. A presença das mulheres no movimento tem contribuído para desestabilizar a dicotomia público/privado; através das suas músicas, elas alcançam espaços de visibilidade, podem desafiar os códigos de gênero do movimento Hip Hop, propor novas formas de pensar, e ter voz e vez em uma sociedade marcada por valores machistas.

Palavras-chave: juventude, gênero, raça (Tesauro de Ciências Sociais da Unesco).

palavras-chave autoras: movimento hip hop.

 


Abstract (analytical):

This work is the result of research conducted in the master in Psychology where we discuss the experience of young women Rappers. We used a qualitative approach and conducted observations of events of the Hip Hop Movement of Recife, in northeastern Brazil, semistructured interviews with young women Rappers and analysis of ten Rap lyrics produced by women. We realized that although valued, the Movement continues to reproduce hegemonic discourses related to gender inequalities. The presence of women in the movement has contributed to destabilizing the public/private dichotomy; through their music, they reach spaces of visibility, can challenge the gender codes of the Hip Hop movement, proposing new ways of thinking, and have a voice and opportunity in a society marked by macho values.

Key words: youth, gender roles, race (the Unesco Social Science Thesaurus).

key words authors: hip hop movement.

 


Resumen (analítico):

Este trabajo es el resultado de una investigación realizada en la maestría en psicología donde discutimos la experiencia de mujeres jóvenes raperas. Partimos de un enfoque cualitativo para realizar: observaciones al Movimiento Hip Hop en la ciudad de Recife-Nordeste de Brasil; entrevistas semi-estructuradas a mujeres jóvenes raperas y análisis a diez composiciones de Rap producidas por mujeres. Percibimos en el Movimiento Hip Hop, que si bien valora la presencia de mujeres, todavía continúa reproduciendo discursos hegemónicos relacionados con las desigualdades de género. La participación de las mujeres en este Movimiento ha contribuido a desestabilizar la dicotomía público / privada; ellas, a través de sus músicas, consiguen espacios de visibilidad, pueden desafiar los códigos del género del Movimiento Hip Hop, proponiendo nuevas formas de pensar y de tener voz y voto, en una sociedad marcada por los valores machistas.

Palabras clave: juventud, género, raza (Thesauro de Ciencias Sociales de la Unesco).

Palabras clave autoras: movimiento hip hop.

 


 

1. Introdução

 

As questões levantadas no presente artigo fazem parte de pesquisa realizada no âmbito do curso de mestrado em Psicologia na Universidade Federal de Pernambuco. Na referida pesquisa, buscamos discutir sobre a vivência de jovens mulheres Rappers de Recife no que se refere às questões de juventude e gênero.

A discussão sobre mulheres e gênero tem sido progressivamente abordada em diversas pesquisas (De Oliveira, 2009, Zarza, 2009, Serrano et al., 2011). No campo da Psicologia, essas pesquisas tem ocasionado uma revisão das metodologias e de conceitos psicológicos clássicos (a exemplo da diferença sexual), contribuindo para uma produção discursiva mais sintonizada com a equidade entre homens e mulheres nos estudos psicológicos (Neves & Nogueira, 2003).

Para estudar jovens mulheres, acessamos o Movimento Hip Hop por entendermos esse como um movimento articulador de vivências juvenis; e dentro dele, escolhemos trabalhar com o elemento Rap. O Movimento Hip Hop, a música Rap e toda a arte engajada que envolve esse cenário possibilita visibilidade para uma juventude que tem sido comumente marginalizada e excluída. Marília Spósito (2000) indica que, entre as novas formas de participação social juvenil, a música Rap tem estado em destaque possibilitando a construção de identidades comuns, linguagens e códigos, formando grupos e produzindo novas formas de compreensão da realidade.

O Movimento Hip Hop é comumente caracterizado pelo seu viés de contestação e de denúncia de problemas sociais, no entanto parece continuar a reproduzir as opressões e desigualdades de gênero presentes em nossa sociedade. Consideramos que, apesar de pouco visibilizadas nas letras de Rap e nos eventos da cultura Hip Hop, as mulheres têm estado presentes dentro do movimento, não só como consumidoras da cultura Hip Hop, como acompanhantes dos homens participantes, mas trabalhando efetivamente na realização de eventos e na produção dos elementos ligados ao Movimento, como Rappers, grafiteiras e/ou Bgirls e contribuindo para a produção políticocultural do Hip Hop.

Nesse sentido, o estudo realizado é relevante por contribuir para as discussões sobre juventude e gênero, a partir da vivência de jovens mulheres ligadas ao Movimento Hip Hop, pensando nos marcadores sociais e nos atravessamentos com relação à participação social via produção cultural.

 

2. Sobre a Juventude Hip Hop

Pensar o campo da juventude como heterogêneo, implica também considerar as especificidades das vivências juvenis. No presente estudo optamos por dois recortes, um relacionado ao estilo de vida juvenil, nesse caso, o Movimento Hip Hop; e o outro relacionado à categoria gênero, focando em mulheres ligadas ao Movimento Hip Hop. Além desses dois, podemos ainda apontar um terceiro recorte que é o elemento Rap. Assim, estudamos a juventude a partir de jovens mulheres Rappers.

