Diferentes modelos teóricos têm sido desenvolvidos para explicar a aquisição de linguagem escrita, tais como o Modelo Simples da Leitura (Gough & Tunmer, 1986), Modelo de Cordas (Scarborough, 2001) e o Modelo Componencial da Leitura (MCL) (Joshi & Aaron, 2012). De forma unânime, todos sugerem que, para ler com compreensão, são necessárias diferentes habilidades que interagem entre si. O Modelo Simples da Leitura, por exemplo, propõe que a compreensão da leitura pode ser caracterizada pelo resultado da interação de processos de decodificação -habilidade de conversão de símbolos gráficos em sons- e de compreensão oral -que se refere à compreensão da linguagem de forma geral, ou seja, de conteúdos oralmente transmitidos- e tem sido vastamente corroborado por estudos na área (Kim, 2017).
Embora o Modelo Simples da Leitura seja ainda hoje bastante referenciado (Gonçalves, 2019), outros estudos, como os baseados no MCL (Joshi & Aaron, 2012), podem ser úteis ao destacar que apenas as habilidades de decodificação e compreensão oral não são suficientes para explicar a variabilidade na compreensão de leitura. Deste modo, o MCL apresenta uma abordagem mais abrangente, na qual a performance em leitura é resultado da interação de diferentes componentes dos domínios psicológico, ecológico e cognitivo (Joshi & Aaron, 2012). Especificamente em relação aos processos do domínio cognitivo, ampliando o proposto pelo Modelo Simples de Leitura, o MCL destaca as habilidades de reconhecimento de palavras, de compreensão oral e também ressalta a importância da fluência de leitura (Joshi & Aaron, 2012; Seabra et al., 2017).
A habilidade de reconhecimento de palavras, primeira habilidade destacada no modelo, é composta por dois processos distintos, a saber, o processo de decodificação, por meio da rota fonológica, e o processo de reconhecimento visual direto, por meio da rota lexical (Ellis & Young, 1988). A decodificação fonológica ocorre quando uma palavra pode ser lida por meio da transposição dos símbolos gráficos em símbolos sonoros. De outro lado, na rota lexical o leitor identifica a palavra pelo reconhecimento visual direto, acessando o léxico ortográfico.
O segundo componente analisado pelo MCL é a compreensão oral ou linguística, a qual se refere-se ao entendimento do que é dito oralmente (Rotta & Pedroso, 2016). Envolve habilidades tais como vocabulário, sintaxe, morfologia, semântica e habilidade de gerar inferências, dentre outras habilidades verbais (Navas, 2021; Seabra et al., 2017).
O terceiro componente cognitivo destacado pelo MCL é a fluência de leitura, que pode ser compreendida como a qualidade da leitura de palavras isoladas e/ou de texto ou como o resultado da precisão e da automaticidade em cada um dos componentes linguísticos relacionados à leitura. Apesar de não haver consenso completo sobre a definição de fluência de leitura, ela combina precisão, velocidade e expressão apropriadas (Rasinski et al., 2016) e resulta da interação de diferentes sistemas biológicos e cognitivos (Navas et al., 2009). Deste modo, destaca-se que, devido às diferentes formas de conceituação, há grande heterogeneidade de tarefas para avaliação da habilidade de fluência (Navas et al., 2009), o que dificulta a realização de comparações entre os achados de diferentes estudos (Seabra et al., 2017).
