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Avances en Psicología Latinoamericana

Print version ISSN 1794-4724

Av. Psicol. Latinoam. vol.30 no.2 Bogotá July/Dec. 2012

 

Insistência em minorar: reflexões sobre políticas públicas
e saúde

Insistence in minorating: reflections on public policies and health

Insistencia en aminorar: reflexión en políticas públicas y salud

ANITA GUAZZELLI BERNARDES*
BETINA HILLESHEIM**

* Psicóloga, doutora em Psicologia, professora e pesquisadora do programa de pós-graduação em Psicologia da Universidade Católica dom Bosco, Brasil. Correo electrónico: anitabernardes@ig.com.br

** Psicóloga, doutorado em Psicologia, professora e pesquisadora do programa de pós-graduação da Universidade de Santa Cruz do Sul, Brasil. Correo electrónico: betinahillesheim@gmail.com

Para citar este artículo: Bernardes A. G. & Hillesheim B. (2012). Insistência em minorar: reflexões sobre políticas públicas e saúde. Avances en Psicología Latinoamericana, 30 (2), 369-380.

Fecha de recepción: 21 de marzo de 2011
Fecha de aceptación: 23 de mayo de 2012



Resumo

Este artigo discute possibilidades de articulação das políticas públicas de saúde com o conceito de literatura menor. O exercício de reflexão propõe-se a migrar do campo de compreensão das políticas públicas como formas de governamentalidade para as insistências em minorar produzidas como linhas de fuga. Isso significa considerar as políticas públicas como máquinas e que, assim como produzem estratificações, também são palco de experiências de desterritorialização. Essa discussão é considerada como um dispositivo importante tanto às práticas de saúde quanto à Psicologia no que tange à necessidade destas se reinventarem, desfazendo os estratos e refazendo-se não como matéria e forma, mas como velocidade e afectos. Para tanto, em um primeiro momento circunscreve-se o campo conceitual, entendendo-se as políticas públicas tanto como estratégia de governamentalidade como algo que varia suas formas e abre para uma minoração. A partir disso, são consideradas algumas cartografias das políticas públicas e as provocações da minoração, possibilitando o encaminhamento das considerações dessa forma de pensar no próprio campo psicológico.

Palavras-chave: saúde coletiva, programas nacionais de saúde, políticas públicas de saúde



Abstract

This paper discusses possibilities of articulation of public health policies with the concept of minor literature. The exercise of reflection aims at migrating from the field of understanding public policies as forms of governmentality to the insistences in minorating produced as escape lines. This means considering public policies as machines that, in the same way they produce stratifications, are also a stage for experiences of deterritorialization. This discussion is considered as an important device both to health practices and to Psychology concerning their need for reinventing themselves, thus undoing strata and remaking themselves not as matter and form, but as speed and affects. Firstly, the conceptual field has been circumscribed, understanding public policies as both governmentality strategy and something that changes its forms and opens itself to minoration. From that, some cartographies of public policies and minoration provocations have been approached, allowing for the conduction of the considerations of this way of thinking in the very psychological field.

Keywords: public health, national health programs, health public policy



Resumen

El presente artículo pone en discusión las posibilidades de articulación de las políticas públicas de salud con el concepto de literatura menor. El ejercicio de reflexión propone la migración del campo de comprensión de las políticas públicas como formas de gobernabilidad hacia las insistencias en aminorar, producidas como líneas de fuga. Lo anterior significa considerar las políticas como máquinas que producen estratificaciones y que, a la vez, son el palco de experiencias de desterritorialización. Esa discusión se considera un dispositivo importante tanto en las prácticas de salud como en la psicología, en lo que respecta a la necesidad de reinvención de dichas prácticas, deshaciendo los estratos y rehaciéndose, no como materia y forma, sino como velocidad y afectos. Para ello, se circunscribe el campo conceptual, y las políticas públicas se entienden como estrategia de gobernabilidad y como algo que varía sus formas y abre una aminoración. A partir de esto, se toman en consideración algunas cartografías de las políticas públicas y las causas de la aminoración, posibilitando encaminar esta forma de pensar en el propio campo psicológico.

Palabras clave: salud pública, programas nacionales de salud, políticas públicas de salud



A proposta desse artigo é articular as políticas públicas de saúde ao conceito de literatura menor proposto no campo da filosofia. Essa articulação busca servir como intercessor para a Psicologia, ou seja, por meio de tal provocação abre-se o pensamento psicológico como um campo que faz variar suas formas. Tais variações se dão tanto no sentido de tornar as políticas públicas como um objeto que deve e pode ser pensado a partir do campo psicológico, quanto pela apropriação de conceitos filosóficos no campo psicológico para colocar as políticas públicas em análise. O exercício de pensamento reside em um estranhamento de formas autoevidentes e autoexplicativas. Dessa forma, não se considera as políticas públicas um objeto natural e sim uma forma de territorialização que se estabelece mediante uma série: Estado, direito, população, governo. Considerá-las como formas de territorialização significa pensá-las como máquinas: de desejo, de sujeitos, de formas de viver. Esse processo de produção e captura, mesmo que se estabeleça em certas coordenadas de conexões, não é fechado em si mesmo, mas se compõe como um processo de dobra, entendendo-se ainda que tudo que dobra se redobra, se desdobra. Desta maneira, mesmo que a dobra constitua-se por formas de territorialização, deve-se entender que seu potencial de invenção reside justamente na persistência de linhas de fuga, as quais são forças plásticas que desterritorializam.

