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Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud

versão impressa ISSN 1692-715X

Rev.latinoam.cienc.soc.niñez juv vol.14 no.2 Manizales jul./dez. 2016

https://doi.org/10.11600/1692715x.14240130415 

Segunda Sección: Estudios e Investigaciones

 

DOI: http://dx.doi.org/10.11600/1692715x.14240130415

 

Tensões e contradições nos discursos políticos sobre o combate à homofobia no contexto da escola brasileira *

 

Tensions and contradictions in political discourses to combat homophobia in the context of Brazilian schools

 

Las tensiones y contradicciones en los discursos políticos relacionados a la lucha contra la homofobia en el contexto de la escuela brasileña

 

 

Cleide Ester de Oliveira1, Maria de Fatima Pereira Alberto2, Nadir de Fátima Borges Bittencourt3

 

1 Professora Doutora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso- IFMT-. Correio eletrônico: cleidester@hotmail.com

2 Professora Doutora do Departamento de Pós-Graduação da Universidade Federal da Paraíba- UFPB-. Correio eletrônico: jfalberto@uol.com.br

3 Professora Doutora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso-IFMT-. Correio eletrônico: nadirborges2@gmail.com

 

 

Artículo recibido en abril 13 de 2015; artículo aceptado en agosto 19 de 2015 (Eds.)


 

Resumo (analítico):

Este trabalho tem como objetivo a análise dos discursos materializados nas práticas discursivas de líderes políticos pertencentes à bancada evangélica e/ou ultraconservadores frente às políticas educacionais de combate à homofobia. Procurou-se compreender os vários discursos produzidos por esses líderes em função de iniciativas de reconhecimento da diversidade sexual e de políticas públicas de combate à homofobia no contexto da escola. Para analisar tais objetivos, ancoramo-nos na análise do discurso apresentada por Michel Foucault (1969/2008). Utilizamos como corpus os vídeos localizados no site youTube contendo o pronunciamento, a pregação, o debate ou a preleção de três líderes políticos e religiosos contrários às políticas públicas educacionais de combate à homofobia. Os resultados indicam que os sujeitos são atravessados por discursos de cunho moral, pseudocientífico, cultural e religioso que sustentam a heteronormatividade.

Palavras-chave: Educação, homofobia, heteronormatividade, discursos, exclusão (Tesauro de Ciências Sociais da Unesco).


 

Abstract (analytical):

This study aims to analyze the discourses produced in the discursive practices of the religious and political leaders belonging to the evangelical churches and / or ultraconservative political parties regarding educational policies to combat homophobia. The authors engage in the task of analyzing the various speeches made by these leaders in relation to initiatives that promote sexual diversity and public policies that combat homophobia in schools. To achieve these goals, the study uses the discourse analysis developed by Michel Foucault (1969/2008). The corpus consists of videos located on YouTube that contain statements, preaching, debates or conferences involving three political and religious leaders opposed to educational policies that combat homophobia. The results indicate that the subjects produce discourses that are based on moral, pseudo-scientific, cultural and religious positions to argue for heteronormativity.

Key words: Education, homophobia, heteronormativity, discourses, exclusion (Unesco Social Sciences Thesaurus).


 

Resumen (analítico):

Este trabajo tiene como objetivo analizar los discursos materializados en las prácticas discursivas de los líderes religiosos y políticos que pertenecen a la "bancada evangélica" y/o ultraconservadores en función de las políticas educativas para combatir la homofobia. Se buscó comprender los diversos discursos de estos líderes debido a las iniciativas de reconocimiento de la diversidad sexual y las políticas públicas para combatir la homofobia en el contexto escolar. Para analizar estos objetivos, nos apoyamos en el análisis del discurso presentada por Michel Foucault (1969/2008). Usamos como corpus los videos localizados en el sitio de YouTube que contienen la declaración, la predicación, el debate o una conferencia de tres políticos y líderes religiosos que se oponen a la política pública educativa para combatir la homofobia. Los resultados indican que los sujetos están atravesados por discursos de naturaleza moral, pseudo-científica, cultural y religiosa que sostienen heteronormatividad.

Palabras clave: Educación, homofobia, heteronormatividad, discursos, exclusión (Tesauro de Ciencias Sociales de la Unesco).


 

1.Introdução

 

A homossexualidade sempre foi e continua sendo alvo de rejeição por grande parte da sociedade, considerada, inclusive, como um transtorno psicológico. Foi em 1973 que a American Psychiatric Association (APA) a retirou da classificação de transtorno psicológico. Mas foi só no ano de 1991 que a Organização Mundial da Saúde (OMS) a retirou da classificação de doença (Sousa, 2009).

Em 2004, um estudo realizado pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) e pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) sobre o tema “Diversidade Sexual na Educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas”, que faz parte da coleção “Educação para Todos”, já apontava a necessidade de ações mais concretas no combate à violência, ao preconceito e à discriminação contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. O referido estudo enfatiza a importância da educação como instrumento necessário para enfrentar situações de preconceito e discriminação e garantir oportunidades efetivas de participação de todos, nos diferentes espaços sociais.

A despeito de estudos indicativos da necessidade de ações educativas para enfrentar preconceitos, já havia no cenário brasileiro mobilizações dos movimentos sociais como, por exemplo, do Grupo Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros e Transexuais (LGBT), que, desde 2000, já vinham reivindicando seus direitos de cidadania. A partir daí, foi identificada, por parte dos gestores públicos, a necessidade de elaborar um programa de combate à homofobia mais consistente. Para dar início a esse programa, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em parceria com o Ministério de Educação e Cultura (MEC), realizou uma pesquisa sobre o “Perfil dos Professores Brasileiros”, realizada entre abril e maio de 2002, com cinco mil professores da rede pública e privada. Os dados indicaram que 59,7% deles não admitem que uma pessoa tenha relações homossexuais e 21,2% não gostariam de ter vizinhos homossexuais (Abramovay, Castro & Silva, 2004).