Esses três componentes anteriormente citados são, portanto, fundamentais para a compreensão de leitura. Tal evidência parece ser aplicável a diferentes tipos de ortografia, embora a literatura aponte que o grau de transparência dos idiomas também interfere no modo como o reconhecimento de palavras e a fluência se relaciona com a compreensão de leitura, com importância maior da fluência em ortografias mais transparentes (Navas, 2021; Seabra et al., 2017). De fato, há um extenso corpo de pesquisas nacionais e internacionais apontando a habilidade de reconhecimento de palavras como um importante preditor de leitura nos anos iniciais de escolarização, ao passo que, outras habilidades se tornariam mais preponderantes com a progressão escolar (Denton et al., 2011; Ripoll Salceda et al., 2013, Seabra et al., 2017). Já o papel da habilidade de fluência não figura muito claro na literatura (Navas et al., 2009; Seabra et al., 2012). Alguns estudos sugerem que sua importância relativa seja maior por volta do 4° ou 5° ano (Klauda & Guthrie, 2008; Seabra et al., 2017), enquanto outros estudos sugerem a importância da fluência já a partir de anos iniciais do Ensino Fundamental (Hickmann et al., 2021; Joshi & Aaron, 2012).
Em relação aos estudos que sugerem a diminuição da importância da fluência ao longo do desenvolvimento, uma das hipóteses explicativas é que, com a progressão escolar, ocorre uma sobreposição das medidas referentes às habilidades de fluência e reconhecimento de palavras. Logo, as habilidades de reconhecimento de palavras e fluência não são facilmente diferenciadas (Seabra et al., 2012).
Por outro lado, em relação às evidências de que a habilidade de fluência desempenha um papel mais importante com o avanço escolar, uma das hipóteses explicativas é que, nos anos iniciais, as habilidades relacionadas ao reconhecimento de palavras ainda estão tão incipientes que não há variação entre os estudantes. Assim, a fluência seria uma medida mais significativa quando a variação entre os alunos em fluência de leitura fosse maximizada, o que só ocorreria em séries mais avançadas, com a automatização do reconhecimento de palavras (Seabra et al., 2017; Yovanoff et al., 2005).
Deste modo, apesar da importância bem documentada do papel do reconhecimento de palavras e da fluência de leitura para a compreensão leitora, ainda não está claro o papel da fluência no modelo de processamento da leitura, tampouco de que modo sua relação com a habilidade de reconhecimento de palavras muda ao longo do tempo (Kim, 2015; Seabra et al., 2012). Tal conhecimento é fundamental para permitir avaliações mais precisas do desenvolvimento da leitura e seus componentes ao longo da escolarização, bem como para direcionar atividades escolares e intervenções clínicas quando necessário. Sendo assim, o objetivo deste estudo é apresentar uma revisão sistemática da literatura sobre a relação das habilidades de reconhecimento de palavras e fluência com a compreensão de leitura em alunos do 4° ao 9° ano, de modo a compreender o papel relativo desses componentes para a leitura competente.
Método
Este estudo de revisão sistemática foi conduzido de acordo com Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (PRISMA; Moher et al., 2009). A base de dados eletrônica PubMed (de 2000 a setembro 2019) foi pesquisada em busca de artigos sobre a contribuição das habilidades de fluência e de reconhecimento de palavras para a compreensão de leitura. Foram utilizados os seguintes descritores: (a) fluency OR reading speed AND reading comprehension; word recognition OR decoding AND reading comprehension. Os estudos que utilizaram medidas de reconhecimento de palavras com controle de tempo foram classificados como medidas de fluência, de acordo com o proposto por Fletcher (2009), para o qual a habilidade de fluência está relacionada à velocidade na leitura de palavras e textos. As tarefas que avaliaram apenas a acurácia na leitura foram consideradas, na presente revisão, como medidas de reconhecimento de palavras. As sintaxes foram as seguintes:
(fluency OR word AND ("recognition (psychology)"[MeSH Terms] OR ("recognition"[All Fields] AND "(psychology)"[All Fields]) OR "recognition (psychology)"[All Fields] OR "recognition"[All Fields]))) OR decoding[All Fields]) AND (("reading"[MeSH Terms] OR "reading"[All Fields]) AND ("comprehension"[MeSH Terms] OR "comprehension"[All Fields])) AND ("2000/01/01"[PDAT] : "2019/12/31"[PDAT]).