Ao posicionar políticas públicas também como formas de desterritorialização, a discussão é direcionada para outro plano de possíveis. Esse plano reside na interrogação daquilo que essas máquinas semióticas produzem como acaso de seu desenrolar, aquilo que justamente provoca o alargamento da máquina: uma minoridade.

A ideia de minoridade ampara-se nas reflexões que Deleuze e Guattari (1977) fazem de um personagem conceitual -literatura menor-, a qual é utilizada neste ensaio como uma forma de colocar em análise as políticas públicas. A literatura menor torna-se para o campo de reflexão das políticas públicas uma linha estrangeira, uma força plástica disruptora de novos jogos de força, ao desterritorializar o pensamento e as formas reativas do viver. Pensar as políticas públicas como literatura menor engendra possibilidades óticas/estéticas voltadas não apenas para as formas de governamentalidade, que se utilizam das políticas públicas como estratégia de dispor das coisas para alcançar um fim conveniente, mas para uma produção estrangeira dentro da própria cultura, para uma estilística da existência. A minoração reside justamente nessa potência das políticas públicas também constituírem-se como uma linha feiticeira, na medida em que podem encaminhar processos de invenção, de morte, de loucura.

Isso significa dizer que as políticas públicas, consideradas como prática de governo ao estabelecer coordenadas existenciais, isto é, circunscrevendo determinados territórios, criam, ao mesmo tempo, condições de respostas políticas, de processos que as contestam e as enfeitiçam minoritariamente. Uma vez que, como assinala Foucault (2004), as respostas políticas configuram práticas de liberdade, ao ser articuladas ao personagem conceitual literatura menor, não se referem a uma grande recusa ou uma grande contestação, mas às forças plásticas e ativas que tornam possíveis a vida como vontade de potência. Pensar nesta direção significa subverter a noção de que as políticas públicas operem apenas como estratégias de normalização do corpo social, mas pensá-las como políticas de potência, que possibilitem a emergência de novas formas de subjetivação.


Políticas públicas: entre governar e minorar

Ao entendermos que a literatura menor não é uma língua menor, mas, conforme Deleuze e Guattari (1977), o uso que a minoria faz de uma língua maior, modificando-a, pode-se pensar que, para que as políticas públicas funcionem como práticas de liberdade, é necessário minorar: fazer a língua gaguejar, encontrando outros usos que não aqueles utilizados pela maioria. Neste sentido, tudo é político e sempre adquire um valor coletivo, inventando novas forças ou novas armas. Assim, como assinalam Tadeu, Corazza e Zordan (2004), o menor exprime-se na multidão, funcionando como força subterrânea, repleta de fluxos divergentes que desafiam a imposição de dogmas, de uma só imagem de verdade.

Amparada na reflexão sobre uma língua que gagueja, em um menor que se exprime na multidão, a discussão volta-se para a relação entre governamentalidade e políticas públicas. Essa relação sustenta-se na análise que Foucault (2003) faz tanto do conceito de governamentalidade quanto do conceito de tecnologias. A governamentalidade constitui-se como formas de governo de si e do outro, encontrando, em um conjunto heterogêneo de tecnologias, as estratégias para governar. Por governar, o autor compreende uma arte organizada que se desdobra em duas direções: por um lado, um conjunto de instituições, procedimentos, campos teóricos, análises e táticas com um foco principal nas populações; por outro, uma linha de força que se constitui no Ocidente e que engendrou uma série de saberes sobre regulação, normatização e população, dando forma à figura de Estado. A emergência do problema da população produziu uma migração do governo da família para o governo da própria população, de modo a conformar aquilo que se torna uma ciência de governo, uma economia política: uma arte de governar.

Nesse espaço criado pela arte de governar encontram-se as políticas de objetivação-subjetivação que constituem a relação entre Estado e população, ao mesmo tempo em que forjam a relação de sujeitos consigo mesmo: "aquilo a que o governo se reporta não é, portanto, o território, mas uma espécie de complexo constituído pelos homens e as coisas" (Foucault, 2003, p. 290). A arte de governar a população afasta as estratégias de uma economia doméstica e centraliza as tecnologias nos fenômenos próprios da população: natalidade, mortalidade, habitação, trabalho, epidemias. Neste caso, a família e os indivíduos se tornaram um instrumento do governo das populações. Um instrumento que permite um plano de objetivação que circula entre a individualização e a totalização.

Nesse campo de discussão sobre a arte de governar é possível localizar as políticas públicas como procedimentos de governo, como táticas de uma economia política que tem como objeto a população em seu conjunto, mediante a regulação da relação entre os homens e as coisas. Essa regulação não diz respeito à lei, a um Estado de Justiça, mas sim a um Estado Administrativo que tem por finalidade conduzir a vida da população mediante um dispositivo de segurança. Trata-se, assim, de "um Estado que está obrigado a intervir em todos os casos em que a trama da vida cotidiana é rompida por um acontecimento singular, excepcional" (Foucault, 2010a, p. 172). Essa forma administrativa do Estado encontra nas políticas públicas um instrumento de governamentalidade.

