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Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud

Print version ISSN 1692-715X

Rev.latinoam.cienc.soc.niñez juv vol.14 no.1 Manizales Jan./June 2016

https://doi.org/10.11600/1692715x.14137110515 

Segunda Sección: Estudios e Investigaciones

 

DOI: http://dx.doi.org/10.11600/1692715x.14137110515

 

Os "rolezinhos" nos centros comerciais de São Paulo: juventude, medo e preconceito*

 

The "rolezinhos" in the shopping centers of Sao Paulo: youth, fear and prejudice

 

Los "rolezinhos" en los centros comerciales de Sao Paulo: juventud, miedo y prejuicios

 

 

Alexandre Barbosa-Pereira

Professor Universidade Federal de São Paulo, Brasil. Doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, Brasil. Professor da Universidade Federal de São Paulo, Campus Baixada Santista, pelo Departamento de Saúde, Educação e Sociedade. Correio eletrônico: alebp1979@gmail.com

 

 

Artículo recibido en febrero 5 de 2015; artículo aceptado en mayo 11 de 2015 (Eds.)

 


Resumo (analítico):

O objetivo do artigo é analisar eventos protagonizados por jovens em shopping centers de grandes cidades brasileiras nas férias de verão de 2013/2014. Trata-se dos chamados "rolezinhos", encontros de jovens fãs de música "funk carioca" marcados pelas redes sociais. Esses eventos sofreram uma forte repressão policial e uma abordagem midiática criminalizante e estigmatizante. O texto demonstra, a partir de observações de campo em dois rolezinhos, pesquisa etnográfica, realizada entre 2012 e 2014, sobre a música funk em São Paulo e pesquisas nas redes sociais, como medo e preconceito foram elementos importantes para a perseguição e rotulação negativa de encontros de jovens pobres em centros comerciais.

Palavras-chave: atividades juvenis, espaço urbano, lazer, interação social, preconceito (Tesauro de Ciências Sociais da Unesco).

 


Abstract (analytical):

The article discusses events involving young people in malls in Brazil’s large cities in the summer holidays of 2013/2014. These young people are called "rolezinhos" (which is slang for ‘little walks’ among the city’s youth). Large impromptu gatherings of young carioca funk music fans were organized through the use of social networks. These events have suffered from strong police repression and a criminalizing and stigmatizing media approach. Through field observations of the rolezinhos, ethnographic research on the carioca funk music in São Paulo and research on this group’s use of social networks that was conducted between the year 2012 and 2014, the paper demonstrates how fear and prejudice were important in the persecution and negative portrayal of poor young people in malls.

Key words: youth activities, urban spaces, leisure, social interaction, prejudice (Unesco Social Sciences Thesaurus).

 


Resumen (analítico):

El objetivo principal de este artículo es analizar los eventos realizados por jóvenes en centros comerciales de las grandes ciudades en las vacaciones de verano de 2013/2014. Estos son llamados "rolezinhos", encuentros convocados mediante redes sociales por jóvenes amantes de la música "funk carioca". Estos eventos fueron objeto de severa represión policial, criminalización de los medios y enfoque estigmatizante. El texto demuestra, mediante observaciones de campo en dos rolezinhos, investigación etnográfica realizada entre los años 2012 y 2014 sobre el funk de ostentación en São Paulo e investigación en las redes sociales, cómo el miedo y los prejuicios fueron elementos importantes para la persecución y el etiquetado negativo de estas reuniones de jóvenes pobres en centros comerciales.

Palavras clave: actividad juvenil, espacio urbano, ocio, interacción social, prejuicio (Tesauro de Ciencias Sociales de la Unesco).

 


 

1. Introdução: uma controvérsia de natal

 

Itaquera, distrito da periferia leste da cidade de São Paulo, Brasil, para onde segue a linha de metrô mais lotada, a chamada linha vermelha, que faz o percurso leste-oeste e tem sua última estação justamente nesse distrito. Na Estação Corinthians-Itaquera do metrô, há uma série de equipamentos, serviços e estabelecimentos. Para quem ali chega, já do lado de fora, no alto de um morro, destaca-se o estádio do Sport Club Corinthians, o palco da abertura da Copa do Mundo de futebol realizada no Brasil no ano de 2014. Ainda dentro das dependências do metrô, tem-se ligação direta com um terminal de ônibus que dá acesso a bairros mais ao extremo leste, como Guianazes ou Cidade Tiradentes. Há também um Poupatempo, um tipo de equipamento público que congrega uma série de serviços ligados principalmente à emissão de documentação pessoal, como carteiras de identidade e habilitações para motoristas, entre outros serviços. Ao passar por esse Poupatempo chegamos ao Shopping Metrô Itaquera, um centro comercial articulado à estação de Metrô. Em São Paulo há pelo menos cinco shoppings que se conectam diretamente a estações de metrô. No dia 07 de dezembro de 2013, mês de movimento intenso em todos os shopping centers do país devido às compras de natal, um evento ocorrido nesse mesmo Shopping Metrô Itaquera gerou um grande debate público sobre preconceito, segregação e direito à cidade.

Pelas redes sociais, jovens organizaram encontro que denominaram como "Rolezinho no Shopping". O termo rolê é uma gíria muito comum no Brasil e seria o mesmo que fazer um passeio, traz, portanto, a ideia de circular pela cidade para se divertir. Na internet, os objetivos descritos eram: encontrar amigos, conhecer pessoas, paquerar, dar uns beijos e zoar. No entanto, o que seria apenas um encontro para lazer tornou-se uma grande confusão. Alguns lojistas, administradores e frequentadores do shopping sentiram-se ameaçados por aquela grande concentração de jovens a brincar e fazer barulho. Chamou-se então a polícia que atuou com bastante truculência para expulsar os jovens, o que gerou correrias para fugir da repressão policial. Outro fator serviu de pretexto para que se criasse certo medo com relação aos participantes desse evento e se chamasse a polícia para agir em tais espaços, os protagonistas dos rolezinhos gostavam de ouvir música funk e, em determinados momentos do encontro, cantaram músicas do repertório do chamado funk ostentação, estilo musical que, em suas letras, exalta a posse de dinheiro e o consumo de roupas e acessórios de grife.

