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Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud

versão impressa ISSN 1692-715X

Rev.latinoam.cienc.soc.niñez juv vol.15 no.2 Manizales jul./dez. 2017

https://doi.org/10.11600/1692715x.1522220092016 

Segunda Sección: Estudios e Investigaciones

 

DOI: http://dx.doi.org/10.11600/1692715x.1522220092016

 

Desafios da Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte no Brasil*

 

Challenges of protecting children and adolescents threatened with death in Brazil

 

Retos en la protección de niños y adolescentes amenazados de muerte en Brasil

 

 

Eduardo Lopes Salatiel1, Cecília de Andrade França2, Juliana Marques Resende3, Raquel Lanza Guimarães4

 

1 Educador Social do Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte de Minas Gerias, Brasil. Filósofo. Mestrando em Educação e Formação Humana na Universidade do Estado de Minas Gerais. Especialista em Direitos Humanos e Cidadania pelo Instituto Santo Tomás de Aquino. Orcid: 0000-0002-0335-0933. Endereço eletrônico: eduardo.salatiel@gmail.com

2 Coordenadora Técnica do Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte de Minas Gerias, Brasil. Assistente Social. Especialista em Estudos de Criminalidade e Segurança Pública pela Universidade Federal de Minas Gerais. Orcid: 0000-0002- 9173-6827. Endereço eletrônico: cissaaf@yahoo.com.br

3 Psicóloga do Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte de Minas Gerias, Brasil. Psicóloga. Mestra em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais. Orcid: 0000-0001-8330-7371. Endereço eletrônico: julianamarquesresende@gmail.com

4 Coordenadora Geral do Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte de Minas Gerais, Brasil. Psicóloga. Pós-graduanda em Cidadania e Direitos Humanos no Contexto das Políticas Públicas pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Orcid: 0000-0002-4722-9860. Endereço eletrônico: raquel.lanzapsi@gmail.com

 

 

Artículo recibido en septiembre 20 de 2016; artículo aceptado en enero 27 de 2017 (Eds.)

 


Resumo (descritivo):

Este artigo apresenta reflexões sobre a atuação do Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte no Estado de Minas Gerais. Tomando como referencial a Doutrina da Proteção Integral, preconizada no Estatuto da Criança e do Adolescente, e a Metodologia do Marco Lógico (MML), recorremos à análise documental de modo a apresentar os marcos legais que orientaram a criação, o funcionamento e o desenvolvimento do Programa, assim como o perfil socioeconômico dos protegidos, cujas trajetórias de vida, marcadas por diversas formas de violações de direitos, se configuram como um grande desafio à proteção. Por outro lado, percebemos que um trabalho que encare os jovens como sujeitos de direitos permite intervenções cujos efeitos contribuem para a construção de novos projetos de vida.

Palavras-chave: problemas sociais, exclusão social, homicídio, jovens (Thesaurus de Ciências Sociais da Unesco).

 


Abstract (descriptive):

This article reflects on the work of the Protection Program for Children and Adolescents who have received Death Threats in the State of Minas Gerais, Brazil. Framed within the Doctrine of Integrated Protection, contained within the Children and Adolescents Statute, as well as the logical framework approach (LFA), the authors of the study used documentary analysis to present the juridical framework responsible for the Program's creation and operation, in addition to the socioeconomic profiles of beneficiaries of the program. The lives of these children and adolescents, marked by various forms of violations of their rights, represent a significant challenge in terms of protection work. The authors conclude that this type of project, which views young people as subjects of rights, allows interventions that contribute to the construction of new life plans for these children and adolescents.

Key words: social problems, social exclusion, homicide, youth (Unesco Social Sciences Thesaurus).

 


Resumen (descriptivo):

Este artículo presenta reflexiones sobre la actuación del Programa para la Protección de Niños y Adolescentes Amenazados de Muerte en el Estado de Minas Gerais. Referenciados en la Doctrina de la Protección Integral, presente en el Estatuto de los Niños y Adolescentes, y en la Metodología del Marco Lógico (MML), empleamos el análisis documental con el fin de presentar el marco jurídico, que dirigió la creación y el funcionamiento del Programa, así como el perfil socioeconómico de los protegidos, cuyas trayectorias de vida, marcadas por diversas formas de violaciones de sus derechos, configuran un importante desafío a la protección. Por otro lado, nos damos cuenta de que un trabajo que ve a los jóvenes como sujetos de derechos permite intervenciones cuyos efectos contribuyen a la construcción de nuevos proyectos de vida.

Palabras clave: problemas sociales, exclusión social, homicidio, jóvenes (Tesauro de Ciencias Sociales de la Unesco).

 


 

1. Introdução

 

A violência letal vem se constituindo como grave problema social no Brasil, desde meados dos anos 1980. Com o acirramento dos conflitos no meio urbano, o país assiste a um aumento significativo do número de homicídios, fenômeno esse que tem afetado a população juvenil de forma ainda mais preocupante. A dimensão que o problema adquiriu, sobretudo a partir dos anos 1990, exigiu das autoridades a tomada de medidas capazes de enfrentálo, tendo em vista, inclusive, a assinatura de tratados internacionais de direitos humanos e a pressão dos movimentos sociais.

