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Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud

versão impressa ISSN 1692-715X

Rev.latinoam.cienc.soc.niñez juv vol.14 no.2 Manizales jul./dez. 2016

https://doi.org/10.11600/1692715x.14220041115 

Segunda Sección: Estudios e Investigaciones

 

DOI: http://dx.doi.org/10.11600/1692715x.14220041115

 

Violência sexual, infância e povos indígenas: Ressignificação intercultural das políticas de proteção no contexto das indígenas crianças *

 

Sexual violence, childhood and indigenous people: Intercultural redefinition of protection policies in the context of indigenous children

 

Violencia sexual, niñez y pueblos indígenas: Resignificación intercultural de las políticas de protección en el contexto de los niños indígenas

 

 

Assis da Costa Oliveira

Professor da Universidade Federal do Pará, Brasil. Doutorando em Direito pela Universidade de Brasília, Brasil. Professor da Universidade Federal do Pará, Campus de Altamira, na Faculdade de Etnodiversidade. Correio eletrônico: assisdco@gmail.com

 

 

Artículo recibido en noviembre 4 de 2015; artículo aceptado en marzo 30 de 2016 (Eds.)

 


 

Resumo (descritivo):

O artigo analisa a construção de política diferenciada de intervenção sobre violência sexual contra indígenas crianças com base nas experiências institucionais da rede de proteção do município de Altamira, estado do Pará, no Brasil. Mediante uso de pesquisa documental e bibliográfica, além da vivência direta como membro desta rede de proteção, problematiza-se a forma como os direitos indígenas e a compreensão intercultural da infância e da violência sexual repercutiram numa mudança de concepção das políticas de enfrentamento no município, possibilitando a condução de processos de pesquisa sobre a realidade sociocultural dos povos indígenas com relação à temática, também à formação continuada dos profissionais que atuam no atendimento direto das vítimas e na elaboração de fluxo de atendimento intercultural que contemple a autodeterminação dos povos indígenas na dinâmica de atuação da rede de proteção.

Palavras-chaves: Violência sexual, direitos da criança, povos indígenas (Tesauro de Ciências Sociais e Direito da Unesco).


 

Abstract (descriptive):

The article analyzes the construction of differentiated policy for intervention in the area of sexual violence against indigenous children, based in the institutional experiences of a protection network in the municipality of Altamira, Pará State, Brazil. Through the use of documentary and bibliographical research, as well as direct experience as a member of this protection network, we discuss how indigenous rights and intercultural understanding of children and sexual violence have resulted in a change in design of protection policies in the city. This has led to research processes on the socio-cultural reality of indigenous peoples and sexual violence, and the continuing education of professionals working for the direct care of victims, developing an intercultural services that includes the self-determination of indigenous peoples through the protection network.

Key words: Sexual violence, rights of the child, indigenous peoples, (Social Sciences and Law Unesco Thesaurus).


 

Resumen (descriptivo):

El artículo analiza la construcción de la política diferenciada de intervención sobre la violencia sexual contra los niños y niñas indígenas, con base en las experiencias institucionales de la red de protección de la ciudad de Altamira, estado de Pará, Brasil. A través del uso de la investigación documental y bibliográfica, así como la experiencia directa como miembro de esta red de protección, se discute cómo los derechos indígenas y el entendimiento intercultural de la niñez y de la violencia sexual han promovido un cambio en el diseño de las políticas de protección en la ciudad, permitiendo la realización de procesos de investigación sobre la realidad socio-cultural de los pueblos indígenas en relación al tema; también la formación continuada de los profesionales que trabajan en la atención directa de las víctimas y el desarrollo de flujo de atendimiento intercultural que incluya la autodeterminación de los pueblos indígenas en la dinámica de actuación de la red de protección.

Palabras-claves: Violencia sexual, derechos del niño, indios americanos (Tesauros de Ciencias Sociales y de Derecho de la Unesco)


 

1. Introdução

 

Dois campos de mobilização social e conquistas de direitos avançaram no Brasil de maneira (quase) incomunicável nas últimas décadas: a pauta das crianças 1 e a dos povos indígenas. Mesmo alicerçadas num contexto histórico similar de mudança sóciojuridica nacional, vinculado às intervenções realizadas durante a Assembleia Constituinte de 1987, e posterior normatização de direitos constitucionais que fundaram novas filosofias de reconhecimento de tais grupos como sujeitos de direitos -a Doutrina da Proteção Integral, às crianças e aos adolescentes 2; e, a cidadania dupla ou etnocidadania aos povos indígenas 3- é notório o fato de que as semelhanças e comunicabilidades terminam por aí, restando um vazio teórico-conceitual e procedimental quanto às formas de relacionar os direitos das crianças com os direitos indígenas para compreender como as indígenas crianças 4 precisam ter salvaguardados os seus direitos humanos.