O funk ostentação consiste numa nova vertente do funk carioca1 criada a partir de São Paulo, por jovens de bairros periféricos, na qual temáticas das letras de música anteriormente em evidência no chamado estilo proibidão, como crime, drogas e sexo, são atenuadas ou praticamente excluídas em detrimento de referências ao consumo e a marcas de roupas, carros e bebidas ou ao modo como o acesso a tais bens permitiria um maior sucesso com mulheres consideradas bonitas. Inicialmente, o principal meio de divulgação desse funk ostentação foi a internet, pelo YouTube. Nessa plataforma, os jovens cantores têm apresentado videoclipes nos quais, além de cantarem músicas sobre as marcas, aparecem exibindo-se com produtos, como carros importados, garrafas de uísque e roupas de grife. Os MCs de funk ostentação que fazem sucesso no YouTube, casas noturnas e, posteriormente, na mídia tradicional2 são, em sua imensa maioria, jovens pobres, moradores de bairros periféricos de São Paulo. Aqueles que alcançam o almejado sucesso nos canais tradicionais de mídia são quase sempre descritos como MCs de origem socioeconômica mais baixa que agora fariam um funk do bem, por não falar mais de crimes, drogas e sexo, e que teriam conseguido, assim, vencer na vida pela música.

Para uma amostra de como se caracteriza tal vertente musical, cabe alguns exemplos. Numa das músicas, o MC Danado canta: "Vida é ter um Hyundai e uma Hornet, dez mil pra gastar, Rolex, Juliet. Melhores kits, vários investimentos. Ai como é bom ser o top do momento". A expressão kit é recorrente em muitas letras de funk e faz referência aos acessórios de grife, como camisetas, colares (também chamados de cordões), bonés e óculos escuros. No clipe dessa música, MC Danado chega de moto a uma mansão, onde há carros, outras motocicletas e mulheres na piscina com taças de espumante3. Em outra música, MC Rodolfinho canta: "Bolso esquerdo só tem peixe e o direito tá cheio de onça. Ai meu Deus, como é bom ser vida loka"4. Nesse outro videoclipe, MC Rodolfinho aparece ostentando uma garrafa de uísque dentro de uma limusine com mulheres que dançam a sua volta com vestidos curtos. Ele atira notas de cem (os peixes) e cinquenta (as onças)5 Reais. MC Boy do Charmes, por sua vez, anuncia: "Onde eu chego eu paro tudo, a mulherada entra em pane, meu cordão é um absurdo, meu perfume é da Armani"6. Uma das poucas MCs mulheres, MC Byana, cantora de funk do Rio de Janeiro, pergunta em uma de suas músicas: "Quem foi que disse que ser mercenária e gostar de dinheiro é ser piranha7? Muito prazer eu sou Byana. Joga o dedo pro alto a mulher que gosta de grana"8. Os videoclipes dos MCs mais famosos de funk ostentação alcançam milhões de exibições no YouTube, o que lhes permite estabelecer contratos para um maior número de apresentações musicais e, assim, tornar-se ainda mais famoso e conseguir dinheiro para comprar os itens que cantam em suas músicas.

Pode-se dizer que o funk ostentação foi a trilha sonora dos rolezinhos, pois, além de congregarem principalmente, ou quase que exclusivamente, jovens fãs de tal estilo musical, a maioria dos rolezinhos foi agendada nas redes sociais por jovens MCs de funk, em busca de, por meio de tais eventos, alcançar certa visibilidade e, a partir disso, adentrar o circuito de casas noturnas de funk da cidade. No dia seguinte ao rolezinho ocorrido no Shopping Metrô Itaquera, a grande mídia já noticiava que jovens tinham realizado um arrastão em shopping na zona leste da cidade.

As imagens mostravam aglomerações de adolescentes no estacionamento e correrias no interior do centro comercial. Apesar dessa repercussão negativa, outros rolezinhos foram marcados em diferentes shoppings da cidade. Num deles, em Guarulhos, município da Região Metropolitana de São Paulo, houve forte repressão policial e a imprensa publicou fotos de jovens sendo revistados por seguranças na praça de alimentação. Os centros de compra onde foram marcados os rolezinhos, entretanto, tinham uma peculiaridade, localizavam-se em bairros distantes da região central, nos bairros pobres da periferia, ainda que, em alguns casos, estejam circundados também por bairros com moradias que apresentariam um padrão de classe média, com um maior planejamento urbano e arquitetônico.

 

2. Metodologia

Esta pesquisa partirá de uma abordagem qualitativa e fundamentalmente etnográfica, tendo sido realizada a partir de diferentes temporalidades, espacialidades e inserções com o objetivo de descrever e analisar esses eventos: os rolezinhos. Acompanhei sua divulgação nas redes sociais e toda a repercussão dos rolezinhos na grande mídia, ao mesmo tempo em que realizei observações de campo em dois deles: 1) no Shopping Interlagos e 2) no Shopping Metrô Itaquera. Além disso, esse trabalho é um desdobramento de outra pesquisa que realizo desde 2012 sobre o funk ostentação em São Paulo, na qual estive em casas noturnas, acompanhei gravações de videoclipes e entrevistei produtores, empresários e artistas dessa vertente musical.

