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Avances en Psicología Latinoamericana

Print version ISSN 1794-4724

Av. Psicol. Latinoam. vol.31 no.3 Bogotá Sept./Dec. 2013

 


Práticas de cuidado em saúde mental no Brasil:
análise a partir do conceito de cidadania

Prácticas de cuidado en salud mental en Brasil:
análisis desde el concepto de ciudadanía

Mental health care practices in Brazil:
analysis from concept of citizenship

Ronaldo Rodrigues Pires*
Verônica Morais Ximenes**
Bárbara Barbosa Nepomuceno***
Universidade Federal do Ceará, Brasil

* Psicólogo, Mestre em Psicologia, Universidade Federal do Ceará,
ronrodpires@bol.com.br.

** Psicóloga, Pós-Doutora em Psicologia, Professora da Graduação e Pós-Graduação do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará,
vemorais@yahoo.com.br

*** Psicóloga, Mestre em Psicologia, Universidade Federal do Ceará,
bbnepomuceno@yahoo.com.br

Para citar este artículo: Pires, R. R, Ximenes, V. M., & Nepomuceno, B. B. (2013). Práticas de cuidado em saúde mental no Brasil : análise a partir do conceito de cidadania. Avances en Psicología Latinoamericana, 31 (3), 507-521.

Fecha de recepción: 26 de diciembre de 2012
Fecha de aceptación: 5 de marzo de 2013



Resumo

Este estudo, que apresenta uma revisão integrativa da literatura científica, analisa como as práticas de cuidado em saúde mental contemplam a dimensão da cidadania, a partir do fortalecimento e/ou da construção do exercício desta pelos usuários. Problematiza o cenário atual de novas práticas de cuidado em saúde mental, desenvolvidas a partir do paradigma psicossocial, pautado nas proposições da Reforma Psiquiátrica Brasileira, que toma a cidadania como destaque na formulação das políticas e na criação da rede de cuidado em saúde mental. Para tanto, analisou-se trabalhos brasileiros publicados em base de dados Lilacs/BVS e Scielo no período de 2002 a 2011 que apresentaram experiências de atividades de cuidado em saúde mental no âmbito do Sistema Único de Saúde, no tocante ao modo como são desenvolvidas, seus avanços e desafios. Percebeu-se que, atualmente, uma grande diversidade de novas práticas é desenvolvida em diferentes serviços e por equipes multiprofissionais e que estas trazem importantes inovações ao trato com a loucura. Contudo, ainda há presença do modelo manicomial, expresso em novas roupagens e desenvolvido por novos serviços, assim como descontinuidade das práticas e a falta de financiamento para o desenvolvimento de atividades inovadoras.

Palavras-chave: saúde mental, cidadania, cuidado



Abstract

This study, through an integrative review of the scientific literature, analyzes how the mental health care practices include the dimension of citizenship, from the strengthening and/or construction of its workout. It discusses the current scenario of new mental health care practices, developed from the psycho-social paradigm, based on the propositions of the Brazilian psychiatric reform, which features citizenship as a centerpiece in the formulation of policies and and the creation of the mental health care network. To this end, we analyzed Brazilian articles published in the Lilacs data base/BVS and Scielo, during the period from 2002 to 2011, which presented practices of mental health care within the health system, in terms of how they are developed, their advances and challenges. The results indicate that, currently, a wide range of new practices are developed in different services and by multiprofessional teams and that these bring important innovations to deal with the madness. However, the asylum model is still present, expressed in new clothes and developed for new services, as well as discontinuity of practices and lack of funding for the development of innovative activities.

Keywords: mental health, citizenship, care



Resumen

Este estudio, a través de una revisión integradora de la literatura científica, analiza cómo las prácticas de atención de la salud mental incluyen la dimensión de la ciudadanía, basada en el fortalecimiento y/o construcción de su ejercicio. El trabajo trata sobre el panorama actual de las nuevas prácticas de cuidado en salud mental, desarrolladas desde el paradigma psicosocial, con base en las propuestas de la reforma psiquiátrica brasileña. Para tal fin, se analizaron los artículos brasileños publicados en las bases de datos Lilacs/ BVS y Scielo, en el período de 2002 a 2011, que presentaran experiencias de actividades de cuidado en salud mental en el ámbito del Sistema Único de Salud, respecto a la forma como son desarrolladas, sus avances y desafíos. Los resultados indican que en la actualidad, una gran variedad de nuevas prácticas se desarrolla en diferentes servicios por parte de equipos multidisciplinarios y que éstas traen innovaciones importantes en el quehacer frente a la demencia. Sin embargo, todavía está presente el modelo del manicomio, expresado de una nueva manera y desarrollado por los nuevos servicios. Asimismo, hay discontinuidad en las prácticas y falta de financiamiento para el desarrollo de actividades innovadoras.

Palabras clave: salud mental, ciudadanía, cuidado



Na atualidade, a cidadania como princípio das práticas de cuidado tem ocupado um lugar especial na assistência em saúde aos sujeitos em sofrimento psíquico. No cenário internacional, legislações de diversos países e sistemas de saúde em diferentes contextos têm destacado a importância do resgate da dignidade daqueles sujeitos, a partir de atuações na perspectiva da reinserção social. É importante lembrar que nem sempre essa concepção se fez presente e o que vemos hoje é fruto de intensas reivindicações, questionamentos e lutas em defesa da dignidade e dos direitos humanos das pessoas com transtorno mental.

O objetivo desse trabalho é analisar como as práticas de cuidado em saúde mental contemplam a dimensão da cidadania, a partir do fortalecimento e/ou da construção do exercício destas pelos usuários. Para tanto, realizou-se uma revisão integrativa da produção científica sobre as práticas de cuidado no campo da saúde mental, analisadas sob a perspectiva da cidadania. Para tanto, foram revisados artigos científicos brasileiros publicados nas bases de dados LILACS/BVS e SCIELO, no período de 2002 a 2011, atentando para as características das práticas empreendidas, os locais onde ocorreram, a forma como foram realizadas e os resultados apresentados.