No que diz respeito à proteção de crianças e adolescentes, um importante passo foi dado com a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA (Brasil, 1990) que, além de postular o direito à proteção integral, constituiu-se como referência para a elaboração de políticas públicas, abrindo caminho para a constituição do Sistema de Garantia de Direitos (SGD), tão caro à organização das políticas de atendimento a esse público. O SGD pode ser compreendido como um conjunto articulado de instituições do Poder Público e da Sociedade Civil, assim como de programas e serviços, cujos esforços centram-se na busca por garantir a efetiva implementação da Doutrina da Proteção Integral (Oliveira, 2014).

O Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM) nasce a partir desse mesmo referencial, fruto da mobilização social e de determinados agentes políticos, cujos esforços foram essenciais para pautar, junto aos poderes Executivo e Legislativo, a criação e o funcionamento do Programa.

A criação do PPCAAM se deu no Estado de Minas Gerais em 2003 e, desde então, o Programa funciona com uma equipe multidisciplinar, buscando garantir a integridade física de crianças e adolescentes além de oferecer apoio financeiro, pedagógico, jurídico e psicossocial aos sujeitos atendidos. A complexidade envolvida nesse processo coloca diversos desafios ao cotidiano de trabalho da equipe técnica, de modo que a reflexão em torno dessa atuação se mostra cada vez mais uma necessidade, exigindo a constituição de uma práxis capaz de englobar reflexões e conhecimentos que vão além daqueles produzidos na Academia.

Com o objetivo de melhor identificar e compreender os fatores condicionantes das situações que levam a ocorrência de uma ameaça de morte, bem como daqueles que incidem no trabalho de proteção a pessoas ameaçadas, o PPCAAM no Estado de Minas Gerais (PPCAAM/MG) vem pautando um processo de reflexão que foi aprofundado e qualificado a partir do ano de 2014. Em parceria com a Fundação João Pinheiro, instituição de ensino e pesquisa vinculada ao Governo de Minas Gerais, e a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social de Minas Gerais (Sedese), passou-se a utilizar a metodologia do Marco Lógico.

De acordo com o Instituto Latinoamericano y del Caribe de Planificación Económica y Social (2005), a Metodologia Marco Lógico- MML é uma ferramenta para facilitar o processo de conceituação, implementação e avaliação de programas e projetos, podendo ser utilizada em todas as suas etapas. Para tanto, a metodologia conta com a ferramenta Matriz de Marco Lógico, desenvolvida para facilitar a gestão e a avaliação de programas e projetos de desenvolvimento; favorecer mecanismos de discussão e trabalho transparentes, participativos, estruturados e flexíveis; facilitar a análise, o intercâmbio de experiências, a reflexão, a eleição entre diferentes opções e relacionar a análise com a ação. No PPCAAM/ MG, a construção do marco lógico permitiu destacar as vulnerabilidades evidenciadas no perfil dos protegidos e relaciona-las às ações desenvolvidas para o enfrentamento das mesmas.

Nas seções seguintes, serão apresentados alguns resultados desse processo. Para a discussão proposta aqui, iniciamos apresentando um breve histórico da criação do PPCAAM e, em seguida, o perfil dos sujeitos acompanhados em determinado período. A partir desses elementos, passamos a uma discussão acerca dos principais desafios colocados ao trabalho de proteção, assim como de algumas possibilidades que se constituem em experiências positivas.

 

2. A violência letal e o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte

Entre os anos de 1980 e 2012, o Brasil contabilizou o assassinato de 1.202.245 pessoas, de acordo com dados apresentados pelo Mapa da Violência 2014 (Waiselfisz, 2014), publicação que vem contribuindo para evidenciar a dimensão que a violência letal adquiriu nas últimas décadas. Para termos uma ideia, a taxa de homicídios, que em 1980 era de 8,5 para cada 100 mil habitantes, chegou a 18,5 no ano de 2012.

Entre os jovens, no entanto, o cenário é ainda mais preocupante, tendo em vista que a já elevada taxa de 19,6 homicídios para cada 100 mil jovens, em 1980, salta para 57,6 em 2012. Neste ano, os homicídios juvenis representaram 53,4% do total de homicídios no país, sendo que os jovens representavam, à época, apenas 26,9% da população (Waiselfisz, 2014). Considerada a faixa etária de 0 a 19 anos, ao longo do período de 1980 a 2013, os homicídios passam de uma representação de 0,7% para 13,9% do total de mortes, sendo que o problema se intensifica a partir dos 13 anos de idade quando, comparado à idade anterior, o número de adolescentes assassinados praticamente triplica. Das 10.520 crianças e adolescentes assassinados em 2013, 10.049 tinham entre 13 e 19 anos (Waiselfisz, 2015).

As perspectivas para o futuro são igualmente preocupantes de acordo com a última edição do índice de Homicídios na Adolescência (Melo & Cano, 2014), publicação que busca estimar o risco de morte por homicídio na adolescência e é desenvolvida no âmbito do Programa de Redução da Violência Letal contra Adolescentes e Jovens (PRVL). Analisados os dados do ano de 2012, estima-se que 42 mil adolescentes serão vítimas de homicídio entre 2013 e 2019, antes de completarem 19 anos, considerados apenas os municípios brasileiros com mais de 100 mil habitantes.