Pode-se dizer, portanto, que se trata de uma pesquisa multi-situada tal qual a discussão feita por George Marcus (1995), na qual se busca contextualizar esses eventos a partir de relação com o funk ostentação, com a mídia em seu discurso estigmatizador e com a cidade e seus espaços de convivência, no caso mais específico, os shopping centers. Parte-se, dessa maneira, da concepção de Arjun Appadurai (1997) de que no mundo contemporâneo, as pessoas encontram-se cada vez mais deslocalizadas e, por isso, mostra-se imprescindível abordar os fenômenos sociais contemporâneos a partir de diferentes perspectivas, levando em consideração esse caráter deslocalizado. Além de abordar, os múltiplos ponto de vista desse evento controverso realizado na cidade de São Paulo, será apresentada ainda uma descrição mais focada de uma observação de campo em um rolezinho específico no Shopping Interlagos, como caso exemplar para a análise de seus significados e de como certo discurso do medo foi utilizado para, ao menos num primeiro momento, criminalizar os encontros de jovens nos centros de compra.

 

3. Segregação, conflito e estigmatização da juventude pobre

Ao definir esses encontros em shopping centers como arrastões, uma parcela considerável da grande mídia realizava duas tarefas simultâneas e interligadas: estigmatizava os jovens como bandidos e contribuía para justificar a repressão policial violenta9. Segundo Erving Goffman (1988), em estudo clássico, o processo de estigmatização consiste em categorizar os indivíduos, a partir de seus atributos, como figuras não desejáveis, más ou perigosas, atribuindo-lhes uma identidade deteriorada. Muitas vezes, afirma o autor, acredita-se que os estigmatizados não sejam inteiramente humanos. Richard Parker e Peter Aggleton (2001) descrevem como o estigma estaria no cruzamento entre cultura, diferença e poder. Ao se atentar para essas três dimensões, portanto, poderiam ser desvelados os dispositivos sociais que engendram estigmas e estigmatizações que seriam centrais para a conformação de ordens sociais mais gerais e não apenas de fenômenos sociais isolados. Segundo esses autores, o estigma atuaria não somente em relação à diferença, mas também em relação às desigualdades sociais e estruturais. A estigmatização contribuiria, então, para a transformação de diferenças culturais - como de classe, gênero, raça/cor, idade, sexualidade ou orientação sexual - em desigualdades sociais e estruturais. O rótulo de bandido, que foi, logo de início, aplicado aos jovens dos rolezinhos, teria uma série de implicações. Michel Misse (2010, p. 18), ao discutir o que denominou como sujeição criminal, afirma que há "uma complexa afinidade entre certas práticas criminais e certos "tipos sociais" de agentes demarcados (e acusados) socialmente pela pobreza, pela cor e pelo estilo de vida". A sujeição criminal, afirma esse autor, justificaria mesmo a eliminação física daquele que fosse considerado criminoso, pois "o sujeito criminoso é aquele que pode ser morto".

A noção de arrastão surgiu no Brasil entre os anos de 1989 e 1990 pela cobertura midiática sensacionalista sobre episódios que aconteceram no Rio de Janeiro, nos quais jovens pobres e moradores de favelas reuniram-se nas praias da cidade. Arrastão seria o mesmo que uma grande ida coletiva a espaços de grande aglomeração a partir da qual haveria confusão, ocasionando saques em série. Entretanto, conforme afirma Micael Hershmann (2005), é somente em 1992 que o termo alcançaria maior repercussão ao ser utilizado para nomear um tumulto iniciado numa praia carioca, após uma briga entre jovens de galeras rivais de funk carioca. Esse fato marca a chegada do funk aos noticiários como algo negativo e mesmo associado à criminalidade.

Os rolezinhos geraram uma forte reação de preconceito e criminalização contra os jovens pobres e de pele negra ou parda em sua maioria. Reação muito similar a já ocorrida com o que foi denominado como arrastão. Bastava uma leitura rápida dos comentários sobre as notícias que tratavam dos rolezinhos nos sítios da internet para flagrar afirmações racistas e preconceituosas de toda a ordem contra os meninos e as meninas que participaram desses encontros. Curiosamente, estaria o funk novamente na berlinda em mais uma polêmica em torno da ideia de arrastão. Porém, dessa vez não mais no Rio de Janeiro e nem nas praias, mas em São Paulo e em seus shopping centers. Ao tratar da criminalização do funk e dos bailes no Rio de Janeiro, Hershmann questiona se a estigmatização da figura do funkeiro não seria, na verdade, a estigmatização do segmento social que é o principal protagonista dessa expressão cultural. Da mesma forma, podemos perguntar: quem seriam os criminalizados nos rolezinhos nos centros comerciais?

Os encontros nos shopping centers de São Paulo foram organizados e protagonizados por jovens pobres de bairros periféricos da cidade. Os centros de compra escolhidos por eles como locais de encontro não eram os de alto luxo das regiões centrais e/ou nobres, mas aqueles situados próximos aos bairros periféricos onde esses jovens moram. Cabe ressaltar que muitos deles, portanto, já frequentavam tais espaços. A grande novidade estava no caráter coletivo desses encontros marcados pelas redes sociais. De certo modo, os rolezinhos evidenciaram uma série de questões sobre o convívio com as diferenças, as práticas culturais juvenis urbanas, a segregação e os múltiplos preconceitos que podem ser notados entre consideráveis segmentos da população brasileira. Hershmann, em sua análise sobre a perseguição ao funk no Rio de Janeiro, traz elementos que contribuem para uma reflexão sobre os rolezinhos e a controvérsia que geraram:

    Assim, para além do processo de criminalização que afeta este grupo urbano, traz à tona, para o debate na esfera pública, a discussão do lugar do pobre, ou melhor, o seu direito ao lazer e ao "acesso" à cidade. Coloca em pauta as contradições do processo de "democratização" do país e expõe as suas fissuras sociais (Hershmann, 2005, p. 119).

