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Revista Guillermo de Ockham

Print version ISSN 1794-192XOn-line version ISSN 2256-3202

Rev. Guillermo Ockham vol.20 no.2 Cali July/Dec. 2022  Epub Aug 26, 2022

https://doi.org/10.21500/22563202.5825 

Artigo de reflexão

Sobre os “elementos inconscientes da vida social”

Sobre los elementos inconscientes de la vida social

On the unconscious elements of social life

Ronai Pires da Rocha1  * 
http://orcid.org/0000-0001-7511-8730

1 Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria; Brasil


Resumo

Este artigo tem como intenção propor uma reflexão sobre a aplicação da categoría de “inconsciente na política”. O artigo sugere que o texto de Marx, 18 Brumário de Luis Bonaparte, na forma como foi lido por Levi-Strauss, indica uma linha de aplicação do conceito que se afasta da tradição freudiana, em favor de uma abordagem antropológica descritiva. O artigo mostra que autores como Franz Fanon recorreram à noção jungiana de “inconsciente coletivo”, como um recurso metodológico importante. Por fim, o artigo sugere que a reflexão política seria beneficiada com uma aproximação aos procedimentos metodológicos da etnografía e da etnología.

Palavras-chave: inconsciente; política; antropologia; etnologia

Resumen

Este artículo propone una reflexión sobre la aplicación de la categoría de “inconsciente” en la política. El artículo sugiere que el texto de Marx, 18 Brumário de Luis Bonaparte, en la lectura de Lévi-Strauss, indica una línea de aplicación del concepto que se aleja de la tradición freudiana, a favor de un enfoque antropológico descriptivo. El artículo muestra que autores como Franz Fanon han recurrido a la noción junguiana de “inconsciente colectivo” como importante recurso metodológico. Finalmente, el artículo sugiere que la reflexión política se beneficiaría de un acercamiento a los procedimientos metodológicos de la etnografía y la etnología.

Palabras clave: inconsciente; política; antropología; etnología

Abstract

This article proposes a reflection on the application of the category of "unconscious" in politics. The article suggests that Marx's text, The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte, in the reading of Lévi-Strauss, indicates a line of application of the concept that moves away from the Freudian tradition, in favor of a descriptive anthropological approach. The article shows that authors such as Franz Fanon have resorted to the Jungian notion of "collective unconscious" as an important methodological resource. Finally, the article suggests that political reflection would benefit from an approach to the methodological procedures of ethnography and ethnology.

Key words: unconscious; politics; anthropology; ethnology

O 18 Brumário

O reconhecimento do inconsciente na política foi sugerido no 18 Brumário de Luis Bonaparte, de Marx. O texto diz que “os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade, em circunstâncias escolhidas por eles, mas nas circunstâncias imediatamente encontradas, dadas e transmitidas” (Marx, 1982, p. 417). Lévi-Strauss, na sua Antropologia Estrutural, sugeriu que essa fórmula contém não apenas uma justificação da história, mas também uma justificação da etnologia. Mais ainda, a frase “mostra que os dois procedimentos são indissociáveis”. Ele acrescenta: “O etnólogo consagra principalmente sua análise aos elementos inconscientes da vida social”, que não podem, por absurdo, serem ignorados pelos historiadores. (Lévi-Strauss, 1973, p. 39)

Lévi-Strauss usa a palavra “social”, ao invés de “política”, e assim a sua defesa é a de um “inconsciente social”. Mas não é por acaso que ele usa como exemplo o 18 Brumário, no qual se lê que “a tradição de todas as gerações mortas pesa sobre o cérebro dos vivos como um pesadelo”. A tradição como um pesadelo é uma das “circunstâncias imediatamente encontradas” pelos homens e ela se materializa em forças inescapáveis. Marx diz, a seguir, que a força da tradição, a presença dos “espíritos do passado”, é tão grande que nem os revolucionários escapam dela. Nas épocas de crise revolucionária eles pedem emprestado ao passado palavras de ordem, nomes e roupas, e usam-nas, sem dar-se por conta, como disfarces de dignidade que projetam algum passado venerável na nova cena.