As práticas de cuidado são entendidas aqui como atos individuais e coletivos realizados pelos profissionais que envolvem a abordagem clínica dos problemas de saúde através da conjugação dos diferentes saberes implicados na produção de saúde. Elas produzem-se através de relações de uma pessoa que atua sobre a outra, num jogo intersubjetivo onde se produzem falas, escutas, interpretações, possibilidades de acolhida. Estas práticas de cuidado, conforme assinala Merhy (2002), se produzem na interseção do uso dos instrumentos tecnológicos disponíveis pelos saberes da saúde, mas incluem as "tecnologias leves" (Merhy, 2002) que envolvem os processos relacionais estabelecidos no encontro entre usuários e profissionais da saúde.

O cuidado seria uma categoria reconstrutiva de fundamental importância para pensar as práticas de assistência. Segundo Ayres (2004), a ação em saúde não pode se restringir à apenas às tecnologias do campo institucional das práticas de saúde, ela implica não só o uso de determinados saberes e tecnologias, mas também sujeitos em relação. Sendo assim, a intervenção técnica do profissional necessita se articular com outros aspectos não tecnológicos. Portanto, a promoção de um cuidado efetivo prescinde da necessidade de expansão dos horizontes conceituais dos profissionais que operam esse cuidado como também da expansão dos âmbitos de atuação destes.

Neste sentido, a relevância deste trabalho consiste em contribuir para uma reflexão sobre as novas práticas de cuidado implementadas no campo da saúde mental, considerando a diversidade de vivências produzidas no trato com a loucura. A inclusão da perspectiva da cidadania nas práticas terapêuticas, como afirma Souza (2008), traz questionamentos sobre o modo como se articulam as dimensões da singularidade e da coletividade, para que se possa pensar como estas se produzem sem que haja sobreposição de uma sobre a outra.

Como um campo novo, em constante processo de construção e fortalecimento, há a necessidade de que as vivências produzidas sejam refletidas e tornem-se assim experiências. É preciso, como afirma Berlinck (2009), que tais vivências práticas dos trabalhadores de saúde mental sejam registradas, sistematizadas e avaliadas para que se constituam como uma memória e possam se transformar em saberes socialmente compartilhados. Sendo assim, faz-se oportuno o intuito de contribuir no processo de produção do conhecimento em torno destas práticas.

Ao longo da história, como afirma Foucault (1991), o lugar que a loucura ocupa na sociedade foi se modificando. Desde a concepção do louco como alguém portador de um poder divino à posterior segregação como alguém que ameaça a ordem social. A sociedade ocidental influenciada pela supervalorização da razão, como um bem supremo, tornou a "desrazão" algo a ser combatido e expurgado do convívio humano. Cada período produziu diferentes respostas sociais concernentes às concepções e modos de relacionamento com a loucura, através da criação de instituições e de práticas de cuidado para a problemática em questão.

Amarante (1995) assinala que a repercussão das ideias francesas de igualdade, liberdade e fraternidade tiveram importante determinação na resposta dada à loucura, pois em nome de tais princípios os modos de tratamento dispensado aos loucos pelos alienistas se espalharam por todo o mundo. O asilo se constituiu como o lugar de tratamento do alienado, conferindo a este a condição de sujeito de direitos merecedor de um cuidado especializado.

Desde então, o discurso científico teve papel importante na formação dessas ideias ao fundar a concepção de doente mental, atrelando, aos sujeitos acometidos por esta condição, atribuições de incompreensível, perigoso e imprevisível. Diante da incapacidade e impotência da ciência frente ao enigma da loucura, a ação das instituições psiquiátricas, de acordo com Basaglia (1985), deu-se de maneira contraditória ao principio dos direitos, pois limitou-se a defini-la, catalogá-la e geri-la, impondo como uma única alternativa ao louco, a morte civil, e a condição de incapaz de ser sujeito do seu tratamento.

As concepções de periculosidade e incapacidade justificaram o tratamento dispensado nos manicômios como espaços de exclusão e segregação social. Nessas instituições, o sujeito foi excluído do convívio familiar e comunitário, negando-lhe a possibilidade do estabelecimento de relações com seus pares e com a sociedade. Entendia-se, assim, que para cuidar destes sujeitos haveria que separá-los do convívio social e tutela-los em uma instituição provida de técnicos, detentores do saber sobre a loucura.

Em oposição à realidade manicomial, várias correntes de pensamento produziram novas abordagens para o tratamento da loucura. Os abusos e violências produzidos dentro das instituições manicomiais provocaram indignação por parte da sociedade. Neste cenário de questionamento do paradigma manicomial a experiência da Psiquiatria Democrática Italiana, empreendida por Franco Basaglia e seus colaboradores, serviu de inspiração à Reforma Psiquiátrica Brasileira e a diversos países, pelo seu caráter inovador e revolucionário.

A negação da instituição psiquiátrica, como também do rótulo do doente, proposta por Basaglia (1985) impulsionou um novo modo de prestar assistência, no qual os trabalhadores do campo da saúde mental pudessem abandonar sua função de carcereiros nos antigos manicômios, guardiões de uma suposta normalidade. Nesta perspectiva de ruptura com o modelo vigente, ganha força a ideia de que a pessoa deve ser abordada em sua inteireza, sem reduzi-la exclusivamente a um conjunto de sintomas psicopatológicos, e que toda prática de cuidado deveria ocorrer, como afirma Rotelli, Leonardis e Maurí (2001), em um contexto de liberdade e não de confinamiento e autoritarismo.