No caso dos rolezinhos, pode-se avançar um pouco mais e refletir sobre como eles apresentam as contradições do grande acesso ao consumo garantido aos mais pobres nos últimos anos no Brasil. Como mostra Rosana Pinheiro- Machado (2014), em descrição de uma ida de meninos pobres a um shopping center da cidade de Porto Alegre para comprar roupas de grife, o consumo de determinados itens pelas classes populares é visto, muitas vezes, com desconfiança e preconceito. A autora demonstra como para esses jovens ir a tais espaços representava uma forma de afirmar-se e buscar certo reconhecimento. Para isso, segundo Pinheiro-Machado, os jovens escolhiam sua melhor roupa para tentar assim alcançar certa visibilidade. Entretanto, continuavam não sendo bem-vistos por lojistas e funcionários do shopping, que sempre os vigiavam com medo de que roubassem algo.

Os shopping centers, conforme afirma Valquíria Padilha (2006), historicamente foram criados como espaços privados, mas divulgados como públicos e como a solução para os problemas da vida urbana. De certo modo, ofereceriam um mundo protegido dos conflitos urbanos e de contatos indesejados com estranhos, no qual seria possível dedicarse apenas ao consumo de produtos, comida e desfrutar de momentos de lazer. Em outra pesquisa, multidisciplinar sobre dois shopping centers ingleses (Miller, Jackson, Thrift, Holbrook & Rowlands,1998), expõe-se como os mesmos são lugares que se promovem em oposição ao medo das ruas e do convívio com os outros. Na pesquisa, argumenta-se, inclusive, como o discurso da criação de um ambiente familiar ou voltado para a família diz menos respeito a um incentivo para que houvesse uma frequência mais efetiva por famílias, mas se refere principalmente a uma ideia de que aquele é um espaço para se encontrar com quem lhe é próximo, sem sustos ou estranhamentos. Em outras palavras, o shopping center, por meio de seus múltiplos controles, ao apresentarse como familiar, expressa, na verdade, que deixa o que considera como seus "outros", os estranhos que causariam incômodos e medos, do lado de fora. Esses outros seriam os não pertencentes ao mundo social de determinada classe média branca, principalmente jovens do sexo masculino, pobres e pessoas ligadas a minorias étnicas. Ou seja, impede-se o contato ou, ao menos, controla-o um pouco mais do que nos espaços públicos.

Os shopping centers estariam, portanto, não apenas articulados ao surgimento dos enclaves fortificados, discutidos por Teresa Caldeira (2000), ao abordar a questão da violência e do discurso sobre a mesma em São Paulo, como seriam uma das expressões desse modelo de segregação urbana. Destaca-se, portanto, que a busca por uma ideia de segurança em meio a um espaço urbano violento foi, justamente, uma das motivações para a construção dos shopping centers no Brasil. Essa ideia de segurança não englobava jovens, pobres, negros e/ou pardos que resolvessem se divertir em grupo. Esse segmento da população pode até frequentar tais locais para consumir, mas desde que de modo disciplinado e vigiado, sempre na condição de subalterno. No caso da ocupação barulhenta dos rolezinhos, responderam-lhes prontamente com medo, discriminação, repressão e o rótulo de vândalos/arruaceiros. Assim, de potenciais consumidores transformaram-se logo em ameaça.

 

4. Quando jovens pobres vão ao shopping center

A partir da repercussão do primeiro rolezinho, ocorrido dia 07 de dezembro de 2013, no Shopping Metrô Tatuapé, como já estudava o funk ostentação, resolvi acompanhar mais de perto esse fenômeno social. Passei a seguir os rolezinhos agendados e, então, no dia 22 de dezembro, último domingo antes das celebrações de natal, foi marcado o "Rolezinho no Shopping Interlagos". Quando cheguei a esse centro comercial no horário definido para o encontro, já pude perceber, logo na entrada, uma grande quantidade de policiais. Contabilizei, apenas do lado de fora, quatro viaturas da força tática da polícia militar, duas bases comunitárias móveis, e duas motos. Já dentro do shopping, no estacionamento, seis viaturas da polícia civil, sendo duas de grupos de operações especiais. Na passarela que ligava a rua à entrada principal, muitos agentes de segurança privada. Um deles filmava todo mundo que passava.

Antes de descrever o que foi esse evento, apresento uma breve caracterização do Shopping Interlagos. Localizado na zona sul de São Paulo, numa região periférica, que ainda que com certa vizinhança de perfil de classe média, também tem em suas proximidades muitos distritos habitados pelos mais pobres, dos quais vêm, aliás, uma parcela considerável dos frequentadores desse centro de compras. Por esse motivo, esse shopping center é muitas vezes estigmatizado, por seus vizinhos, por ser frequentado majoritariamente por pobres. Quem circula pelos seus corredores aos finais de semana percebe uma presença muito grande da população local. O centro de compras, que quase sempre está bastante cheio, nas proximidades de festas como natal ou dia das mães, aumenta ainda mais o seu público, tornando a circulação por seus corredores tarefa das mais difíceis. Entre esse público, a presença de muitos negros.

Na entrada principal, perguntei a um dos seguranças o porquê daquela grande quantidade de policiais e se havia acontecido alguma coisa. Ele disse que estava tudo normal, que a presença dos policiais era apenas devido às compras de final de ano, que eu ficasse tranquilo. Já se notava a presença de alguns adolescentes na porta, meninos e meninas que eram dispersos por seguranças que os mandavam circular. Vi uma agente de segurança particular do shopping center pedir para um grupo de meninas dispersarem-se. O mesmo era feito com os meninos que, apesar da abordagem intimidadora, insistiam em entrar no centro comercial. As lojas que ficavam próximas a essa entrada, principalmente as de telefonia móvel, já deixaram as portas semicerradas para que, caso julgassem necessário, pudessem fechar totalmente.