Tais carências geram déficits e/ou prejuízos de qualificação profissional e de adequação das ações socioestatais aos pressupostos normativos e etnográficos que embasam a realidade sociocultural das indígenas crianças, causando, em última instância, a homogeneização do tratamento da diversidade cultural ante o uso de modelos ocidentais de atendimento e, de maneira mais profunda, dos marcadores da infância universal internalizados na concepção jurídica e operacional dos direitos das crianças.No cenário demográfico atual, tais questões são ainda mais prementes, haja vista a constatação do Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) de que em 80,5% dos municípios brasileiros reside pelo menos um indígena autodeclarado (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2012), sendo que 46% do quantitativo populacional indígena é constituído por crianças (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2015), ou seja, dos 896 mil indígenas, nada menos que 414 mil crianças.

Logo, as situações de atendimento pela rede de proteção possuem uma tendência de crescimento relacionada ao aumento demográfico dos povos indígenas e ao esgarçamento territorial de suas presenças, cada vez mais voltada para o espaço urbano, para além da existência nas terras indígenas e espaços rurais. Na temática da violência sexual, a problemática torna-se ainda mais tensa de ser abordada, pois se trata de uma forma de violência ainda pouco conhecida em sua repercussão e dinamicidade no contexto indígena, cujas formas de intervenção institucional costumam desconsiderar os direitos e as realidades indígenas ante o intento da rapidez do atendimento e da pressão midiática.

No município de Altamira, sudoeste do Pará, a constatação da reprodução social desses dilemas despertou o interesse de instituições públicas e entidades sociais, organizadas no âmbito da Comissão Municipal de Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes (doravante Comissão Municipal) 5, especialmente por ser um município com uma massiva presença indígena pela existência de 10 etnias e 12 terras indígenas que abarcam mais de 50% da área territorial altamirense (Miléo, 2007), além da existência de centenas de famílias indígenas na cidade (Magalhães, 2008), num total calculado, em 2010, em 3.711 indígenas, representando a segunda maior população indígena no estado do Pará, somente atrás do município de Jacareacanga, com 5.843 indígenas (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2015).

O presente artigo objetiva empreender uma análise reflexiva sobre os caminhos políticoinstitucionais realizados pela Comissão Municipal, com base nos encaminhamentos desenvolvimentos na Subcomissão de Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes no Contexto dos Povos Indígenas e Comunidades Ribeirinhas (doravante Subcomissão), de modo a: (1) apresentar levantamento de dados sobre a situação da violência sexual contra crianças no contexto dos povos indígenas na região de Altamira; (2) refletir sobre a formação continuada desenvolvida sobre a temática com os profissionais da rede de proteção; (3) explicitar a elaboração de fluxo de atendimento aos casos de violência sexual que abarcasse as demandas e os direitos coletivos dos povos indígenas.

 

2. Abordagens investigativas da violência sexual na diversidade cultural

A preocupação com a situação das indígenas crianças no município de Altamira chegou ao conhecimento da Comissão Municipal na primeira reunião do ano de 2013, ocorrida no dia 24 de janeiro, quando a representante da Fundação Nacional do Índio (Funai) solicitou … ajuda para ver o que pode ser feito [na situação da violência sexual] tendo em vista que aumentou muito o fluxo de indígenas na cidade e com isso o aumento do consumo de bebidas tanto na cidade como nas aldeias, tendo em vista que a bebida sai daqui da cidade [de Altamira] (Comissão Municipal de Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes de Altamira/PA, 2013a, pp. 1-2). O aumento do deslocamento de indígenas para a cidade e do consumo de bebidas alcoólicas fazem parte de um contexto mais amplo ligado à implantação de política compensatória denominada Plano Emergencial 6 no âmbito das condicionantes indígenas do licenciamento ambiental da Usina Hidrelétrica de Belo Monte (UHE Belo Monte), o que tem provocando mudanças substanciais nos modos de vida dos povos indígenas da região do Xingu, especialmente no que se refere ao regime alimentar, fluxo aldeia-cidade e conflitos internos.

As rodadas de debates na Subcomissão possibilitaram o seguinte mapeamento das situações, com base na percepção dos profissionais que atuavam junto aos povos indígenas:

    …a existência de 12 terras indígenas divididas por rota (Iriri, Xingu e Bacajá), informa que tem o [Juruna do] Km 17, [Juruna do] Paquiçamba e Arara da VGX [Volta Grande do Xingu] que são diretamente impactados pela UHE Belo Monte, sendo que no Km 17 já houve denúncias de abuso sexual, no Paquiçamba [existe] problema sério com bebida alcóolica e no Arara da VGX tem relato informal de abuso sexual contra uma adolescente indígena… quanto aos Parakanã há muitos problemas com bebidas e de violência contra a mulher, há relatos de estupros coletivos durante as festas tradicionais e relatos de barcos de não-indígenas que passam e trocam alguns produtos, como shampoo, por sexo ou ouro… [C]om os Arara da Cachoeira Seca há uma situação crítica de bebidas alcóolicas e de completa invasão das terras indígenas, violência sexual, prostituição, violência contra a mulher, sobretudo aquelas dos necessário ter um estudo sobre este grupo para saber os motivos que levam a maior incidência de violência dentro deste grupo, há também os Xipaia e os Kuruaia, nestes há bebidas, drogas, violência doméstica, há relato de [nome de liderança indígena omitido] de que os trabalhadores contratados pela Nesa para fazerem obras na aldeia estavam assediando as adolescentes, e também no Kuruaia há garimpo que faz com que haja alta incidência de homens de fora da aldeia (Comissão Municipal de Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes de Altamira/PA, 2013b, pp. 2-3. Grifos do documento).