No Brasil, os trabalhadores de saúde mental tiveram fundamental importância na denúncia de tal realidade e na reflexão sobre a produção de novas respostas mais libertadoras e éticas no trato com a loucura. Buscou-se uma ruptura com o paradigma do manicômio, a criação de novos espaços de cuidado em saúde mental, assim como a criação de um novo lugar social da loucura na sociedade, reivindicando a condição de cidadão do louco (Amarante, 2007; Dimenstein & Sales, 2009).

No cenário da Reforma Psiquiátrica Brasileira, a cidadania passa então a ocupar um lugar de destaque na formulação das políticas e das práticas de cuidado em saúde mental, tornando-se um conceito chave. A cidadania tem sido compreendida tradicionalmente como a efetivação da aquisição e do exercício de direitos. No entanto, para o seu entendimento Hirdes (2009) considera que não podemos perder de vista de que a cidadania é fruto de uma construção histórica resultante das problematizações concretas que cada sociedade produz. Compreende que a cidadania se constitui como um processo em andamento onde a sociedade deve estar empenhada na luta e problematização da realidade desigual em que se encontra. A cidadania não é algo dado e acabado, mas necessita estar em permanente afirmação e construção. Sob esse olhar, ser cidadão é, segundo a autora, ter a competência de fazer-se sujeito histórico assumindo a condução do seu destino.

Problematizar a cidadania no campo da saúde mental exige lidar com termos antagônicos, uma vez que a noção de cidadania é fundada na razão (Souza, 2008) e a loucura é compreendida como o negativo desta razão, como desrazão. Imprimindo a necessidade de convívio com diferentes formas de estar no mundo e suas diferentes linguagens e lógicas.

Outra questão que se apresenta é a de que frequentemente entende-se que as práticas terapêuticas, automaticamente são associadas a cidadania pelo simples fato de promover o acesso aos serviços. Contudo ela também pode ser entendida como um resultado final, objetivo dessas práticas (Souza, 2008). De um lado então, temos a cidadania compreendida como acesso aos serviços e de outro, como um resultado buscado, a promoção dos usuários como protagonistas de suas vidas, da afirmação de seus direitos e de sua participação na vida social.

Sendo assim, a cidadania no âmbito da Reforma Psiquiátrica exige uma compreensão desta para além da noção restrita de garantia e acesso aos direitos na vida pública. O que requer considerar esta condição como pré-requisito fundamental para a participação na vida social. No entanto, é necessário que a cidadania contemple também, como aponta Barreto (2008), as dimensões da liberdade, da diferença e da criação, próprias do reconhecimento da subjetividade rompendo com visões dicotômicas entre o coletivo e o individual.

Na busca de efetivar as práticas que atentem à construção de sujeitos ativos e participativos, a experiência brasileira vem instituindo-se no país, com um considerável aparato legal e de instrumentos regulatórios que buscam a promoção da garantia dos direitos no campo da assistência em saúde mental. Um marco na história do país foi a Lei 10.216, de 2001, que dispõe sobre os direitos das pessoas em sofrimento psíquico e propõe a reorientação da assistência psiquiátrica em todo o território nacional (Brasil, 2001).

Neste contexto, a reorientação do modelo assistencial tem empreendido uma gradual extinção da assistência de base hospitalar e a concomitante criação de uma rede integral de atenção em saúde mental, que se propõe a ser substitutiva às instituições hospitalares. Esta se caracteriza por ser de base comunitária e aberta, pautada na liberdade e na afirmação dos direitos das pessoas em sofrimento psíquico.

Uma das ideias centrais dessa assistência é a desinstitucionalização (Rotelli, Leonardis & Maurí, 2001), que significa não apenas romper com as estruturas físicas do hospital, mas promover uma reformulação do paradigma do cuidado considerando o sujeito em sua existência e suas condições concretas de vida. O tratamento deixa de ser baseado no confinamiento e exclusão para se tornar um espaço de criação de possibilidades concretas de sociabilidade e subjetividade (Amarante, 1995).

Desse modo, o paradigma da atenção psicossocial, como tem sido denominado, pretende ser um operador de práticas que tenham como meta a produção da cidadania. Sendo assim, a afirmação e o fortalecimento do exercício desta tornam-se um fim a ser alcançado pelas atividades de assistência desenvolvidas. Diante de um ideal tão ambicioso é preciso atentar-se aos seus novos desafios e riscos considerando a possibilidade da perpetuação dos antigos mecanismos asilares nos novos dispositivos de cuidado (Pinto & Ferreira, 2010).

Atualmente, há mais de dez anos da Lei 10.216 (Brasil, 2001), percebe-se que muito já foi conquistado com a diversidade de serviços criados nos vários níveis de atenção em todo território brasileiro. Contudo além de ampliar a rede de cuidado em saúde mental, é necessário qualificá-la e problematizar suas práticas, a fim de fortalecê-la e torná-la efetivamente substitutiva. Acredita-se que apesar das dificuldades ainda hoje presentes, a experiência brasileira pode servir de base para iluminar outras experiências latino-americanas.

Tal rede, denominada Rede de Atenção Psicossocial (Brasil, 2011), é composta por uma diversidade de dispositivos que de maneira articulada buscam promover o cuidado integral nos diversos níveis de atenção. Entre os componentes e serviços da rede destacam-se: Atenção Básica em Saúde: que desenvolve ações de promoção da saúde, prevenção, recuperação, reabilitação de doenças e agravos na população, de maneira continuada e longitudinal no território, em nível primário de assistência, a partir das Unidades Básicas de Saúde (UBS) e dos Centros de Convivência, uma estratégia para a inclusão social através da criação de espaços de convívio com a diferença na comunidade; Atenção Psicossocial Especializada: desenvolvida a partir dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico, responsáveis pela atenção a pessoas com sofrimento mental grave e/ou persistente; Atenção de Urgência e Emergência: responsável pela atenção aos casos de urgência e emergência; Atenção Hospitalar: responsável pelo acolhimento hospitalar dia e noite aos casos graves, oferecido através dos leitos especializados em Hospitais Gerais ou em outros hospitais de referencia local ou regional; e Estratégias de Desinstitucionalização: desenvolvidas para o acolhimento de pessoas com histórico de longas internações psiquiátricas e perda dos vínculos familiares e comunitários, neste nível os dispositivos que se destacam são os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), que são moradias assistidas inseridas na comunidade.

