No estudo do desenvolvimento infantil, a criança deve ser compreendida como um ser integrado e ativo no contexto onde vive, interage e se relaciona (Bennett et al., 2017; Saccani et al., 2013), sendo que seu processo de desenvolvimento também sofre influência dos ambientes diversos nos quais ela circula (Correa et al., 2014). A compreensão do desenvolvimento infantil a partir do Modelo Bioecológico de Bronfenbrenner (1979/2002) fornece uma base teórica sistemática e consistente para pensar o desenvolvimento da criança, considerando os contextos familiares, de cuidado e da educação (Rozsahegyi, 2017). Em outras palavras, essa abordagem considera o desenvolvimento da criança como o resultado das interações dinâmicas, complexas e contínuas dela e das experiências vividas por ela na sua família e no seu contexto social (Bennett et al., 2017; Bronfenbrenner, 1979/2002). Todos esses sistemas devem ser vistos de forma integrada, relacionando-se mutuamente, permitindo identificar como se dão as interações dentro deles e como impactam o desenvolvimento individual (Ashiabi & O'Neal, 2015; Bronfenbrenner, 1999).
Nesse sentido, a frequência à Instituição de Educação Infantil (IEI) geralmente é uma das primeiras experiências significativas da criança pequena fora do contexto familiar, quando passa a receber os cuidados de outros adultos além de seus familiares (Becker & Piccinini, 2019). Ademais, é importante ressaltar o papel da escola como instituição, sendo responsável pela transmissão de conhecimento, cultura e valores dentro da sociedade, assumindo relevante papel no desenvolvimento do indivíduo (Carvalho, 2006). Pode-se pensar então, no nível do microssistema do qual a criança faz parte, em dois importantes ambientes interrelacionados: o familiar e o escolar (Lordelo et al., 2007).
No que diz respeito ao ambiente familiar, é consenso na literatura que os primeiros anos de vida de uma criança neste contexto são de extrema importância para seu desenvolvimento cognitivo e psicomotor (Han et al., 2023; Yang et al., 2021). As experiências e a forma de cuidado recebidos no período inicial da vida têm importantes impactos para o desenvolvimento a curto e longo prazo, sendo essencial o papel dos pais e cuidadores de referência para a criança, assim como outros familiares próximos, para a qualidade dessas vivências (Almeida et al., 2018).
Na mesma direção, a estimulação recebida nos primeiros anos de vida pelos cuidadores, o tempo de cuidado básico dedicado à criança, a qualidade dos brinquedos e outros materiais disponíveis a ela e um suporte ativo dos adultos nas brincadeiras, são de extrema importância para a promoção do seu desenvolvimento (Amaro et al., 2015; Chou et al., 2022; Kalkusch et al., 2021). Em contextos de nível socioeconômico desfavorável, por exemplo, as possíveis adversidades enfrentadas, assim como a falta de recursos adequados, podem repercutir nas atividades lúdicas e no desenvolvimento geral da criança (Justice et al., 2019). Nesse sentido, se faz importante conhecer em que condições ocorrem as brincadeiras nesses contextos, uma vez que o espaço lúdico disponível para a criança tem importante papel na estimulação recebida, nas suas relações (Costa et al., 2018) e em todos os domínios do seu desenvolvimento (Figueiredo et al., 2015).
Em relação ao ambiente escolar, no Brasil, a educação infantil foi reconhecida como um direito social com a Constituição de 1988, ordenamento legal que concretizou como dever do Estado o atendimento de creches e pré-escolas às crianças de zero a cinco anos. Outra importante inovação ocorreu com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei n° 9.394/96, na qual as creches e pré-escolas (que compõem a educação infantil) foram integradas no sistema de ensino, constituindo a primeira etapa da educação básica. A referida lei defende o desenvolvimento integral da criança de zero a cinco anos, no que diz respeito a seus aspectos físicos, afetivos, intelectuais, linguísticos e sociais, sendo um complemento à ação da família e da comunidade (Brasil, 2013). A partir da Emenda Constitucional n° 59/2009, a Educação Básica passou a ser obrigatória a partir dos quatro anos de idade (Brasil, 2013).