((((fluency[All Fields] OR (word[All Fields] AND ("recognition (psychology)"[MeSH Terms] OR ("recognition"[All Fields] AND "(psychology)"[All Fields]) OR "recognition (psychology)"[All Fields] OR "recognition"[All Fields]))) OR decoding[All Fields]) AND (("reading"[MeSH Terms] OR "reading"[All Fields]) AND ("comprehension"[MeSH Terms] OR "comprehension"[All Fields]))) AND ("2000/01/01"[PDAT].
Os critérios de inclusão foram: (a) estudos empíricos; (b) artigos com avaliação de fluência de leitura ou de reconhecimento de palavras -em qualquer faixa etária ou escolaridade-; (C) avaliação de compreensão de leitura em participantes entre 9 e 15 anos de idade, do 4° ao 9° ano do EF; (d) participantes com desenvolvimento típico -ou seja, sem quadros de transtornos do neurodesenvolvimento, psiquiátricos ou sensoriais-; (e) participantes monolíngues; (f) artigos com análises estatísticas que permitissem verificar a relação do desempenho nos testes de fluência e/ou de reconhecimento de palavras com a compreensão de leitura. Foram considerados critérios de exclusão: artigos repetidos e artigos que implementaram intervenção com os participantes.
A revisão foi feita usando o programa de gerenciamento de revisões sistemáticas State of the Art through Systematic Review (START), desenvolvido pela Universidade Federal de São Carlos (uFSCar), com o objetivo de automatizar as etapas de condução da revisão, bem como realizar o gerenciamento dos dados das buscas eletrônicas, seguindo as diretrizes do protocolo PRISMA. A aplicação dos critérios de inclusão foi realizada por meio do método de revisão double blind por dois juízes. Todos os resumos que não forneceram informações suficientes em relação aos critérios de inclusão foram selecionados para avaliação do texto integral. Discordâncias entre os revisores foram resolvidas por consenso, em alguns casos, obtido por meio da consulta de um terceiro revisor.
Após a seleção dos artigos, os itens selecionados para a análise do texto integral foram: (a) objetivos; (b) método: amostra (número de participantes, faixa etária), instrumentos e respectivas habilidades avaliadas, tipo (longitudinal ou transversal); (c) principais resultados: dados quantitativos que evidenciam as relações entre habilidades de reconhecimento de palavras e fluência com a compreensão de leitura.
Resultados
A busca dos artigos na base de dados PUBMED, realizada em setembro de 2019, retornou 1.088 artigos. O sistema START excluiu automaticamente 96 duplicatas, restando 993 artigos. Dois juízes fizeram a seleção dos artigos a partir da leitura dos resumos, conforme critérios de seleção e exclusão da fase da análise de identificação. As divergências foram sanadas por consenso e consulta ao terceiro juiz. Após essa primeira etapa da análise dos resumos foram rejeitados 905 artigos.
Os 88 artigos restantes foram selecionados para a leitura do texto integral pelos dois juízes. Foram excluídos 56 artigos pelos seguintes motivos: (a) alunos em que a avaliação de compreensão de leitura ocorreu em faixa escolar diferentes da selecionada como critério de inclusão; (b) não utilização de medidas das avaliações indicadas nos critérios de inclusão; (c) análises estatísticas que não permitissem verificar a relação entre os testes de fluência e/ou de reconhecimento de palavras com a compreensão de leitura e (d) artigos de intervenção. Deste modo, 32 artigos foram elegíveis para a fase de extração de dados (veja a Figura 1).
Os 32 artigos extraídos foram organizados de acordo com o ano de publicação (do mais antigo ao mais recente) para que as categorias fossem elen-cadas. Os resultados estão apresentados de acordo com o ano escolar em vez de idade devido ao fato de mais estudos utilizarem esta classificação (4° ao 9° ano) do que a classificação por idade (nove a 15 anos de idade). De qualquer forma, a literatura sugere que os resultados de ambas análises são muito similares (Ripoll Salceda et al., 2013). Os dados extraídos de cada estudo encontrado foram analisados e descritos conforme objetivos, amostra, idiomas, habilidades avaliadas, delineamento e principais resultados (veja a Tabela 1).