A partir disto, Lazzarato (2008) aponta ainda que, nesta lógica, a racionalidade governamental opera de forma original, pois não funciona segundo uma oposição entre a regulação do Estado e a liberdade do indivíduo, mas de acordo com uma lógica de multiplicidade, que visa estabelecer as conexões possíveis entre termos díspares. Nesta perspectiva, os sujeitos majoritários, tais como classe trabalhadora ou sujeitos de direitos, são substituídos por Foucault por sujeitos minoritários, os que "operam e constituem o real pelo agenciamento e a adição de segmentos, de pedaços, de partes sempre singulares" (p. 45). Desta forma, embora tenhamos ainda uma visão disciplinar do capitalismo, são muito mais os dispositivos de segurança que se afirmam nas sociedades ocidentais. Enquanto a primeira aprisiona e impede, fixando limites, a segurança faz circular, deixa fazer, incita, solicita. A segurança é, assim, produtora de liberdade, alargando e integrando, incessantemente, novos elementos na arte de governar.

Considerando-se as reflexões de Foucault (1984, 1985, 2009a) sobre a ética, torna-se possível encontrar um campo de dispersão, de desprendimento dessa forma de governar. Quando o autor começa a focalizar a análise das tecnologias de si que constituem as formas de governamentalidade, abre-se outro campo de possíveis, ou seja, um jogo entre as tecnologias de governo do outro e as tecnologias de governo de si. Para tanto, Foucault (2009a) descreve que as tecnologias de poder devem ser pensadas em quatro dimensões: (a) tecnologias de produção material; (b) tecnologias semióticas; (c) tecnologias de governo do outro; (d) tecnologias de si. As tecnologias de produção material dizem respeito aos procedimentos dos meios de produção voltados para a construção de bens materiais e sociais. As tecnologias semióticas são aquelas que dizem respeito aos agenciamentos sociais que produzem como efeitos os códigos, sentidos constitutivos da realidade. As tecnologias de governo do outro são os procedimentos produzidos pelas relações de poder como forma de administração da vida e das formas de viver, dos comportamentos, dos desejos, das ideias, etc. Já as tecnologias de si são a forma de inflexão das linhas que constituem as relações de poder, em que o sujeito estabelece formas de governo de si. Esta última passa a considerar não apenas as relações de submissão aos códigos morais, mas as formas de posicionamento frente aos códigos. Esse posicionamento frente ao código encontra-se como uma possibilidade de negociação, como uma minoração na medida em que se conforma como prática de liberdade.

Ao revisitar os gregos, Foucault, em uma leitura deleuziana, mostra como estes dobraram a força sem que esta deixasse de ser força, relacionando-a consigo mesma. Trata-se da invenção do sujeito como produto de uma estética da existência, ou seja, a partir de uma relação consigo como regra facultativa de homens livres. Portanto, existirá sempre uma relação consigo que resiste e que compõe com os códigos e os poderes: "recuperada pelas relações de poder, pelas relações de saber, a relação consigo não pára de renascer, em outros lugares e em outras formas" (Deleuze, 2005, p. 111).

Nesta perspectiva, Passos e Barros (2009) resgatam que a origem etimológica da palavra política remete à cidade (polis), sendo que a arte e o conhecimento para governar o Estado consistem em um destes aspectos. Assim, política é uma forma de atividade humana que, a partir de relações de poder, distribui os sujeitos de acordo com determinadas regras ou normas. A política não se dá somente a partir de um centro irradiador de poder, mas por arranjos locais, a partir de uma dimensão micropolítica. Desta maneira, os autores propõem pensar uma política da narratividade, visto que os modos como narramos o mundo e a nós mesmos definem formas de compreensão e posicionamento diante do que se passa, produzindo subjetividades. Trazendo o exemplo das campanhas da AIDS, com a mudança do conceito de risco para vulnerabilidade, os autores apontam para a reinvenção do regime de dizibilidade, operando tanto na formulação do problema quanto nas formas de comunicação com a população: "muda-se a palavra, o conceito, mas muda-se, sobretudo, o modo de dizer: não mais falar ao indivíduo e do indivíduo, mas falar dos vetores do coletivo" (Passos & Barros, 2009, p. 154).

A noção de literatura menor abre um campo de transgressão no conceito foucaultiano de práticas de liberdade ou formas de resistência. Como sublinham os autores citados acima, transgredir implica enfrentar práticas de assujeitamento/sub-jetivação colocadas nas formas sociais dominantes. Desta maneira, a literatura menor faz gaguejar esse conceito na medida em que passa a ser pensada por outro conceito: linhas de fuga. Neste caso, o uso que uma minoria faz de uma língua maior agenciase por linhas de fuga. Entretanto, apesar da proximidade conceitual entre linhas de fuga e práticas de liberdade, na análise de Deleuze (2008), a diferença reside justamente na definição de que as linhas de fuga são sempre primeiras (não em um sentido cronológico e sim inventivo), enquanto que as formas de resistência são respostas a certas disposições das relações de poder e verdade. Nessa esteira, a potência é o mínimo que se faz forma, sendo que a linha de fuga é pura potência, desterritorialização: "o primeiro dado em uma sociedade é que nela tudo foge, tudo se desterritorializa" (Deleuze, 2008, p. 6). As práticas de liberdade seriam então formas de reterritorialização, não primeiras, mas segundas, terceiras, quartas, não o mínimo, mas o resultado de processos maquínicos.