Entendemos a juventude a partir da diversidade, considerando as interações sociais e simbólicas que vão interferir nas trajetórias sociais construídas por esses/as jovens. Muitos/ as jovens têm buscado através das dimensões simbólica e expressiva como a música e a dança, um posicionamento diante da sociedade (Dayrell, 2007). Buscam outras formas de mediação das suas relações com o mundo onde criativas possibilidades de ser e existir possam ser acionadas, desenvolvidas e vividas.

Significativa parcela de jovens engajados politicamente se organiza em grupos e passa a identificar a territorialidade das periferias urbanas como uma importante dimensão de seu reconhecimento social, o que colabora para uma compreensão crítica sobre suas condições de existência. No caso do Hip Hop, a produção cultura via os elementos break, graffiti, e a expressão musical do Rap está perpassada pelos valores de contestação e resistência à realidade de desigualdade social que marca a vida dos/ das jovens nos territórios de periferia (Sousa, 2003).

Os ganhos da participação nesse movimento político-cultural nos levam a pensar em como as jovens se beneficiam dos aprendizados ético-políticos para produzir transformações em suas próprias vidas e na de sua comunidade (Costa & Menezes, 2009). Dai nosso interesse em investigar também os projetos de vida das jovens, considerando aspectos de sua participação no Movimento Hip Hop naquilo que informam sobre sua condição de juventude circunscrita a um campo de possibilidades presente, mas também abertura de oportunidades para a construção de planos de futuro referenciados nos aprendizados éticopolítico proporcionados por sua participação no Movimento Hip Hop.

O Movimento Hip Hop tem origem entre as décadas de 60 e 70 (do século XX) nos EUA, formado principalmente por jovens negros e latinos. Esses jovens misturaram alguns estilos musicais e formaram um movimento que incorpora expressões corporais e artísticas, que contém os elementos: Rap (letra), break (dança), DJ (batida), graffiti (expressão plástica) e o conhecimento (elemento político). Sob a influência do movimento negro da década de 1960 e da cultura de rua, o movimento Hip Hop se constituiu como alternativa para os jovens das periferias, caracterizando-se como uma manifestação político-cultural (Costa & Menezes, 2009).

Segundo Weller (2011), o movimento se tornou uma forma de contestação das desigualdades sociais, principalmente através do Rap. Os jovens puderam, através do Movimento, construir espaços de expressão de sua criatividade e de denúncia de situações de discriminação e segregação.

Os grupos sociais Hip Hoppers, com suas tensões e negociações, ocupam, ao mesmo tempo, uma posição marginal e central na cultura contemporânea, oferecendo aos jovens inseridos nesses grupos possibilidade de visão crítica das questões sociais, mas também a possibilidade de entrada no mercado do consumo. Muitos desses grupos investem na busca de lazer em contraste com um cotidiano insatisfatório, denunciando o presente e chamando a atenção pública para os problemas enfrentados por eles/elas através do espetáculo cultural (Herschmann, 2005).

Podemos pensar que a inserção em movimentos sociais e a possibilidade de mudanças políticas, culturais e subjetivas que esses movimentos podem proporcionar são ainda mais significativas nas vivências das jovens mulheres, marcadas por desigualdades de gênero. Ainda que pesquisas sobre a presença feminina em culturas juvenis sejam incipientes (Weller, 2005), as jovens desempenham importantes papéis no campo de produção cultural.

 

3. Presença Feminina No Hip Hop

O Hip Hop é um movimento construído por práticas juvenis inseridas no espaço da rua. Não se apresenta apenas como uma proposta estética, mas principalmente enquanto arte engajada (Silva, 1999). O Hip Hop enquanto movimento inserido no espaço da rua coloca tensionamentos para a participação das jovens. Podemos pensar que participando do movimento ela sai do espaço privado da casa e passa a frequentar mais o espaço público da rua, rompendo com a dicotomia público (masculino)/privado (feminino).

Ocorre que romper com a barreira público/privado é, por si só, um desafio. No geral, a entrada em um movimento de rua, eminentemente masculino, é dificultada pela própria família que não vê com bons olhos a inserção da jovem nesse contexto cultural. A gramática da casa e da rua marca de modo singular a territorialidade do feminino, e as jovens que vão para a rua são associadas com as mulheres de rua, ou seja, são vistas como disponíveis para abordagens sexuais. Não podemos deixar de considerar que a presença nas ruas das grandes cidades, marcadas pela violência, de fato, ameaça ainda mais as mulheres por conta da cultura de violação sexual aos corpos femininos. De acordo com Lavinas (1997), não há liberdade de circular na cidade para grande maioria das jovens "porque 'desacompanhadas à noite são mal vistas‘ e 'são mais ameaçadas por assaltos‘. O tema da fragilidade física e da vulnerabilidade sexual torna a alimentar essas respostas." (p. 37).