O debate ao longo das reuniões da Subcomissão possibilitou a sistematização de informações sobre a realidade da violência sexual no contexto dos povos indígenas obtidas da experiência dos profissionais que atuam nas aldeias, de modo a organizar as prioridades de intervenção e de aprofundamento no conhecimento da questão.

De maneira complementar, houve a internalização da temática indígena no plano de investigação da pesquisa desenvolvida pela Universidade Federal do Pará (UFPA) sobre a exploração sexual de crianças e adolescentes no município de Altamira 7, entre maio e outubro de 2013, cujo relatório final buscou subsídios nas informações produzidas pela Subcomissão e também ampliou a percepção da dinâmica de participação indígena na violência sexual, com a identificação da inserção de homens indígenas como clientes dos serviços sexuais na cidade de Altamira, engendrando a

    … configuração de exploração sexual no contexto da prostituição de adolescentes com indivíduos indígenas, articulada diretamente com as famílias, com a presença de um intermediário ou aliciador, assim como a participação de taxistas que fazem o transporte das pessoas exploradas sexualmente ou dos indígenas para os locais de consumação dos programas sexuais (Oliveira & Pinho, 2014, p. 54).

Segundo Oliveira e Pinho (2014), tal situação se configurou historicamente na medida em que se estabeleceram diferentes dinâmicas de contato entre indígenas e não indígenas na região do Xingu, e particularmente em Altamira, porém foi intensificada

    … depois do início do Plano Emergencial [pois] em muitos casos, as lideranças e membros das aldeias convertiam ou vendiam parte dos produtos adquiridos com recurso do Plano Emergencial, sobretudo gasolina, marmita e voadeiras, para obtenção de dinheiro em espécie… e, com isso, houve um aumento do consumo de bebidas alcoólicas e… da procura por serviços sexuais, os quais se mantiveram mesmo depois do término da política compensatória (Oliveira & Pinho, 2014, p. 53).

O diagnóstico de Oliveira e Pinho (2014) também apresenta informações mais aprofundadas sobre a dinâmica da exploração sexual nas aldeias indígenas, com base em fonte documental da Funai, de denúncia de lideranças do povo Arara da aldeia Laranjal (Terra Indígena Arara) contra trabalhadores não indígenas que atuavam em seu território implantando obras de infraestrutura do Plano Básico Ambiental -Componente Indígena (PBA-CI), outra política compensatória da UHE Belo Monte, e estariam se relacionando sexualmente com as adolescentes e mulheres arara 8.

Nas informações produzidas para melhor percepção dos cenários de violência sexual contra crianças no contexto dos povos indígenas duas questões tornaram-se evidentes. A primeira, de que a divisão conceitual da violência sexual -entre abuso sexual e exploração sexual- deve ser utilizada com cuidado para a compreensão da realidade dos povos indígenas do médio Xingu.

De maneira predominante, apresenta-se a ocorrência de situações classificadas por “abuso sexual intrafamiliar” em algumas aldeias indígenas, envolvendo indígenas crianças ou jovens, mas sempre como algo interno da comunidade, e que por diferentes motivações se tornam públicas ou conseguem ser comunicadas aos órgãos indigenistas.

Por outro lado, a faceta da “exploração sexual” estaria relacionada às relações interculturais entre indígenas e não indígenas, com graus de inserção e/ou vulnerabilidades sexuais estabelecidos de acordo com o tempo de contato dos povos com a sociedade não indígena 9. Desse modo, assevera-se a afirmação de Cohn:

    "[o]u seja: não há prostituição nas aldeias indígenas, do modo como é entendido, praticado e regulado para os não-indígenas. E isso torna as meninas indígenas -isso sem falar dos meninos! - Assim como as mulheres indígenas mais vulneráveis à exploração sexual por não-indígenas. Por exemplo, os Xikrin [do Bacajá] não conhecem o problema da prostituição entre eles. Isso coloca as meninas em situação de maior vulnerabilidade quando em contato com não-indígenas, pela diferença de percepção sobre a relação sexual, pois quando se envolvem em situações de exploração sexual, os significados que adquirem para elas são outros” (2014, p. 130).

Configura-se uma semântica local da exploração sexual que posiciona as diferenças culturais como fator de agudização das vulnerabilidades, assim como de diversidade de expressões nativas para simbolizar e tratar o que se entende ocidentalmente por violação de direitos no contexto das relações sexuais.