O Estado de Minas Gerais é representativo dessa conjuntura, tendo em vista que, considerado o período de 2002 a 2012, o número de homicídios (na população total) cresceu 52,3%, em contraposição aos demais estados da Região Sudeste. Enquanto o estado do Espírito Santo apresentou um incremento de 3,3%, os estados de São Paulo e Rio de Janeiro registraram redução de 56,4% e 44,9%, respectivamente. A população jovem, assim como no cenário nacional, apresenta-se mais vulnerável, já que o número de jovens assassinados no período citado cresceu 54,6% (Waiselfisz, 2014).

Diante desse quadro e, sobretudo, em decorrência do número de adolescentes, em cumprimento de Medida Socioeducativa de Semiliberdade, assassinados na cidade de Belo Horizonte, foi criado em 2003 o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM). Inicialmente, o Programa foi executado como projeto piloto em Minas Gerais, sendo, posteriormente, expandido para outras Unidades da Federação. Nessa perspectiva, a Lei n° 15473, de 28 de janeiro de 2005, que autorizou a criação do PPCAAM no Estado de Minas Gerais, estabelecia, em seu Artigo 1°, o objetivo do Programa: "proteção especial de crianças e adolescentes ameaçados de morte ou em risco de serem vítimas de homicídio, em virtude de envolvimento em ato infracional ou por serem testemunhas de crimes ou de atos delituosos" (Minas Gerais, 2005).

Essa vinculação entre proteção e cometimento de ato infracional ou testemunho de crime dá lugar a uma perspectiva de proteção mais abrangente, a partir da instituição oficial do Programa, que se deu por meio do Decreto Presidencial n° 6231, de 11 de outubro de 2007 (Brasil, 2007). Nele, a garantia à proteção aparece genericamente direcionada a "crianças e adolescentes expostos a grave ameaça no território nacional", podendo ser estendida a jovens com até 21 anos, quando egressos do Sistema Socioeducativo, bem como a seus familiares.

A execução do Programa nos estados se dá por meio de convênios firmados entre a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, os governos estaduais e Organizações Não Governamentais. Em Minas Gerais, o PPCAAM é executado através de convênio entre a Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania (Sedpac) e o Instituto Jurídico para Efetivação da Cidadania (Ijuci/MG), entidade filantrópica, de natureza civil sem fins lucrativos, que opera de forma interdisciplinar pela democratização do acesso à justiça, colaborando para a consolidação da autonomia do indivíduo e do Estado Democrático de Direito. Os estados que não contam com o programa local são atendidos pelo Núcleo Técnico Federal (NTF), com sede na Capital Federal, Brasília.

A atuação do PPCAAM se dá a partir da provocação por uma de suas Portas de Entrada, a saber: o Poder Judiciário, o Ministério Público ou os Conselhos Tutelares. Ao tomarem conhecimento de uma suposta ameaça de morte direcionada a criança ou a adolescente, deve ser realizada uma pré-avaliação com vistas a subsidiar a decisão pelo acionamento ou não do Programa, bem como a avaliação, posterior, por parte da equipe do PPCAAM. Feito o acionamento, o atendimento da criança ou adolescente e seus familiares é realizado, na quase totalidade dos casos, por dois técnicos com formações distintas, dentre as áreas do Direito, Serviço Social e Psicologia.

A inclusão no Programa está condicionada, além da existência de ameaça de morte iminente endereçada a criança ou a adolescente, à voluntariedade por parte desses sujeitos e seus responsáveis legais. Constatada a ameaça de morte e aceita a proposta de proteção, o trabalho do Programa consiste na retirada imediata desses sujeitos do local onde se deu a ameaça e no encaminhamento dos mesmos para local seguro, tão distante do primeiro quanto seja necessário. Procura-se, nesse processo, fomentar a inviabilidade de uma nova situação de ameaça, fornecendo apoio e assistência social, jurídica, psicológica, pedagógica e financeira, tendo em vista sempre o caráter excepcional desta medida protetiva. Nesse sentido, mostra-se de grande importância a implicação das instituições que compõem a rede de assistência social, saúde e educação, dentre outras.

Para tanto, o Guia de Procedimentos PPCAAM (Brasil, 2010) estipula uma equipe mínima para funcionamento do Programa, que deve contar com advogado, assistente social, educador social e psicólogo, além de assistente administrativo, motorista e de duas coordenações (adjunta e geral). Nesse contexto, valoriza-se a intervenção interdisciplinar, tendo em vista "a complexidade envolvida na execução do Programa, marcada por múltiplas determinações" (Brasil, 2010, p. 68).