Outra pesquisa foi realizada no Ensino Fundamental e Médio em 13 capitais brasileiras e no Distrito Federal. Nessa pesquisa, foi constatado que o percentual de professores que declaram não saber como abordar os temas relativos à homossexualidade em sala de aula vai de 30,5% em Belém a 47,9% em Vitória. 12 % dos professores em Belém, Recife e Salvador, 14 e 17% em Brasília, Maceió, Porto Alegre, Rio de Janeiro e Goiânia e mais de 20% em Manaus e Fortaleza acreditam que a homossexualidade é uma doença. Os entrevistados da pesquisa da Unesco que não gostariam de ter colegas de classe homossexuais são 33,5% dos estudantes de sexo masculino em Belém; entre 40% e pouco mais de 42% no Rio de Janeiro, em Recife, São Paulo, Goiânia, Porto Alegre e Fortaleza; e mais de 44% em Maceió e Vitória. Na mesma pesquisa, constatou-se que pais de estudantes de sexo masculino que não gostariam que homossexuais fossem colegas de seus filhos alcançam 17,4% no Distrito Federal; entre 35% e 39% em São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador; 47,9% em Belém; e entre 59 a 60% em Fortaleza e Recife. Estudantes do sexo masculino informaram “bater em homossexuais” como o menos grave dos seis exemplos de uma lista de ações violentas (Abramovay, Castro & Silva, 2004).

Em um evento em Nova York, no início do ano de 2011, o Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-moon, afirmou que jovens do mundo todo, por diversas razões, dentre elas a homossexualidade, sofrem com o bullying, um problema que ocorre, em especial, no ambiente escolar. A depressão, o abandono da escola e até mesmo o suicídio são algumas das consequências da homofobia e devem ser considerados como uma violação dos direitos humanos e uma crise de saúde pública, segundo o secretário da ONU (Cieglinski, 2011).

Em recente pesquisa sobre o tema “Diversidade sexual e combate à homofobia no cenário das políticas públicas para a educação”, Rocha (2011) concluiu que, no contexto escolar, o debate sobre as questões de gênero, sexualidade e diversidade sexual ocorre excepcionalmente e de forma fragmentada, o que demonstra que as políticas públicas voltadas ao reconhecimento da diversidade sexual no contexto educacional esbarram na conjuntura político-social, já que a nossa sociedade “é regida pela heteronormatividade, pelo machismo e pela naturalização das práticas e identidades tidas como hegemônicas” (p. 4845).

Por outro lado, a ideia de inclusão está estampada no discurso pedagógico. É comum ouvir os termos “inclusão”, “escola inclusiva”, “inclusão escolar”, “avaliação inclusiva”, “dinâmicas de inclusão”, “pedagogia inclusiva”. Slogans do tipo “escola para todos” ou “educação para todos” fazem parte de documentos oficiais e demonstram que o tema ganhou a simpatia de todos e se tornou uma política prioritária no sistema educacional (Selffner, 2009). O ingresso dos tradicionalmente excluídos na escola é um fato bastante positivo. No entanto, o autor revela que há uma contradição no que se refere a quem deve e quem não deve ser incluído. Quando se trata de garantir a inclusão do grupo LGBT, a discussão muda de direção, pois alguns professores entendem que os alunos homossexuais não devem ser incluídos. A aluna lésbica é classificada por elas como uma “sem-vergonha” e o aluno gay é considerado um “abusador” em potencial. Para esses professores, eles só devem ser incluídos se mudarem o comportamento. De acordo com Selffner (2009), esse pensamento revela que há uma articulação entre um código de valores que determina quem merece e quem não merece ser incluído, o que resulta em uma exclusão na inclusão. O autor vai mais longe ao afirmar que “a escola pública brasileira foi, e ainda é largamente utilizada como instrumento de exclusão da cidadania” (p. 128).

Essa constatação vem ao encontro do que já afirmava Britzman (1996) em relação à cultura escolar. Para a autora, persiste um mito de que a heterossexualidade é “normal” e “natural” e que falar de homossexualidade na escola poderia incentivar a sua prática e fazer com que os jovens se unam a comunidades gays e lésbicas e, ainda, faz parte desse imaginário que as pessoas que falam sobre o tema agem com o objetivo de “recrutar jovens inocentes”. Além disso, afirma a autora, também faz parte desse mito a ansiedade de que qualquer pessoa que apoie o movimento LGBT poderá ser acusada de ser gay ou de promover uma sexualidade marginal. Nos dois casos, segundo a autora, as pessoas são avaliadas como: perigosas, predatórias e contagiosas.

As consequências dessa segregação é a evasão escolar, pois, devido à solidão e ao desprezo a que o estudante pertencente ao grupo LGBT é submetido, é um dos efeitos mais marcantes da homofobia (Lionço & Diniz, 2009). De acordo com esses autores, a exclusão de travestis e transexuais do espaço escolar e da família compromete a sua formação profissional e, sem acesso ao mercado de trabalho, a alternativa que buscam para sobreviver é a prostituição, reforçando, assim, o estereótipo que os estigmatiza. Henriques, Brandt, Junqueira e Chamusca (2007) afirmam que uma parcela relevante da sociedade brasileira sofre com o preconceito e com a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero.

Junqueira (2009) enfatiza que a opressão, a discriminação e o preconceito fazem parte do cotidiano da escola, o que resulta em um quadro de violência dirigido a milhões de jovens e adultos LGBT, os quais encontram diferentes formas de enfrentar tal violência: a internalização da homofobia, a negação, a autoculpabilização, a autoaversão, tudo isso com a concordância ou omissão da família, da comunidade escolar, da sociedade e do Estado. Para esse autor, a homofobia é consentida e ensinada na escola resultando em efeitos devastadores na formação das pessoas, pois compromete a inclusão educacional e a qualidade de ensino, além de incidir na relação docente/estudante e estudante/sociedade. Segundo o autor, tudo isso traz consequências graves, como desinteresse e dificuldade de aprendizagem, o que leva o estudante à evasão e ao abandono, comprometendo a formação profissional e a inserção no mercado de trabalho.

Para Mercado e Neves (2012), um dos desafios da Política Nacional de Direitos Humanos é o de transformar a escola em um espaço de igualdade de oportunidades, respeito às diferenças, cooperação, solidariedade e forte disposição no enfrentamento a todo o tipo de violência, preconceito e discriminação.