Um grupo de cerca de dez meninos entrou e um outro grupo de seguranças foi logo atrás. Os meninos, incomodados com a ação dos seguranças, gritaram: Eeeee. Bastou uma segunda sequência de gritos para que os lojistas fechassem as portas rapidamente e começasse uma correria desesperada. Afastei-me para o lado da porta de uma loja de roupas para não ser levado pela multidão. Um homem pedia para que as pessoas ficassem calmas, porque nada acontecera. O corredor, que até então estava lotado de pessoas circulando, esvaziouse rapidamente. E os meninos que gritaram seguiram em direção à praça de alimentação, acompanhados pela equipe de seguranças. Resolvi segui-los também.

Quando cheguei à praça de alimentação, já havia se iniciado outro tumulto, que começou, pelo que percebi, apenas devido ao medo da presença do grupo de jovens seguidos por outro grupo enorme de seguranças. Na praça de alimentação podia-se observar bandejas com restos de comida no chão, refrigerante derramado por todos os lados, um par de chinelos perdido e a maioria das lanchonetes e restaurantes com as portas fechadas. Repentinamente, apareceu um grupo de policiais da força tática armado com espingardas de balas de borracha e cassetetes. Os policiais começaram a abordar todos os meninos que viam com o seguinte perfil: pela preta ou parda, com cortes de cabelo ou penteados diferentes (ao estilo moicano, raspados ao lado ou descoloridos), com acessórios jovens como bonés, correntes ou camisas de gola, do tipo pólo10. Com isso, mais correrias e gritarias iniciaram-se na praça de alimentação do shopping. Logo se formou uma grande quantidade de jovens enfileirados e encostados numa parede com as mãos na cabeça. Um policial identificou mais um jovem com o visual já descrito anteriormente e o obrigou a juntar-se ao grupo que estava detido.

Muitos comerciantes lamentavam a correria e pediam calma. Um cozinheiro de um dos restaurantes disse que o pessoal era muito desesperado e por qualquer coisa já entrava em pânico. Contou ainda que recentemente começara uma correria ali mesmo naquela praça de alimentação quando uma bandeja havia caído e feito grande barulho. Os jovens, que estavam detidos pelos policiais num canto, logo já foram levados para uma área restrita do shopping center. Resolvi então circular mais e observei, naquele momento, as expressões de medo e desespero de algumas pessoas. Mulheres com crianças choravam e buscavam por maridos ou outros parentes que as acompanhavam. Outras pessoas saíam apressadas e diziam que iriam embora daquele lugar imediatamente. Uma mulher sentada, um pouco assustada, disse que os meninos causavam muito terror. Alguns já comentavam o "arrastão" que não havia ocorrido: "Eles já chegaram de uma vez e já começaram a roubar tudo", afirmou um homem.

Ao caminhar pelo centro de compras, via-se muitas lojas fechadas, mas abarrotadas de pessoas assustadas do lado de dentro. E comecei a perceber uma atitude diferente da equipe de seguranças e de um grupo de homens, que não consegui identificar se eram policiais civis ou seguranças particulares, pois não trajavam uniformes nem portavam identificações. Eles começaram a intimidar todos os que considerassem como suspeitos de fazer parte do evento, por possuir o visual já descrito acima, expulsando-os do centro de compras. Três homens enormes chegaram a um menino, que não deveria ter mais de 16 anos e começaram a amedrontá-lo para que se retirasse. Mais à frente, um grupo de jovens que estava com um senhor cadeirante, retrucava que não sairia dali. O cadeirante gritava: "esse local é público, nós não vamos sair daqui não". Um dos jovens chamou a atenção dos seguranças, que começaram a se aglomerar em torno deles, para a loucura que estavam fazendo com o pai dele. Disse que não poderiam impedi-los de frequentar o shopping apenas por causa de seu corte de cabelo (raspado do lado da cabeça) ou de sua roupa (camisa pólo, bermuda e boné). Na entrada, seguia-se a estratégia de parar os meninos e meninas que chegavam com o visual dos indesejados. Um policial civil, segurando um fuzil, abordou dois rapazes e começou a dar-lhes um sermão.

Aos poucos o ambiente foi se acalmando, as pessoas começaram a voltar a circular, algumas lojas reabriram as portas, ou pelo menos parte delas. Uma loja de eletrodomésticos, por exemplo, abriu um lado, mas manteve o outro fechado. Ainda era possível ver seguranças seguindo grupos de adolescentes. Pude observar numa loja de moda jovem que muitos meninos, com o mesmo perfil dos que acabaram de ser perseguidos, experimentavam e compravam roupas. Outros estavam parados num quiosque de capas protetoras para telefones. Na verdade, são esses mesmos jovens ali perseguidos naquele dia do evento marcado pela rede social que costumam frequentar aquele shopping center e fazer compras ou comer na praça de alimentação.

Eu não vi nenhum crime cometido por aqueles garotos e garotas, nada foi roubado ou destruido, mas vi sim uma série de crimes cometidos contra eles, contra a sua imagem, por preconceito e racismo. Houve, inclusive, a proibição do direito de ir e vir. No estacionamento, os detidos esperavam entre as viaturas da polícia civil, à exposição de quem passasse pela passarela que dava acesso ao shopping center. Alguns eram muito jovens e aparentavam ter entre 12 e 14 anos. O mesmo agente de segurança que filmava quem chegava, agora fotografava todos os detidos. As pessoas, ao passarem perto da cena, condenavam os meninos. Diziam que trabalhar eles não queriam. Uma senhora que já ia embora disse que viu o arrastão, que tinha se iniciado numa loja de roupas. Enfim, o objetivo de criminalizar os jovens havia sido cumprido e o arrastão, que não ocorreu, criado.