Seguimos com o 18 Brumário. Depois de dar dois exemplos desse fenômeno (Lutero e a Revolução de 1789-1814), Marx oferece um esclarecimento para essa expressão, “peso da tradição”, que é decisiva para caracterizar a diminuição do espaço da “livre vontade”. É como se ele percebesse que a primeira metáfora, a do pesadelo, não é boa, pois referese a um evento de natureza pessoal. Cada pessoa dorme seu sono e tem seu pesadelo. Marx então faz uma comparação para conferir conceito à metáfora “peso da tradição”. A passagem na qual ele faz isso é menos famosa do que as anteriores, sobre a história, e isso é uma injustiça. Observe o que ele diz;

Assim o principiante que aprendeu uma nova língua a traduz sempre para a sua língua materna, mas só se apropria do espírito da nova língua e só é capaz de se exprimir livremente nela quando se move nela sem reminiscências e esquece nela a sua língua original. (Marx, 1982, p. 417)

Há outros exemplos dessa atenção que ele presta à linguagem no 18 Brumário. Há passagens nas quais ele indica a importância, nos momentos de crise revolucionária, das performances que tomam de empréstimo ao passado esconjuros, consignas, nomes, palavras de ordem. A encenação do novo é feita com recursos linguísticos que promovem a ressurreição de mortos. As revoluções usam fantasias linguísticas, como se não houvesse outra forma de “criar algo ainda não existente” senão mediante os disfarces do novo com a roupa do velho, especialmente nas revoluções burguesas.

Marx compara a revolução com o aprendizado de uma língua estrangeira. Quando começamos a estudar uma língua estrangeira é difícil desligar-nos da língua materna. O mais comum é pensar no que queremos dizer com as palavras da língua materna e depois fazer uma tradução. A afirmação de Marx se vale de um fenômeno bem conhecido. O aprendizado é medido pela facilidade com que passamos a pensar na nova língua. O aprendizado bem-sucedido é aquele no qual esquecemos a língua materna quando nos expressamos na nova língua. Ora, isso significa que uma revolução bem-sucedida, por assim dizer, depende de esquecimento.

A revolução social do século XIX não pode tirar sua poesia do passado, mas apenas do futuro. Não pode começar consigo mesma antes de se limpar de toda a superstição perante o passado. As anteriores revoluções necessitavam de reminiscências da história universal para dissimularem o seu próprio conteúdo. A revolução do século XIX tem que deixar os mortos enterrar os seus mortos, para chegar ao seu próprio conteúdo. (Marx, 1982, p. 419)

Marx insiste nessas figuras de esquecimento: abandonar a poesia do passado, limparse de superstições, dispensar lembranças da história, matar os mortos. É assim que a linguagem da revolução corta seus vínculos com a língua materna, onde ela começou.

Essas passagens iniciais do 18 Brumário trazem consigo algumas questões que são importantes para um debate sobre o inconsciente e a política. A primeira delas diz respeito ao conceito de tradição. Marx diz que a tradição das gerações mortas pesa sobre os vivos como um pesadelo, mas logo a seguir - na passagem que citei acima - sugere que é possível um esquecimento, uma limpeza do passado. Essas duas afirmações poderiam ser combinadas sem contradição, mediante certas adições e esclarecimentos, mas isso não elimina a tensão entre elas, porque entre as duas afirmações temos a afirmação sobre a língua materna. É como se ele dissesse que a tradição e seu peso são inevitáveis, bem como os pesadelos. Nesse caso, como poderiam ser evitados ou esquecidos? É possível acordar deles sem retornar à “realidade”? Há algum caminho pedagógico que elimine o peso dos pesadelos na língua de uma nova ordem social? A revolução corta pela raiz as relações com o passado? Nesse caso não existe mais a possibilidade de qualquer retorno de algo reprimido? Enfim, o que é “tradição”? E se há um inconsciente na política, ele pode ser suprimido?