Ceballos-Fernández (2014) em seu trabalho que investiga identidade homossexual e contexto familiar heteroparental concluiu que a família, pelo fato de não compreender e não aceitar a sexualidade de seus filhos, é um fator de risco na construção da identidade dos jovens homossexuais. A autora aponta a necessidade de ações educativas voltadas tanto às famílias quanto aos professores no sentido de formar valor da diversidade sexual apresentando no currículo uma realidade que caracteriza a sociedade atual em suas variadas formas de vivenciar a sexualidade, considerando e respondendo às necessidades dos estudantes homossexuais e/ou de famílias homoparentais.

Diante do exposto, pode-se afirmar que a escola configura-se como espaço institucionalizado de reprodução dos discursos que colocam à margem os indivíduos que possuem uma identidade sexual diferente da maioria.

No edifício teórico da análise do discurso (AD), é ponto fundamental trazer os conceitos formulados por Michel Foucault (1971/2008) no plano discursivo, uma vez que o autor deixa claro que o discurso luta pelo poder na sociedade, além de traduzir as lutas ou os sistemas de dominação e é também a luta pelo poder do qual se quer apoderar.

Nesse sentido, o que está na base desse conceito é a ideia de que em toda sociedade há um certo número de procedimentos que controlam, selecionam, organizam e redistribuem simultaneamente a produção do discurso (Foucault, 1971/2008). A função desses procedimentos é a de “conjurar seus poderes e perigo, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (p. 9). Em nossa sociedade existem procedimentos de exclusão, sendo que a interdição é apontada por Foucault (1971/2008) como a mais conhecida. Esse autor explica que nem tudo pode ser dito em qualquer circunstância e não é qualquer um que pode falar de qualquer coisa. Sobre as interdições, o autor aponta três tipos: o tabu do objeto, o ritual da circunstância e o direito privilegiado ou exclusivo do sujeito, sendo a sexualidade e a política o alvo dessas interdições. A palavra proibida, a segregação da loucura e a vontade de verdade são os três sistemas de exclusão que afetam o discurso. Porém, para dar legitimidade a esses sistemas de exclusão, a vontade de verdade foi a mais enfatizada (Foucault, 1971/2008) e tanto ela quanto outros sistemas de exclusão têm como apoio as instituições, pois, através de um conjunto de práticas, dentre elas a pedagogia, os sistemas de livros, as bibliotecas, as sociedades antigas e os laboratórios de hoje os reforçam e os reconduzem simultaneamente. Além disso, segundo o autor, esse sistema é reconduzido, também, pela forma como o saber é administrado em uma sociedade, como é valorizado, dividido, distribuído de certa maneira atribuído.

Nessa perspectiva, para justificar certas práticas, circula um discurso e certos procedimentos que permitem controlar e impor certas regras de forma que estabelecem quem tem acesso a esses discursos (Foucault,1971/2008). Nesse caso, há uma ordem do discurso e para entrar nela há certas exigências, dentre as quais quatro regras são destacadas pelo autor: os rituais da palavra, as sociedades do discurso, os grupos doutrinários e as apropriações sociais, pois existe um ritual que determina propriedades singulares e papéis preestabelecidos para os sujeitos que falam. De acordo com esse autor, os vários tipos de discursos, como os religiosos, judiciários, terapêuticos e, de certa forma, também o discurso político, exigem ritual específico. Assim, para que o controle funcione, é preciso uma “Sociedade do Discurso” que carregue a função de produzir, conservar e distribuir os discursos de acordo com as regras estritas (Foucault, 1971/2008). É por isso que Foucault (1969/2008) conceitua o discurso como um conjunto de enunciados que, embora pertençam a campos diferentes, obedecem a regras comuns de funcionamento e essas regras não contemplam só os aspectos linguísticos e formais da língua, mas reproduzem um certo número de cisões historicamente determinadas.

Também é conveniente lembrar que o conceito de formação discursiva é um elemento central para o desenvolvimento da AD. Foucault (1969/2008) a entende como uma série de enunciados que surgem de diferentes âmbitos que, longe de formar um sistema homogêneo, se articula na dispersão, isto é, na diferença e se configura nas práticas sociais como condições de possibilidade do conjunto de enunciados constitutivos dessa formação discursiva específica. Na teoria do discurso, o conceito de enunciado exerce papel importante, pois se constitui como unidade básica do discurso. Foucault (1969/2008) explica que o enunciado é uma função de existência a qual os signos pertencem, exclusivamente e, a partir dessa função, é que se decide “pela análise ou pela intuição, se eles fazem sentido ou não, segundo que regras se sucedem ou se justapõem, de que são signos, e que espécie de ato se encontra realizado por sua formulação” (p. 98).

Dessa forma, Foucault (1969/2008) considera que o enunciado é uma função que cruza um domínio das estruturas e de unidades possíveis, ele não é em si mesmo uma unidade, o que faz com que apareça no tempo e no espaço, com conteúdos concretos. Para Gregolin (2006), é a função enunciativa que torna um ato de fala, uma frase ou uma proposição em enunciado. O que define e possibilita que ele seja um enunciado é o fato de ele ser produzido por um sujeito em um lugar institucional, determinado por regras sóciohistóricas. Para entender a função enunciativa, segundo Foucault (1969/2008), é necessário determinar as suas dimensões. O autor define quatro características da função enunciativa.

Em primeiro lugar a função enunciativa permite ao enunciado mesmo relacionar-se com os objetos dentro da linguagem, trata-se da relação do significado com o significante, do nome com o que designa, da frase com o seu sentido, ou a proposição com o seu referente. O enunciado, graças à sua dimensão “objetiva”, relaciona-se a um referencial que não se encontra composto por coisas ou por fatos, realidades ou seres, mas é um referencial que consegue diferenciar os indivíduos ou os objetos das coisas que surgem das relações postas em jogo pela função enunciativa.

Cabe destacar, ainda, o lugar social de onde o sujeito fala. É esse lugar que define o que pode e deve ser dito, pois é governado por regras anônimas. O sujeito é definido pelo lugar de onde ele fala. Foucault (1969/2008) explica que “não importa quem fala, mas o que ele diz não é dito de qualquer lugar. É considerado, necessariamente, no jogo de uma exterioridade” (p. 139). Sendo assim, é necessário que se analise o lugar social de onde o sujeito fala e seus efeitos de sentido.