Quando as jovens conseguem ingressar no universo Hip Hop, a dicotomia público/privado no interior do movimento exige enfrentamentos cotidianos, pois as ordens morais de sexo/ gênero presentificam-se das mais variadas formas: desigualdade de condições para participação em eventos e na ocupação de cargos de liderança, hegemonia dos códigos de honra masculinos exercendo controle sobre a entrada e a saída das jovens, bem como o controle sobre seus corpos, desvalorização da produção cultural delas e, por vezes, estabelecimento de moedas de troca (favores sexuais) para a transmissão das técnicas dos elementos, entre outros desafios (Menezes & Souza, 2011). No caso das jovens que escrevem letras de Rap, elas expressam questões sobre suas próprias vivências, tornando público o que até então seria do âmbito privado, na tentativa de politizar questões existenciais relativas à condição de ser mulher em uma sociedade hegemonicamente machista (Matsunaga, 2008).

Considerando as condições para inserção e participação das jovens no movimento Hip Hop, há de se pensar os termos da união dessas jovens enquanto resultado do enfrentamento das desigualdades de gênero presentes no movimento, uma vez que, de acordo com Lodi e Souza (2005), o movimento Hip Hop tem como proposta primeira a união que possa promover algumas transformações na sociedade. No entanto, devemos considerar que essa união nem sempre significa consenso, mas pode ser pensada em termos de estratégias de enfrentamento das desigualdades.

De maneira geral, o Hip Hop se afirma como um movimento misto, no qual participam tanto homens quanto mulheres, no entanto se configura como um espaço de reprodução da hegemonia masculina existente na sociedade (Freire, 2010). Apesar disso, o movimento também pode se configurar como um espaço de visibilidade e participação política das mulheres que pode ser pensado e discutido através do elemento Rap, entendendo-o como uma importante via de acesso à vivência das jovens mulheres Rappers.

Partimos da hipótese de que a participação no Movimento Hip Hop e, mais especificamente, a participação no elemento Rap, abre possibilidades para que as jovens visibilizem questões de juventude e gênero vividas por elas. Apostamos que as letras de Rap são uma das formas das jovens mulheres falarem de suas experiências, suas situações de vida e, assim, assumirem autoria sobre suas vozes e vidas. Estudar as letras de Rap de jovens mulheres torna-se relevante pela possibilidade de dar voz a essas jovens, valorizando o pensamento e a experiência delas. Corroboramos com Rose (1994), ao afirmar que através de suas letras as Rappers podem desafiar os discursos da esfera pública, particularmente, os relacionados às questões de gênero.

 

4. Metodologia

No contexto dessa investigação, utilizamos a abordagem qualitativa que têm se firmado em pesquisas no campo das Ciências Sociais e Humanas. Entendemos que essa abordagem nos possibilita dialogar com o fenômeno em sua complexidade, permitindo perceber as diferentes interações presentes nos contextos sociais, constituídas e constituintes dos sujeitos. Para Minayo e Sanches (1993), a abordagem qualitativa entende a realidade social como um mundo de significados passível de investigação, sendo a linguagem matériaprima dessa abordagem, além disso, permite uma aproximação entre investigador/a e participantes da pesquisa.

Dentro do contexto da pesquisa qualitativa, optamos por utilizar uma abordagem de inspiração feminista. Entendemos que deixar claro a partir de qual perspectiva nós estamos trabalhando é importante, uma vez que esse posicionamento é um ato político e, como tal, traz implicações práticas na condução da pesquisa.

O feminismo tem se apresentado enquanto movimento político, mas também como projeto teórico-epistemológico com importantes contribuições para o desenvolvimento de pesquisas no campo científico. As epistemologias e metodologias feministas, assim como o pensamento feminista, não são um campo estável, uma vez que existem várias formas de se produzir conhecimento a partir das diferentes teorias. As epistemologias feministas se caracterizam por ser um campo multidisciplinar, por defenderem a pluralidade metodológica e entenderem que as questões de gênero repercutem na produção científica (Koller & Narvaz, 2006).

Segundo Neves e Nogueira (2005), as metodologias feministas têm trazido nos últimos anos novas possibilidades para o estudo das dinâmicas sociais. Um dos principais pontos que as metodologias feministas têm ressaltado é a responsabilidade do/a pesquisador/a no trabalho científico, ou seja, a necessidade da adoção de uma postura reflexiva tanto durante o processo de pesquisa quanto no que se refere às implicações dos resultados da sua investigação.

As metodologias de caráter feminista têm resgatado o valor da crítica e da reflexão na avaliação dos efeitos da dimensão social e relacional na produção dos discursos científicos; a reflexividade é um instrumento de crítica e pressuposto intransponível dentro das metodologias feministas. Nesse sentido, essa forma de produzir ciência vai ter uma relação importante com grupos minoritários, grupos que estão em situação de desigualdade social, em especial as mulheres.

A pluralidade de métodos também tem sido um dos pressupostos das metodologias feministas. O argumento principal é que tal pluralidade aumenta a possibilidade dos/as pesquisadores/as entenderem melhor o que estão estudando, além de proporcionar maior credibilidade aos achados e conclusões.