Além dos serviços acima citados a rede inclui outros equipamentos intersetoriais presentes nas políticas de assistência social, educação e outras. O intuito da rede é de que ela possa, pela presença de variados serviços, oferecer suporte aos usuários em suas diferentes necessidades. Reconhece-se desta forma a importância de um maior investimento nos recursos comunitários, para que não só a doença e seus sintomas sejam foco de intervenção e cuidado, mas também todo o entorno e suas dimensões sociais, econômicas e culturais.

A simples implementação de tais serviços e a criação de leis, embora tenham seu valor no processo de transformação das práticas em saúde mental, não asseguram por si só uma efetiva transformação. É preciso pensar que, como afirma Ronzani (2007), as políticas, em si, não têm o poder de realizar as mudanças que pretendem, sendo necessário observar como são construídas as crenças sobre essas práticas e como estas se inserem no contexto histórico-cultural do país e na singularidade do cotidiano das instituições.

Essa tarefa bastante complexa e de grande importância traz como desafio não só a superação da lógica da segregação como instrumento de tratamento, mas também da segregação abrandada sob a forma de redes de tutela social. Desse modo, procura-se evitar, como aponta Barreto (2008), a perpetuação de velhos problemas sob uma roupagem nova e de aparência menos bizarra.

Observa-se que a visão negativa e amedrontadora da loucura não foi totalmente superada. Conforme afirma Furtado e Onocko-Campos (2005), ainda existem nas sociedades formas de resistência e defesa, gerando espaços de exclusão às pessoas em sofrimento psíquico. Sendo assim, torna-se um desafio aos sistemas de saúde promover a decodificação dos princípios políticos e ideológicos da Reforma Psiquiátrica e seus preceitos antimanicomiais para as práticas nos novos serviços implementados.

A necessidade de mudança requerida exige o desenvolvimento de práticas inovadoras no campo da saúde mental. Tais práticas como afirma Bosi et al. (2011) se constituem como um processo que aponta para mudanças e surgimento de novos modos de interação, saberes e práticas que buscam a superação da lógica asilar. Nesta perspectiva, a participação e aprendizagem mútua entre usuários e técnicos tornam-se elementos desencadeadores de inovação.


Metodologia

A revisão integrativa foi utilizada como método para a realização deste trabalho. Tal método se propõe a realização de uma pesquisa bibliográfica com etapas que seguem o roteiro de uma pesquisa convencional. Como afirma Mendes, Silveira e Galvão (2008), esta abordagem permite a busca, a avaliação crítica e a síntese de vários estudos disponíveis, além de compreender o estado do conhecimento na área que se quer investigar.

Foram realizadas buscas nas bases de dados Scielo e Lilacs/BVS, utilizando os descritores: saúde mental e práticas de cuidado. O termo cidadania foi utilizado como categoria de análise. Tomou-se como referência artigos brasileiros publicados a partir do ano seguinte a promulgação da Lei 10.216/2001, sendo então selecionados artigos publicados no período de 2002 a 2011. Este período se caracteriza pela implementação e expansão, em todo o território brasileiro, da Rede de Atenção Psicossocial. O foco dirigiu-se para artigos que apresentaram experiências desenvolvidas na saúde pública no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), excluindo os artigos que apresentaram experiências que estivessem fora desse contexto como práticas desenvolvidas em clínicas e hospitais privados. Excluiu-se também artigos de: revisões de literatura, discussões teórico-conceituais e estudos epidemiológicos, já que o trabalho em questão analisa as práticas desenvolvidas nas instituições de saúde mental.

Os artigos selecionados apresentaram experiências descritas de atividades que buscavam oferecer cuidado a pessoas em sofrimento psíquico no âmbito do SUS. Eles foram analisados na íntegra e sistematizados em função do tipo, do local, dos objetivos e dos resultados das práticas apresentadas.


Resultados e discussão

No total, foram encontrados 157 artigos com os descritores utilizados, sendo 66 artigos teóricos, 83 artigos empíricos e oito em duplicidade. Dos artigos empíricos, foram analisados 15 artigos na íntegra (Tabela 1), considerando os critérios de inclusão e exclusão, descritos anteriormente.

Após análise do material encontrado, pode-se evidenciar que uma diversidade de propostas são postas em prática por diferentes equipes multidisciplinares. Isso mostra que há em curso uma crescente diversificação e construção de novos modos de cuidar em saúde mental. Estes modos são encontrados tanto nos novos dispositivos de cuidado, como em serviços tradicionais que se reconfiguram para atender as atuais demandas em saúde mental, buscando novas formas de atuar.

Entre as atividades descritas nas publicações encontrou-se: moradia assistida; atividades grupais: oficinas terapêuticas, grupos terapêuticos e atividades de geração de trabalho e renda; atendimentos individuais; acompanhamento terapêutico; atendimento hospitalar; e o apoio matricial.


Moradia Assistida

Esta atividade foi encontrada em um dos artigos pesquisados, no trabalho de Silva e Azevedo (2011) que relata uma experiência realizada nos Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT). Estes têm por objetivo disponibilizar uma casa para a moradia com suporte técnico de profissionais de saúde para pessoas com histórico de longas internações psiquiátricas e perda dos vínculos familiares e comunitários. Seu propósito é ressocializar os moradores na vida em comunidade, fomentando sua autonomia através do autocuidado e de atividades cotidianas e estimulando a interação social. Como afirmado anteriormente, tal serviço configura-se como uma estratégia de desinstitucionalização (Brasil, 2011).