Na definição do local onde será realizada a proteção incidem vários fatores, dentre eles: a consideração do poder do ameaçador, da ocorrência de exposição midiática e da motivação da ameaça. Casos em que o ameaçador é agente público ou ocupa posição de chefia no tráfico, assim como se a ameaça se dá em razão do testemunho de um crime, por exemplo, podem apresentar desafios de maior complexidade ao trabalho de proteção. Os efeitos desse processo, na quase totalidade dos casos, são sentidos de forma significativa pelos protegidos, já que implicam no rompimento de vínculos com o território, de laços de afetividade e amizade, dentre outros.

Em local seguro, prezando sempre pelo caráter excepcional da medida de proteção, busca-se promover a reinserção social do protegido e seus familiares a partir do acionamento da rede de atendimentos em saúde, educação, assistência social, trabalho, cultura e lazer. Esse é o mecanismo mais perseguido para promover o desligamento do caso, ainda que este possa se dar por outros motivos, tais como: cessação da ameaça, não observação das regras da proteção, evasão, solicitação do incluído e o óbito.

Cumpre destacar que a criação do PPCAAM é fruto, em grande medida, de um longo processo de discussões e lutas em torno dos direitos humanos empreendidas, sobretudo, a partir do fim da II Grande Guerra. A Declaração Universal dos Direitos da Criança, de 1959, nesse sentido, ao preconizar, dentre outros, o direito à proteção especial como forma de garantir o desenvolvimento físico, mental e social da criança, abriu caminho para outros avanços, como é o caso da Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989.

Em sintonia com esse processo, a Constituição Federal do Brasil, promulgada em 1988 (Brasil, 1988), promoveu importantes conquistas no que tange à proteção da criança e do adolescente, materializadas, sobretudo, em seus artigos 227 e 228. A partir deles, consolidaram-se o direito à proteção especial e a absoluta prioridade na garantia de direitos, tais como: saúde, alimentação, educação, profissionalização e convivência familiar e comunitária, além da fixação da maioridade penal em 18 anos de idade.

O Estatuto da Criança e do Adolescente- ECA (Brasil, 1990) acompanha esse processo, trazendo outros importantes avanços. Fundado na Doutrina da Proteção Integral, e não mais na Doutrina da Situação Irregular, o ECA passa a encarar a criança e o/a adolescente como pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, assim como sujeitos de direitos. Essa perspectiva orienta a criação e o funcionamento do PPCAAM/MG, motivo pelo qual uma das principais preocupações do Programa é levar a cabo uma proteção que não seja ela própria causa de novas violações de direitos.

Nesse sentido, como parte dos esforços por qualificar a atuação da equipe técnica do PPPCAAM, percebemos ser de grande importância o conhecimento acerca dos protegidos, sobretudo no que diz respeito à dimensão socioeconômica. Sendo assim, esforços têm sido empregados no sentido de qualificar a coleta de dados, de modo que eles possam subsidiar reflexões e tomadas de decisões.

 

3. Perfil dos atendidos pelo PPCAAM/MG

Considerado o período de 2006 a junho de 2016, o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte de Minas Gerais (PPCAAM/MG) atendeu 5746 solicitações para avaliar a possível existência de ameaças de morte direcionadas a crianças e adolescentes. A complexidade desse processo pode ser evidenciada na medida em que, dos casos representados por estas solicitações, apenas 1150 foram incluídos, implicando em um trabalho que envolveu, também, aproximadamente 2435 familiares. A perspectiva de incluir tanto o sujeito ameaçado, quanto seu núcleo familiar, decorre do direito à convivência familiar, preconizado no ECA (Brasil, 1990) e estabelecida como prioridade pelo Guia de Procedimentos do Programa (Brasil, 2010).

Os casos não incluídos não representam, necessariamente, a inexistência de ameaça de morte, mas apontam para desafios colocados ao trabalho do PPCAAM/MG, seja em relação ao modo como promove a proteção, seja na relação com outras entidades que atuam na defesa dos direitos da criança e do adolescente. Observemos, nesse sentido, os motivos de não inclusão (Tabela 1):

 

 

De fato, um número grande de solicitações é constituído por casos em que não se verificou a existência de ameaça de morte, a partir da avaliação feita pela equipe técnica. Chama atenção, no entanto, o fato de que há um número grande de casos em que, mesmo diante da existência desse tipo de ameaça, não se verifica a inclusão do ameaçado e seus familiares. A recusa, caracterizada pela não aceitação da proposta de proteção por parte do/a adolescente e/ou seu responsável, representa 39,2% dos casos. Em razão da não adesão, o/a adolescente na quase totalidade dos casos retorna para o local onde se deu a ameaça, correndo o risco de ser assassinado/a. Buscando amenizar esse risco, o PPCAAM/MG pauta ações junto às Portas de Entradas e instituições da rede local de atendimento em saúde, assistência social, medidas socioeducativas em meio aberto e programas de prevenção à criminalidade.

A não inclusão em função do cumprimento de medidas socioeducativas representa 6,0% dos casos. Esses dizem respeito às situações em que é identificada a existência de ameaça de morte, contudo, o/a adolescente, por estar em cumprimento de medida privativa de liberdade, não é incluído/a, tendo em vista o entendimento de que ele/a já se encontra protegido/a pelo Estado. Nesses casos, o Programa é acionado novamente no momento do desligamento da medida, para nova avaliação e possível proposta de proteção.