A condição mínima e inventiva das linhas de fuga é possível ao considerarmos que, ao poder sobre a vida, responde-se com uma potência de vida, ou sej a, com uma política da vida (Pelbart, 2003). Essa potência política da vida é possível ao considerar-se não uma grande recusa a certas formas de subjetivação, mas uma minoração/singularização dessas próprias formas. As políticas públicas como forças biopolíticas provocam e são provocadas por potências políticas da vida. A vida, como objeto da biopolítica, amplia-se de seu agenciamento biológico para um potencial desejante e afetivo. A potência reside justamente nesta condição desejante e afetiva: um corpo-sem-órgãos. No que se refere a esta expressão, a qual Deleuze toma de empréstimo de Antonin Artaud, assinala-se que, como colocam Tadeu, Corazza e Zordan (2004), embora possa parecer algo esotérico, a aposta de Deleuze é pragmática: o corpo-sem-órgãos não é um corpo vazio, mas coincide com a potência máxima, uma vida voltada para os processos de desterritorialização, na qual tudo é ainda possível e deveria permanecer sempre possível.

Trata-se, assim, de um corpo que não será a chancela de uma essência, de uma interioridade, de uma identidade de grupo, mas de uma função operatória que não pára de fazer dobras (Deleuze, 1991). As linhas que fazem dobrar, as linhas que se curvam são intensidades do político que se multiplicam: um político sobre a vida e um político da própria vida. É na curva da potência política da vida que é possível pensar uma língua que gagueja, uma minoração no próprio espaço das políticas de governamentalidade. Essa minoração agenciada por uma potência política da vida se dá em razão do múltiplo não como um conjunto de muitas partes, mas como "o que é dobrado muitas vezes" (Deleuze, 1991, p. 14). A potência quer para si a tarefa de inventar, multiplicar novos sentidos.

Entendendo-se que um corpo-sem-órgãos está continuamente oscilando entre as superfícies que o estratificam e o plano que o libera (Deleuze & Guattari, 1996), pode-se pensar as políticas públicas desenrolando-se entre esses dois polos, ou seja, por um lado, as superfícies estratificadas e, por outro, como possibilidade de desfazer os estratos, refazendo-se não como matéria e forma, mas como velocidades e afectos. Desta maneira, podem-se pensar as políticas públicas não apenas como formas de governo, mas como possibilidade de, ao estabelecer uma relação minuciosa com os estratos, desprender as intensidades, fazendo passar e fugir os fluxos. Percebe-se, assim, uma constante tensão entre os estratos e os fluxos: como uma política de Estado pode minorar? Neste sentido, talvez auxilie compreender que se tornar menor não significa estar do lado de fora do poder, mas perar com outras imagens que não sejam aquelas formadas pelas maiorias, armando tensores, extraindo gritos, clamores, timbres. Essa tensão entre estratos e fluxos permite uma interrogação, inspirada nas idéias de Foucault (2010b): como governar sem conhecer ou como minorar? A forma de organização de políticas públicas reside justamente em processos permanentes de estratificação/territorialização. São formas de governo pela verdade, modos de atualização da verdade mediante um conjunto heterogêneo de estratégias e procedimentos. A tensão, então, engendra a possibilidade do estranhamento, de forças ativas, um estranhamento que reside no não-conhecer, um timbre outro que é pura potência, ruído sem forma, "um ínfimo interstício por onde tudo o que é deixa-se repentinamente transbordar e depor por um acréscimo que escapa e excede. Excedente estranho" (Blanchot, 2007, p. 190).

Desse modo, de um lado, se tem as formas de governo produzidas pelas políticas públicas; de outro, uma política menor agenciada por linhas de fuga. A princípio, falar em governo e, ao mesmo tempo, minoração, faz operar uma contradição; porém, ao aproximarmos os dois autores -Deleuze e Foucault- em outro movimento, não de convergência, mas de zonas de vizinhança, percebe-se que não há contradição e, sim, estratégias/agenciamentos heterogêneos. O campo social não é contraditório, pois se trata de um jogo, que, de antemão, foge por todos os lados. Não se trata de fugir de algo, tampouco para alguma direção, pois fugir aqui é o que constitui um rizoma, uma cartografia, formando, portanto, distintos vetores de subjetivação, tal como no exemplo das campanhas da AIDS trazido anteriormente. E, na tentativa de explorar mais tais zonas de vizinhança, discutemse, a seguir, outras situações criadas pelas políticas públicas de saúde que dão passagem às diferentes forças que as habitam.