Nota: CL = Compreensão de Leitura, RP = Reconhecimento de Palavras, F = Fluência de Leitura, FP = Fluência de leitura de Palavras isoladas, FT = Fluência de leitura de Textos ou passagens, P = prosódia, Long = Longitudinal, Trans = Transversal.
Como pode ser observado na Tabela 1, grande parte dos estudos se concentrou no período entre 2010 e 2019 (N = 31), sendo encontrados apenas dois estudos na década anterior (2000 -2009). Dos 33 estudos que atenderam aos critérios de inclusão, 10 são longitudinais e 22 transversais, dos quais, a maioria esteve na língua inglesa (N = 18) sendo encontrados apenas cinco estudos relacionados ao idioma português. Em relação às características de idade e escolaridade das amostras, 18 artigos incluíam alunos menores de nove anos; contudo, foram incluídos por terem alunos do 4° ou 5° ano escolar nos quais foi avaliada a compreensão de leitura. Foi encontrado apenas um estudo abrangendo todos os anos escolares alvo da presente revisão entre o 4° e 10° ano e outro estudo com alunos do 6° ao 10° ano. A amostra dos demais estudos foi composta por diferentes anos escolares do EF, entre o 4° e o 9° ano, sendo a maior parte deles referentes ao primeiro ciclo do EF (1° ao 5° ano).
Na avaliação da fluência de leitura de palavras ou textos, todas as tarefas utilizadas envolveram controle de tempo. Algumas consideraram fatores como taxa de acurácia, omissões, duração de pausas e prosódia. Outras incluíram leituras repetidas dos mesmos textos.
A maior parte dos estudos utilizou tarefas de leitura de palavras isoladas (código da Tabela 1: 2, 5, 6, 7, 9, 10, 11, 13, 14, 15, 16, 19, 20, 22, 26, 28, 29, 30, 31, 33), de pseudopalavras (5, 6, 11, 13, 14, 16, 20, 18, 24, 28, 31, 33), de textos (6, 7, 9, 10, 15, 16, 17, 19, 20, 22, 23, 24, 32) e de passagens de textos (2, 5, 7, 11, 13, 15, 25, 27). Um estudo utilizou tarefa de leitura de caracteres (8). Também foram utilizadas tarefas de identificação de palavras escritas incorretamente (13), de palavras e pseudopalavras que estavam escritas em corrente, de forma aglutinada (5, 7, 12), e de pseudopalavras em uma lista mista de palavras e pseudopalavras (12). Ainda, foram realizadas tarefas de compreensão de passagens de textos (7, 9) e de leitura silenciosa para julgamento de sentenças corretas e incorretas (21). O estudo 23 utilizou a Escala de Avaliação da Fluência de Leitura Oral, respondida por professores.
Para avaliar a habilidade de reconhecimento de palavras, os estudos utilizaram tarefas que solicitavam a leitura de listas de palavras e/ou pseudopalavras (1, 3, 13), a identificação de palavras escritas incorretamente (5, 21, 26), a identificação de palavras que estavam escritas em corrente, de forma aglutinada (4, 13) e a escrita da forma fonética de caracteres que eram apresentados (8). Destaca-se que, na atual revisão, as medidas de reconhecimento de palavras e de fluência, que utilizaram tarefas de leitura de palavras ou pseudo-palavras, por se tratarem da leitura itens isolados, foram analisadas conjuntamente, à semelhança de estudos anteriores (Álvarez-Cañizo et al., 2015; Tighe & Schatschneider, 2013).