A segunda questão é a consideração incidental às relações de gênero e aos impactos das políticas de desenvolvimento como elementos fundamentais para a compreensão das nuances da violência sexual entre povos indígenas do médio Xingu. As relações de gênero captadas no diagnóstico e debates empreendidos representam uma pequena parcela de situações cada vez mais visibilizadas, por organizações de mulheres indígenas, de violências de gênero praticadas no contexto das terras indígenas ou fora delas por homens do mesmo grupo étnico ou não indígenas (Castilho, 2008, Freitas, 2008), que assume maior intensidade de agressão cultural quando envolve relações sexuais com sujeitos não indígenas (os brancos), cujas consequências para as dinâmicas de parentesco tende a afetar de maneira mais aguda as mulheres indígenas (Pissolato, 2012) numa comparação com os homens indígenas.

Quanto aos impactos das políticas de desenvolvimento, caberia dizer que as evidencias de violência sexual entre povos indígenas tendem a se agudizar na medida em que mudanças demográficas e socioambientais produzidas nos territórios, pela lógica das grandes obras, promovem a precarização da seguridade territorial e das condições de vida (Oliveira, 2013), além de novos conflitos e situações de risco perpetradas pelas dinâmicas de implantação das políticas compensatórias (Acevedo-Marin, 2011) das grandes obras, em especial para as indígenas crianças. Por isso, disputar os modelos de desenvolvimento é também assegurar preventivamente a incorporação dos mecanismos de proteção sexual às indígenas crianças.

 

3. Formação continuada sobre atendimento intercultural às indígenas crianças

A adoção da proposta de construção de espaços de formação continuada para os profissionais da rede de proteção da criança parte, necessariamente, de uma constatação negativa: a de que a graduação -e, por vezes, pós-graduação- universitária que obtiveram não lhes possibilitou a preparação necessária para lidar com o tema da diversidade cultural no atendimento realizado nos vários serviços em que se inserem na rede de proteção.

Tal constatação implica num olhar crítico para a qualidade dos currículos de formações universitárias que precisam lidar cotidianamente com as demandas socioculturais das indígenas crianças, como Serviço Social, Psicologia, Pedagogia, Direito e Medicina. Em curto prazo, enquanto não se modifica a estrutura curricular universitária, pode-se recorrer à estratégia de formação continuada que perpasse (ou não) pelo lócus universitário, mas que tenha, como elemento comum, a reunião de profissionais da rede de proteção para o desenvolvimento de processos de ensinoaprendizagem sobre a temática das indígenas crianças e de como desenvolver uma política de atendimento embasada nos fundamentos da interculturalidade e dos direitos indígenas.

Assim, é que a primazia foi tomada pela Coordenação de Estudos sobre Infância e Juventude do Tribunal de Justiça do Estado do Pará (Ceij/Tjepa), a qual, em agosto de 2014, propôs a organização de curso a ser ministrado por mim, em dezembro do mesmo ano, na cidade de Altamira/PA, cujo título fora definido como “Aplicabilidade Intercultural dos Direitos das Crianças Indígenas”.

Entre os dias 3 e 5 de dezembro de 2014, cerca de 40 profissionais, dentre os quais juízes, promotores de justiça, equipe multidisciplinar da Vara da Infância e da Juventude, conselheiros tutelares e rede socioassistencial, estiveram presentes no curso, cujo conteúdo programático consta no quadro (Quadro 1) abaixo.

 

 

Com isso, centrou-se no exercício de problematização da condição diferenciada do “ser criança” e de tratamento dos “direitos das crianças” desde a perspectiva indígena, canalizando o esforço de junção (ou fusão) das três dimensões normativas que ganham corpo no tratamento das indígenas crianças: os direitos das crianças, os direitos indígenas e a integralidade cultural dos povos indígenas -e, dentro desta última, dos sistemas jurídicos nativos e das formas étnico-culturais de simbolização da infância e de seus direitos.

Adentrou-se, assim, num interativo processo de produção de inovações e de releituras das práticas institucionais -pensadas na atuação em rede, assim como dentro de alguns órgãos estratégicos, especialmente os do Poder Judiciário e do Conselho Tutelarembasada no que já existe de garantias jurídicas aos povos indígenas e às indígenas crianças no campo dos tratados internacionais de direitos humanos. Além disso, trabalhouse a análise positiva do potencial interventivo das instancias organizacionais nativas de cada povo indígena para tornar-se parte da rede de proteção, reconhecendo, nelas, a condição de “teia de atenção primária” (Scandola, Frihling, Espricido & Dacome, 2014) para delegação de certas competências de atendimento às crianças, inclusive em situação de violência sexual, embasado no princípio da autodeterminação dos povos indígenas de lidarem com suas crianças e com os problemas sociais internos (Harris- Short, 2012), além de atuação no arranjo das formas de interação com a rede de proteção externa aos grupos.