Saúde e insistência em minorar

O campo da saúde, em nosso país, tem se constituído como um espaço importante de minoração, buscando ultrapassar a linha. Afinal, como lembra Deleuze (2005, p. 101), "o poder, ao tomar como objetivo a vida, revela, suscita uma vida que resiste ao poder". As políticas públicas de saúde no Brasil, atualmente, constituem o que a partir da Constituição Brasileira de 1988 foi nomeado como Sistema Único de Saúde (SUS). O SUS estabelece princípios doutrinários e organizativos da atenção à saúde, considerando aspectos de universalização do acesso, diminuição das inequidades sociais e integralidade na concepção de saúde. A saúde, no SUS, conforma-se como um direito fundamental à vida e à cidadania. Focaliza a atenção em todos os níveis - primário, secundário e terciário, considerando que as necessidades de saúde não se esgotam no próprio campo da saúde, portanto, estabelece a necessidade da articulação com outras políticas sociais. O SUS é o resultado de um conjunto heterogêneo de lutas políticas e de movimentos sociais que se engendram a partir da década de 1970, pelo movimento de reforma sanitária no País.

Pode-se dizer que a reforma da saúde no Brasil, a partir da década de 1970, apresenta um excedente estranho, visto que se constitui como um movimento que se produz nas tensões entre estratos e fluxos, não operando em um jogo binário e sim em um plano de bifurcação/centrifugação. É justamente aquilo que transborda das políticas de saúde, nessa década, que a faz minorar, uma minoração no próprio plano e não fora dele. A minoração da reforma na saúde é forjada mediante a emergência de certas potências inventivas: comunidades de base, movimentos sociais, movimento de trabalhadores da saúde. São clamores, timbres, que provocam uma minoração, um excedente estranho, uma política da própria vida:

Talvez seja-nos dado "viver" cada acontecimento de nós mesmos numa dupla relação: uma vez como aquilo que compreendemos, agarramos, suportamos e dominamos (mesmo que com dificuldade e dolorosamente) relacionando-o a um bem qualquer, um valor qualquer, isto é, em última instância, à Unidade; outra vez como aquilo que se subtrai a todo o emprego e a todo fim, mais ainda, como aquilo que escapa nosso próprio poder de prová-lo, mas à prova do qual não poderíamos escapar. (Blanchot, 2007, p. 190)

Desta forma, como afirma Medeiros (2008), se, por um lado, as políticas brasileiras de saúde se constituem como fundamentais para a estabilização de uma ordem sociopolítica, também podem ser compreendidas como possibilidade de outros modos de ser e viver. Neste sentido, a autora salienta a introdução, mediante o movimento da sociedade civil organizada nos anos de 1980, do conceito de cidadania relacionado à saúde, assim como uma ruptura com os discursos biologizantes, colocandose a transdisciplinaridade como marca constituinte desse campo e operando uma heterogenização da saúde e dos sujeitos.

Como exemplo desta heterogenização, a autora discute o encontro da saúde com as questões de gênero, configurando um rearranjo do campo político a partir da constituição de identidades múltiplas que escapavam à forma homem. Portanto, a partir das lutas feministas, modifica-se a noção de saúde, produzindo-se um movimento por direitos sexuais e reprodutivos no âmbito das políticas públicas.

Desta maneira, entende-se que as políticas públicas, como estratégia de governamentalidade/ unidade, tanto se apresentam como uma resposta política do poder sobre a vida, como aquilo que a excede, torna-se uma minoração, uma potência de uma minoria. No caso da saúde, a reforma se constitui mediante um conjunto de forças heterogêneas, excedentes, que ao criarem certas políticas de subjetivação, passam a produzir não apenas "vida nua" e estado de exceção (Agamben, 2002), mas traçam planos de singularização. Destaca-se que a noção de vida nua formulada por este autor se dá mediante o resgate de dois termos gregos, com significados distintos, que se referem à vida: zoé, a vida nua, isto é, a vida de um modo geral, comum a todos os seres vivos e bios, que diz respeito a um modo de vida singular e que é o objeto da polis. Entretanto, o biopoder introduziu a zoé na política, a partir da colocação da vida biológica nos cálculos do Estado Moderno. A partir disto, Agamben (2002) aponta a existência de um estado de exceção permanente, no qual somos todos sobreviventes, vivendo em abandono. Nesta perspectiva, Coimbra (2009) ressalta que se fortalece, paradoxalmente, as noções de Estado Democrático de Direito e políticas públicas. O que se quer apontar com isso é que, frente a condições de acesso a possibilidades de vida, a própria vida se reinventa, minora, não só no sentido daquilo que a estabelece, mas das formas de superar/transformar/negociar com os planos molares de estratificação.

Dimenstein (2010) pontua este caráter de tensionamento presente nas políticas públicas, na medida em que estas, por um lado, são respostas a determinados problemas sociais e constituem-se como mecanismos de regulação dos mesmos, mas, por outro, são igualmente criadas para administrar de modo mais equitativo os diferentes interesses presentes na sociedade, desenvolvendo-se como um sistema de proteção. Desta maneira, as políticas públicas

referem-se a um controle sobre os corpos, uma economia do poder, voltada para instalar um sistema de individualização que se destina a modelar cada indivíduo e gerir sua existência. As políticas públicas, portanto, são como programas computacionais uniformizantes, e por isso precisam ser constantemente debatidas, problematizadas, questionadas, avaliadas. Elas trazem impregnadas uma visão de mundo, de homem e nossa função é lutar para que adotem perspectivas mais complexas, ampliadas, menos normativas. (p. 161)