Do lado de fora, quatro jovens voltavam para casa, após terem sido expulsos por seguranças, mesmo, segundo eles, sem terem relação nenhuma com o evento marcado. "Estávamos no fliperama do shopping quando vimos um monte de gente correndo e gritando arrastão", contou um deles. Dois desses jovens eram do Rio de Janeiro, da Baixada Fluminense, e visitavam os outros dois primos em São Paulo. Comentaram que no Rio também havia uma forte perseguição às práticas culturais juvenis, principalmente aos adeptos da música funk e do skate. Um grupo de jovens, no mesmo estilo dos perseguidos, que acabava de chegar ao shopping, ao ver a forte presença policial, indagou: "O que é isso? Os caras estão achando que vieram para roubar um banco?". O aparato policial mobilizado para reprimir adolescentes que marcaram encontro num shopping center era mesmo desproporcional e dava uma ideia de como a proteção ao patrimônio é a principal preocupação da polícia brasileira, pois tal efetivo certamente jamais seria mobilizado para proteger a vida de um desses meninos pobres.

 

5. Fluxos de jovens, mercadorias e medo: a insurgência nos centros de compra

Esses jovens foram considerados ainda mais perigosos, nesse caso, também pelo fato de irem em grandes grupos e anunciarem-se nas redes sociais, como adeptos da música funk, estigmatizada como música marginal. Podese entender, portanto, esse evento de encontro massivo de jovens pobres das periferias da cidade de São Paulo nos centros de compra como o resultado da relação desses com as novas tecnologias da informação e da comunicação. Esses jovens sozinhos ou em grupos menores não trariam tantos problemas, pois no máximo seriam vigiados de perto pelos agentes de segurança. A juventude contemporânea, como afirma Martín-Barbero (2008), constitui-se, cada vez mais, pela mediação das tecnicidades comunicativas. Pode-se depreender dessa constatação que cada vez mais tais tecnicidades serão também invocadas como elemento de construção das subjetividades juvenis, mas também de encontro, mobilização e mesmo de reivindicação por cidadania e participação nas mais diferentes esferas sociais.

James Holston (2013), ao discutir o que chama de cidadania insurgente para descrever as mobilizações políticas de ocupação das periferias urbanas de São Paulo, demonstra como, historicamente, as formulações de cidadania elaboradas pelos mais pobres no Brasil se deram, simultaneamente, por meio das experiências de tornar-se proprietário, de participar de movimentos sociais por melhorias dos bairros e de ingressar no mercado consumidor. Primeiro, ocupou-se os bairros, mesmo sem nenhuma estrutura mínima. Depois, vieram as reivindicações pela legalização dos terrenos ocupados. E, enfim, as lutas pela chegada da infraestrutura urbana. Pode-se compreender, portanto, os rolezinhos em diálogo direto com esse ponto de vista de uma cidadania insurgente, se entendermos tal termo como associações de cidadãos que reivindicam um espaço para si e, assim, se contrapõem ao grande discurso hegemônico ou, se não se dissociam do discurso hegemônico, ao menos, provocam ruídos nele. Trata-se de uma reivindicação por cidadania, participação política e direitos que historicamente se realizou nas costuras entre o legal e o ilegal, a começar pela própria ocupação dos bairros na periferia da cidade de São Paulo, realizada como forma de habitar e sobreviver no mundo urbano, ainda que em espaços não legalizados. Essa cidadania não necessariamente se apresenta como resistência, pois pode, como em muitos casos, associar-se ao hegemônico, mas, ainda assim produz dissonâncias nas percepções do que seria atuar politicamente. As cidadanias insurgentes seriam, desse modo, contraditórias e não poderiam se encaixar facilmente em rótulos.

O que seriam o funk ostentação e os rolezinhos se não essas insurgências dos jovens mais pobres por maior participação na vida social pelo consumo? Essas ações culturais não necessariamente se contrapõem ao hegemônico, na medida em que tentam se afirmar pelo consumo, mas provocam certo desconforto, um ruído extremamente irritante para aqueles que se pautam por um discurso e uma prática de segregar os que consideram como seus "outros". Holston, aliás, aponta justamente o consumo como um campo importante de expressão e afirmação política para os mais pobres das periferias urbanas do Brasil. Em pleno mês das compras de natal, os rolezinhos ousaram atrapalhar o fluxo das mercadorias e do dinheiro com o seu próprio fluxo, o de jovens pobres e fãs de funk. Curiosamente, uma das músicas de grande sucesso do funk, nessa vertente ostentação, tem como título e refrão um chamamento para a aglomeração e/ou para o rolezinho: "é o fluxo, vem"11. Os encontros ou festas desses jovens para ouvir e dançar funk, seja na rua ou em casas noturnas, têm sido também denominados como fluxos. Por esse termo os jovens querem expressar a possibilidade de uma grande confluência de pessoas para um mesmo ponto e com o mesmo intuito: divertir-se, paquerar e, como os próprios relatam, beijar. Quanto maior o fluxo de jovens, maior a possibilidade de que esses objetivos sejam plenamente correspondidos.

A noção de fluxo, como apontou Ulf Hannerz (1997), tem, nas últimas décadas, adquirido importância cada vez maior no mundo, tornando-se tema transdisciplinar, devido aos inúmeros fluxos da contemporaneidade, de capital, mercadorias, informações etc. Consequentemente, afirma Hannerz, a antropologia tem aumentado seu interessado pela ideia de fluxo. Num contexto de globalização e de estabelecimento de territórios móveis e reticulares, o fluxo, conforme esse autor, remeteria a "uma macroantropologia, um ponto de vista bastante abrangente da coerência (relativa) e da dinâmica de entidades sociais e territoriais maiores do que aquelas convencionalmente abordadas pela disciplina" (Hannerz, 1997, p. 11). Entretanto, como podemos ver, na controvérsia dos rolezinhos, a noção de fluxo pode ter formas diversificadas, além de múltiplos e conflitantes significados. Nesse contexto específico, o fluxo das vendas e compras de natal chocou-se de modo bastante intenso com o fluxo da diversão de jovens durante suas férias escolares. "As pessoas têm o direito de passear e fazer suas compras no shopping em paz" ou "os lojistas estão lá para trabalhar e movimentos como o dos rolezinhos trazem prejuízo e, consequentemente, desemprego" foram apenas alguns dos comentários que puderam ser lidos na internet e na grande mídia, posicionando-se contrariamente ao encontro desses jovens nos centros comerciais.