A vivência no contexto educacional mostra que a discriminação é uma prática social que faz parte do cotidiano da escola. Sabemos que a desqualificação ou inferiorização do outro traz sérias consequências aos indivíduos, tanto sociais quanto psicológicas. Contudo, há um forte indício de que boa parte da sociedade aceita com naturalidade essa violação dos direitos humanos e ainda impede que se efetivem ações para combatê-la.

Parte-se do pressuposto que as práticas discursivas homofóbicas materializam-se em discursos de aversão, rejeição, exclusão e são legitimadas institucionalmente, produzem efeitos de sentidos que desqualificam o grupo LGBT, fomentam os discursos que negam ao grupo o direito às políticas públicas de direitos humanos e reforçam os discursos que promovem a violência contra esse grupo.

A ideia desta pesquisa surgiu da inquietação das pesquisadoras em relação à falta de políticas públicas de inclusão desse grupo estigmatizado e entregue ao seu destino de pária social. A forma como o tema a respeito da diversidade sexual é tratado no ambiente escolar, ou melhor, não é tratado, evidencia que esse silêncio só reforça o contexto de violência simbólica.

A homofobia configura-se como uma forma de exclusão legitimada por instituições no campo religioso, educacional, jurídico e social, constituída dentro de uma lógica perversa sustentada, segundo Foucault (1976/2011), por discursos historicamente construídos. Entendese que há necessidade de contribuir, através do conhecimento acadêmico, sobre a homofobia na sociedade brasileira, o que possibilita refletir sobre “a dinâmica de produção e atualização de hierarquias e processos de (des)legitimação, (des)qualificação, inclusão e exclusão de sujeitos, saberes, modos de ver, práticas e agendas políticas e educacionais” (Junqueira, 2009, p. 163). Espera-se que este trabalho possa contribuir para a compreensão do funcionamento da homofobia a fim de buscar formas de enfrentá-la no sentido de desconstruir suas práticas silenciosas e violentas, pois o sentimento de rejeição não está só nos indivíduos, mas articula-se na cultura e nas instituições.

Este artigo tem como objetivos analisar, a partir das práticas discursivas, as relações de poder que estão implicadas na produção de verdades sobre a homossexualidade e problematizar os efeitos de sentido produzidos pelos discursos de líderes religiosos e políticos contrários às políticas educacionais de combate à homofobia no contexto da escola brasileira.

O tema da sexualidade nesta pesquisa foi enfocado como uma construção cultural e histórica. Para Foucault a linguagem possui uma existência histórica, ou seja, é uma prática discursiva que entra em relação com outras práticas históricas.

 

2. Método

Para alcançar os objetivos propostos neste artigo, adotamos uma metodologia de base qualitativa. Utilizamos como corpus os vídeos localizados no site youTube.

Os critérios para a seleção foram: 1- pregação, sermão, debate ou preleção de líderes religiosos ocorridos em templos ou espaços públicos com maior destaque na mídia e veiculados na internet; 2- pronunciamento, veiculados na internet, de líderes políticos e/ou religiosos contrários às políticas de combate à homofobia em exercício do mandato Legislativo em instituições representativas e/ ou legislativas: Congresso Nacional e Câmara Federal.

Diante de tais critérios, a seleção resultou em três líderes políticos (deputados e senador), dentre os quais, dois que também são religiosos e pertencem à bancada evangélica.

Por recomendação do Comitê de Ética do Hospital Universitário Lauro Wanderley/UFPB, conforme o parecer nº 230.574, de 19/03/2013, atendendo à Resolução 196/96, os nomes são fictícios e as autoras os nomearam fazendo uma junção de nomes de imperadores romanos.

Foi escolhido o site www.youtube/videos para a coleta dos dados, pois, no momento em que o MEC preparava o material para o lançamento do projeto Escola sem Homofobia, esse site foi usado como ferramenta para divulgação e mobilização da sociedade. Os discursos ali produzidos dividiram opiniões a respeito do tema provocando uma grande efervescência na sociedade, servindo como uma ferramenta no período eleitoral entre 2010/2012. Esse foi o grande acontecimento a partir do qual os discursos emergiram.

Os vídeos utilizados foram os que registraram maior número de acessos pelo público. O material foi acessado em março de 2013 a partir do buscador www.google.com. br, por meio de grupos de palavras-chave: 1. Homofobia, pronunciamento, kit gay, vídeos youTube; 2. Homofobia, preconceito, discriminação, pregação, vídeos youTube. Em seguida foram selecionados e arquivados para que fosse realizada a transcrição do material literalmente e sem recortes nas falas.

Para analisar o pronunciamento, a pregação ou a preleção dos líderes, utilizamos neste trabalho a AD (Gregolin, 2004), cuja proposta de análise tem como base as seguintes categorias: Quem fala- De onde fala- Que efeitos de sentido geram- Que discursos aparecem (enunciados, formação discursiva, contradições, repetições, regularidades e dispersões)- A partir de que grande acontecimento os discursos emergem-

 

3. Análise e discussão dos dados

Considerando que a linguagem não é transparente nem os sentidos estão dados a priori, pode-se apreender uma multiplicidade de sentidos nas várias cenas enunciativas, a partir das diferentes posições ocupadas pelo sujeito do enunciado. Ao analista, diante de um enunciado, compete-lhe a tarefa de investigar o discurso que emerge considerando a relação dialética entre sujeito/língua/história como um complexo jogo de significações e sentidos possíveis. Entende-se o sentido como efeito/ produção de uma enunciação, ou seja, o efeito de sentido é a produção advinda da enunciação, é no campo da enunciação que se tem os efeitos de sentido; estando assim, no terreno do dizer (Gregolin, 2004). Os enunciados analisados nesta pesquisa produzem efeitos de sentido pela sua correlação com um conjunto de formulações que coexistem com ele em um espaço delimitado historicamente e os efeitos de sentido desses enunciados são vistos dentro de uma historicidade.

3.1. Senador Tito Flávio

O Senador Tito Flávio é Senador, pastor evangélico e cantor gospel. Pertence à bancada evangélica e é presidente da ‘Frente Parlamentar em “Defesa da Família Brasileira”. O proselitismo religioso está na base de seu discurso. O seu pronunciamento, ora em apreciação, foi proferido na tribuna do Senado.