O que se pode compreender como formas de minoração na saúde? Uma questão a ser considerada é a VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986. Uma das marcas de singularização dessa Conferência é justamente a potência de um conjunto de movimentos sociais que tomam forma no próprio encontro: afrodescendentes, indígenas, mulheres, homossexuais, entre outros. A entrada de tais identidades neste campo faz gaguejar a língua que as hospeda e que, até então, entendia o sujeito da saúde como homem, branco, heterossexual, de classe média urbana. Essa potência desenhase desde a década anterior, quando no espaço de uma ditadura militar, a Reforma Sanitária torna-se uma nova forma de subjetivação. A Conferência é constituída pela multiplicidade de usos outros da própria língua, da própria saúde. A saúde se amplia e a resposta política a essa ampliação aparece pelo princípio de equidade.

Viana, Fausto e Lima (2003) pontuam que o tema da equidade passou a merecer maior atenção justamente na década de 1980, sendo que um dos marcos dessa discussão é a estratégia formulada pela Organização Mundial de Saúde, denominada Saúde para Todos no Ano 2000, objetivando "a promoção de ações de saúde baseadas na noção de necessidade, destinadas a atingir a todos, independente da raça, gênero, condições sociais, entre outras diferenças que possam ser definidas socioeconómico e culturalmente" (p. 59). Apesar dos problemas terminológicos na variedade conceitual de equidade, bem como com o significado deste termo quando utilizado no sentido de desigualdade, as autoras afirmam que há uma aceitação ampla da definição elaborada por Whitehead, a qual remete à noção de que "todos os indivíduos de uma sociedade devem ter justa oportunidade para desenvolver seu pleno potencial de saúde e, no aspecto prático, ninguém deve estar em desvantagem para alcançá-lo" (p. 59). Portanto, equidade relaciona-se com a diminuição das diferenças desnecessárias ou evitáveis, assim como injustas, no acesso à saúde.

A partir desta definição, a equidade também pode ser compreendida como a "literatura menor", o excedente estranho, em uma política de subjetivação. Assinala-se que a relação não é simples, nem linear: não se trata de dizer que a equidade escapa às relações de poder. Aquilo que minorou é capturado, torna-se foco de políticas de governo, como pode ser pensado na emergência de um conjunto de subsistemas da própria Política Nacional de Atenção Integral à Saúde: idoso, mulher, criança, povos indígenas, trabalhador. Os tensionamentos entre fluxos (a multiplicação de usos de uma língua maior) e estratos (as políticas forjadas para essas multiplicidades de vozes) encontram-se nesse plano: igualdade e multiplicidade, hospitalidade e estrangeiro. Como falar a língua do outro?

Porém, a equidade como conceito capital da saúde ampliada é, em si mesma, uma linha feiticeira, constituindo-se como princípio pelo menor, por aquilo que faz gaguejar uma política pública, no encontro entre aquele que hospeda e o estrangeiro. Entretanto, ao estratificar o estrangeiro, acabase por circunscrever o espaço de possíveis para o próprio estrangeiro: direitos e deveres. Isso é considerado, por exemplo, no que tange à política voltada para as populações indígenas. Essa política preconiza que as ações de saúde devem articular a medicina ocidental com as terapêuticas tradicionais dessas populações (Funasa, 2000). Como a política organiza-se mediante um conjunto de procedimentos, protocolos e fluxogramas, as terapêuticas tradicionais indígenas, no que se refere à relação entre direito e dever, acabam por serem capturadas por essa língua que as hospeda. Nesse processo de hospedagem, emerge uma literatura menor: a multiplicidade de etnias traz consigo uma diversidade de coletivos e modos de subjetivação que provocam a todo o momento a própria política. Desta maneira, as campanhas de prevenção, no que dizem respeito, por exemplo, à imunização, são experimentadas como formas de violência e não de saúde; a taxa de suicídios pode ser entendida como relacionada à necessidade de não escravidão pelos deveres civis; bem como a procura por terapêuticas tradicionais (xamãs, curandeiros, etc.) e não por aquelas propostas pelas equipes de saúde (Bernardes, Marques & Mázaro, 2011). Assim, não se trata somente de um processo de captura e domesticação, mas os efeitos da política voltada para as populações indígenas reverberam dentro da própria política, tensionando as ações das equipes de saúde, que passam a problematizar não só as práticas voltadas para estas populações, quanto à saúde de forma geral. Neste embate, é trazida à cena das políticas públicas a agitação das microlutas que acontecem no contato com o cotidiano das aldeias indígenas, que gera um permanente espessamento do conceito de saúde, trazendo novos sentidos a partir da afirmação do protagonismo dos sujeitos a que as políticas se dirigem.