Por fim, a maioria dos estudos que avaliou a compreensão de leitura utilizou tarefas em que era necessário ler parágrafos ou textos para responder questões de múltipla escolha (1, 2, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 17, 19, 20, 21, 24, 23, 25, 27, 30, 31, 32, 33), semelhante ao encontrado em revisão anterior (Ripoll Salceda et al., 2013), ou para responder questões abertas (1, 11, 16, 22, 29), ou completar lacunas de um texto conforme a técnica cloze (1, 2, 3, 5, 7, 13, 18, 19, 22, 24, 28). Outros estudos utilizaram tarefas de relacionar imagens a sentenças ou passagens de textos (3, 4, 9, 19, 26, 30), tarefas de recontar textos lidos (6) e de identificar incoerências propositais nos textos (33).
Discussão
A presente revisão sistemática teve como objetivo verificar a relação das habilidades de fluência e de reconhecimento de palavras com a compreensão de leitura de alunos do 4° ao 9° ano escolar, abrangendo os anos finais do EF. Como pôde ser observado, a maioria dos 32 estudos esteve relacionada ao idioma inglês (N = 19). Ao todo, os estudos encontrados estiveram relacionados à investigação de oito idiomas diferentes, sendo cinco estudos em português. Este dado reforça a necessidade de maiores investigações sobre a interação dos componentes de leitura nos anos do EF I e II no idioma português.
Embora a literatura aponte que o grau de transparência dos idiomas interfere no modo como o reconhecimento de palavras e a fluência se relaciona com a compreensão de leitura (Navas, 2021; Seabra et al., 2017), na atual revisão, os dados foram analisados em conjunto, independentemente do idioma, visto que a maioria dos artigos analisou o inglês. Futuras pesquisas poderão investigar tal questão.
Grande parte das pesquisas não foi selecionada nessa revisão por estar relacionada exclusivamente ao ensino infantil ou aos anos escolares iniciais do EF (1° ao 3° ano). Destaca-se que quase metade dos estudos (N = 11) se concentrou no primeiro ciclo do EF (1° ao 5° ano), 12 estudos foram conduzidos com estudantes dos anos iniciais até o 6° ano e apenas nove estudos foram conduzidos com estudantes entre o 7° e o 9° ano escolar. Na verdade, apenas um estudo, de delineamento transversal, teve amostra composta exatamente por alunos dos anos escolares alvo da presente revisão. Tais resultados demonstram que a partir do segundo ciclo do EF, com a progressão escolar, aumenta a carência de achados disponíveis.
Conforme a classificação dos tipos de tarefas na presente revisão, 24 estudos utilizaram somente tarefas de fluência, três estudos utilizaram somente tarefas de reconhecimento de palavras e outros cinco utilizaram tarefas que mediram ambas as habilidades. A maior prevalência de estudos utilizando tarefas de fluência do que de reconhecimento de palavras pode estar relacionada ao fato de terem sido selecionados os dados de publicações com amostras compostas por alunos com desenvolvimento típico a partir do 4° ano escolar, para os quais a habilidade de reconhecimento de palavras já seria uma habilidade mais consolidada (Francis et al., 2005; Komeno et al., 2015).
Embora sejam necessários mais estudos para compreender o caráter desenvolvimental da habilidade de fluência (Seabra et al., 2017), os dados da presente revisão parecem sugerir certa conformidade em relação à hipótese de que com a progressão escolar diminuiria a importância da acurácia no reconhecimento de palavras e, medidas de velocidade no reconhecimento de palavras, na atual revisão classificadas como medidas de fluência, se tornariam mais relevantes para a compreensão de leitura (Dias et al., 2015). A seguir, inicialmente são discutidos os estudos referentes à contribuição da fluência para a compreensão de leitura e, posteriormente, aqueles referentes ao reconhecimento de palavras.