No pronunciamento do Senador Tito Flávio quem fala é alguém que tem o poder político de aprovar ou não projetos de interesse da população, seja ela minoria ou maioria. Ao enunciar, identifica-se, a partir dos enunciados, a posição de diferentes sujeitos, pois ele ora fala como Senador da República, ora como o pai preocupado porque tem um filho de nove anos que frequenta a escola, ora como cidadão que expressa opiniões a respeito do “kit antihomofobia” organizado pelo MEC. Quando se identifica como “nós”, o Senador refere-se à instituição que representa como Senador da República, já que está tribuna do senado em uma sessão juntamente com seus pares pra debater o projeto Escola sem Homofobia:

    (…) o que nós queremos discutir com ele a frente da família é esse kit. (…) o que nós precisamos é resgatar valores de família, Presidente Dilma. (…) então nós temos que resistir o governo, nós temos que resistir o Sr. Ministro com esse kit…(…) o que nós precisamos enquanto constituição é respeito a todos os cidadãos (Discurso proferido pelo Senador na Tribuna do senado).
Já quando utiliza a primeira pessoa do singular, quem fala expressa sua indignação e opiniões pessoais.
    Eu estou vindo de uma reunião (…) eu tô olhando pro Brasil pra afirmar o seguinte, Senador: esse kit homossexual nas escolas fará das escolas do Brasil verdadeiras academias de homossexuais (…) Agora nada mais do que o respeito, estão passando do limite. Senador[dirige-se a outro senador], Vossa Excelência, que é católico, praticante, que sabe que Deus criou macho e fêmea e essa casa não fará um terceiro sexo com uma lei porque há de esbarrar nos homens e mulheres que acreditam em princípios e uma minoria barulhenta jamais se sobreporá a uma grande maioria que é a família nesse país (…) Eu tenho uma criança de nove anos em casa… (Discurso proferido pelo Senador na Tribuna do senado)

Considera-se que uma das características da função enunciativa é a relação do enunciado com os sujeitos e que o sujeito do enunciado não pode ser reduzido a um mero elemento gramatical, pois um único indivíduo pode ocupar, sucessivamente, em uma série de enunciados, diferentes posições e tomar o papel de diferentes sujeitos (Foucault, 1969/2008). Observa-se, no conjunto de enunciados acima, que o sujeito do enunciado será lugar a ser ocupado pela manifestação da posição subjetiva de defensor da ordem, da moralidade em defesa da instituição família, que ora está ameaçada. Ou seja, identifica-se a posição de diferentes sujeitos: o político que ocupa uma cadeira no senado e pertence à base aliada da Presidente atual sente-se traído por ela e sua equipe representado pela figura do Ministro da Educação, pois foi ele o idealizador do "Projeto Escola Sem Homofobia" e o senador eleito pelo voto do povo, principalmente os de denominação evangélica, uma vez que é também pastor e, portanto, espera dele uma atitude de negação em relação ao referido kit gay.

A relação da posição do sujeito com os lugares institucionais, conforme explica Foucault (1969/2008), é que o define, ou seja, o lugar de onde fala. Os lugares sociais (Senador, pastor, pai, cidadão que faz parte da maioria) de onde o Senador Tito Flávio fala possibilita-lhe um empoderamento como sujeito do discurso que se inscreve em uma determinada formação discursiva e, por isso, apropria-se de um poder/saber que se materializa na sua prática discursiva como um discurso de verdade. As diferentes vozes dialogam entre si legitimando suas verdades. Ao invocar o discurso religioso (Gênesis - a criação do homem) na tribuna do Senado Federal, o político e o religioso se entrecruzam em uma mesma sequência discursiva, ao mesmo tempo em que se coloca como o cidadão e pai de uma criança de nove anos.

A afirmação do Senador Tito Flávio de que o kit homossexual fará das escolas do Brasil verdadeiras academias de homossexuais, que Deus criou macho e fêmea e que a casa não fará um terceiro sexo mostra que o lugar de onde o Senador fala produz efeitos de sentido por apropriações de regiões do saber/poder/ dizer, os quais atuam de maneira constitutiva na sedimentação da formação discursiva na qual se inscreve. Essa formação discursiva está sedimentada em uma norma que não admite qualquer possibilidade de vivenciar a sexualidade que não seja entre homem e mulher. Esse discurso tem produzido pessoas anormais e ameaçadoras da ordem social e dos pilares que sustentam a ideia de família nos moldes tradicionais. Identifica-se uma dispersão de enunciados e o sujeito, sendo uma função, assume vários papéis sociais (Gregolin, 2004). A análise do sujeito integra o reconhecimento de relações entre vários enunciados e sistemas de enunciabilidade que definem os regimes de saber e verdade de uma época, uma vez que os sentidos já cristalizados são instituídos como verdades (Deus fez macho e fêmea). Como Senador da República ele constrói um discurso que é atravessado por outros discursos de cunho moral, cultural e religioso que sustentam a heteronormatividade, já que ele também ocupa o lugar de sujeito que é pastor evangélico e o de cidadão pai de família que tem filhos na escola.

O sentido que esse líder político e religioso atribui às políticas educacionais de combate à homofobia no contexto da escola é o de uma falta de respeito por parte do governo para com as famílias. Vejamos:

    O Ministro foi levado a se reunir lá na câmara pra falar desse tal kit que tá passando dos limite, o que nós queremos discutir com ele a frente da família é esse kit (…) Precisamos é devido respeito. O devido respeito sim. Vossa excelência é um constitucionalista [dirige-se a outro senador] e pertence a essa frente e sabe que o que nós precisamos enquanto constituição é respeito a todos os cidadãos (Discurso proferido pelo Senador na Tribuna do senado).

Para Foucault (1971/2008) os vários tipos de discursos como os religiosos, judiciários, terapêuticos e, de certa forma, também o discurso político, exigem ritual específico. Assim, o Senador faz parte da "Sociedade do Discurso", pois carrega, conforme o autor, a função de produzir, conservar e distribuir os discursos de acordo com as regras estritas para que o controle funcione. A fala do Senador evidencia um discurso padronizado (ritualizado) que concebe a família somente nos moldes tradicionais, dentre os quais o grupo LGBT não se enquadra, portanto está em um campo oposto. O respeito reivindicado por ele a todos os cidadãos não leva em conta que os indivíduos que fogem ao padrão heteronormativo também são cidadãos.