Surge aqui outra questão, na qual a metáfora do aprendizado de uma língua estrangeira -a revolução- entra em colapso. Se o aprendizado da língua materna não consiste em colar rótulos em coisas; se aprender uma língua é entrar para dentro de uma história e de um mundo; se o aprendizado da língua materna é o aprendizado de algo que tem um passado; se a linguagem é uma instituição criada, mantida e modificada por seres humanos; se todas as línguas podem ser maternas e estrangeiras e se elas são o meio que temos para pensar o passado, então não é possível surgir uma nova língua, inteiramente desprovida de referência ao passado. Então a revolução não pode “tirar seus termos do futuro”. Haveria, no 18 Brumário, tanto o flerte com a ideia de que as rupturas somente são possíveis mediante a simulação de alguma continuidade quanto o piscar de olhos para a ideia de substituir o inconsciente pelo consciente, definitivamente?

O 18 Brumário, com esse tema do esconjuro linguístico dos “espíritos do passado”, abre o caminho para uma discussão sobre o inconsciente político, pois faz com que tenhamos que nos perguntar sobre as formas concretas mediante as quais a tradição das gerações mortas pesa, como um pesadelo, sobre o cérebro dos vivos. Se o modelo para esse peso é o da língua materna, como sugere Marx, faz todo o sentido pensar que sim, há algo de inconsciente na política, mas isso é paradoxal.

Descritivo e sistemático

Freud insistiu que ele não descobriu o inconsciente. Lichtenberg, Goethe, Schiller, Coleridge, Henri James, Schopenhauer, Nietzsche, entre outros, indicaram o conceito. O trabalho de Freud foi, por assim dizer, dar a ele um lugar teórico e prático, uma sistematização, tornando-o um dos fundamentos de uma psicologia (Gay, 1989, p. 130). Freud refere-se a esse fato mediante a distinção entre a concepção descritiva e sistemática do inconsciente. Ele sugeriu uma sistematização.

O uso descritivo do conceito indica coisas como o comportamento de pessoas hipnotizadas ou aquilo que John Searle descreveu como “crenças inconscientes”, crenças que a gente tem, mas sobre as quais não pensamos. Essas crenças não são exemplos de pensamentos reprimidos ou coisa parecida. Searle acreditava que o avô dele não havia deixado os Estados Unidos, mas nunca havia formulado essa crença (Searle, 1983, p. 2). Essa crença, diria Freud, estava disponível para ele e sua descoberta seria apenas trivial. Freud estava interessado em outro tipo de inconsciente, que ele chamou de “dinâmico” ou “sistemático”. Neste inconsciente há censura e repressão.

Uma das tarefas que Freud tomou para si foi a de justificar a existência de algo que é ao mesmo tempo mental e inconsciente (Freud, 1974, XIV, pp. 192ss). A “suposição” do inconsciente era necessária e legítima a partir de um certo conjunto de “provas”, das quais os sonhos, os atos falhos e os chistes são os exemplos mais populares. Mais bem conhecido ainda é o fato de que a tarefa de justificativa não foi abandonada. Ela foi impulsionada, por exemplo, pela Linguística e pela Antropologia, que trouxeram novos instrumentos auxiliares para a discussão.

De Boas

Onde Lévi-Strauss inspirou-se para dizer que, na fórmula do 18 Brumário, a história e a antropologia são indissociáveis e que o etnólogo dedica sua análise aos elementos inconscientes da vida social? Não é possível resumir essa história aqui, pois ela é apenas um pequeno capítulo da longa e complicada história das relações entre antropologia, linguística e psicanálise, desde o começo do século XX. Vou apenas indicar os pontos centrais.

Entra em cena aqui um autor central na antropologia do século XX, Franz Boas. Ele tem o mérito de ter “definido a natureza inconsciente dos fenômenos culturais” (LéviStrauss, 1973, 35). Em um livro de 1911, Boas dedicou várias páginas ao inconsciente, que foram tomadas como referência por Lévi-Strauss. Nelas, Boas descreve a “natureza inconsciente dos fenômenos linguísticos” (Boas, 1911, 67) e afirma que o estudo da linguagem é um dos ramos mais importantes para a etnologia. Aspectos fundamentais de uma língua - as categorias classificadoras básicos, por exemplo -, não são escolhidos pelo falante, que sequer tem consciência da atuação deles na organização cognitiva. A imensa maioria dos hábitos linguísticos que temos não é resultado de qualquer decisão consciente. Os estudos linguísticos, diz Boas, somente trazem vantagens para a etnologia.