Os casos em que a família aponta e articula uma alternativa segura para proteção, sem precisar da intervenção do Programa, representa 10,4% das não inclusões. O não comparecimento ao atendimento corresponde a 4,0% dos casos, quando é agendada a entrevista para verificar a existência de ameaça de morte e o/a adolescente se ausenta, sendo inviável a avaliação. O óbito representa 0,2% e indica os casos em que os/as adolescentes morreram antes da avaliação do PPCAAM/ MG. A categoria "outros", representativa de 9,1% de não inclusões, diz respeito aos casos de acolhimento institucional, falta de retorno do órgão demandante, casos em que a Porta de Entrada construiu alternativa sem necessitar da avaliação do Programa, dentre outros motivos não previstos.

Apresentamos, a seguir, um perfil dos casos incluídos e acompanhados durante o período de janeiro de 2014 a junho de 2016. Esse recorte temporal foi escolhido a partir da qualificação do processo de coleta dos dados, a partir da implementação de nova ficha de avaliação preenchida no momento da entrevista.

Neste período, foram atendidas 972 solicitações que resultaram em 126 casos incluídos, juntamente com 242 familiares.

Nas Tabelas 2 e 3, apresentamos o perfil das crianças e adolescentes incluídos e a condição econômica de suas famílias.

 

 

 

Os dados da Tabela 2 indicam um claro recorte étnico-racial, assim como um viés de gênero e classe no que diz respeito às ameaças de morte. Crianças e adolescentes negros do sexo masculino mostraram-se mais vulneráveis a esse tipo de violência, em sintonia com os dados apresentados pelo Mapa da Violência (Waiselfisz, 2014, 2015) no tocante às vítimas de homicídio no país. No que diz respeito à idade, em especial, podemos observar que o número de adolescentes ameaçados (faixa etária de 12 a 17 anos) é bem maior que o número de crianças ou jovens. Essa constatação está de acordo com dados apresentados por Waiselfisz (2015), segundo os quais, o número de homicídios cresce de forma significativa a partir dos 13 anos de idade.

Percebemos, ainda, as marcas do fracasso escolar, evidenciadas pela distorção idade/ série, de grande parte dos incluídos no período. Verificamos que 92 adolescentes e jovens, no que diz respeito à idade, já deveriam ter concluído o Ensino Fundamental, mas apenas 7 o fizeram efetivamente. Destes, no entanto, é provável que alguns, senão todos, tenham igualmente vivenciado a reprovação e a repetência escolares, já que 11 incluídos se encontravam na faixa etária de 18-21 anos, período em que o ensino médio, normalmente, já deveria ter sido concluído.

A Tabela 3 indica que parcela significativa dos/as protegidos/as vive em situações de pobreza ou extrema pobreza, que são caracterizadas pela percepção de renda per capita mensal de R$170,00 e R$ 85,00, respectivamente (Brasil, 2016). Outro fator que chama a atenção relaciona-se à constituição do núcleo familiar que, na grande maioria dos casos, tem como referência a genitora.

Em relação à motivação da ameaça, verificamos que a causa mais recorrente se refere ao envolvimento com redes de criminalidade, sobretudo relacionadas ao tráfico de drogas, conforme Tabela 4.

 

 

Outro dado que merece destaque diz respeito aos motivos que implicam no desligamento do protegido, apresentados na Tabela 5. Podemos observar que parte significativa dos protegidos não sustenta ou não se adapta às necessidades (sobretudo, às regras) do processo de proteção, resultando, por isso, em um número grande de desligados por solicitação, quebra de normas e evasão (no total, 95 casos). O motivo "transferência" representa o caso que, devido a gravidade da ameaça, a proteção é realizada em outro estado, pelo PPCAAM local.

 

Os dados apresentados evidenciam o modo como esses sujeitos estão imersos em um ciclo de violência e violação de direitos. é nesse cenário de vulnerabilidade e desamparo (material, afetivo e institucional) que o Programa de Proteção se depara com diferentes desafios, mas, também, com algumas possibilidades que tornam a proteção uma experiência significativa.

 

4. Desafios e possibilidades do trabalho de proteção

A partir da análise dos dados do Programa e do perfil dos atendidos, é possível identificar os principais fatores que redundaram em um cenário de risco envolvendo crianças e adolescentes. Fatores esses que abrangem fragilidades tanto familiares quanto referentes ao contexto comunitário e aos principais problemas relacionados às políticas públicas, que vêm contribuindo para a vulnerabilização desses sujeitos.

Ao falarmos de fragilidades, somos remetidos ao conceito de vulnerabilidade que, segundo Bronzo (2008), refere-se à exposição a riscos diversos, sejam eles naturais, sociais, ambientais, entre outros. De forma ampla, o conceito de vulnerabilidade engloba, ainda, a capacidade de resposta e enfrentamento, por parte dos sujeitos, dos fatores ou situações de risco. Segundo a autora, a

    (...) vulnerabilidade é determinada pela estrutura de oportunidades, por um lado - termo que identifica o conjunto de recursos, bens e serviços, programas, benefícios colocados à disposição de públicos com diferentes níveis e tipos de vulnerabilidade - e a dimensão psicossocial, que se refere, basicamente, às ações (e não ações) das famílias para prevenir, mitigar ou enfrentar os riscos (Bronzo, 2008, p. 4).