Em relação aos procedimentos adotados para avaliar a fluência, foram utilizadas 11 tarefas distintas, sendo que apenas sete estudos utilizaram um único tipo de medida, enquanto a maior parte utilizou duas ou três tarefas diferentes. A grande heterogeneidade das tarefas sugere que a definição de fluência de leitura, bem como a forma de avaliar o construto não sejam consensuais entre os estudiosos, conforme já apontado na literatura (Navas et al., 2009; Seabra et al., 2017). Por outro lado, o predomínio de estudos utilizando ao menos dois tipos de tarefas pode sugerir certo grau de consenso acerca do caráter multifatorial da habilidade de fluência.
De modo geral, excetuando os estudos 18 e 19, os resultados apresentados na atual revisão sugerem relação significativa entre a habilidade de fluência e a habilidade de compreensão de leitura. Dentre os 23 estudos que apresentaram análises de correlação (2, 3, 5, 6, 7, 9, 10, 11, 12, 13, 16, 17, 18, 19, 21, 22, 23, 24, 26, 27, 31, 32, 33), a magnitude das relações entre a fluência e a compreensão de leitura tendeu a variar entre fraca e moderada, com exceção de alguns estudos que utilizaram tarefas de fluência de leitura de textos e encontram correlação de alta magnitude (5, 13, 22, 24, 27). Tal diferença sugere que tarefas de fluência de textos e de itens isolados avaliem diferentes processos cognitivos, como a capacidade de fazer inferências, o conhecimento prévio e a memória de trabalho (Denton et al., 2011; Klauda & Guthrie, 2008).
De fato, independentemente da força das relações encontradas, em todos os casos da atual revisão, as medidas de fluência obtidas por meio da leitura de passagens ou textos tiveram maior correlação com as medidas de compreensão de leitura do que aquelas obtidas por meio da leitura de listas de itens isolados. Assim, a habilidade de fluência de leitura de textos parece refletir a habilidade de leitura tanto no nível da palavra quanto além dele (Denton et al., 2011). As evidências sugerem que, além de permitir a alocação de recursos cognitivos para a compreensão do texto (Gellert, 2014), possivelmente a fluência de leitura de textos dependeria de processos de linguagem similares aos envolvidos na compreensão de textos, como a habilidade de inferência e de uso do conhecimento prévio (Kim, 2015; Klauda & Guthrie, 2008).
No que diz respeito à relação entre fluência e compreensão de leitura ao longo dos anos escolares, de acordo com os resultados, independentemente do tipo de tarefa, as maiores relações encontradas foram entre o 4° e o 6° ano. Além disso, há uma clara tendência de diminuição da importância da habilidade de fluência em relação ao desempenho em compreensão de leitura no decorrer do segundo ciclo do EF, sendo que somente nos estudos 26 e 32, com alunos entre o 2° ao 5° ano, o papel da fluência aumentou de importância com a progressão escolar.
Estes resultados estão de acordo com estudos que sugerem uma tendência de que as habilidades de fluência e compreensão tornem-se mais relacionadas ao longo do tempo até a idade de aproximadamente 10 ou 12 anos (Klauda & Guthrie, 2008). De fato, o estudo 26, com alunos do 2° ao 4° ano, encontrou relação baixa e negativa (r = -0.30) entre fluência (em termos de tempo despendido para ler) e compreensão de leitura apenas no 4° ano (Seabra et al., 2017) e o estudo 32, com alunos do 3° ao 5°ano, encontrou relação moderada e negativa (r = -0.55) entre fluência (tempo) e compreensão de leitura apenas no 5° ano (Martins & Capellini, 2019), sugerindo que apenas a partir dos anos finais do primeiro ciclo do EF, o menor tempo de leitura estaria relacionado à uma maior compreensão de leitura.
Sendo assim, é possível inferir que o papel da fluência em relação à compreensão de leitura possivelmente varie bastante ao longo do desenvolvimento, aumentando sua relevância no decorrer do EF I, à medida que as habilidades de decodificação se consolidam (Navas, 2021), e diminuindo de importância ao longo do EF II, quando passaria haver uma maior demanda por outras habilidades cognitivas para a compreensão de leitura (Denton et al., 2011; Tighe et al., 2013). No entanto, é interessante que mais estudos, de preferência longitudinais, sejam conduzidos com alunos dos dois ciclos do EF, na busca de evidências mais robustas.