No contexto de nossa investigação, utilizamos diferentes instrumentos para a construção das informações: a observação registrada em diário de campo de eventos do Movimento Hip Hop realizados na cidade de Recife, no Nordeste brasileiro, entrevistas semiestruturadas com quatro jovens mulheres e análise de dez letras de Rap, corroborando, assim, com os princípios de pluralidade metodológica das pesquisas qualitativas de inspiração feminista. O trabalho de coleta de dados em campo foi realizado durante os anos de 2011 e 2012. Todo o corpus da pesquisa traz questões sobre juventude e gênero que pretendemos discutir a partir dos objetivos propostos na presente investigação. Especificamente, objetivamos: conhecer e problematizar a vivência de jovens mulheres que praticam o elemento Rap naquilo que informam sobre marcadores sociais de classe e gênero na circunscrição de suas vivências; analisar em uma perspectiva temporal as repercussões da entrada no movimento hip hop para jovens mulheres considerando o campo das possibilidades subjetivas, políticas e culturais desse contexto; e examinar o conteúdo expresso na produção musical (Rap) das jovens mulheres naquilo que informa sobre as questões pertinentes às suas experiências.

As metodologias feministas têm como objetivo a mudança social e se preocupam com o resgate da experiência das mulheres, o uso de linguagens não sexistas e o empoderamento dos grupos minoritários. Outra preocupação especial nesse tipo de pesquisa é a relação do pesquisador/a com os e as participantes, a influência dessa relação nos resultados da investigação e o impacto da investigação nos e nas participantes da pesquisa (Koller & Narvaz, 2006).

As pesquisas de inspiração feminista têm contribuído para a transformação social, o engajamento político e dar voz aos sujeitos pesquisados, tematizando as desigualdades sociais. Foi a partir desses pressupostos que procuramos trabalhar na presente pesquisa. Partimos da compreensão de que a vida de cada um dos sujeitos é atravessada por diversos marcadores sociais que os posicionam na sociedade, no estabelecimento de suas relações sociais e na construção de suas vivências. A vida das participantes dessa pesquisa não poderia ser diferente. Ser jovem, ser mulher, ser Rapper, participar de um movimento político-cultural, ser pobre, ser negra, ser branca, ser moradora de periferia, entre outros marcadores sociais, fazem parte da constituição de sua identidade.

As participantes diretas dessa pesquisa são quatro jovens mulheres, com idades entre 18 e 29 anos, envolvidas nos contexto do Movimento Hip Hop da região Metropolitana do Recife, vinculadas ao elemento Rap.

Nos discursos das mulheres entrevistadas podemos perceber alguns marcadores que atravessam suas vidas e as implicações que esses trazem nas suas escolhas, na construção de seus projetos de vida e nas suas expectativas de futuro. Circular e produzir cultura em espaços predominantemente masculinos como o Movimento Hip Hop, parece não ser uma tarefa fácil, uma vez que algumas dificuldades se apresentam em função das relações de gênero como campo expressivo das relações de poder.

Entre os diferentes marcadores sociais que atravessam a vida dessas jovens, focalizaremos três: geração, raça e gênero. O marcador classe social, apesar de não ser nosso foco de análise, aparece na interseccionalidade com os outros marcadores.

 

5. Questões de Juventude para as mulheres Rappers

Através dos discursos das jovens, percebemos uma forte ligação do Hip Hop com a juventude e essa tem sido vivenciada atrelada a uma intensa atividade cultural relacionada com o Movimento. A entrada nesse contexto tem ocorrido, na maioria das vezes, no que se considera o período da juventude, onde comumente se tem uma rede de amizades maior e as atividades de sociabilidade entre pares estão muitas vezes relacionadas à música.

Para muitos jovens, o Hip Hop tem sido uma referência para esse momento desafiador da vida que é a juventude. Esse dado corrobora com os estudos de Juarez Dayrell (2007), segundo o qual os jovens e as jovens têm buscado através das dimensões simbólica e expressiva como a música, dança e vídeo, um posicionamento diante da sociedade. Apesar dos limites impostos pelo lugar social que ocupam, buscam outras formas de mediação das suas relações com o mundo e com os outros, onde outras e mais criativas possibilidades de ser e existir possam ser acionadas, desenvolvidas e vividas.

A cultura Hip Hop tem sido muito consumida pelas jovens de periferia e as participantes da pesquisa relataram que seu primeiro contato com esta foi escutando músicas de alguns grupos em suas comunidades ou através de amigos que lhes apresentavam as letras de Rap.

Isso nos leva a pensar na questão do pertencimento territorial como forte componente para o reconhecimento, a identificação e a construção de subjetividades. De acordo com Sawaia (1995), o sentimento de pertencer é marcado pela presença do outro que adquire sentido nas relações entre os sujeitos.

Com relação às diferenças das jovens dentro da mesma geração, uma questão que surge no discurso são as especificidades de estar há mais tempo no movimento. Duas das nossas entrevistadas relataram ter iniciado no movimento cerca de dez anos atrás, uma delas se considera pioneira entre as mulheres e isso lhe dá respaldo e respeito entre os participantes do movimento, tanto entre os homens quanto entre as mulheres. A seguir trecho de entrevista dessa jovem participante:

Então, dentro do Movimento de certa forma a gente tem uma autonomia nossa, pelo fato do histórico, por fazer parte da história do Hip Hop feminino, por ter sido uma das precursoras do Movimento do Hip Hop.