O confronto entre esses dois fluxos, que se expressou a partir da repressão policial aos jovens, a base de cassetetes e bombas, acabou por gerar outro fluxo: o do medo. Em 08 de dezembro de 2013, um jornal popular da cidade, o Agora São Paulo, estampava em suas manchetes: "Adolescentes fazem arrastão no Shopping Metrô Itaquera"12. As televisões exibiam imagens de correrias de jovens dentro do referido shopping center, mostravam também a polícia dispersando uma multidão do lado de fora, no estacionamento. Ocultando, porém, que tal confusão se inicou somente com a ação violenta da polícia para expulsar os jovens. Houve comentários raivosos de jornalistas que classificaram os que participaram de tal evento como arruaceiros, vândalos e delinquentes. Medo e ódio misturavam-se em muitas das opiniões emitidas a respeito dos rolezinhos nas redes sociais. Bandidos, vagabundos e prostitutas foram algumas das denominações dadas aos meninos e meninas. Nos comentários sobre os rolezinhos, alguns culpavam o atual governo federal por seu programa de distribuição de renda aos mais pobres, outros escreviam frases como: "Voltem para a áfrica". Preconceitos os mais diversos foram expressos pelo fato de tais jovens serem pobres, moradores de bairros periféricos e negros e/ou pardos.

Uma forma de pensar como a noção de medo ajuda a modelar realidades está na importante discussão que Teresa Caldeira (2000) realiza sobre a construção dos enclaves fortificadas, que despontam, justamente, como forma de defesa contra a violência urbana em São Paulo. Nesse estudo, a autora aborda o que denominou como a fala do crime. Os discursos cotidianos sobre o que seria a violência urbana e a criminalidade são pautados, em sua maioria, por uma grande narrativa construída pelos principais segmentos da grande mídia. Essa fala do crime, conforme Caldeira, reordenaria simbolicamente o mundo a partir de preconceitos e da construção de uma percepção naturalizada de determinados grupos como perigosos. Criam-se assim poderosos dispositivos de criminalização de certos segmentos sociais, que podem, inclusive, serem internalizados por aqueles que seriam apontados, majoritariamente, como pertencentes a tal grupo social indesejado e temido, pois, como explica Ruth Cardoso (2011), o medo do bandido é, em grande medida, o medo do pobre. O rótulo de bandido, por sua vez, é o que, em muitos casos, justificaria a violência policial e faria com que as pessoas entendessem como natural o grande número de homicídios, principalmente de jovens, que há no Brasil. O último mapa da violência no país (Waiselfisz, 2012) traz dados estarrecedores que podem ser entendidos também como consequências de tal perspectiva, pois, entre os anos de 2002 e 2010, enquanto o número de homicídios de jovens brancos caiu em 25,5%, aumentou o de jovens negros e pardos em 29,8%. As narrativas do medo produziriam, dessa forma, realidades de terror e morte que se direcionaram de modo mais violento e contundente contra um segmento específico da população brasileira.

 

6. Considerações finais

Movimentos de encontros de jovens em shopping centers não são nenhuma novidade, nem exclusividade das grandes cidades brasileiras. Eventos semelhantes ocorreram na cidade de Kansas City, em 2011, nos Estados Unidos, por exemplo. Em pesquisa coletiva sobre esse fenômeno expõe-se que movimentos como o dos flash mobs em shopping centers também não são inéditos nesse outro país, apesar do espanto causado pelos grandes encontros marcados por meios das tecnologias da informação e da comunicação (Houston, Seo, Kennedy e Knight, Hawthrone & Trask, 2013). Conforme José Machado Pais (2003), em obra de referência sobre as culturas juvenis em Portugal, haveria hábitos comuns entre os grupos juvenis, como o de "matar o tempo", que compreenderia sair, divertir-se ou, como no caso em questão, fazer um rolê. Encontrar-se para não fazer nada seria uma das atividades mais importantes das culturas juvenis, afirma o autor. E esse fazer nada envolve, fundamentalmente, estar com os amigos e conversar. "Os assuntos das conversas não têm de ser reais, podem ser histórias fictícias, imaginárias, irreais - tanto mais interessantes quanto mais divertidas" (Pais, 2003, p. 131). O sair para se divertir, segundo Machado Pais, levaria a uma quebra no cotidiano por meio das sociabilidades grupais e de uma organização coletiva do tempo, na qual se procura o lado festivo da vida.

Paul Corrigan (2003), na clássica coletânea dos estudos culturais de Birmingham, já mostrava, nos anos 1970, os conflitos do choque de opiniões entre a importância do encontrar-se para fazer nada dos jovens da classe operária e a visão dos adultos de considerar tal atividade como improdutiva, sem propósito ou como pura perda de tempo. De certo modo, no caso dos rolezinhos, a pauta dos comentários na internet a condenar os jovens, dizendo que eles deveriam ir trabalhar ou fazer seus rolezinhos numa biblioteca, evidenciava, ao mesmo tempo, uma visão de que os jovens não teriam direito a se encontrar e desfrutar do ócio e, por outro lado, a ideia de que o ócio de jovens pobres seria perigoso, pois, ao ficarem sem fazer nada, poderiam pensar em coisas ruins, como realizar crimes.