Houve dois estudos, na atual revisão, que não encontraram relação significativa entre fluência e compreensão de leitura (18 e 19). Observa-se que, no estudo 18, embora a fluência de leitura de palavras não tenha se relacionado significativamente com compreensão de textos, teve relação significativa com as medidas de prosódia de leitura de textos, as quais, por sua vez, se correlacionaram com a compreensão de textos (de r = 0.20 a r = 0.45), explicando até 6 % da variância em compreensão de leitura (Veenendaal et al., 2014). Cabe destacar que, embora a literatura sugira que a prosódia seja um importante aspecto relacionado à habilidade de fluência de leitura (Klauda & Guthrie, 2008; Navas, 2021), ela tem sido menos investigada que os aspectos relacionados a acurácia e velocidade em diferentes níveis da leitura (itens isolados ou em contexto) (Hickmann et al., 2021), provavelmente porque a análise da prosódia é metodologicamente mais complexa. Quanto ao estudo 19, os autores argumentam ser provável que o instrumento escolhido para avaliar a compreensão de leitura possa ter sido demasiadamente fácil para alunos do 3° e 4° ano, de modo a não ser uma medida sensível às variações em fluência (Gellert, 2014).
A seguir são discutidos os artigos referentes à contribuição do reconhecimento de palavras -definidas, aqui, como tarefas de acurácia, sem controle de tempo- em relação à compreensão de leitura. Destaca-se que foram encontrados apenas oito artigos, sendo cinco transversais (3, 4, 8, 21, 26) e três longitudinais (1, 5, 13). Destes, cinco estudos foram conduzidos com alunos até o 4° ano escolar e outros três com alunos até o 6°, 7° e 8° ano cada.
Sete dos oito estudos selecionados sugerem relação significativa entre reconhecimento de palavras e a compreensão de leitura. Nos estudos com análises de correlação, a magnitude das relações entre medidas de reconhecimento de palavras e de compreensão de leitura foi moderada. Apenas o estudo 4, com alunos do 5° ao 7° ano, obteve resultado divergente dos demais. O artigo sugere que, nesta faixa de escolaridade, alunos apenas com dificuldades de reconhecimento de palavras, mas com boas habilidades de compreensão oral, tendem a ter desempenho em compreensão de leitura semelhante aos alunos sem dificuldades de leitura (Âsberg et al., 2010).
Os resultados apontam para uma tendência de diminuição da importância dessa relação a partir do 4° ano escolar (8, 21). De fato, dentre os poucos estudos com estudantes do segundo ciclo do EF (1, 4 e 13), apenas o estudo 13 encontrou relação significativa entre medidas de reconhecimento de palavras do 4° ano com medidas de compreensão de leitura no 6° ano. De acordo com os estudos 1 e 4, entre o 6° e 9° ano escolar, déficits em reconhecimento de palavras são compensados por outras habilidades da linguagem oral que interagem para que ocorra a compreensão de leitura, como a capacidade de fazer inferências, usar o conhecimento prévio e a própria fluência (Âsberg et al., 2010; Catts et al., 2006; Klauda & Guthrie, 2008).
De modo geral, os resultados da presente revisão sistemática demonstram que tarefas que medem apenas a precisão no reconhecimento de palavras relacionam-se de modo significativo com medidas de compreensão de leitura somente até o 4° ano escolar. Já medidas de fluência, sejam obtidas por meio da leitura de itens isolados, como listas de palavras e de listas de pseudopalavras, ou por itens em contexto, como passagens ou textos, aumentam de importância no decorrer do EF I e, mesmo diminuindo de importância ao longo do EF II, mantém relação significativa com a compreensão de leitura. Destaca-se que foi encontrado um número bem menor de estudos com alunos acima do 4° ano escolar, à semelhança de outras revisões relacionadas ao tema (Newell et al., 2020; Ripoll Salceda et al., 2013).