Essas ideias de Boas foram divulgadas antes da publicação do Curso de Linguística Geral, de Saussure e depois do congresso que teve a presença de Boas e Freud, em 1909, nos Estados Unidos. O texto boasiano, que relaciona etnologia, linguística e o vocabulário emergente da psicanálise, é um marco que deve ser valorizado. Boas não cita Freud no texto de 1911, mas a insistência com que usa as expressões “inconsciente” e “subconsciente” não deixa dúvidas sobre as notícias que tinha da psicanálise, ao menos desde o famoso congresso de 1909, na Clark University, que reuniu, entre outros, Freud, Jung, Ferenczi e Boas.

Lévi-Strauss procurou desenvolver a tese boasiana da natureza inconsciente dos fenômenos culturais sem recorrer à psicanálise, pois pensava que a teoria do inconsciente era um dos “aspectos ainda obscuros na teoria de Freud” (Lévi-Strauss, 1973, p. 233). Seu objetivo era demonstrar que as instituições e os costumes sociais possuem estruturas inconscientes, que existem atividades humanas inconscientes “cujas formas são fundamentalmente as mesmas para todos os espíritos, antigos e modernos, primitivos e civilizados” (Lévi-Strauss, 1973, p. 37). Essa tese básica contrariava o freudismo da época, que flertava com uma posição evolucionista. Freud, em um estudo da mesma época, achava que o desenvolvimento infantil repetia, em uma de suas fases, “o homem primitivo, tal como se nos revela à luz das pesquisas da arqueologia e da etnologia”. Observe que nessa passagem de 1911, no final do caso Schreber, na qual ele diz que nos sonhos e nas neuroses nos deparamos com o selvagem, Freud alinha-se com um modelo linear da evolução humana, que deixa no passado o “primitivo”. (Groark, 2019, p. 560)

O uso de “inconsciente”, na Antropologia Estrutural, de acordo com a inspiração boasiana, é de tipo descritivo. Ele indica o fato de que não temos consciência das leis sintáticas e morfológicas da língua, em primeiro lugar. É a partir de premissas como essa que a sociedade poderia ser interpretada em função de uma teoria da comunicação. O mesmo fato sugere que a função simbólica ainda não foi adequadamente compreendida e valorizada (Lévi-Strauss, 1973, pp. 72, 103, 212). Não existe uma sistematização ou uma topografia do inconsciente na antropologia, semelhante àquela da psicanálise. O mesmo se passa, evidentemente, na política.

A colaboração entre a psicanálise e a antropologia surgiu no começo do século XX. É um programa de difícil execução, pois “inconsciente” é uma expressão que faz parte de uma rede de conceitos usualmente aplicados a indivíduos, dos quais dizemos que tem ou não ciência disso ou daquilo. Não é fácil a defesa da existência de um inconsciente político. Por outro lado, a política não consiste apenas em ações de indivíduos; há fenômenos de massas, classes, grupos de interesses etc. Há eventos e processos que transcendem o nível humano. E há, naturalmente, o axioma do 18 Brumário, que diz que fazemos a história sob o sob o peso e o pesadelo da tradição e assim há elementos a favor da ideia de que há inconsciente político. Resta saber como.

Inconsciente e política

Em um de seus extremos conceituais, a política é vista como “uma teia feita de velhacaria de interesses mesquinhos” (Arendt, 2006, p. 27) o mundo dos detalhes comezinhos e do trabalho sem lustro (Clark, 2013, p. 17). No outro extremo, há quem diga que tudo é política. Em algum ponto dessa linha, onde todos parecem ter um pouco de razão, a política é a arte de prever o presente (Benjamin, 2006, p. 520).