Esses marcos legais refletiram em transformações na educação infantil, que conta com um número cada vez maior de crianças que a frequentam em todo o país. O Plano Nacional de Educação (PNE), lei que contempla os investimentos que objetivam a melhoria da qualidade da educação no país, estabeleceu metas a serem atingidas no decênio 2014 a 2024. Entre elas, encontra-se a da educação infantil, com o objetivo inicial de universalizar a pré-escola (para crianças de quatro a cinco anos) e ampliar a oferta em creches (para crianças de zero a três anos), visando atender 50 % das crianças dentro dessa faixa etária até o ano de 2024 (Brasil, 2018a).
De forma geral, o direito à educação infantil deve criar condições favoráveis para o desenvolvimento integral da criança, considerando as dimensões cognitiva, afetiva e de relacionamento interpessoal (Brasil, 2013). Além disso, o direito à educação também engloba a qualidade do ensino e o respeito às necessidades individuais de cada criança de acordo com sua fase do desenvolvimento (Brasil, 2011). A importância da escola na vida das crianças vem sendo amplamente estudada na literatura, principalmente após o aumento do número de crianças frequentando IEI devido a mudanças na sociedade, como a maior inserção da mulher no mercado de trabalho (Vandell et al., 2010). Nesse sentido, muitos estudos buscaram investigar os benefícios da escola para o desenvolvimento infantil, nos seus diferentes domínios.
No contexto internacional, o impacto da frequência a IEI para o desenvolvimento da criança foi avaliado por meio de estudos longitudinais. Nos Estados Unidos, destaca-se o projeto do National Institute of Child Health and Human Development (NICHD), que investigou longitudinalmente os possíveis efeitos dos diferentes tipos de cuidado (no ambiente familiar e escolar) no desenvolvimento das crianças. Aproximadamente 1.200 sujeitos foram acompanhados desde o nascimento até os cinco anos de idade. Os principais resultados apontaram que experiências de qualidade em creches estão associadas ao melhor funcionamento linguístico e cognitivo, embora a maior quantidade de tempo frequentando a creche também se mostrou associada a problemas de comportamento das crianças (Belsky, 2006; Vandell et al., 2010). Côté et al. (2013) realizaram um estudo de coorte que envolveu cerca de 13.000 crianças britânicas. O projeto intitulado "The Millennium Cohort Study" investigou o impacto dos cuidados não-parentais recebidos pela criança aos três, cinco e sete anos de idade. De modo geral, os resultados sugerem que frequentar a creche favoreceu o desenvolvimento cognitivo de crianças pequenas, principalmente nos casos cujas mães tinham baixo grau de escolaridade. Na América Latina, um estudo realizado com uma amostra nacionalmente representativa de 1.606 crianças no Chile salientou associações positivas entre passar mais tempo em uma IEI e melhores desfechos no desenvolvimento de crianças em desvantagem socioeconômica (Reynolds, 2021). Também no contexto internacional, os estudos com famílias em vulnerabilidade trazem evidências sobre o impacto da IEI no desenvolvimento da criança. Em Seiler et al. (2022), partindo de dados longitudinais, verificaram que a qualidade dos estímulos e da interação com o adulto na educação infantil foram variáveis de proteção a longo prazo para o desenvolvimento socioemocional de crianças em vulnerabilidade familiar.
No Brasil, foram encontrados estudos transversais sobre a frequência a IEI e o desenvolvimento infantil. Porém, estudos como o de Amaro et al. (2015), identificaram resultados divergentes aos internacionais supracitados. Foi avaliado e comparado o desenvolvimento de crianças pertencentes a famílias de baixo nível socioeconômico, que frequentavam creches públicas, com o de crianças que não frequentavam, não tendo sido encontradas diferenças significativas entre os grupos nos diferentes domínios do Denver II, como pes-soal-social, linguagem e motor (fino e grosso). Ademais, as cinco creches avaliadas no estudo foram classificadas como "inadequadas". Apesar de o estudo ter como resultado que frequentar a creche não foi relacionado a melhores resultados nos domínios avaliados do desenvolvimento infantil para a amostra em questão, esse reforçou a discussão internacional sobre a possível influência da qualidade das creches no referido resultado, uma vez que um ambiente de qualidade tem efeitos positivos para o desenvolvimento infantil.