Os resultados apontam que há melhoria da qualidade e estilo de vida dos usuários, a partir do reaprendizado de várias habilidades cotidianas de gestão do autocuidado. Assim como, destaca-se que esse trabalho se dá de maneira lenta e que existem dificuldades com relação à precariedade da estrutura física e dos recursos materiais e humanos (Silva & Azevedo, 2011).

A oferta de uma moradia à pessoas que por longos períodos de internação perderam seus laços familiares, comunitários e sociais proporciona a garantia da cidadania e dignidade através do acesso a este direito. Contudo cabe observar que os trabalhadores deste equipamento necessitam dar maior ênfase à promoção da participação dos moradores como sujeitos ativos e utilizar os recursos da comunidade para que se possa pensar a cidadania como a construção de sujeitos autônomos e protagonistas de suas ações, atuando no fortalecimento e resgate dos vínculos sociais. As ações realizadas no serviço ainda encontram-se limitadas ao controle da medicação e ao acompanhamento do trajeto dos usuários a outros serviços de saúde. Além disso, a falta de um financiamento destinado exclusivamente para os SRT compromete seu funcionamento tendo em vista que grande parte dos municípios brasileiros não dispõem de orçamento suficiente para manter esse equipamento por conta própria.


Atividades Grupais

Tais atividades são relatadas em 08 artigos, nos trabalhos de: Caçapava, Colvero e Pereira (2009), Ramos e Massih Pio (2010), Benevides, Pinto, Cavalcante e Jorge (2010), Jorge, Sales, Pinto e Sampaio (2010), Lappann-Botti e Labate (2004), Lemos e Cavalcante Júnior (2009), Abib, Wachs e Alves (2010) e Castro e Maxta (2010). Estas atividades são desenvolvidas de acordo com diferentes perspectivas metodológicas (oficinas terapêuticas, grupos terapêuticos e grupos educativos) e em diversos locais, como: UBS, CAPS, Hospital-Dia, comunidade.

É expressiva a importância das atividades grupais no cuidado em saúde mental. Elas, de uma forma geral, contribuem para a afirmação da cidadania e fortalecimento das pessoas em sofrimento psíquico, pois possibilitam a criação de formas mais solidárias de relação entre os sujeitos participantes, de espaços de expressão do sofrimento e de convívio com a diversidade, além de um resgate dos vínculos comunitários. Elas contribuem com o que Barreto (2008) denomina de reinvenção do espaço público como um lugar de recriação da liberdade contribuindo assim na estruturação de um mundo de convívio. A possibilidade de reinvenção proporcionada pela convivência grupal pode ampliar a noção de cidadania, para além de uma perspectiva legalista da garantia de direitos individuais, para um reconhecimento da dimensão do sujeito em sua dimensão singular e coletiva, na medida em que o grupo é lugar de expressão de idiossincrasias e, ao mesmo tempo, lugar de reconhecimento do outro e afirmação da dimensão coletiva da existência.


Oficinas Terapêuticas

De acordo com os artigos encontrados, as oficinas terapêuticas têm por objetivos promover a expressão, a socialização e inserção social. As oficinas são atividades grupais de caráter pontual, realizadas por diversas categorias profissionais e por usuários. Elas possibilitam um lugar de fala, expressão e acolhimento, utilizando-se de atividades manuais ou técnicas de expressão. Os CAPS e a comunidade foram os locais mencionados para a realização destas atividades.

Lappann-Botti e Labate (2004) afirmam que embora haja uma percepção recorrente de que as oficinas são somente um espaço para a distração ou fuga da realidade, elas se configuram, antes de tudo, como um lugar de reflexão sobre a vida e de cultivo da convivência grupal. Tornam-se campo de intervenção de diversos saberes e produzem uma aproximação maior entre os profissionais, usuários e comunidade, pois trabalham numa perspectiva horizontal das relações de hierarquia.

Há nas oficinas a inclusão da participação dos familiares e estas se diferenciam do modelo manicomial por ocorrerem em espaços diversos e apontarem para a tomada da existência-sofrimento como objeto das práticas (Lappann-Botti & Labate, 2004). Isso significa a ampliação do olhar antes voltado exclusivamente para a doença e suas manifestações sintomáticas, para outras dimensões importantes da vida concreta do sujeito.

Em uma oficina de futebol realizada com usuários e técnicos dos CAPS, como relata Abib, Wachs e Alves (2010), percebeu-se que a atividade proposta propiciou o protagonismo dos usuários na criação das regras, na resolução de conflitos e no desenvolvimento da própria atividade. Esse tipo de atividade contribuiu para uma mudança nas relações estabelecidas entre usuário e profissional, permitindo uma maior horizontalidade entre estes. Consideramos que a oficina de futebol possibilitou um espaço para consolidar o que Hirdes (2009) destaca como a necessidade de fortalecimento e afirmação dos usuários como sujeitos de sua história, por haver uma divisão de papéis na atividade que estimularam a participação e ampliaram a tomada de decisões para além dos técnicos responsáveis pela execução da oficina.

O estudo de Castro e Maxta (2010) apresenta oficinas realizadas no território com recursos presentes na comunidade, como: praça pública, biblioteca e feira livre. As atividades descritas permitiram a criação de espaços de convivência entre a comunidade e os usuários do CAPS, favorecendo uma maior inserção no território e um conhecimento e enfrentamento de fatores sociais condicionantes do processo saúde-doença.