Parece-nos que essa questão da autonomia adquirida com o tempo de participação tem relação com o discurso hegemônico de quanto mais idade, mais você terá experiências de vida e mais conhecimento, portanto deve ser mais respeitado. Esse discurso tem uma importante função social de controle dos/ das mais jovens e através dessa entrevistada percebemos que o Movimento também opera com essa lógica, mesmo sendo um espaço formado principalmente por jovens. Uma das consequências desse discurso é que ele pode dificultar a participação, possibilidades de liderança e inclusão de novas ideias daquelas que são consideradas mais jovens. Inclusive, comumente, temos visto os termos nova escola e velha escola, que divide os/as participantes entre mais experientes e neófitos/as.

Outra questão que aparece no discurso das jovens e tem surgido como forte marca geracional da juventude contemporânea é a preocupação com o desemprego. Segundo dados de pesquisa realizada por Abramo (2005), três em cada quatro jovens se dizem muito preocupados/as com o desemprego. Apesar de a necessidade e o tipo de emprego variarem conforme a situação social, essa preocupação aparece entre os/as diferentes jovens. Esses dados dialogam com os achados de Pais (2003), segundo o qual, na atualidade, os problemas que mais afetam os/ as jovens estão relacionados às dificuldades de ingresso no mercado de trabalho.

De forma geral, no Brasil, as condições de trabalho são desfavoráveis para os e as jovens, no entanto, essas condições parecem se agravar para as mulheres, uma vez que o índice de desemprego entre elas é mais alto que entre os homens. Essa desigualdade de gênero se repete com relação à precariedade do trabalho e à remuneração, as jovens trabalham mais de modo informal e recebem menos que os jovens (Abramo, 2005).

Entre as nossas jovens mulheres, principalmente duas delas estão vivenciando de forma mais intensa as dificuldades relacionadas ao desemprego, fazendo com que elas decidissem parar o envolvimento com o Rap e migrassem para outras cidades em busca de melhores condições de trabalho. Essa situação do desemprego nos revela questões: socioeconômicas - essas jovens não tiveram acesso a um bom sistema de ensino e a baixa escolaridade as leva para empregos informais e com baixa remuneração; de raça - uma das jovens diz que tem sofrido preconceito racial no seu emprego; de gênero - a decisão pela migração e sobre qual cidade irão morar tem forte influência de seus companheiros.

Pensando nos limites da realidade social e articulando esses marcadores, as jovens chegam a um cenário em que o Rap não é mais possível. Por questões de sobrevivência, é necessário que elas parem de investir profissionalmente no Rap e busquem outro modo de sobreviver, uma vez que o Rap não tem lhes garantindo condições mínimas de se manter financeiramente.

 

6. As Rappers e as questões de raça

O racismo tem sido um dos princípios dominantes que estruturam nossas desigualdades sociais. Durante muito tempo, a ideia de superioridade de uma raça sobre a outra foi utilizada para justificar regimes de escravidão e subordinação. Ainda que, em nossa sociedade, a discriminação racial seja considerada crime, a população negra continua sofrendo as consequências do racismo, sendo vítima de desigualdades sociais, de um discurso hegemônico que relaciona a cor da pele à pobreza e à marginalidade. Dados apontam que a população negra, em especial a jovem, tem sido a maior vítima de homicídios no Brasil (Waiselfisz, 2012).

Dentro do contexto do Movimento, assim como em quase toda a nossa sociedade, as questões de raça demarcam estereótipos e ocasionam preconceitos. Com relação à raça, duas entrevistadas são negras e duas são brancas e essa questão aparece com um forte marcador em ambas as situações.

As entrevistadas negras relatam situações de preconceito racial vivenciadas no trabalho e revelam consciência com relação a se identificar enquanto negra, não negar isso na estética do cabelo e demonstram em suas letras de Rap a valorização dos/as negros/as e promoção de igualdade racial. Essa consciência com uma identidade racial tem sido uma forte característica do Movimento Hip Hop, que surge com jovens negros e latinos nos Estados Unidos. As entrevistadas informaram que foi dentro do Movimento que se identificaram como negras e passaram a valorizar sua identidade étnico-racial, sendo essa, inclusive, tema recorrente em suas letras.

 

7. Questões de gênero - Ser mulher no Hip Hop

O Movimento Hip Hop tem sido caracterizado como um Movimento predominantemente masculino. Há concordância entre as entrevistadas no que diz respeito não só à predominância quantitativa dos homens, mas também à predominância de valores machistas dentro do Movimento Hip Hop. Esse discurso de dominação masculina, implicitamente, acaba dando uma ideia de que até mesmo a entrada e a participação das mulheres só aconteceram porque foram permitidas pelos homens. Como podemos ver no trecho de entrevista abaixo:

    Porque os meninos querem meninas que cantam Rap, os meninos já não aguentam mais meninos, só tem menino cantando Rap...