Não que isso seja discutido sem resistência, pois não o é. Durante a formação, ao menos duas dificuldades/resistências são nodais para a produção de debates -por vezes acalorados- sobre o que seriam e como se utilizariam os direitos das indígenas crianças: (1) a reconversão da percepção do outro, representando as “redefinições pessoais” (ou questionamentos subjetivos) que os agentes da rede de proteção, então participantes do curso de formação, precisaram fazer daquilo que aprenderam ao longo da vida sobre o que são os povos indígenas e, por consequência, os juízos de valores discriminatórios ou estereotipados que produziam sobre a infância indígena e seus coletivos étnicos, em contraponto, agora, aos juízos de valores que a concepção da cidadania diferenciada sinaliza, no sentido de propor uma transformação subjetiva para melhor qualificação das práticas profissionais; (2) a desconfiança com o potencial interventivo dos povos indígenas nos assuntos que envolvam direitos das crianças, seguramente motivada pela emergência da primeira resistência/dificuldade, mas também ancorada na pouca informação obtida sobre tais assuntos ao longo da formação universitária para os campos profissionais de maior presença na rede de proteção (Ibáñez- Salgado, 2015, Oliveira, 2014a) e na existência de poucos suportes normativos e parâmetros político-institucionais no campo dos direitos das crianças para fomentar e, com isso, orientar tal apropriação, além do tratamento jurídico majoritário dado aos casos que envolvem violência contra indígenas crianças ser feito na linha da confrontação ou contradição de direitos (Bertoni & Battista, 2013) -direitos indígenas vs. direitos das crianças ou cultura vs. Vida- o que reforça a desconfiança dos profissionais em se apropriar das ferramentas normativas e do potencial interventivo dos povos indígenas.

Por isso, desde um campo de afirmação da aplicabilidade intercultural dos direitos das crianças no contexto indígena é preciso reforçar a preeminência da escala local -ou dos “saberes locais”, numa perspectiva geertziana 10- e de acordar os significados conceituais do termo “cultura” para conectar os direitos individuais com os direitos coletivos enquanto medidas complementares, e não conflitantes (Moreira, 2008).

Com isso, passa-se a discutir o Direito para além dos aspectos das normas, dos procedimentos e das técnicas jurídicas que regulam o comportamento humano, mas como uma das formulações culturais da vida humana e, como tal, um artesanato local:

    "[o] direito é saber local… não só com respeito ao lugar, à época, à categoria e à variedade de seus temas, mas também com relação a sua nota característica -caracterizações vernáculas do que acontece ligadas a suposições vernáculas sobre o que é possível" (Geertz, 1998, pp. 324-325).

A compreensão do Direito como artesanato cultural em Geertz (1998) auxilia no entendimento do pluralismo cultural dos valores morais que embasam a formulação nativa do Direito e de como isto possui um efeito definidor da vida social, ao invés de meramente refleti-la (Oliveira, 2012).

Logo, se há sentidos particulares de Direito que emanam das produções culturais, há, também, significações específicas do que é a de como ela deve ser exercida, daí que a conceituação de “sensibilidades jurídicas” da antropologia geertziana, ao estabelecer que as simbolizações de justiça “variam, e não só em graus de definição; também no poder que exercem sobre os processos da vida social, frente a outras formas de pensar e sentir…; ou nos seus estilos e conteúdos específicos” (Geertz, 1998, pp. 261-262), coloca-se como ferramenta teórico-epistemológica para a compreensão das bases culturais dos direitos das crianças -e dos sentidos de justiça dos agentes que os mobilizam- e dos “saberes locais” indígenas.

Tais pressupostos colocam o desafio permanente de trabalhar os modelos de interpretação e de intervenção normativoinstitucional numa dimensão flexível e receptiva às dinâmicas locais/culturais, evitando, com isso, a produção de novas homogeneidades nas respostas/soluções a serem produzidas, pois cada povo 11 exige uma consolidação aberta e específica de tais elementos, apesar de existirem semelhanças ou elementos comuns que podem ser trabalhados de maneira geral, mas vazado no local/cultural.

Por outro lado, é preciso discutir a importância da incorporação de um agente/ profissional historicamente ausente nas equipes multidisciplinares das instituições da rede de proteção, ou seja, do antropólogo e, num sentido mais amplo, do saber antropológico e etnográfico, especialmente da Antropologia da Criança e da Etnologia Indígena, como recursos humanos e conhecimentos teóricometodológicos indispensáveis para a melhoria do tratamento jurídico a ser ofertado às indígenas crianças, justamente por ser o campo científico que detém os suportes mais adequados para desenvolver tal interlocução e, junto com os demais profissionais e indígenas, estabelecer tipos de intervenção plasmados no referencial local/cultural e na interlocução entre direitos das crianças e direitos indígenas.

 

4. Transversalizando os direitos indígenas no instrumental da rede de proteção: o fluxo de atendimento diferenciado

A transversalização dos direitos indígenas nos direitos das crianças configura-se como a capacidade de articulação hermenêutica de elementos estruturais de ambas as normativas para produzir mecanismos híbridos de acionamento e afirmação dos direitos das indígenas crianças. Para tanto, é necessário ter bases sólidas de conhecimento de ambas as normativas e das filosofias jurídicas que as fundamentam, para então exercitar a imaginação criativa na tarefa de propor adequações e inovações nos procedimentos, políticas e instrumentais da rede de proteção existentes na atualidade, assentados num déficit generalizado de reconhecimento da diversidade cultural e dos direitos coletivos dos povos indígenas (Oliveira, 2014c).