Para Oliveira (2014), a concepção de vulnerabilidade, apesar de estar comumente vinculada à situação de pobreza, não se limita a questões de renda, mas está ligada a exposição a riscos e à incapacidade para superá-los, "(...) seja porque a família/indivíduo não possui ativos, tais como capital social, financeiro e físico, seja porque não estão inseridos em um contexto de oportunidades adequado" (p. 46). Seguindo a abordagem proposta por Ayres, Calazans, Saletti y França (2006), as vulnerabilidades identificadas no perfil dos protegidos pelo PPCAAM/MG foram agrupadas em três categorias: individuais, sociais e programáticas. Segundo os autores, a gravidade da situação de risco depende da combinação de elementos dessas três categorias.

Em relação às vulnerabilidades individuais, que dizem respeito aos aspectos biológicos, emocionais, cognitivos, atitudinais e referentes às relações sociais, foram identificadas as seguintes:

    • Violência transgeracional/ intrafamiliar;
    • Rompimento/ fragilização dos vínculos familiares;
    • Ausência/omissão dos pais na educação dos filhos;
    • Transferência da responsabilidade pelos filhos para as instituições;
    • Adoecimento psíquico do familiar;
    • Adoecimento psíquico da criança e adolescente;
    • Uso abusivo de drogas;
    • Cometimento de atos infracionais/ desejo de pertencimento e reconhecimento social;
    • Condição peculiar de desenvolvimento da criança e do adolescente.

Quanto às vulnerabilidades sociais, relacionadas aos fatores culturais, sociais e econômicos que determinam as oportunidades de acesso a bens e serviços, as mais recorrentes foram:

    • Baixa renda;
    • Baixa escolaridade dos pais;
    • Evasão escolar/baixa escolaridade;
    • Familiar envolvido com a criminalidade;
    • Dinâmica social violenta/cultura da violência;
    • Criminalização/estigmatização da pobreza e da juventude negra;
    • Oportunidades precárias e escassas de inserção no mercado de trabalho;
    • Violência de gênero contra a mulher;
    • Invisibilidade social/segregação;
    • Facilidade de acesso a armas de fogo;
    • Testemunho de crimes.

No que diz respeito às vulnerabilidades programáticas, por sua vez, relacionadas aos recursos sociais necessários para a proteção da pessoa a riscos à integridade e ao bem-estar físico, psicológico e social, foram identificadas as seguintes:

    • Práticas educativas desmotivantes;
    • Insuficiência de políticas de saúde;
    • Baixa eficiência do Sistema de Justiça;
    • Precariedade na execução das medidas socioeducativas;
    • Violência estatal/institucional;
    • Ausência/fragilidade de Políticas Públicas no território.

Do exposto, podemos dimensionar diversos desafios colocados ao trabalho de proteção, sobretudo na perspectiva de garantir uma reinserção social capaz de afastar uma nova situação de ameaça, alterando as condições de vulnerabilidade a partir do fortalecimento do repertório de respostas e da expansão de capacidades e fronteiras de pensamento e ação. Nessa direção, o PPCAAM/MG busca atuar, em relação aos três conjuntos de vulnerabilidades, promovendo ações como as descritas a seguir.

No que tange às vulnerabilidades individuais apresentadas, a equipe do Programa se dedica à compreensão da dinâmica familiar e dos papéis exercidos por seus membros; à oferta de espaços individualizados de escuta e respeito às demandas particulares; à realização de atividades que envolvam o núcleo familiar e estimulem a convivência, o fortalecimento dos vínculos, além da adaptação no novo local de moradia. Nesse campo, ainda são promovidos os encaminhamentos necessários ao tratamento de questões de saúde e à responsabilização/ cumprimento de medidas socioeducativas. Ainda no campo individual, se faz necessário aprofundar sobre o histórico de vida do protegido e quais suas perspectivas para a proteção, contribuindo para a sustentação desse processo, para o que é fundamental que o sujeito possa se responsabilizar por suas escolhas e pelas consequências dessas para a sua vida.

Em relação às vulnerabilidades sociais, o Programa intervém promovendo a articulação dos equipamentos da rede de garantia de direitos para o referenciamento do núcleo familiar em proteção. Em linhas gerais, as atividades realizadas se referem à inclusão escolar, à profissionalização, à busca pela inserção no mercado de trabalho, à geração de renda e ao encaminhamento para serviços e programas assistenciais.

A atuação do Programa no campo das vulnerabilidades programáticas ocorre, ainda que de forma mitigada, através do fomento do debate sobre o fenômeno da violência letal e da visibilidade das demandas juvenis, na articulação entre políticas e campos intersetoriais, na mobilização do Sistema de Justiça pela efetivação de mecanismos de proteção e responsabilização, dentre outras ações. Nesse contexto, a noção de intersetorialidade, em especial, se mostra importante, na medida em que contribui para uma visão integrada dos problemas sociais e de suas soluções (Bronzo, 2007) e aponta para a necessidade de "articulação de saberes e experiências para a solução sinérgica de problemas complexos (Inojosa, 2001, p. 103).