O discurso hegemônico que controla a presença das mulheres nos espaços públicos impõe perigos à circulação das mulheres na rua, duvida da sua capacidade de realização das mesmas atividades que os homens, regula a sexualidade feminina, diz que roupas as mulheres podem ou não podem usar e impõe diversas dificuldades para participação em movimentos como o Hip Hop. Como nos relata uma de nossas entrevistadas:
    é aquilo tem que depender do homem, você é menos que ele, se fizer uma coisa você ainda não sai em destaque como ele, você pode até fazer melhor na visão de muitos, mas quase ninguém vai dizer...

As participantes percebem as desigualdades de gênero, em certa medida, as questionam e até as ironizam. No entanto, esses discursos hegemônicos de superioridade masculina são vistos com certa naturalidade pelas participantes, o que acaba diminuindo as possibilidades de ações para mudança.

Há um discurso compartilhado de que a inserção das mulheres no Hip Hop ocorre através dos homens, ou por um interesse afetivo-sexual ou porque são companheiras/irmãs/amigas de homens que já participam do Hip Hop. Uma de nossas entrevistadas relata que sua inserção no Movimento se deu através de um homem, embora indique que poderia acontecer de outra forma, como podemos ver abaixo:

    Conclusão, o ingresso da mulher no Hip Hop, no movimento é através de homens. Infelizmente, né? O meu mesmo foi assim. Ai, tipo, poderia ser por conta delas próprias, ou através de outras mulheres, mas na maioria é através dos homens que elas se inserem. Parece-nos que as participantes aderem ao discurso de que a entrada da mulher no espaço público só é permitida se isso acontece através dos homens. Elas confirmam esse discurso mesmo quando a experiência delas é contrária a ele. Em termos quantitativos, apenas uma entre nossas quatro entrevistadas se inseriu no Movimento através de um homem. Assim, percebemos o quanto o discurso hegemônico fica enraizado nos discursos das participantes.

Spivak (2010), ao discutir a condição de subalternidade, indica-nos que a representação do subalterno está atravessada pela hierarquia dominante, ou seja, o discurso dominante fica enraizado na consciência do mais fraco. Nesse sentido, podemos pensar o quanto os discursos e ações dessas mulheres são influenciados pelas hierarquias machistas de nossa sociedade.

A relação entre mulheres dentro do Hip Hop aparece nos discursos das jovens como importante para entendermos o modo como as mulheres têm se organizado, as relações estabelecidas entre elas e em que medida essas relações as fortalecem ou as fragilizam dentro do Movimento.

As dificuldades para permanência das mulheres no movimento parecem ser muitas e aliar outras atividades laborais com as atividades relacionadas à participação no movimento, como ensaios, shows, participação em eventos também parece não ser fácil. Um das entrevistadas pertence a um grupo que está parado há alguns anos devido a outras atividades laborais das participantes; atualmente elas têm conversado para voltar com o grupo. Outras duas entrevistadas formaram um grupo e decidiram parar por um tempo porque estão de mudança para outras cidades por questões de falta de emprego em Recife. Mesmo com as dificuldades, todas as entrevistadas indicam que de alguma forma querem que o Hip Hop permaneça em suas vidas.

A participação feminina no Movimento tem aumentado e atualmente há uma mudança com relação ao modo como as mulheres têm se apresentado, elas têm reafirmado uma estética feminina através das roupas (em oposição à estética masculina), têm reivindicado espaços de participação em eventos e estão mais cientes das desigualdades de gênero que vivenciam, embora o enfrentamento às mesmas ainda seja incipiente.

Duas entrevistadas indicam que, após um tempo de participação no movimento, perceberam que algumas coisas elas só iriam conseguir se reivindicassem, se reclamassem e isso acabou fazendo com que elas não fossem bem vistas por muitas pessoas dentro do Movimento. Parece-nos que a participação feminina é bem-vinda e até incentivada pelos homens desde que elas não questionem as desigualdades de gênero, não ocupem espaços de liderança e destaque e não desafiem os discursos hegemônicos relacionados ao gênero.

De forma geral, podemos perceber através das entrevistadas que a participação das mulheres no Hip Hop, e especificamente no Rap, tem acontecido e crescido nos últimos anos, no entanto as dificuldades para a participação e permanência delas são maiores quando comparadas as dificuldades vivenciadas pelos homens. A relação entre homens e mulheres parece ser boa até o momento que as mulheres começam a questionar as relações desiguais, lutam pelos mesmos espaços de participação, adquirem certa posição de destaque e liderança pela atividade que desenvolvem. A questão da regulação da sexualidade feminina aparece bastante, tanto com relação ao número de relacionamentos afetivos que podem ter dentro do movimento, quanto à exibição do seu corpo no palco, que roupas podem ou não podem utilizar.

O patriarcado, o racismo e o capitalismo, como princípios que sustentam as desigualdades sociais, impõem limites para a vida dessas jovens. O poder exercido pela dominação de classe, pelo sexismo e pelo racismo não tem acontecido apenas por forças abusivas, mas tem estado principalmente enraizado na vida cotidiana construindo práticas, influenciando suas vidas e limitando as possibilidades de mudança social.