Para trabalhar essa torção no campo das políticas públicas, aproxima-se o princípio da equidade do conceito de corpo-sem-órgãos, já discutido anteriormente. Nesta perspectiva, a equidade não residiria na marca da diferença -as terapêuticas tradicionais versus a medicina ocidental-, pois, neste caso, já se trataria de uma molarização/estratificação, mas no plano de velocidades e afectos que compõem distintas práticas de significação em saúde. O corpo-sem-órgãos é uma geografia cênica constituído por linhas impostas, do acaso ou que devem ser inventadas. É um conjunto de práticas, um corpo estilhaçado e afastado da exigência da determinação das funções e territórios dos órgãos, uma forma de insurgência contra as violências das domesticações dos estratos. Neste sentido, o plano de velocidades e afectos constitui-se como um plano de consistência e imanência do processo de produção desejante, ou seja, de distintas conexões que produzem rejuntes entre arte, poesia, realidade, vida, etc. Desta maneira, se, por um lado, o corposem-órgãos é uma expressão das possibilidades de minorar, de práticas de liberdade mesmo que provisórias, por outro, a equidade deve voltar-se, não para as diferenças, mas para aquilo que minora, isto é, para os processos de produção desejante que modificam as próprias formas de territorialização.

Portanto, no caso dessa composição entre terapêuticas tradicionais e medicina ocidental, pode-se pensara que o minorar encontra-se na prevenção à própria política. A articulação de ambas as práticas em saúde é um corpo-sem-órgãos, uma minoração, na medida em que produz linhas inventivas, ou seja, escapa as determinações das funções dos órgãos/ territórios. Esse minorar na saúde ou essas formas de singularização são o que fazem a política transbordar, uma vez que a retiram de um campo de prescrições e formas de governo da vida e a colocam frente aos desafios que a própria potência da vida apresenta. As terapêuticas tradicionais, assim, seriam dispositivos na política, sendo que a equidade residiria nessas potências inventivas de um corpo-sem-órgãos e não na domesticação pela política desses corpos-sem-órgãos.

Ainda no que se refere à equidade, outra insistência da literatura menor pode ser pensada no plano de constituição das políticas para as mulheres1. O uso da língua maior por uma minoria encontrase nos indicadores de gravidez na adolescência. A política de saúde da mulher organizada a partir de um campo de lutas, ou seja, de novas formas de subjetivação que não a forma homem, acabou por centralizar as ações em saúde voltadas para um corpo gravídico, seja antes, durante ou depois, ou então para doenças que atingem o sistema reprodutivo feminino, tais como o câncer de mama e colo de útero. Ao focalizar as ações na anatomia reprodutiva feminina, as campanhas de prevenção iluminam essa própria anatomia e as adolescentes passam a ser territorializadas pela política a partir deste regime de visibilidade/dizibilidade. Neste caso, ao pressupor a necessidade de prevenção à gravidez na adolescência, as próprias jovens começam a figurar na política por meio da gravidez. Ou seja, as adolescentes encontram naquilo que deve ser prevenido pela língua maior, a própria forma de minorar: engravidando. A gravidez na adolescência é tanto aquilo que captura potenciais de subjetivação, quanto aquilo que escapa, que negocia com os códigos. A taxa de gravidez na adolescência torna-se um excedente estranho, uma literatura menor, não se deixando aprisionar pelas tentativas reiteradas de diminuição dos índices deste fenômeno e exigindo sempre outras compreensões e formas de aproximação.

Em outra ponta, a política de atenção ao trabalhador da saúde pressupõe um conjunto de ações tanto de educação permanente quanto de cuidados com o trabalhador. Essas ações abrangem capacitações para o trabalho e equipamentos que auxiliem o trabalhador no seu cotidiano. São estratégias que focam sobre os processos de cogestão, trabalho em equipe e formação contínua, os quais tanto qualificariam o trabalho na saúde quanto melhorariam os indicadores de saúde desses trabalhadores. Os agentes comunitários de saúde são objeto sistemático de ações de capacitação: implantação de políticas, sistematização de protocolos e fluxogramas, metas, motivação. Trata-se de um coletivo de trabalhadores que, por ser considerados como a linha de ligação entre a comunidade e os serviços de saúde, é permanentemente focalizado pelas políticas. Isso também significa a solicitação de gestores por tecnologias de regulação do trabalho. As tecnologias voltadas para a satisfação/motivação tem sido um dos recursos utilizados para capacitar esse coletivo. Satisfação e motivação tornam-se dispositivos de normatização de velocidades e afectos. Satisfação e motivação tornam-se um corpo "com órgãos", uma língua maior que estratifica esse corpo coletivo. Na esteira de ações de satisfação e motivação, os agentes comunitários acabam por torcer essas tecnologias e fazer um uso menor da língua: por exemplo, em um determinado serviço de saúde, as atividades de relaxamento passam a ser solicitadas como uma forma de não trabalho no próprio trabalho, um espaço como nomeia Foucault (2009a, p. 418) de heterotopia: "uma espécie de contestação simultaneamente mítica e real do espaço em que vivemos [...] o poder de justapor em um só lugar real, vários espaços, vários posicionamentos que são em si próprios incompatíveis". Ou seja, o relaxamento como tecnologia de governo transforma-se em uma estratégia de negociação com a própria norma, uma prática de liberdade.

Abrir espaço para a multiplicidade, minorando as políticas públicas, implica uma aposta na vida, na multiplicação dos sinais de existência, buscando desequilibrar um modo de vida que tem se pautado pela domesticação, pela sujeição e pela morte. Implica lutar por uma vida não-fascista, seguindo os rastros de Foucault, que nos alertava que o fascismo está em todos nós e o amamos e desejamos intensamente (Veiga-Neto, 2009). Parafraseando Nietzsche, implica em fazer políticas públicas a golpes de martelo: "nunca nada de conhecido, mas uma grande destruição do reconhecido, em favor de uma criação do desconhecido" (Deleuze, 2006, p. 176).