Nesse contexto de vivência da ameaça de morte e de possibilidade de proteção por parte de uma política pública, alguns elementos de ordem subjetiva merecem atenção e análise, já que, desde a avaliação da ameaça, é sobretudo a fala da/o criança/adolescente que orienta a atuação do Programa. é fundamental reconhecer que se trata, em maior medida, de adolescentes que, em plena fase de desenvolvimento, são colocados a decidir sobre a proteção que lhes é ofertada e a seguir normas, um tanto quanto rigorosas, mas necessárias para a garantia de sua segurança.

Alguns autores, vinculados ao campo da psicanálise, compreendem a adolescência como uma construção cultural marcada pelas transformações corporais da puberdade que define a transição da infância para a fase adulta (Calligaris, 2000; Lacadée, 2011). A ausência de um rito de passagem, em nossa sociedade, estabelece um enigma sobre como se tornar adulto e coloca os sujeitos adolescentes em busca de respostas singulares para essa questão. Durante esse momento de transição, o adolescente se distancia dos referenciais familiares para construir a sua própria identidade.

A esse respeito, Lacadée (2011) afirma que, nesse momento de transição, o adolescente se encontra desamparado, desprovido das leis paterna e materna que antes regiam suas satisfações, levando-o a buscá-las, em muitos casos, via condutas de risco. Le Breton (2012) aponta que essas condutas de risco e o cometimento de atos infracionais são tentativas de ritualizar essa passagem e de reestabelecer o sentimento de pertencimento ao mundo, para aqueles que acreditam não ter mais nada a perder. Algo que reinvista de sentido a própria vida, mesmo que seja pela via do pior. Lacadée (2011) aponta, inclusive, um viés positivo dessas condutas: a de se buscar, a partir deste momento delicado de transição, novas marcas e referências. O autor, dialogando com Le Breton, conclui que, dessas condutas, algumas se tornam modos de vida e outras se constituem como passagens ao ato. O Ato Infracional, nessa perspectiva, diria respeito à "emergência do sujeito do desejo, ocasião em que aquele que, não podendo se servir do Simbólico, serve-se da atuação, ou seja, um lugar onde o sujeito pode advir em que é reconhecido pelo Outro mesmo que não seja pelo bem" (Bartijotto; Verdiani- Tfouni & Scorsolini-Comin, 2016, p. 919)

Nessa direção parece caminhar a constatação de que as ameaças de grande parte dos atendidos pelo PPCAAM/MG tem vinculação, direta ou indireta, com o cometimento de atos infracionais. O próprio envolvimento com a criminalidade representaria uma escolha em que, a despeito do risco colocado, a possibilidade de reconhecimento está posta.

Em razão da decisão pela vida, o rompimento com o local de origem não é sem consequências para o adolescente e sua família. Essa saída, muitas vezes de forma abrupta, exige que os sujeitos renunciem aos vínculos e referenciais que constituem sua relação com o território, lançando-os em direção a um futuro incerto. Como indica Ramírez (2006, p. 36) "La condición de desplazado lanza al sujeto al desamparo social y psíquico, porque lo expulsa de su refugio, imaginado socialmente como lugar de protección y seguridad". Para o autor, no período de renúncia das rotinas e dos hábitos sociais, o sujeito experimenta um prolongamento do tempo presente, marcado pela ausência de perspectivas e planos futuros. Esse momento de suspensão da vida pode levar o indivíduo a uma condição de sofrimento psíquico. A incidência das consequências subjetivas dessa ruptura é bastante significativa se levarmos em consideração o número de evasões e as quebras de normas principalmente no período inicial da proteção. O pouco aparato simbólico para compreender a situação faz com que os sujeitos atuem e reproduzam comportamentos de referenciais construídos anteriormente à proteção.

Tendo isso em conta, o PPCAAM/MG intervém, em muitos momentos, promovendo a chamada repactuação das normas, buscando, diante de atos que poderiam levar ao desligamento do caso, fazer a manutenção da proteção, quase sempre na perspectiva de convocar o/a adolescente e/ou seu responsável enquanto sujeitos desse processo. Essa possibilidade se mostra de grande importância, na medida em que leva em conta aspectos constituintes das juventudes, bem como das trajetórias de vida dos envolvidos. Nos casos em que se mostra efetivamente viável, a repactuação exige dos profissionais envolvidos uma postura dialógica, além da capacidade de avaliar e propor, quase sempre na ordem da urgência, as intervenções necessárias.

O chamado Plano Individual do/a Adolescente (PIA) muito contribui nesse sentido, ao possibilitar um planejamento conjunto de todas as etapas da proteção e orientar o processo de repactuação. Trata-se de uma ferramenta que fomenta a responsabilização do/a adolescente e seus familiares em relação à proteção, ao mesmo tempo em que seus desejos e prioridades são considerados, o que raramente ocorre no âmbito das políticas públicas que, via de regra, encaram os sujeitos como objetos dessas mesmas políticas.