No âmbito da Comissão Municipal, o exercício criativo de formulação de instrumentais híbridos da rede de proteção ocorreu com a construção do fluxo de atendimento dos casos de abuso sexual contra indígenas crianças durante a oficina denominada de “Assessoria Técnica para a Construção do Fluxo do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente”, ocorrido no dia 18 de setembro de 2013, como parte das atividades do projeto “Rodas de Direito”.

O gráfico abaixo (Grafico 1) apresenta o resultado da oficina -e das posteriores reuniões ordinárias da Comissão Municipal- para estruturação do fluxo de atendimento de casos de abuso sexuais específicos das indígenas crianças.

 

 

O caráter diferenciado e, portanto, híbrido do fluxo de atendimento, indicado no Gráfico 1, está no “meio de campo” que se estabelece a partir da delimitação da identidade cultural da suposta vítima. Desde esse momento, desenvolve-se um conjunto de medidas que busca fortalecer e valorizar a autodeterminação dos povos indígenas na dinâmica de atuação da rede de proteção: (1) o acionamento de instituições de atendimento específico aos povos indígenas (Funai e Distrito Sanitário de Saúde Indígena/Dsei), além do Instituto Chico Mendes de Conversação da Biodiversidade (ICMBio) de atuação com comunidades ribeirinhas, para o trabalho interinstitucional e interdisciplinar junto ao Ministério Público do Estado e o Conselho Tutelar de Altamira, de modo a promover o intercâmbio de informações e competências institucionais que auxiliem no tratamento mais qualificado de cada caso; (2) a incorporação do direito à consulta -prevista no artigo 6º, alínea “a”, da Convenção 169 da OIT, no artigo 18 da Dnudpi e no artigo 231, parágrafo 3º, da CF/88- como mecanismo de acesso e participação das lideranças e povo(s) indígena(s) envolvido(s) no processo de elucidação dos fatos e definição das medidas a serem tomadas; (3) uso do método do estudo de caso para aprofundamento das informações pertinentes a respeito dos modos de vida, da concepção cultural da infância -e também da sexualidade e da violência-, além das conjunturas socioeconômicas e interações interculturais que possam explicar e/ou motivar a ocorrência de cenários de vulnerabilidade sexual de indígenas crianças, entre outras questões para aprofundamento por parte do grupo de trabalho; (4) a possibilidade de requisitar a presença de antropólogo e/ ou de especialista ligado à universidade, para contribuir com os trabalhos desenvolvidos com os dois mecanismos disponibilizados caráter interdisciplinar da atuação, assim como, e no caso específico dos antropólogos, ser requisitado para elaborar laudo antropológico que coloque-se como um terceiro instrumental para compreensão dos fatos, das práticas socioculturais e de como os agentes locais significam as situações vivenciadas.

Com isso, fundamenta-se um trabalho interventivo que visa responder, de maneira qualificada, uma pergunta: há indícios de confirmação da denúncia (de abuso sexual)? Não se trata, propriamente, de responder sim ou não, mas de desenvolver mecanismos participativos, de caráter interdisciplinar e intercultural, que produzam as informações necessárias para a compreensão dos fatos e das formas de intervenção sobre eles, de modo a gerar subsídios de orientação para todos os outros encaminhamentos que serão posteriormente realizados.

Acima de tudo, objetiva-se empreender o reconhecimento cultural no problema social da violência sexual, com base nos dispositivos presentes no artigo 5º da Convenção 169 da OIT: (1) elucidar não somente o problema em si da violência sexual, mas também a natureza ou a causa do problema (art. 5º, “a”), assim envidando esforços para “comprender los problemas particulares en los propios términos en que se formulan en el seno de las culturas indígenas” 12 (Salgado, 2006, p. 84) e analisar a relação entre macros contextos -ligados, por exemplo, às ameaças à seguridade territorial, às relações interculturais com não-indígenas envolvendo experiências de sexualidade e de trocas (assimétricas ou não) de sexo e/ ou as implicações das mudanças de hábitos alimentares, sobretudo de consumo de bebidas alcoólicas- e cenários específicos dos casos; (2) respeito à integralidade dos valores, das práticas e das instituições dos povos indígenas (art. 5º, “b”), considerando tais elementos como formando um todo orgânico (Salgado, 2006) que seria prejudicado se analisado de maneira segmentada, assim reconhecendo a diferença cultural dos sujeitos, no sentido de estar consciente de que o que está sendo discutido pode significar outra coisa aos sujeitos étnicos, e considerando que o respeito às instituições e valores dos povos indígenas também representa a legitimidade dos seus mecanismos próprios de intervenção nos casos de violência sexual, sendo justo identificar como solução viável, em muitos casos, o fortalecimento das formas de resolubilidade interna dos povos e dos valores coletivos de cuidado das crianças abusadas sexualmente (Singh & Sikes, 2011); (3) a participação e a colaboração dos povos indígenas na adoção de medidas que atenuem as dificuldades encontradas com as mudanças das condições de vida (art. 5º, “c”), identificando-se em tais mudanças o aspecto dinâmico das culturas indígenas, mas também o estabelecimento de novos hábitos, relações sociais e conflitos culturais que podem produzir ameaças às vidas das indígenas crianças, especialmente quando inseridas em situações de violência sexual.