Outro estudo brasileiro analisou os possíveis efeitos da experiência de creche no desenvolvimento cognitivo de crianças entre um e três anos de idade, de baixo nível socioeconômico, também comparando um grupo que frequentava e outro que não frequentava IEI (Lordelo et al., 2007). O desenvolvimento cognitivo foi avaliado por meio da Escala Bayley ou do teste WPPSI-R (Wechsler Preschool and Primary Scale of Intelligence-Revised), dependendo da idade da criança. Não foram encontradas diferenças significativas no desempenho cognitivo das crianças em relação às que frequentavam e às que não frequentavam a creche, mas sim relacionado à renda familiar. O estudo de Almeida et al. (2018), realizado com sujeitos entre cinco e sete anos, investigou as relações entre o tempo que a criança frequentou a educação infantil e o seu desempenho no desenvolvimento cognitivo e socioemocional. Não foi encontrada uma relação robusta entre o tempo que as crianças do estudo frequentaram IEI e seus desempenhos nos referidos domínios do desenvolvimento.
Dados longitudinais de estudos brasileiros que avaliaram o desenvolvimento infantil associado à frequência a IEI também foram analisados. Em Becker e Piccinini (2019), 44 crianças foram avaliadas com a escala Bayley no 6°, 12° e 18° mês de vida, divididas em grupo que frequentava IEI e grupo que não frequentava IEI. Entre os achados, foi indicado que a frequência a IEI não diferenciou os grupos quanto ao desenvolvimento infantil (cognitivo, linguagem e socioemocional), sugerindo que famílias de classe média e alta e IEI com qualidade suficiente podem se igualar em seus eventuais benefícios. Em contrapartida, em Tavares et al. (2021), 109.758 crianças de 10 a 54 meses atendidas por IEI públicas no Rio de Janeiro passaram por avaliação com o instrumento de rastreio Ages & Stages Questionnaire em três períodos de tempo. Os resultados sugeriram que, principalmente na primeira faixa etária de avaliação, as crianças brasileiras obtiveram escores inferiores àqueles observados no contexto norte-americano; contudo, estes se equipararam no decorrer do crescimento da criança, em especial após os 24 meses. A partir desse dado, os autores inferem que a estimulação oferecida pelas IEI tenha contribuído para o desenvolvimento das crianças.
Os resultados das produções brasileiras, em parte, contradizem a literatura internacional. Um ponto em comum discutido foi a qualidade das IEI, ressaltando que o contexto no qual a creche existe, muitas vezes de vulnerabilidade, deve ser considerado (Amaro et al., 2015; Becker & Piccinini, 2019; Lordelo et al., 2007). Resultados positivos para a frequência a IEI foram relatados por Tavares et al. (2021), porém, apesar de avaliar uma amostra representativa de crianças de escolas públicas, o estudo não contava com a comparação com grupo de crianças que não frequentava IEI para resultados mais seguros a respeito da influência da IEI no desenvolvimento infantil.
Produções mais robustas sobre os possíveis impactos da educação infantil para o desenvolvimento são provenientes de estudos internacionais. Nesse sentido, investigações empíricas com crianças brasileiras são necessárias para a produção de conhecimento sobre o tema (Lordelo et al., 2007). Além disso, grande parte dos estudos nacionais encontrados na literatura avaliam o desenvolvimento infantil por meio de instrumentos como o Denver-II e a Escala Bayley, que, embora amplamente utilizados no contexto nacional, recebem críticas por não contar com dados normativos para a população brasileira. Dessa forma, o presente estudo apresenta um diferencial ao utilizar um instrumento construído no Brasil, que avalia o desenvolvimento infantil em seus múltiplos domínios, sendo, dessa forma, validado e adequado à realidade da população brasileira e das famílias com crianças (Silva et al., 2019).