Embora possamos notar a importância de tais práticas, uma vez que a partir destas se promove o fortalecimento do protagonismo dos usuários e uma intervenção na vida social da cidade, uma das dificuldades relatadas foi a falta de recursos materiais e financeiros para o desenvolvimento, manutenção e continuidade das oficinas. Isso evidencia que um dos desafios à efetivação de práticas que se propõem a promoção da cidadania é justamente a garantia dos recursos financeiros, para que não se tornem atividades pontuais e esporádicas, e que possam ser valorizadas e compreendidas como fundamentais para os propósitos da Reforma Psiquiátrica. Percebe-se que, embora tal movimento pretenda a conversão de recursos antes utilizados no hospital psiquiátrico para os novos serviços, ainda é necessário repensar as formas de alocação dos recursos financeiros, não atrelando estas exclusivamente a critérios diagnósticos, mas em tecnologias produtoras de saúde desenvolvidas em função das necessidades de saúde da população.


Grupos Terapêuticos

Os grupos terapêuticos foram apresentados como atividades rotineiras e permanentes em diversos serviços de saúde mental. Destacou-se como finalidade potencializar uma abordagem psicossocial aos problemas de saúde mental com o foco na expressão de sentimentos e emoções dos sujeitos, na educação em saúde e na ampliação do conhecimento sobre o processo saúde-doença. Pretendem ser um dispositivo de cuidado em saúde mental, assim como um instrumento potencializador de uma melhoria nas relações sociofamiliares.

Os grupos terapêuticos aparecem nos artigos de Jorge et al. (2010), Lemos e Cavalcante Júnior (2009), Benevides et al. (2010) e Ramos e Massih Pio (2010) que relatam experiências desenvolvidas em CAPS, atenção básica e Hospital-Dia. Esses grupos são realizados por diferentes categorias profissionais (terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, sociólogos, musicoterapeutas, psicólogos, enfermeiros e outros) com objetivos bastante diversos.

No grupo terapêutico apresentado por Lemos e Cavalcante Júnior (2009), a metodologia, baseada na orientação rogeriano-humanista, tem como foco o desenvolvimento dos potenciais humanos direcionando o olhar dos profissionais para os aspectos positivos da mente. A atividade se mostra como uma estratégia que desafoga agendas e consultórios abarrotados e coloca demandas outras de ordem social comunitária para as equipes multiprofissionais.

Por ter um olhar orientado para a potencialidade do ser humano, apresenta uma inovação ao trazer uma perspectiva mais voltada à saúde que à doença. No entanto, na construção do grupo observamos que o diagnóstico do usuário serve como critério para o agrupamento destes. Dessa forma, a superação do rótulo de doente necessária para o rompimento da lógica do manicômio, como afirma Basaglia (1985), fica assim sob suspeita. Problematiza-se aqui se não há ainda dificuldades em perceber a possibilidade da convivência de sujeitos singulares num mesmo espaço público respeitando as diferentes formas de estar no mundo. Sendo assim, práticas que contemplem a cidadania requerem também a consideração da expressão e convívio das diferenças.

No artigo de Benevides et al. (2010) identificase práticas de cuidado que incluem a participação da família do usuário no processo de reabilitação. De acordo com o relato dos autores, nas atividades de grupos em que há o envolvimento das famílias percebe-se uma melhoria das relações entre usuários e familiares. Esse é um aspecto interessante, pois não é muito frequente a proposição e inclusão da família nas atividades de cuidado na saúde mental.

Percebe-se um maior ganho de autonomia dos usuários já que seus vínculos são fortalecidos e apresentam-se como uma efetiva estratégia ao acompanhamento de agravos e doenças. Outro elemento importante destacado é a possibilidade de construção de projetos terapêuticos mais condizentes com as necessidades dos sujeitos, pois o grupo permite uma vivência onde há maior possibilidade de comunicação e escuta entre profissionais e usuários. Sendo assim, percebemos a iniciativa como uma atividade inovadora que produz novas interações entre os sujeitos e os técnicos como aponta Bosi et al. (2012) e que pode ter potência de desencadear processos onde os sujeitos não são objetos de cuidado, e sim percebidos como cidadãos e coautores de seus projetos terapêuticos.

Massih e Pio (2010) relatam a experiência do Grupo de Saúde Mental, desenvolvida na Estratégia Saúde da Família. O grupo destinava-se a usuários com histórico de internações psiquiátricas que faziam acompanhamento em um Ambulatório de Saúde Mental. O objetivo principal dessa prática é prevenir recaídas e reinternações. O método da roda utilizado pela equipe propõe a construção coletiva de projetos terapêuticos, visando à co-responsabilização dos problemas, à autonomia e à capacidade de intervir de modo eficaz em impasses subjetivos.

Os resultados produzidos a partir do grupo apontam para uma consideração da implicação do sujeito como co-responsável, o que é fundamental para a promoção de práticas de cuidado que o considerem como um sujeito que tem algo a dizer e que participa ativamente neste processo. Consideramos que a cidadania entendida não só como acesso ao serviço, mas como uma participação ativa do sujeito na vida social, tem sido contemplada nesta descrição do trabalho (Souza, 2008).


Atividades produtivas de geração de trabalho e renda

As atividades produtivas de geração de trabalho e renda tem como foco a reinserção do sujeito em sofrimento psíquico no universo do trabalho. A promoção da saúde e a integralidade no cuidado em saúde são o destaque destas práticas, desenvolvidas a partir dos CAPS e de serviços denominados Centros de Convivência e Cooperativa (CECCO). Na revisão das produções científicas, os artigos de Castro e Maxtra (2010) e de Caçapava, Corveiro e Pereira (2009) apresentaram experiências nesta perspectiva.

Caçapava, Corveiro e Pereira (2009) relatam práticas desenvolvidas pelo CECCO, um serviço que propõe a promoção da inclusão social, a partir das artes, do artesanato, do esporte e do trabalho. As ações se dão de modo intersetorial, onde a atenção básica, os CAPS e associação de familiares e usuários são parceiros importantes no desenvolvimento de oficinas de geração de trabalho e renda.