É preciso aliviar a expressão “política” do peso messiânico que foi jogado sobre ela ao longo de décadas. A carga salvadora é bem conhecida: o slogan “tudo é política” veio junto às promessas de um outro mundo, no qual viveriam homens e mulheres novos, de outro tipo e com outra moral; a sociedade foi pensada como uma grande escola na qual uma vanguarda educaria as massas e as novas gerações. Essa descrição infantilizadora e as implicações dela, como a da superação da alienação e a conquista de uma consciência social plena, estava no cerne do conceito de política nos anos 1970 na América Latina (Guevara, 1979, pp. 7, 10). Não creio que essa visão tenha desaparecido. Não é raro encontrar a promessa de que um outro mundo é possível. Mal conhecemos um e já sonhamos com outro.

O outro sentido da expressão, a política como teia de velhacarias e do trabalho cotidiano sem brilho, parece indicar apenas o que aturamos em fúria resignada, que explode ocasionalmente em campanhas e votações imprevisíveis. Nas situações eleitorais, trata-se da arena suja na qual se travam batalhas que podem ajudar mais ou menos na construção do mundo futuro. Pouco escutamos aqueles que sugerem que não há mais futuro algum, pois sequer conseguimos prever o presente. A consequência disso é que ficamos sentados nessa gangorra, tudo é política, não há mais política. A miséria desses slogans disfarça a ausência de uma etnografia política que sirva de base para uma etnologia política.

Lévi-Strauss antecipou uma das questões metodológicas mais relevantes para o tema desse debate. Trata-se daquela criada pela antinomia entre o coletivo -a cultura, o social e o político incluídos- e o indivíduo. Ao nomear essa antinomia, ele fez uso da expressão “consciência coletiva”:

... finalmente poderíamos esperar superar um dia a antinomia entre a cultura, que é coisa coletiva, e os indivíduos que a encarnam, porque, nesta nova perspectiva, a pretensa ‘consciência coletiva’ se reduziria a uma expressão no nível do pensamento e condutas individuais, de certas modalidades temporais de leis universais em que consiste a atividade inconsciente do espírito. (Lévi-Strauss, 1973, p. 82)

O texto insinua que uma “nova perspectiva” depende de que a vida social e política seja encarada a partir de uma etnografia como aquela que inspirou o 18 Brumário. Enquanto isso não acontece, a solução consiste no uso de noções descritivas do “inconsciente político”, por vezes com ironia, como, na passagem citada acima.

Fanon e Jung

Poderia ter sido “inconsciente coletivo”? A escolha de Frantz Fanon, diante de um problema semelhante, foi essa. Ele não teve receio de falar em “inconsciente coletivo” quando precisou de um vocabulário para pensar sobre o racismo. Fanon considerou ser “perfeitamente natural” recorrer à Jung para pensar sobre as cristalizações simbólicas que tem o negro como objeto. Em Pele Negra, Máscaras Brancas, Fanon (2020) recorreu a Jung:

A civilização europeia se caracteriza pela presença, dentro do que Jung chama de inconsciente coletivo, de um arquétipo: expressão dos maus instintos, do obscuro inerente a todo Ego, do selvagem não civilizado, do negro adormecido em cada branco. (p. 199)

Fanon fez pequenos reparos a Jung, mas alinhou-se claramente a ele para poder pensar sobre as imposições e cristalizações culturais, as representações coletivas; para Fanon não há problema em pensar o inconsciente coletivo como um conjunto de preconceitos, mitos, atitudes coletivas de determinados grupos, uma “imposição cultural irrefletida”. Ele atua sem que sua presença seja facilmente identificada, e é difícil de ser trazido ao nível do consciente (Fanon, 2020).

Na Europa, o negro tem uma função: representar os sentimentos inferiores, as más índoles, o lado obscuro da alma. No inconsciente coletivo do Homo occidentalis, o negro, ou a cor preta, se assim se preferir, simboliza o mal, o pecado, a miséria, a morte, a guerra, a fome Todas as aves de rapina são pretas. Na Martinica, que é um país europeu em seu inconsciente coletivo, diz-se quando um negro ‘azul’ chega de visita: ‘Que desgraça ele vem trazer’? (p. 201-202)