3.2. Deputado Federal Julius César

Julius César foi reeleito Deputado Federal em 2012. É militar reformado e ultraconservador. Está no legislativo há 25 anos atraindo inimigos e fãs, ao mesmo tempo, por suas posições políticas ultraconservadoras e declarações polêmicas.

O pronunciamento do referido deputado em relação ao Projeto Escola sem Homofobia foi proferido no espaço destinado à sessão plenária da Câmara Federal.

No pronunciamento do Deputado Julius César, quem fala é um parlamentar que ocupa o lugar de representante da casa e expressa, com sentimentos de revolta e indignação, suas opiniões a respeito do tema com o objetivo de convencer os colegas parlamentares da sua luta para impedir que o Projeto Escola sem Homofobia siga em frente, inculcando suas crenças e atitudes. As características são de um discurso doutrinário ultraconservador, cujo objetivo é cooptar pessoas e que se estrutura a partir da exposição da negatividade da homossexualidade e do indivíduo homossexual. Ao identificar-se, o “eu” é predominante no sujeito da enunciação. O “eu” que fala mostra a sua indignação em relação à proposta do kit gay que pode ser visto nos seguintes trechos:

    Eu quero tratar de um assunto aqui que no meu entender, pra mim, em 20 anos de congresso é o maior escândalo que eu tomei conhecimento até hoje. (…) eu não sei pra não ser advertido nesse discurso, eu vou poupar o adjetivo pra essa comissão (…) Ontem eu gravei no programa [Superpop], é um tema que não me agrada falar, homossexual. Eu realmente assumo o que eu falei na TV câmara. (Discurso proferido pelo Deputado na Câmara Federal).

No entanto, quando aparece como "nós", quem fala pode ser identificado, também, no trecho seguinte, como fazendo parte da sociedade, ou seja, a maioria que estaria sendo afrontada pela minoria: "Esses gays, lésbicas querem que nós, a maioria, entubemos como exemplo de comportamento a sua promiscuidade. (…) que nós não podemos nos submeter ao escárnio da sociedade".

Considerando que o discurso é uma forma de atuar sobre o outro, o Deputado Julius César fala do lugar do parlamentar que se inscreve em uma determinada formação discursiva e, por isso, produz um discurso homofóbico em oposição à proposta do governo atual que, diante das reivindicações do movimento LGBT, elaborou uma política educacional de combate à homofobia no contexto da escola no sentido de garantir direitos de igualdade a todos os cidadãos. Entendendo com Foucault (1969/2008) que a formação discursiva se configura nas práticas sociais como condições de possibilidade do aparecimento de um conjunto de enunciados constitutivos de uma formação discursiva específica, esse lugar ocupado pelo sujeito enunciador lhe confere poder/saber articulado por ele com a intenção de convencer seus pares de que a ideia do kit gay que faz parte do Projeto Escola sem Homofobia é um escândalo, uma vergonha.

Percebe-se, no trecho abaixo, que o deputado dirige o seu discurso a três grupos na tentativa de atuar sobre o outro: à oposição, aos seus pares e aos pais que têm seus filhos nas escolas para alertá-los do perigo e da ameaça de que o material, uma vez distribuído na escola, estimularia seus filhos a serem homossexuais e os incentivariam à promiscuidade.

    Pelo amor de Deus, meus colegas que estão nos gabinetes! Pelo amor de Deus, daqui a pouco vem um cidadão dizer que eu estou mentindo. (…) Atenção pais! Os seus filhos vão receber no ano que vem um kit, esse kit tem o título: combate a homofobia, mas na verdade esse kit é um estímulo ao homossexualismo, é um incentivo à promiscuidade, (…) Atenção pais! A tua filha de sete, oito, nove, dez anos vai assistir esse filmete que já está sendo licitado …(Discurso proferido pelo Deputado na Cãmara Federal).

No conjunto de enunciados acima, identifica-se que o espaço do dizer é ocupado por diferentes sujeitos, uma vez que a concepção com a qual se opera neste trabalho não é a de sujeito unificante, pois o discurso é atravessado pela dispersão que decorre das várias posições discursivas que o sujeito do discurso assume (Gregolin, 2007). O Deputado Julius César fala do lugar de parlamentar que tem 20 anos de carreira e, por isso, classifica o projeto "Escola sem homofobia" como o maior escândalo já visto durante os seus 20 anos como parlamentar. Esse lugar de parlamentar ocupado por ele é atravessado por um sujeito que ocupa o lugar de maioria da sociedade e que concebe o grupo LGBT como uma minoria sem direito a voz. Ao enunciar que a plateia é composta 100% de gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros e que essa turma toda reunida tomou decisões que a casa desconhece (essas decisões referem-se ao kit que faz parte do projeto "Escola sem Homofobia"), revela-se, aí, um sujeito indignado com fato de um grupo com essa qualificação tomar decisões que vão interferir na educação de crianças em relação à sexualidade, incentivando-as a se tornarem homossexuais e promíscuos. O discurso que o deputado dirige aos pais das crianças que frequentam a escola pública tem o objetivo de causar certo pânico moral fazendo com que a sociedade, em geral, alimente ainda mais o ódio e a rejeição dos indivíduos homossexuais. O seu modo de olhar a figura humana do homossexual é estigmatizante, já que defende uma concepção que considera o tema da diversidade sexual como um assunto proibido. O lugar discursivo que o Deputado Julius César ocupa é usado para legitimar o ódio aos homossexuais, já que seu enunciado tem um valor de verdade. O fato de associar homossexualidade com promiscuidade e distorcer os objetivos do referido projeto mostra o caráter doutrinário do seu discurso. Nesse sentido, encontramos uma correlação com que o aponta Foucault (1971/2008) sobre o fato de que há um certo número de procedimentos que controlam, selecionam, organizam e redistribuem simultaneamente a produção do discurso em toda sociedade. Segundo o autor, em nossa sociedade existem procedimentos de exclusão, sendo que a interdição é a mais conhecida e a mais utilizada na sociedade disciplinar. A interdição é utilizada como procedimento de controle sobre a sexualidade e, principalmente, a sexualidade que foge ao padrão heteronormativo.