Refletimos que a inserção em um Movimento político-cultural como o Hip Hop aliada às questões de pobreza, preconceito racial e desigualdades de gênero, possibilitou que as jovens mulheres construíssem um olhar crítico sobre a situação de desigualdade na qual vivem e utilizassem o Rap para falar dessas questões. No entanto, a incidência dos discursos hegemônicos faz com que em algumas situações elas recorram "a letra" dos discursos dominantes, ora naturalizando as desigualdades de gênero, ora adotando os princípios machistas para se autoafirmar ou mesmo avaliar o trabalho de outras mulheres.

Percebemos também que os limites da vida cotidiana relacionados à busca pela sobrevivência diária fazem com que essas jovens precisem de uma renda monetária que o Rap não pode lhes garantir.

 

8. O Rap produzido por mulheres

Ao comporem suas letras, o marcador gênero coloca especificidade nos Raps produzidos pelas mulheres? Em que medida o conteúdo expresso no Rap das jovens mulheres informa sobre as questões pertinentes à suas experiências de serem mulheres, Rappers, jovens, negras, brancas, pobres?

Então, a escrita tem sexo? Nas palavras de Nelly Richard (2002, p. 129), "falar de 'escrita feminina‘ é o mesmo que se perguntar como o feminino, em tensão com o masculino, ativa as marcas da diferença simbólico-sexual e as recombina na materialidade escritural dos planos do texto".

Ao discutir as diferenças entre a escrita feminina e a escrita masculina, muitas escritoras preferem dizer que a linguagem não tem sexo e que só existe boa ou má escrita, no entanto, Richard (2002) argumenta que quando não se considera questões de gênero na escrita, comumente, se reforça o poder estabelecido que considera a masculinidade como universal.

Corroboramos com a autora que devemos levar em conta as especificidades de uma escrita produzida por mulheres. Entendemos que a marca de gênero na escrita se coloca como lugar de desafio e questionamentos de hegemonias discursivas. Essa marca não diz de um modo homogêneo de escrita feminina, mas refere-se à presença das mulheres em um contexto predominantemente masculino.

Essa discussão sobre a escrita feminina nos leva a pensar sobre o Rap produzido por mulheres e como esse tipo de Rap tem se colocado no lugar de diferença com relação ao Rap produzido por homens. De forma geral, todas as entrevistadas indicaram que o Rap é muito presente em suas vidas, lhes tranquiliza, instiga, traz novas ideias e aprendizados. A influência de outros estilos musicais na inspiração para comporem suas letras é algo que aparece em diferentes entrevistas.

Com relação a como é o processo de escrever suas letras, duas entrevistadas pertencem ao mesmo grupo e na maioria das vezes escrevem juntas as letras, fazem uma base, escolhem um tema e cada uma vai escrevendo uma parte da letra até finalizar. Relatam que essa estratégia tem sido boa porque elas têm um pensamento muito parecido. Outra entrevistada diz que a maioria de suas letras é escrita em ônibus e deixa claro que o importante é registrar o que surge em momentos inusitados de inspiração.

Com relação à temática dessas letras, uma das entrevistadas relata que fala sobre sentimentos diversos, no geral, gosta muito de escrever sobre a vida, não a realidade, mas a sua visão -a mais positiva possível- sobre a vida. Gosta mais dessa parte poética, do que da realidade. E, através das letras, acredita ter a possibilidade de transformar a vida de quem escuta. Duas entrevistadas contam que a maioria das músicas que fizeram são situações vivenciadas por elas, que aconteceram ao seu redor, que já sentiram na pele ou que viram. As entrevistadas contam que muitas pessoas depois que escutam as músicas vêm conversar com elas, relatando que também vivenciaram situações como as descritas nas letras.

Assim, apostamos que as letras de Rap são uma das formas das jovens mulheres falarem de suas experiências, suas situações de vida e, assim, assumirem autoria sobre suas vozes e vidas. A música Rap pode se apresentar como instrumento político de uma juventude excluída, dando visibilidade e poder de voz (Andrade, 1999).

Nas letras podemos perceber, de forma geral, que todas as composições do álbum analisado trazem debates sobre questões sociais que são atuais e importantes e que como tais, parecem ser significativas nas vivências das Rappers e refletem tanto uma experiência pessoal quanto uma experiência compartilhada por um coletivo.

As letras analisadas compõem um CD (composto por dez faixas musicais) de um grupo formado por duas mulheres. O produto foi lançado em 2011, no Pátio de São Pedro, espaço de referência para as expressões da cultura negra, localizado no centro da cidade do Recife. De forma geral, no processo de análise, após transcrição e leitura flutuante das letras, estabelecemos eixos temáticos de discussão, a partir dos objetivos específicos da pesquisa.

é interessante notar que na maioria das letras, em sete delas, os versos são escritos em primeira pessoa e, ainda que a letra não esteja necessariamente falando da vida da Rapper, ao escrevê-la, ela parece incorporar o personagem da história contada e escrever com as palavras dele.