Tendo em vista a importância da educação infantil e do papel dos cuidados e estimulação recebidos no ambiente familiar para o desenvolvimento da criança pequena, como o tempo que a mãe emprega para brincadeiras com a criança e a disponibilidade de brinquedos e materiais variados, o objetivo do presente estudo é comparar crianças que frequentam IEI e que não frequentam em relação aos domínios do desenvolvimento (Socioemocional, Comunicação e Linguagem, Comportamento Adaptativo, Cognitivo e Motricidade), por grupo etário. Além disso, serão analisadas as contribuições da estimulação recebida no ambiente doméstico (a criança dispor de brinquedos ou materiais variados e o tempo que a mãe dedica a brincadeiras com a criança durante a semana) sobre os domínios do desenvolvimento para cada grupo, assim como comparações entre crianças que frequentam IEI públicas e privadas. Partindo de uma compreensão bioecológica, é esperado que tanto a frequência a IEI e as variáveis do ambiente doméstico tenham influência positiva nos domínios do desenvolvimento infantil avaliados. Considerando os achados prévios de estudos brasileiros, há expectativa de que crianças que frequentam IEI públicas tenham pior desempenho nos domínios do desenvolvimento, quando controladas as variáveis renda e escolaridade materna.
Método
Participantes
Participaram do estudo 2.187 mães de crianças de quatro a 72 meses. A amostra foi selecionada por conveniência e incluiu residentes em diferentes regiões do Brasil, sendo mais frequente a participação dos estados do Sul (65.5 %) e do Sudeste (24.2 %). Como critério de inclusão, as mães precisavam residir com as crianças e manter contato diário com elas, de forma a serem capazes de observar os marcos do desenvolvimento. Foram excluídos da amostra os casos que reportavam transtornos do neurodesenvolvimento ou transtorno genético, crianças nascidas muito pré-termo (<32 semanas gestacionais) ou casos que não informaram o número de semanas gestacionais, crianças com muito baixo peso ao nascer (<1.5 kg) ou sem informação de peso ao nascer, crianças com idade menor a quatro meses ou que não indicavam a idade, e casos que não reportaram se a criança frequentava ou não IEI.
Após as exclusões, a amostra analisada foi de 1.843 casos. Destas, 66.7 % (n = 1.230) frequentavam alguma IEI durante o período da coleta, sendo que 72.1 % (n = 855) eram privadas. A média de idade de crianças que frequentavam IEI foi de 46.55 meses (DP = 20.95), enquanto a das crianças que não frequentavam foi de 22.26 (DP = 17.93). Outras características da amostra conforme a frequência ou não à IEI podem ser verificadas na Tabela 1.
Instituição de Educação Infantil | ||||
Características das crianças e suas famílias | Frequenta | Não frequenta | ||
n | % | n | % | |
Sexo | ||||
Feminino | 581 | 47.50 | 290 | 47.70 |
Masculino | 642 | 52.50 | 318 | 52.30 |
Faixa etária | ||||
4m - 5m | 8 | 10.7 | 67 | 89.3 |
6m - 8m | 28 | 22.6 | 96 | 77.4 |
9m - 11m | 23 | 27.7 | 60 | 72.3 |
12m - 14m | 39 | 39.8 | 59 | 60.2 |
15m - 17m | 40 | 42.6 | 54 | 57.4 |
18m - 20m | 43 | 52.4 | 39 | 47.6 |
21m - 23m | 40 | 54.1 | 34 | 45.9 |
24m - 26m | 54 | 65.1 | 29 | 34.9 |
27m - 29m | 42 | 71.2 | 17 | 28.8 |
30m - 32m | 44 | 68.8 | 20 | 31.3 |
33m - 35m | 49 | 73.1 | 18 | 26.9 |
36m - 41m | 109 | 76.2 | 34 | 23.8 |
42m - 47m | 102 | 76.1 | 32 | 23.9 |
48m-53m | 107 | 89.2 | 13 | 10.8 |
54m - 59m | 111 | 93.3 | 8 | 6.7 |
60m - 65m | 131 | 92.3 | 11 | 7.7 |
66m - 72m | 109 | 94.0 | 7 | 6.0 |
Escolaridade da mãe | ||||
Ensino fundamental | 41 | 3.30 | 31 | 5.00 |
Ensino médio | 184 | 15.00 | 155 | 25.30 |
Ensino superior | 431 | 35.10 | 220 | 36.00 |
Pós-graduação | 571 | 46.40 | 205 | 33.50 |
Renda familiar | ||||
Menor que um salário* | 24 | 2.00 | 27 | 4.40 |
Entre um e dois | 140 | 11.40 | 97 | 16.10 |
De dois a cinco salários | 395 | 32.20 | 230 | 37.90 |
De cinco a 10 salários | 288 | 23.50 | 132 | 21.70 |
Mais de 10 salários | 380 | 30.9 | 121 | 19.90 |
Ocupação da mãe | ||||
Trabalha | 752 | 61.30 | 295 | 48.40 |
Estuda | 66 | 5.40 | 32 | 5.20 |
Trabalha e estuda | 202 | 16.50 | 58 | 9.50 |
Desempregada | 51 | 4.20 | 50 | 8.20 |
Aposentada ou em licença | 4 | 0.30 | 6 | 1.00 |
Dona de casa | 125 | 10.20 | 150 | 24.60 |
Outro | 26 | 2.10 | 19 | 3.10 |
Nota. * Na época da coleta de dados, o valor de um salário mínimo era R$ 937,00.