As oficinas são facilitadas por profissionais de saúde e por voluntários da comunidade e realizadas em diferentes espaços do território e dos serviços de saúde. Como resultado das ações desenvolvidas, é destacado pelos autores: a superação do modelo biomédico centrado na doença, a produção de autonomia e cidadania, o fortalecimento da saúde integral e a produção de novos sentidos de vida aos sujeitos em sofrimento psíquico.

Considera-se que estas atividades trazem como objetivo central o fortalecimento da cidadania, pois focam na existência concreta do sujeito (Rotelli, Leonardis & Maurí, 2001), em suas necessidades sociais de trabalho, na geração de renda e no fortalecimento de laços sociais, sendo potente na promoção da saúde e na melhoria da qualidade de vida. Essas atividades deveriam ser expandidas aos diversos municípios e ocupar lugar de destaque na rede de saúde mental. Elas são essenciais à garantia dos direitos dos usuários, pois suas intervenções facilitam a construção de formas possíveis de viver mais saudável.


Atendimentos Individuais

Os atendimentos individuais oferecidos por diferentes profissionais (psiquiatras, psicólogos, enfermeiros e terapeutas ocupacionais) em suas especialidades buscam realizar um acompanhamento a demandas clínicas e necessidades singulares dos sujeitos através de consultas individuais e de psicoterapia. Muito se tem problematizado sobre esta prática, que no paradigma asilar ocupa lugar central e no paradigma psicossocial é revista e repensada.

Neste último, destaca-se a necessidade de invenção de novas modalidades de cuidado, no qual o grupo tem lugar privilegiado. Onocko-Campos (2001) questiona se não haveria se construído uma sobreposição do grupo, operando uma negação da clínica no sentido de suprimir os espaços de escuta e apoio das demandas particulares.

Entre os trabalhos que mencionam práticas de atendimentos individuais, estão o de Silveira e Vieira (2009), Ferrazza, Luzio, Rocha e Sanches (2010), Benevides et al. (2010) e Jorge et al. (2010). Os atendimentos relatados têm como cenário a Estratégia Saúde da Família, o CAPS, o hospital e o ambulatório de saúde mental.

O trabalho de Ferraza et al. (2010) e Jorge et al. (2010) evidenciam que nesses atendimentos realizados existe uma cultura médico-centrada, percebida pela alta busca e encaminhamento a psiquiatria. Há uma grande frequência de prescrição prévia de psicofármacos a pacientes que apresentam queixas de sofrimento psíquico, com baixos índices de alta. Os processos de trabalho nesses estudos evidenciam a dificuldade em promover práticas de cuidado que possam intervir nas diferentes esferas da vida do sujeito, elegendo como objetivo central da intervenção a supressão do sintoma.

Silveira e Vieira (2009) relatam práticas desenvolvidas na Estratégia Saúde da Família em que destacam o despreparo para lidar com o sofrimento psíquico por parte das equipes e, assim como nos artigos anteriormente citados, uma visível tendência à medicalização dos sintomas. As longas filas de espera e as condições precárias do serviço diante da demanda se apresentam ainda como uma dificuldade no oferecimento da assistência em saúde. Desse modo, percebe-se que o acesso aos serviços, uma das dimensões mais básicas de garantia dos direitos e da cidadania dos usuários (Hirdes, 2009), encontra-se ainda por ser efetivado em nossa realidade.

Ao problematizar a clínica individual na atenção psicossocial, a partir dos exemplos apresentados, vê-se que a cultura médico-centrada e o foco na medicalização dos sintomas ainda é muito presente inclusive em serviços criados a partir dos ideais da Reforma Psiquiátrica. Não se pretende aqui negar tal prática e sua importãncia, ao contrário, sabe-se o quanto o acesso a um atendimento individual de qualidade é algo necessário, contudo ainda pouco presente em muitos serviços de saúde mental (Onocko-Campos, 2001). O questionamento aponta na direção da qualidade desta, que não deve reduzir-se ao sintoma, à doença e a supressão destes, mas deve centrar-se na totalidade da existência do sujeito e na construção de novas possibilidades e sentidos do viver (Amarante, 2007).


Acompanhamento Terapêutico

A prática do acompanhamento terapêutico foi encontrada no artigo de Bezerra e Dimenstein (2009) realizada em um hospital psiquiátrico com a proposta de alta-assistida. De acordo com os autores, o acompanhamento terapêutico é uma importante estratégia de inserção social dos sujeitos em sofrimento psíquico na vida extramanicomial podendo ser realizado por diferentes profissionais e técnicos de saúde.

O acompanhamento terapêutico é uma prática que se desenvolve tanto no interior dos serviços de saúde, como em diferentes espaços públicos por onde o sujeito circula, extrapolando o universo da instituição, o que caracteriza esta prática como uma "clínica sem muros" (Bezerra & Dimenstein, 2009, p. 28). Por ir além do espaço hospitalar, adentra o universo da interação do sujeito com a cidade e trabalha questões referentes a esta relação. Sua potência situa-se neste aspecto, pois possibilita um olhar integral do sujeito e uma intervenção em sua vida pessoal e social, abordando questões singulares, familiares, comunitárias e sociais, fundamentais para o exercício da cidadania (Barreto, 2008).

Apesar do grande potencial de reintegração dos usuários a vida social, a realização de tal prática ainda sofre muitas resistências no contexto hospitalar. Dentre os empecilhos para a concretização desta prática citada por Bezerra e Dimenstein (2009) encontram-se o desconhecimento da proposta pelo corpo técnico; a falta de adesão de profissionais à proposta; a ausência de acompanhamento/seguimento cotidiano da atividade; a falta de recursos financeiros para o desenvolvimento de atividades externas; a pouca articulação com a rede de serviços de saúde mental; e a ausência de um trabalho sistemático com as famílias.