3.3. Deputado e pastor Justiniano

Justiniano é pastor, cantor gospel e ocupa, também, uma cadeira como Deputado Federal, fazendo parte da bancada evangélica. Na pregação do pastor e deputado Justiniano, quem fala é alguém que se coloca como mensageiro de Deus. Em sua pregação na igreja onde é pastor o “eu” que fala é um transmissor da mensagem que lhe é enviada por Deus, pois fala como pastor profeta que está deputado. De acordo com uma das definições descritas no dicionário, profeta é aquele que prediz o futuro por inspiração divina, pessoa que faz previsões em relação ao futuro (Michaelis, 2009).

    Deus essa noite manda uma mensagem de santidade, eu vou repetir uma mensagem de pureza e santidade. E agora com respeito e com licença, vou falar agora como profeta, pregador, (…) eu sou profeta, eu estou deputado, mas eu sou pastor e como pastor eu não posso deixar de falar, se não houver uma mudança hoje na consciência da igreja, se não houver uma mudança na consciência dos crentes que aí estão nós vamos afundar nesse barco. (Pregação do Deputado e pastor na igreja).

O conjunto de características delimitadas por esse enunciado em relação ao seu referente vai além do que a materialidade do texto apresenta, pois o enunciado, graças a sua dimensão "objetiva", relaciona-se a um referencial que não se encontra composto por coisas ou por fatos, realidades ou seres, mas é um referencial que consegue diferenciar os indivíduos ou os objetos das coisas que surgem das relações postas em jogo pela função enunciativa, pois essa é uma das características da função enunciativa, de acordo com Foucault (1969/2008). No enunciado acima, a figura do pastor está associada à moral, à honra e ao respeito. Além disso, a figura do profeta pode ser associada a um ser que possui poderes sobrenaturais, já que o profeta fala como se fosse a "voz de Deus" e produz o efeito de uma verdade divina incontestável.

No trecho que segue, identifica-se a luta do bem (a igreja) contra o mal (os gays):

    Satanás tem levantado homens e mulheres e a igreja não tem se atinado a isso. Enquanto a igreja se preocupa com seus redutos, enquanto reis se preocupam com seus pequenos reinos, (…) Satanás levantou o seu ativismo neste país! Senhoras e senhores, existe uma ação de Satanás contra a santidade da família brasileira (…). O Problema são pessoas que tem na sua cabeça um engendramento de satanás (…) é porque é o anticristo está operando não tem o que fazer…(Pregação do Deputado e pastor na igreja).

Esse lugar de onde ele fala lhe confere poderes que ultrapassam a lógica racional para dar lugar a uma dimensão sobrenatural, já que nas suas práticas discursivas o imaginário é recorrente e as figuras de Deus e de Satanás travam uma luta constante entre o bem e o mal, o que é uma característica própria do discurso religioso.

Essas políticas vistas pela lente dos religiosos gera um sentido de ameaça à ordem, ao modelo tradicional de família, à hegemonia de comportamentos sexuais idealizados pela moral cristã.

 

4. Os efeitos de sentido

Em relação aos efeitos de sentidos, observa-se que o Senador Tito Flávio afirma que a política de combate à homofobia na escola, elaborada pelo MEC, através do Projeto Escola sem Homofobia, é uma falta de respeito por parte do governo e que precisamos de respeito a todos os cidadãos. Essa afirmação nos faz questionar se ele considera os membros do grupo LGBT como cidadãos.

A outra afirmação de Tito Flávio sobre o kit gay refere-se à família: “(…) o que nós queremos discutir com ele à frente da família é esse kit. (…) o que nós precisamos é resgatar valores de família…”. Essa afirmação nos faz questionar sobre o conceito de família atribuído pelo Senador, pois o sentido que emerge é o de que o grupo LGBT está despossuído de uma família.

Sobre as políticas educacionais de combate à homofobia, a afirmação de que as escolas vão se tornar verdadeiras academias de homossexuais e que o kit é um estímulo ao homossexualismo e um incentivo à promiscuidade mostra que a discussão da diversidade sexual na escola se traduz em sentidos de desconforto e indignação por parte dos líderes. Os efeitos de sentidos que emergem desses discursos em relação às ações educativas que abordam o tema da diversidade sexual na escola constituem, na visão deles, um péssimo exemplo para as famílias e uma ameaça de destruição dos pilares da sociedade atual regida por uma moral conservadora. Sobre esse tema, as reflexões de Britzman (1996) e Junqueira (2009) revelam que esse é o pensamento que está refletido na instituição escolar, ou seja, as verdades únicas, os modelos hegemônicos da sexualidade normal, mostrando o jogo de poder e interesses envolvidos na intencionalidade de sua construção.

As ações educativas voltadas para a inclusão do grupo LGBT são vistas por líderes religiosos da bancada evangélica e por políticos ultraconservadores como uma falta de respeito. Nesse sentido, aponta Selffner (2009), a escola pública brasileira foi e segue sendo amplamente utilizada como instrumento de exclusão da cidadania. Persiste uma ideia de que a sexualidade é um tabu que não deve ser discutido na escola, pois pode derrubar certos mitos, principalmente o mito da normalidade e da anormalidade. É por isso que Britzman (1996) faz uma crítica à cultura escolar a partir do mito de que a heterossexualidade é “normal” e “natural” e que falar de homossexualidade na escola poderia incentivar a sua prática e, ainda, poderia fazer com que os jovens se unissem a comunidades gays e lésbicas e qualquer pessoa que simpatizasse com a causa e oferecesse apoio ao grupo poderia ser taxada como gay ou de promover uma sexualidade fora da norma. Nesse caso, conforme a autora, as pessoas são avaliadas como perigosas, predatórias e contagiosas.