 

5. Considerações finais

Pesquisa, formação e organização do atendimento foram os três elementos práticos resultantes da constatação da carência do atendimento e da compreensão das realidades das indígenas crianças, seus direitos e as situações de violência sexual que as afetam.

A pesquisa ou o levantamento de informações a respeito das formas de manifestação da violência sexual contra crianças no contexto indígena necessita de uma continuidade e um aprofundamento maior, buscando desenvolver procedimentos etnográficos com os grupos para tomar maior conhecimento de como ocorre e quais as interpretações que os sujeitos possuem desses fatos, assim como a repercussão que tais questões possuem em seus modos de vida e dinâmicas culturais.

A formação continuada, no âmbito dos direitos das indígenas crianças, torna-se ainda mais produtiva e impactante, nos propósitos que objetiva, se puder contar com lideranças e profissionais indígenas que oportunizem aos não-indígenas um “olhar étnico” dos conteúdos trabalhados. Para tanto, a aproximação com associações e organizacionais indígenas de nível regional, nacional ou internacional é indispensável, inclusive para que tenham a preocupação organizacional de prepararem pessoas de referencia para tratar tais assuntos.

Por outro lado, o adensamento do tema dos direitos das indígenas crianças nos espaços de formação continuada da rede de proteção parece ser uma condição indiscutível, menos por motivos de planejamento organizacional prévio, e mais por conta dos “problemas” e das demandas de atendimento de indígenas crianças que adentram as instituições da rede de proteção como um processo inerente à expansão populacional dos povos indígenas e à compreensão, por estes, de que a cidadania diferenciada de suas crianças envolve também a exigibilidade de acesso e tratamento adequado pelas instituições da rede de proteção.

 

 


Notas

*Este artigo de relato de caso faz parte do projeto de pesquisa denominado “Análise comparativa da aplicação e (re)interpretação dos direitos das crianças e dos adolescentes aos indígenas crianças: aportes jurídico-teóricos desenvolvidos no contexto dos povos indígenas da Austrália, Bolívia, Canada e Equador”, realizado entre 1º de abril de 2014 e 31 de março de 2015 e registrado na Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade Federal do Pará, mediante Portaria nº. 095/2014. Área de conhecimento: direito e outras ciencias sociais. Sub-área: interdisciplinaridade.

1Utilizam-se apenas as categorias crianças e infâncias, pois entre povos indígenas não é consensual o uso da designação adolescente e adolescência, haja vista os diferentes ciclos de vida e marcadores de passagem que não necessariamente são os mesmos que os ocidentais normatizados nos documentos jurídicos. Para outras informações, consultar: Luciano (2006), Oliveira (2014a).

2Alicerçado no artigo 227 da Constituição Federal de 1988 (CF/88), que funda o princípio da prioridade absoluta para mudança paradigmática da atenção prestada pelo Estado, sociedade e família às crianças e aos adolescentes no Brasil, algo que se seguiu também em outras constituições de países influenciados pelo período de construção e promulgação da Convenção dos Direitos das Crianças (CDC) das Nações Unidas, no ano de 1989 (Fonseca, 2004).

3Etnocidadania que compreende um movimento regional ocorrido na América Latina, iniciada na década de 1980, e reconhecida teórica e politicamente como movimento do constitucionalismo multicultural (Gregor-Barié, 2003, 2009) ou constitucionalismo pluralista (Yrigoyen-Fajardo, 2010) que representa o avanço de garantias constitucionais aos povos indígenas correlato ao processo de fortalecimento do protagonismo político das organizações indígenas. No Brasil, os artigos 231 e 232 da CF/88 são as bases normativas do reconhecimento dos direitos coletivos dos povos indígenas.

4A inversão axiológica de crianças indígenas para indígenas crianças é um recurso político-antropológico para reforçar o caráter cultural da construção da pessoa e do corpo entre os povos indígenas, evidenciando que se é criança desde uma perspectiva étnico-cultural de construção da infância, ao mesmo tempo em que se sinaliza, com tal inversão, a necessidade de um melhor tratamento jurídico para com a diversidade das infâncias plurais indígenas. O detalhamento do assunto pode ser encontrado em Oliveira (2014a).

5Segundo Vieira e Oliveira (2014), a Comissão Municipal foi criada no ano de 2005, quando da descoberta de uma quadrilha de aliciadores de adolescentes nos arredores de escolas públicas do município de Altamira, constituindo-se numa resposta interinstitucionais para o fortalecimento da articulação e mobilização no enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes, e ganhou uma nova formatação a partir de 2011, com a incorporação de novos membros e a melhoria da metodologia de trabalho para atuação permanente.