Hospital-Dia

O programa Hospital-Dia é apresentado no trabalho de Guareschi, Reis, Oliven, e Hüning (2008). Segundo os autores, é uma proposta que pretende oferecer um cuidado a partir da instituição hospitalar, mas que, funcionando de maneira diferente do modo asilar, não está centrado exclusivamente na doença e ocorre com a participação de uma equipe multidisciplinar. Desse modo, deixa de ter o uso do medicamento como centro do tratamento e possibilita a inclusão de outras intervenções possíveis junto aos sujeitos.

Apesar de tais propósitos, Guareschi et al. (2008) evidenciaram a forte presença de resquícios da lógica asilar nas relações entre usuários e profissionais. Ainda existe a manutenção de práticas que promovem a submissão dos usuários, vistos pelos profissionais como impossibilitados do controle de si mesmos e necessitados de tutela.

Um questionamento que tem sido feito é o de que a progressiva redução dos leitos hospitalares no país não tem ocorrido em paralelo à criação de uma nova proposta de cuidados para atenção a situações de crise. Embora haja um crescente número de serviços substitutivos, estes ainda são em número insuficientes à demanda existente. Mais uma vez constata-se que a dimensão da cidadania enquanto acesso ao serviço de saúde (Hirdes, 2009) ainda não se concretizou de maneira efetiva.


Apoio Matricial

O apoio matricial é uma prática que articula atenção básica e atenção psicossocial especializada (CAPS). Caracteriza-se por ser um suporte técnico especializado em saúde mental a nível assistencial e técnico-pedagógico, no qual conhecimento e ações considerados como próprios das áreas "psis" são ofertados a demais profissionais da área da saúde no intuito de aumentar a capacidade resolutiva de casos individuais, familiares e comunitários em saúde mental e fortalecer a rede de atenção em saúde mental. Os trabalhos de Prestes, Araújo, Costa, Nascimento e Oliveira (2011) e Ramos e Massih Pio (2010) mencionam experiências de apoio matricial.

Preste et al. (2011) optaram pela roda de conversa como método para a condução dos encontros de matriciamento. De acordo com os autores, a partir desta é possível a construção de espaços coletivos, propícios a reflexão crítica e a ação cooperativa. Como resultados do trabalho desenvolvido, identificou-se um estreitamento dos laços entre atenção básica e especializada, o que fortalece a co-responsabilidade, potencializa a comunicação e a troca de conhecimentos, além de uma maior qualificação do cuidado ofertado. Ramos e Massih e Pio (2010) destacaram que o apoio matricial fortaleceu o trabalho interdisciplinar e potencializou a invenção e a experimentação de uma nova clínica em saúde mental, qualificando as equipes na atenção às questões subjetivas e de sofrimento psíquico.

Compreende-se que ao buscar colaborar com as equipes de saúde da família, a atividade do matriciamento proporciona uma atuação integral aos casos de saúde mental, considerando as diferentes dimensões do sujeito (Ramos & Massih Pio, 2010), que por muitas vezes são fragmentadas pelas especialidades e pelos diferentes níveis de atenção. Sendo assim, considera-se que um sistema de saúde que pretende se guiar pela noção de cidadania e pelos desafios impostos por esse conceito só podem almejar tal objetivo e resultado quando este trabalho se opera de maneira coletiva considerando e ponderando os diferentes olhares dos diferentes atores envolvidos no cuidado em saúde.


Considerações Finais

Muitas das práticas encontradas relataram experiências de cuidado pautadas no paradigma psicossocial, com um olhar voltado para o sujeito e sua existência. Sendo assim a contribuição destas para a afirmação da cidadania situa-se numa maior consideração do sujeito em sua realidade concreta, visto que as atividades buscam intervir em diferentes espaços sociais, o que facilita uma maior contratualidade e fortalecimento da autonomia dos sujeitos.

É notável que há um avanço na proposição de novas práticas, que configuram um amplo leque de possibilidades de intervenções. Diferentes categorias profissionais tem se empenhado neste trabalho e a atuação multiprofissional tem sido uma condição para execução dessas práticas. Isso demonstra o reconhecimento da importância da interdisciplinaridade na abordagem da complexidade dos problemas de saúde mental.

O fortalecimento do protagonismo dos usuários foi apontado em muitos objetivos das práticas de cuidado e isso remete a um movimento de busca da garantia da condição de cidadão da pessoa com transtorno mental. Considera-se de fundamental importância que isto seja salientado, pois percebese um redirecionamento do cuidado, que se desenvolve não entre um ser que toma o outro como objeto, mas a partir de um encontro entre sujeitos ativos na produção de sua história e existência.

Apesar das inovações encontradas destacam-se algumas dificuldades. Uma delas é a perpetuação de práticas asilares e manicomiais em alguns serviços, inclusive nos novos dispositivos de cuidado. Outra remete-se a questão do acesso aos serviços. Estes não conseguem responder a alta demanda de cuidados em saúde mental deixando muitas pessoas na fila de espera ou sem atendimento. Além disso, existem dificuldades como: a descontinuidade das ações e o financiamento inadequado para o pleno desenvolvimento destas.

Historicamente, grande parte da população em sofrimento psíquico foi expropriada de seus direitos e sua dignidade. Ainda hoje, apresenta-se como um desafio fomentar e fortalecer espaços e políticas públicas de saúde mental que ampliem os cuidados para além da doença e que se possa reconhecer e intervir sobre a existência concreta desses sujeitos. Assim como, o desenvolvimento de práticas cada vez mais horizontalizadas e realizadas mediante o diálogo entre os saberes científicos e populares e de uma escuta real das necessidades da população. Sendo a cidadania um processo a ser conquistado e afirmado historicamente, sua efetivação e seu fortalecimento através das práticas de cuidado passam pela necessidade de fomentar movimentos em defesa de políticas públicas orientadas por princípios antimanicomiais de cuidado em liberdade.


Agradecimentos

Apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Brasil, na forma de bolsa de mestrado do primeiro e do terceiro autor e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), Brasil, na forma de bolsa de pesquisadora em produtividade (PQ) da segunda autora.



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