A noção jungiana de “inconsciente coletivo”, salvo raros casos como o de Fanon, não impactou o pensamento político do século XX. Uma das razões para isso é que a etnografia praticada por Jung e por Freud não teve boa acolhida entre os profissionais da área, por ser de segunda mão. O uso que Freud fez do inconsciente em livros como Totem e Tabu, está baseado em uma etnologia especulativa, que não entusiasma os etnógrafos. As dificuldades são muitas nos dois autores, mas não eliminam certos fatos muito gerais. O principal deles é que é preciso reconhecer e dar um tratamento conceitual aos processos mentais infrapessoais: conteúdos ideacionais, afetos, pensamentos e motivações que estão além daquilo de que temos consciência. Esses conteúdos assumem formas históricas e transpessoais, que moldam o psiquismo humano (Groark 2019, p. 575). Se ainda não temos uma tópica e uma sistemática para pensar esses problemas, talvez seja porque nossa etnografia da política ainda não oferece a base adequada para uma etnologia política.

Referências

Arendt, H. (2006). O que é política. Tradução de Reinaldo Guarany. Rio de Janeiro. [ Links ]

Benjamin, Walter (2006). Passagens. Tradução de Irene Aron e Cleonice Paes Barreto. São Paulo: Editora da UFMG. [ Links ]

Boas, Franz (1911). Handbook of American Indian Languages . Part 1. Washington. Government Printing Office. [ Links ]

Clark, T. J. (2013). Por uma esquerda sem futuro. Tradução de José Viegas. São Paulo: Editora 34. [ Links ]

Fanon Frantz (2020). Pele Negra, Máscaras Brancas. Tradução de Sebastião Nascimento e colaboração de Raquel Camargo. São Paulo: Ubu Editora. [ Links ]

Freud, Sigmund (1974). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud . Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago Editora. [ Links ]

Gay, Peter (1989). Freud. Uma vida para o nosso tempo. Trad. de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras. [ Links ]

Groark, Kevin P. (2019). “Freud among boasians. Psychoanalytic Influence and Ambivalence in American Anthropology”. Current Anthropology, Vol. 60, Number 4, August. [ Links ]

Guevara, Ernesto Ché (1979). El socialismo y el hombre nuevo. México: Siglo XXI Editores. [ Links ]

Lévi-Strauss, Claude (1973). Antropologia estrutural. Tradução de Chaim Samuel Katz e Eginardo Pires. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. [ Links ]

Marx, Engels (1982). Obras escolhidas. Tomo 1. Lisboa: Edições Avante. [ Links ]

Searle, John (1983). Intentionality. New York. Cambridge University Press. [ Links ]

Citar assim: Pires da Rocha, Ronai (2022). Sobre os “elementos inconscientes da vida social”. Revista Guillermo de Ockham 20(2), pp. 289-295. https://doi.org/10.21500/22563202.5825

Declaração de exoneração de responsabilidade: O conteúdo deste artigo é da exclusiva responsabilidade do autor e não representa uma opinião oficial da sua instituição ou da Revista Guillermo de Ockham

Editores convidados: Nicol A. BarriaAsenjo, Ph.D., https://orcid.org/00000002-0612-013X

4Slavoj Žižek, Ph.D., https://orcid.org/0000-0002-1991-8415

Editor-Chefe: Carlos Adolfo Rengifo Castañeda, Ph.D., https://orcid.org/0000-0001-5737-911X

Co-editor: Claudio Valencia-Estrada, Esp., https://orcid.org/0000-0002-6549-2638

Copyright: © 2022. Universidad de San Buenaventura Cali. O Revista Guillermo de Ockham oferece acesso aberto a todo o seu conteúdo nos termos da licença Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0 International (CC BY-NC-ND 4.0).

Declaração de intereses: O autor declara que não há conflito de interesses.

Disponibilidade de dados: Todos os dados relevantes podem ser encontrados no artigo. Para mais informações, por favor contacte o autor da correspondência.

Financiamento: Nenhum.

Recebido: 11 de Março de 2022; Revisado: 25 de Abril de 2022; Aceito: 06 de Maio de 2022

*Correspondência: Ronai Pires da Rocha. Correio electrónico: ronairocha@gmail.com

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