No Brasil, mesmo em centros comerciais localizados em áreas mais nobres, sempre foi comum ocorrerem encontros de jovens, brancos, de classe média e vizinhos de tais estabelecimentos. Entretanto, nesses casos, apesar da bagunça e barulho dos jovens, não houve a necessidade de solicitar a presença da polícia. Os rolezinhos nos shopping centers do Brasil nesse verão de 2013/2014 foram o resultado da conjunção de diferentes fatores: do desejo por sucesso de alguns cantores de funk que marcaram os eventos, da vontade encontrar pessoas que compartilhassem de um mesmo gosto musical para conversar, paquerar, enfim, se divertir e também da forte relação que estes jovens têm estabelecido com o mundo do consumo, valorizando roupas e acessórios de determinadas marcas, tudo isso potencializado pela capacidade de mobilização das novas tecnologias da informação e da comunicação.

Nesse sentido, ao contrário da afirmação de Teresa Caldeira (2011, 2012), em textos sobre expressões juvenis em São Paulo, como hip hop, grafite e skate, de que determinadas práticas culturais juvenis ao mesmo tempo em que denunciariam a segregação, também recriariam os termos de sua própria segregação, os jovens participantes dos rolezinhos têm demonstrado grande anseio por integrar locais de prestígio na cidade, como os shopping centers, por exemplo. No entanto, as múltiplas segregações que a cidade estabelece, como a própria autora tão bem analisa, apresentaram-se muito mais resistentes do que o desejo de jovens pobres em integrar-se nela. O que demonstra que, mesmo em outras manifestações juvenis com maior conteúdo de resistência política, como é o caso do hip hop, não é o discurso de aversão à participação em espaços de prestígio social e político da sociedade e sim essas centralidades excludentes que conformariam os fatores de segregação dos jovens. No caso do hip hop em São Paulo, os resultados do discurso de aversão ao sistema podem ser lidos inclusive na chave contrária, pois muitos jovens, a partir de tal posicionamento, conseguiram ser incluídos em projetos sociais e programas públicos de incentivo a produções artístico-culturais.

No final de janeiro de 2014, o discurso da grande mídia sobre os rolezinhos já havia mudado, principalmente como forma de contraposição aos encontros de protesto que surgiram em repúdio ao que foi denominado como apartheid social. As manchetes dos principais jornais e revistas não relatavam mais arrastões, roubos, saques ou arruaças, mas tentavam mostrar que se tratava, na verdade, de um movimento de jovens que só queriam se divertir e consumir nos shopping centers. Alguns dos rapazes que organizaram e/ou participaram dos rolezinhos começaram a ser, enfim, ouvidos. Muitos deles deram inúmeras entrevistas e participaram de uma série de programas de televisão. Desde então, outros rolezinhos foram organizados em shoppings e, principalmente, em parques. Na maioria dos casos, de forma pacífica e tranquila. Não houve, entretanto, nenhuma reparação sobre as abordagens iniciais que criminalizaram tais eventos, persistindo, ainda entre uma parcela considerável da população, a ideia de que tais eventos congregavam delinquentes que tinham como único objetivo causar tumultos e realizar saques generalizados nos shoppings.

 


 

Notas

* Este artigo de investigação científica e tecnológica é derivado de um projeto maior intitulado "Fluxo, imagem e imaginação: a formação do funk ostentação em São Paulo e Santos", Projeto aprovado pelo CNPq, processo número 447869. No artigo, apresenta-se parte dos resultados da pesquisa realizada pelo autor no âmbito da Universidade Federal de São Paulo, entre Junho de 2012 e Fevereiro de 2014. área: Sociologia. Sub-área: Etnografia.

1 O funk carioca é um gênero musical criado nas favelas do Rio de Janeiro nos anos 1980 a partir de influências da música negra estadunidense. Sobre a formação do Funk Carioca, ver o trabalho de Hermano Vianna (1988), O mundo funk carioca.

2 Entendida aqui como rádio e televisão.

3 MC Danado, Top do Momento, <https://www.youtube.com/watch?v=PlSt7KScE60 >(acesso em 31/03/2014).

4 MC Rodolfinho, Como é bom ser vida loka, <https://www.youtube.com/watch?v=p0oFWgwUqHU >(acesso em 31/03/2014).

5 Alusão às figuras impressas na parte posterior das notas de 100 e 50 Reais.

6 MC Boy do Charmes, Onde eu chego eu paro tudo, <https://www.youtube.com/watch?v=M095niM05iw> (acesso em 31/03/2014).

7 Piranha seria uma maneira pejorativa de rotular as mulheres como fáceis ou mesmo como prostituas por saírem com vários homens.

8 MC Byana, Luxúria, <https://www.youtube.com/watch?v=xLKaRaelzpg> (acesso em 31/03/2014).

9 Em importante trabalho de levantamento bibliográfico sobre práticas culturais juvenis, Mary Bucholtz (2002) demonstra como, em diferentes momentos, os estudos sobre juventude apreenderam o pânico moral criado pela mídia sobre as práticas juvenis. Dentre essas abordagens, destacam-se os estudos culturais da Escola de Birmingham.

10 A camisa pólo é uma vestimenta muito comum entre jovens fãs de funk em São Paulo. Algumas letras de música chegam inclusive a exaltar marcas famosas que produzem tais modelos de camisa, como a Lacoste.

11 Música cantada por MC Nego Blue, cujo videoclipe pode ser assistido aqui:<https://www.youtube.com/watch?v=fzGf061Envk>(acesso em 10/04/2014).

12<http://www.agora.uol.com.br/saopaulo/2013/12/1382586-adolescentes-fazem-arrastao-no-shopping-metro-itaquera.shtml >(acesso em 31/03/2014).

 


 

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    Referencia para citar este artículo: Barbosa-Pereira, A. (2016). Os "rolezinhos" nos centros comerciais de São Paulo: juventude, medo e preconceito. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, 14 (1), pp. 545-557.

 

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