Uma das limitações deste estudo se refere ao fato de não terem sido analisados separadamente estudos com tarefas de fluência de leitura oral e tarefas de leitura silenciosa. Em geral, os estudos apontam que testes de fluência de leitura oral estão mais fortemente relacionados com o desempenho em compreensão de leitura do que testes de fluência de leitura silenciosa (Denton et al., 2011; Turkyilmaz et al., 2014). Contudo há alguns achados contraditórios também sobre este aspecto. Deste modo, futuros estudos concernentes a esta questão seriam de grande relevância, auxiliando na triagem das dificuldades de leitura, uma vez que testes de leitura silenciosa, mesmo aplicados coletivamente, poderiam representar uma alternativa a testes de fluência oral realizados individualmente (Denton et al., 2011).
Além disso, a grande variedade de tarefas aceitas como medidas de fluência (Denton et al., 2011; Hickmann et al., 2021) dificulta a comparação entre os achados dos estudos da área (Seabra et al., 2017). Revisões futuras poderão analisar a relação de outros tipos de tarefas de fluência. De fato, embora a literatura aponte que a habilidade de fluência seja um conceito que abrange os componentes de acurácia, automatização e prosódia (Hickmann et al., 2021), verifica-se que os estudos não investigam todas as combinações possíveis entre os diferentes componentes, e que a prosódia é bem menos investigada que os demais aspectos relacionados à fluência (Hickmann et al., 2021).
O foco da atual revisão esteve em estudos cuja definição de fluência fosse relacionada a velocidade na leitura de palavras ou textos. Deste modo, apenas os estudos 18, 22 e 24 também incluíam alguma medida de prosódia. Futuros estudos poderão discutir o quanto a capacidade de ler com prosódia se relaciona com a compreensão de leitura de alunos entre o 4° e 9° ano. Isso permitirá ampliar o entendimento sobre como características das tarefas de fluência podem demandar processos cognitivos diferentes.
Destaca-se também que o atual estudo se limitou a analisar somente os dados de alunos com desenvolvimento típico com ou sem déficits em alguma habilidade de leitura. Futuras revisões poderão discutir o papel de medidas de fluência e do reconhecimento de palavras na compreensão de leitura de alunos de diferentes grupos clínicos, para os quais, mesmo entre o 4° e 9° ano, o reconhecimento de palavras e a fluência seriam medidas mais significativas devido a possibilidade de haver uma maior variação entre os estudantes em ambas habilidades (Yovanoff et al., 2005). Também se sugere analisar estudos de intervenção, o que poderia incluir discussões sobre características e efeitos das intervenções sobre diferentes medidas de leitura.
Conclusão
Os resultados do presente estudo sugerem tendência de diminuição da importância da habilidade de acurácia no reconhecimento de palavras em relação à compreensão de leitura a partir do 4° ano escolar. Deste modo, a partir do segundo ciclo do EF, déficits apenas em reconhecimento de palavras seriam compensados por outros processos cognitivos e metacognitivos relacionados à linguagem oral que seriam demandados para a compreensão de leitura. Já a habilidade de fluência de leitura de palavras ou pseudopalavras tende a manter relação significativa, embora pequena, com a compreensão de leitura no decorrer do segundo ciclo do EF. Os dados também sugerem que a fluência de leitura de textos se relaciona de modo mais significativo com a compreensão de leitura do que a fluência de leitura de itens isolados. A atual revisão sistemática adiciona uma perspectiva desenvol-vimental que auxilia no entendimento da relação entre o reconhecimento de palavras, a fluência e a compreensão de leitura no decorrer do primeiro e segundo ciclo do EF. Tal compreensão, além de contribuir para o avanço científico na área, pode ser relevante para a discussão de currículos escolares e intervenções específicas nos componentes da leitura (Rasinski et al., 2016).