O que se identifica nos discursos desses líderes são significados e práticas de homofobia refletidas e reproduzidas no contexto da escola, as quais encontram respaldo na afirmação de Junqueira (2009), de que a homofobia é consentida e ensinada na escola, resultando em efeitos devastadores na formação das pessoas, pois compromete a inclusão educacional e a qualidade de ensino, já a que escola configurase como um lugar de opressão, discriminação e preconceitos contra milhões de jovens e adultos, o que resulta em um quadro de violência que aumenta cada dia mais. A questão é: como pensar em um modelo educacional que deixe de reproduzir a lógica de exclusão- Esse autor compreende que a homofobia no contexto da escola pode ser combatida se for pensada a partir de um modelo educacional que se preste ao desenvolvimento social, que discuta sobre diversidade, gênero, classes sociais, direitos humanos e cidadania. Os discursos que colocam o grupo LGBT como pessoas de menor valia são considerados pela Organização das Nações Unidas (ONU) e Unesco um desrespeito aos direitos humanos e um grave problema social e, por isso, estão na pauta de discussões desses órgãos, uma vez que o problema se repete pelo mundo afora. A reação negativa dos religiosos e políticos diante da possibilidade de discussão do tema da diversidade sexual na escola mostra que a nossa sociedade é regida pela heteronormatividade, pelo machismo e pela naturalização das práticas e identidades tidas como hegemônicas (Rocha, 2011).

A rejeição dos líderes políticos e religiosos em relação às políticas educacionais de combate à homofobia representa um desafio que precisa ser enfrentado, uma vez que eles influenciam negativamente, através de discursos contrários, boa parte da sociedade. Essa constatação está relacionada com o que dizem Mercado e Neves (2012) sobre o fato de que um dos desafios da Política Nacional de Direitos Humanos é o de transformar a escola em um espaço de igualdade de oportunidades, respeito às diferenças, cooperação, solidariedade e forte disposição no enfrentamento a todo o tipo de violência, preconceito e discriminação.

Os discursos desses líderes políticos e religiosos, captados na internet, a partir do youTube, sobre as políticas de direitos humanos pelo reconhecimento dos direitos de cidadania do grupo LGBT, estão marcados pela rejeição, pelo preconceito e pela criminalização que resultam em discriminação. Essa constatação só reforça a situação de exclusão que vivenciamos no dia-a-dia, pois, segundo Henriques, Brandt, Junqueira y Chamusca (2007), uma parcela relevante da sociedade brasileira sofre com o preconceito e a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. Isso pode ser constatado na pesquisa realizada pela Unesco, em parceria com o MEC, na qual os dados indicaram que 59,7% dos professores não admitem que uma pessoa tenha relações homossexuais e 21,2% deles não gostariam de ter vizinhos homossexuais (Abramovay, Castro & Silva, 2004).

Vale enfatizar que a repercussão desses discursos na Câmara e no Senado resultou no veto do projeto pela Presidenta Dilma em 2011. Como esses líderes representam uma boa parte da sociedade, que recebem esses discursos e os internalizam como verdades, as consequências para grupo LGBT são preocupantes, pois a situação de violência contra esse grupo só tem aumentado ultimamente. O relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB), de 2013-2014, revelou que a intolerância aos homossexuais mata um gay a cada 28 horas no país. Foram documentados 312 assassinatos de gays, travestis e lésbicas no Brasil em 2013. O Brasil continua figurando como campeão mundial de crimes homotransfóbicos. Além disso, as consequências da exclusão de travestis e transexuais do espaço escolar e da família, conforme enfatiza Lionço e Diniz (2009), comprometem a sua formação profissional e, sem acesso ao mercado de trabalho, a alternativa que buscam para sobreviver é a prostituição, reforçando, assim, o estereótipo que os estigmatiza.

 

Considerações finais

Este artigo teve como objetivos analisar, a partir das práticas discursivas, as relações de poder que estão implicadas na produção de verdades sobre a homossexualidade e problematizar os efeitos de sentido produzidos pelos discursos de líderes religiosos e políticos contrários às políticas educacionais de combate à homofobia no contexto da escola brasileira.

Vimos que a iniciativa de políticas públicas voltadas para discutir o tema da diversidade sexual com o objetivo de combater a homofobia no contexto escolar entra em tensão com valores morais e religiosos suscitando os mais variados discursos.

Em relação a essas políticas educacionais de combate à homofobia na escola, vimos que a discussão sobre a diversidade sexual na escola se traduz em sentimentos de desconforto e indignação por parte desses líderes, pois esta constitui um péssimo exemplo para as famílias e uma ameaça de destruição dos pilares da sociedade atual regida por uma moral conservadora.

Nesse sentido, acreditamos que é preciso pensar em um modelo educacional que deixe de reproduzir a lógica de exclusão, pois a homofobia no contexto da escola compromete a inclusão educacional e a qualidade de ensino, já que os conflitos referentes à sexualidade, principalmente aqueles relativos à orientação sexual e à identidade de gênero, ganham contornos mais expressivos no espaço da escola. É no ambiente escolar, depois do ambiente familiar, que ocorre o processo mais importante de socialização, sendo também um lugar de embates e enfrentamentos em relação à aceitação das diferenças. O ambiente escolar deve buscar alternativas para que esse espaço deixe de ser reprodutor de injustiças, como as que ocorrem no interior das escolas, ou seja, situações de intimidação, chacotas, isolamento e até agressão física e verbal.

Pensamos que as questões relacionadas à diversidade sexual precisam ser estudadas pelos professores, já que são os protagonistas no processo educativo, assim como o material pedagógico deve ser revisto e adaptado de forma planejada.

Cabe enfatizar que o papel da escola na luta contra a intolerância é fundamental e o reconhecimento da igualdade em relação ao grupo LGBT é tema que diz respeito a todos os cidadãos.

 

 


Notas

* Este artigo de investigação científica e tecnológica deriva-se de um estudo denominado: “Discursos, homofobia e políticas de direitos humanos”, em convênio IFMT/UFPB (acta de 27 de marzo de 2014). Mês e ano de início: julho, 2010; mês e ano de término: março, 2014. O artigo apoia-se em um enfoque eminentemente qualitativo. Área: Ciências Sociais; área do conhecimento: Psicologia Social; subárea: temas especiais

 


 

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    Referencia para citar este artículo:De Oliveira, C. E., Pereira Alberto, M. de F. & Borges Bittencourt, N. de F. (2016). Tensões e contradições nos discursos políticos sobre o combate à homofobia no contexto da escola brasileira. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, 14 (2), pp. 1479-1492.

 

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