Ainda nessa direção, os educadores sociais do PPCAAM/MG têm pautado uma atuação fundada em três eixos, quais sejam: 1) garantia de direitos; 2) atenuação das dificuldades da proteção e 3) inviabilização de nova situação de ameaça. Essa perspectiva de trabalho, para além de buscar garantir a sustentação da proteção, por parte dos/as protegidos/as, foca em um trabalho de reflexão e/ou reelaboração de seus projetos de vida. Parte-se do pressuposto que a proteção não pode cercear o gozo de direitos (acesso ao lazer e a cultura, por exemplo), mas pode (deve?) se constituir como experiência capaz de recolocar o sujeito no mundo, de forma a fomentar sua autonomia e independência (Salatiel, Martins & Neta, 2016).

Em trabalho que permitiu a escuta de adolescentes e jovens desligados por reinserção social, Oliveira (2014) evidencia a importância do Programa no oferecimento de novas perspectivas de vida, frente às dificuldades advindas da situação de ameaça de morte. Seu trabalho explicita que, embora os/as usuários/as apontem a importância do apoio financeiro oferecido pelo PPCAAM/MG, é recorrente em suas falas a questão da presença e do apoio emocional recebido por parte dos/ as profissionais que os/as acompanharam. A autora, ao analisar essas narrativas, aponta que

    O reconhecimento do sujeito, o suporte efetivo, a atenção ao que é dito e demandado pelo adolescente ajudam a explicar a relevância do programa na ruptura de trajetórias de riscos e na promoção de alternativas de vida para as crianças e jovens atendidos e suas famílias (Oliveira, 2014, p. 104)

Com isso, damos por constituído um panorama, ainda que breve, das muitas variáveis que incidem sobre a conformação das situações de ameaça de morte, com profundas implicações para o trabalho de proteção proposto pelo PPCAAM/MG.

 

5. Considerações Finais

O Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM) foi instituído como forma de enfrentamento à violência letal infanto-juvenil, sendo seu funcionamento atravessado por diferentes fatores que implicam em desafios a serem enfrentados. Se por um lado o Programa se vê diante de impasses que dizem respeito às mazelas sociais e as dificuldades de articulação dos serviços e equipamentos da rede, por vezes insuficientes ou precários, por outro, se depara com questões relacionadas à constituição psicossocial dos sujeitos atendidos. Afinal, a inclusão no Programa nem sempre é sentida positivamente pelos/as protegidos/as, já que exige uma mudança comportamental, tendo em vista os parâmetros instituídos para a manutenção da segurança.

Mesmo atuando na lógica da urgência, tendo em vista a complexidade inerente à proteção de pessoas ameaçadas de morte, entendemos que o PPCAAM/MG busca encarar os/as protegidos/as como sujeitos de direitos. Essa perspectiva, para além de uma conduta ética, implica em práticas que fomentam, em alguma medida, a autonomia e a conscientização dos sujeitos envolvidos, indo ao encontro da lógica da proteção integral. Para tanto, contribui a atuação de uma equipe interdisciplinar capaz de oferecer apoio psicossocial e jurídico, assim como garantir o acesso à cultura e ao lazer, dentre outros direitos humanos. Essa dimensão do trabalho se mostra importante, sobretudo, por promover o amparo de pessoas em um momento de extrema fragilidade, tendo em vista o histórico de violações de direitos vivenciado, o que acarreta, muitas vezes, a naturalização do risco a que estão submetidos.

Por fim, observamos que mesmo diante da consecução dos principais objetivos do Programa -garantia da vida e reinserção social segura- sua contribuição mostra-se relativamente limitada, quando comparada à dimensão que a violência letal vem assumindo nas últimas décadas, como no caso do Estado de Minas Gerais. Essa constatação aponta para a necessidade de fomento de políticas públicas de prevenção e estabelecimento de espaços de articulação institucional que importem em ações conjuntas e ampliadas. Mesmo diante dessa limitação, no entanto, não podemos negar a importância do Programa na vida de centenas de protegidos/as que nos últimos 13 anos tiveram a oportunidade de reconstruírem suas vidas.

 


 

Notas

* O presente relato de caso apresenta parte dos resultados da pesquisa para "Planejamento e Avaliação dos Programas de Proteção e Promoção dos Direitos Humanos do Governo de Minas Gerais". Com início em março de 2014 a agosto de 2016, através de parceria entre a instituição de ensino e pesquisa Fundação João Pinheiro e a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social de Minas Gerais, os trabalhos ainda não foram concluídos, sendo agora organizados pela Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania de Minas Gerais. Conta com financiamento próprio por meio do convênio CDC-Sedpac 1651.000004.2015. área do conhecimento: Ciências sociais/Interdisciplinar; Subárea: Outras ciências sociais.

 


 

Referências

 

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    Referencia para citar este artículo: Salatiel, E. L., França, C. de A., Resende, J. M. & Guimarães, R. L. (2017). Desafios da Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte no Brasil. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, 15 (2), pp. 1123-1135. DOI:10.11600/1692715x.1522220092016

 

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