Entre os temas presentes nas letras, podemos destacar dois que parecem ser mais significativos, uma vez que aparecem repetidas vezes em diferentes letras: gênero e raça. As questões de raça podem ser entendidas através da forte relação do movimento Hip Hop com o movimento negro.

No que se refere às questões de gênero, a temática da mulher perpassa a maioria das letras e as mulheres aparecem de diferentes formas: mulher apaixonada, mulher que luta por diminuição das desigualdades de gênero, mulher-mãe, mulher vítima de violências de gênero. Como podemos perceber no trecho de letra "Desabafo Feminino":

    Não é mais mulher de Atenas, nem Amélia de ninguém

    Aqui no palco, a força que a mulher tem

    Representando mudança nas feministas brasileiras Mulheres batalhadoras, guerreiras, superando homens e derrubando barreiras.

As temáticas trabalhadas nas letras nos fazem refletir sobre o modo como as mulheres utilizam sua produção para falar de suas experiências, nos levando a pensar se essa não seria a principal característica de uma escrita feminina. Nesse contexto, os marcadores sociais -classe, raça, gênero, geração- presentes em suas vidas terão bastante espaço em suas composições.

Assim podemos concluir enfatizando que, como nos indica Barreto (2004), o Rap é uma importante via de acesso aos sentidos que essas jovens atribuem às suas vidas. Como podemos perceber nas letras analisadas, são trazidas questões fundamentais para o entendimento da vivência dessas jovens e do envolvimento em torno do movimento Hip Hop.

 

9. Conclusão

Nesse cenário, percebemos o Movimento Hip Hop como um movimento articulador de vivências juvenis; no caso de nossas jovens mulheres, ele é uma referência, é responsável por mudanças significativas em suas vidas, tem sido um veículo potencializador de ações de mudanças sociais. Para essas jovens, o Movimento Hip Hop se adjetiva como vida, como aquilo que elas necessitam para viver, no entanto ficam muito divididas entre o desejo de dedicação ao movimento e aos elementos, em especial o Rap e o fato de não conseguirem viver dessa arte. A produção cultural via Rap não tem sido um trabalho que as remunere o suficiente para pagar despesas da vida cotidiana e então elas precisam de outro trabalho para sobreviver. Nesse cenário, elas vivem no limite entre o viver e o sobreviver.

Ainda que positivado e valorizado por muitas questões, o Movimento continua reproduzindo alguns discursos hegemônicos de opressão e subordinação, principalmente aqueles ligados às desigualdades de gênero. As mulheres presentes no Movimento têm, em algumas situações, desafiado esses discursos, mesmo que em muitos momentos acabem aderindo ao discurso do opressor devido ao enraizamento do machismo em nossa sociedade.

A presença das mulheres no movimento tem desestabilizado a dicotomia público/ privado, as questões de gênero se apresentam como pontos de tensão entre os participantes do Movimento uma vez que, por ser um movimento caracterizado como da rua, causa estranhamento a participação das mulheres, já que a elas foi historicamente destinado o espaço privado do lar. Além disso, no contexto do Movimento, as mulheres não são apenas público receptor, mas são ativas produtoras culturais que contribuem de forma significativa para a construção da cultura Hip Hop.

Com relação à música Rap, essa tem se apresentado como um instrumento de denúncias sociais e visibilidade para as mulheres. Através da sua escrita, das suas músicas, vídeos, dos seus shows, de toda a produção cultural que envolve a música Rap, essas mulheres alcançam espaços de visibilidade e de poder, podem desafiar os discursos hegemônicos, propor novas formas de pensar e ter voz e vez em uma sociedade tão marcada pela invisibilidade das mulheres, principalmente quando a vida delas é marcada por tantas desigualdades sociais, como no caso das jovens, negras e pobres.

As questões levantadas na construção desta pesquisa visibilizam nossas reflexões sobre as expressões do poder, das desigualdades e opressões presentes na nossa sociedade. Pautada pelo compromisso ético-político, entendemos que tais reflexões contribuem para pensarmos sobre como nossa sociedade tem se estruturado e quais possibilidades e limites têm circunscrito a vivência de jovens mulheres Rappers.

 


 

Notas

* Este artigo de investigação científica e tecnológica é resultado da investigação denominada Jovens Mulheres Rappers: Reflexões sobre gênero e geração no Movimento Hip Hop, apresentada pela autora Maria Natália Matias-Rodrigues, sob orientação da autora Jaileila de Araújo Menezes, para obter o título de Mestre em Psicologia. Universidade Federal de Pernambuco. 2013. Financiamento aprovado pela Coordenação de Aperfeiçoamento do Ensino Superior (capes). Data de início: 03 de Março de 2011. Data de finalização: 27 de Fevereiro de 2013. área de Conhecimento: Psicologia. Subárea do Conhecimento: Temas Especiais-Estudos de Gênero.

 


 

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    Referencia para citar este artículo: Matias-Rodrigues, M. N. & de Araújo-Menezes, J. (2014). Jovens mulheres: reflexões sobre juventude e gênero a partir do Movimento Hip Hop. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, 12 (2), pp. 703-715.