Considerações finais: minorando em Psicologia

A temática das políticas públicas no campo da Psicologia é um debate recente. Recente no sentido de tornar-se um dispositivo para inflexão das próprias práticas psicológicas no contemporâneo (Dimenstein, 2010; Guareschi et al., 2010). No Brasil, podese dizer que há uma aproximação da Psicologia com políticas públicas de saúde especialmente a partir da década de 1980, quando as Ações Integradas em Saúde, constitutivas das políticas públicas de saúde da época, começaram a absorver e a inserir psicólogos nos estabelecimentos de saúde pública e não mais apenas os hospitais. Essa ampliação do campo das práticas psicológicas faz com que a mesma depare-se com a necessidade de "criação do desconhecido", ou seja, passa a ser necessário responder à questão: como operar em um solo outrora desconhecido pela própria Psicologia? Isso engendra um plano de bifurcação: por um lado as práticas intentam adaptar as políticas públicas ao seu escopo e tecnologias; por outro, abre-se para uma composição com um caráter inventivo, mas que terá na racionalidade contestatória e reivindicatória da década de 1980 um espaço de inspiração, de modo a entrar na esteira das ações de produção de uma democratização no País, bem como um movimento de inflexão da própria Psicologia que a coloca em análise.

Colocar a Psicologia em análise significa a produção de linhas inventivas constituídas por conexões outras que não aquelas que estratificam o saber psicológico. Essas linhas inventivas que produzem tensionamentos identitários na Psicologia são mais da ordem das urgências com as quais a mesma se depara para responder, do que propriamente uma força plástica desse campo. O que se quer apontar com isso é que, nas cartografias produzidas pelo campo psicológico, encontra-se uma prevalência do pensamento técnico sobre a reflexão propriamente dita sobre a técnica. Neste sentido, os rejuntes da Psicologia com as políticas públicas se constituem por linhas de imposição da técnica, as quais tentam salvaguardar sua estratificação como ciência ou que a tornam possível como ciência. Nessa zona de vizinhança entre técnica e ciência acaba-se por afastar as práticas psicológicas de outras conexões, como as da ética e da estética.

A ética e a estética tornam-se possíveis quando outras composições são feitas, ou seja, quando um excedente estranho passa a figurar como provocador das formas de domesticação das práticas psicológicas. Essas composições estilhaçam o corpo com órgãos da Psicologia, são uma criação do desconhecido. Trata-se, sobretudo, como ressaltam Deleuze e Guattari (2007), de um exercício inevitável, que não é tranquilizador, pois sempre pode falhar, que se realiza no momento em que está sendo empreendido, mas ainda não se efetua se não foi iniciado. Afinal, ao corpo-sem-órgãos "não se chega, não se pode chegar, nunca se acaba de chegar a ele, é um limite" (p. 9), visto que é o que resta quando tudo mais foi retirado - o fantasma, o conjunto de significancias e subjetivações.

Deleuze e Guattari (2007) entendem por Juízo de Deus o discurso dos caminhos retos, aquele que constrói as regras mediante as quais se apreende o mundo, impondo significações. A partir disto, podese dizer que as técnicas psicológicas funcionam como o Juízo de Deus, buscando aprisionar sentidos; porém, deve-se considerar que o corpo-semórgãos está sempre oscilando entre as superfícies estratificadas e o plano que o libera, sendo que, como apontam os autores acima, "é seguindo uma relação meticulosa com os estratos que se consegue liberar as linhas de fuga, fazer passar e fugir os fluxos conjugados, desprender intensidades contínuas para um CsO" (Deleuze & Guattari, 2007, p. 24).

Deleuze (1992, p. 56) pergunta: "como chegar a falar sem dar ordens, sem pretender representar algo ou alguém, como conseguir fazer falar aqueles que não têm esse direito, e devolver aos sons seu valor de luta contra o poder?". Pode-se complementar: como escapar ao Juízo de Deus, às estratificações, no campo da Psicologia? Uma das pistas é minorar: gaguejar, fazer um uso estrangeiro da própria língua. No encontro da Psicologia e das políticas públicas em saúde, o gaguejar é um exercício inevitável: não há respostas, as técnicas mostram-se insuficientes, sendo necessário tatear, experimentar, artistar. Ao colocar em questão a Psicologia, esta se reinventa, desfazendo os estratos e refazendo-se não como matéria e forma, mas como velocidade e afectos. Trata-se de um movimento que deve ser constantemente modificado, constituindo-se de forma mais rigorosa e singular. Deste modo, a Psicologia se multiplica, abre-se ao novo e faz pensar de novo, fazendo a língua vibrar, ao perturbá-la e conduzi-la a uma região na qual habita uma minoria, resistindo à morte, à infâmia e ao intolerável.


1 As discussões sobre a política de saúde da mulher e, a que será feita posteriormente, sobre os agentes comunitários de saúde, emergem de experiências em um campo de estágio em Psicologia.



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