6Tal política compensatória consistia na liberação de R$ 30.000,00 por mês para cada aldeia indígena situada na região do médio Xingu, por meio de uma lista de necessidades básicas de produtos e mercadorias encaminhadas pelas lideranças de cada aldeia para a Norte Energia S.A (Nesa) para serem compradas, perdurando entre setembro de 2010 até setembro de 2012. Segundo Acevedo-Marin e Oliveira (2016) e Magalhães e Magalhães (2013), além de provocar aumento do fluxo de descolamentos aldeia-cidade, houve conflitos intergeracionais pelo poder de decidir e controlar as listas de necessidades, além da proliferação de aldeias que saltaram de 19 para 34, no período de vigência do Plano, e, em 2015, encontravase num total de 42, muitas delas fruto de conflitos organizacionais internos.

7A pesquisa consistia no Diagnóstico Rápido Participativo Complementar do projeto “Rodas de Direito: diálogo, empoderamento e prevenção no enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes” (doravante projeto “Rodas de Direito”), coordenado pela Ufpa em parceria com a Fundação Tocaia e o Sociart, e com financiamento da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR). Sobre a execução do referido projeto, consultar: Oliveira (2014b).

8Segundo o relatório, [h]á uma configuração mais recente relativa aos trabalhadores não indígenas que ingressam nas terras indígenas para realizarem obras de infraestrutura prevista no Plano Básico Ambiental-Componente Indígena (PBA-CI), permanecendo nas aldeias durante semanas ou meses, sempre num quantitativo de homens considerável. Um fato, ainda em apuração, chegou ao conhecimento da Fundação Nacional do Índio (Funai), e foi encaminhado à Comissão Municipal. Trata-se de denúncia, por escrito, realizada por lideranças do povo Arara da aldeia Laranjal (Terra Indígena Arara), informando que a equipe de 15 trabalhadores que estavam construindo as casas na aldeia ‘estaria fumando ‘pedra’ na aldeia e se relacionando com as índias’ (Fundação Nacional do Índio, 2014, p. 1) e, mais adiante, indicou que um dos trabalhadores “estava tendo relações sexuais com uma indígena’ (idem)” (Oliveira & Pinho, 2014, p. 55).

9A marca estrutural da relação entre indígenas e não indígenas está presente em outros contextos nacionais que investigam a exploração sexual comercial e a prostituição no âmbito dos povos indígenas (Olivar, 2014 e Torres, Nascimento & Torres-Neto, 2014). Porém, as formas de inserção e de agenciamento das relações sexuais pelos indivíduos e povos indígenas são diversas e não podem ser trabalhadas a partir de generalizações de experiências locais, sob pena de, novamente, criar estereótipos que dificultem a compreensão das dinâmicas e dos conflitos socioculturais que envolvem os povos indígenas.

10Segundo Beltrão e Oliveira, desde a perspectiva geertziana “é preciso tomar o saber local -ou saberes locais- como produção social e cultural que se revela como acervo de conhecimentos instituídos, constituídos e partilhados em nível local. O saber local é entendido como lógica formulada, a partir de experiências e práticas sociais concretas, antes pouco ou nada consideradas, que deixam de ser mero “senso comum”, para ter lugar como sistemas culturais. Para a Antropologia, a compreensão do saber local significa forma de examinar os problemas e, principalmente, a possibilidade de apropriar- se do lastro que articula a cultura indicando os nexos que conferem sentido às ações… Se o saber local pode ser tomado como referência à cosmovisão que orienta, especialmente, em relação aos povos e comunidades tradicionais, deve ser reconhecido como forma de representação autônoma, portanto quaisquer proposições que comprometam a autonomia de pensar e ver a vida exige consulta. Aliás, a forma de organização diferenciada é ‘instrumento’ de resistência dos movimentos sociais indígenas e não-indígenas às situações coloniais internas e externas” (2011, p. 60. Grifos dos autores).

11No Brasil, não apenas restrito aos povos indígenas, mas ao campo mais amplo dos sujeitos pertencentes a povos e comunidades tradicionais conforme a definição legal contida no Decreto nº. 6040/2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais, e, sobretudo, pela prerrogativa do direito à autodenominação -e à consciência étnica- contida na Convenção 169 da OIT.

12Importante frisar que esta “compreensão” deve ser feita de maneira a atender “tanto a las características del sistema conceptual originario, como al conjunto de las normas del derecho positivo nacional e internacional relativas a los pueblos indígenas” (Salgado, 2006, p. 84).

 

 


 

Lista de Referencias

 

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    Referencia para citar este artículo: Da Costa Oliveira, A. (2016). Violência sexual, infância e povos indígenas: ressignificação intercultural das políticas de proteção no contexto das indígenas crianças. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, 14 (2), pp. 1177-1190.

 

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