Instrumentos
Questionário Sociodemográfico e de Características Clínicas e do Desenvolvimento (Silva, 2017)
Elaborado com base na literatura, incluindo, principalmente, características das crianças e da sua família biológica que influenciam no desenvolvimento infantil. São considerados: (1) dados demográficos familiares (sociais, culturais e econômicos); (2) saúde da mãe na gestação; (3) gestação, condições de nascimento e desenvolvimento precoce da criança; e (4) ambiente da criança e interações com cuidadores. Neste último item, as mães relataram se a criança frequentava IEI e se esta era pública ou privada. Também informaram sobre o tempo que se dedicam a brincadeiras com a criança durante a semana (incluindo brinquedos, atividades de leitura, histórias e conversas) e se as crianças dispõem de brinquedos ou materiais variados (pelo menos cinco tipos diferentes, por exemplo, de montar, musical, bonecos, pelúcia, etc.).
Inventário Dimensional de Avaliação do Desenvolvimento Infantil - IDADI (Silva et al., 2020)
Trata-se de um inventário de avaliação multidimensional do desenvolvimento infantil com base no relato parental, direcionado a crianças de quatro a 72 meses de vida. É composto por 435 itens, respondidos em uma escala do tipo Likert de três pontos (sim, às vezes, ainda não), distribuídos em sete domínios: Cognitivo, Comunicação e Linguagem Receptiva, Comunicação e Linguagem Expressiva, Motricidade Ampla, Motricidade Fina, Socioemocional e Comportamento Adaptativo. Os itens são separados em 17 grupos etários por domínio, conforme os níveis de dificuldade e de precisão dos itens, definidos por análises de Teoria de Resposta ao Item (TRI). Os grupos etários variam de dois a seis meses, sendo a maioria composto por grupos normativos em intervalos de três em três meses. O instrumento possui um escore desenvolvimental que permite comparar longitudinalmente o desenvolvimento da criança, ainda que não sejam respondidos os mesmos itens para avaliar o desenvolvimento em diferentes faixas etárias. O IDADI possui evidências satisfatórias de validade relacionadas à estrutura interna, validade relacionada às variáveis critério idade, sexo e diagnóstico da criança, bem como renda familiar e escolaridade materna. A versão final do inventário apresentou alta consistência interna com valores de fidedignidade Rasch (medida equivalente ao alfa de Cronbach) que variou de 0.96 a 0.99 em seus sete domínios (Silva et al., 2020).
Procedimentos
Este estudo faz parte de uma pesquisa maior intitulada "Construção e estudo de evidências de validade de um inventário multidimensional de marcos do desenvolvimento infantil", aprovada pela Comissão de Ética em Pesquisa do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (ÜFRGS) (parecer n. 1.274.779, CAAE: 45991815.5.0000.5334). Foram realizadas coletas de dados presencial e on-line e todas as participantes confirmaram a concordância ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para a coleta presencial, as mães foram convidadas a participar nas suas próprias residências, conforme a rede de contato dos coletadores envolvidos, em instituições públicas ou privadas de ensino infantil, serviços-escola vinculados às universidades e em serviços de atendimento à saúde da criança dos setores público e privado. A coleta presencial foi realizada pelos pesquisadores envolvidos na construção do IDADI e por estudantes de graduação em psicologia. A coleta on-line foi realizada por meio da plataforma SurveyMonkey® para possibilitar maior alcance da pesquisa em diferentes regiões do Brasil. Da amostra total, 66 % foi obtida por coleta on-line. Conforme consta no manual do instrumento, a análise de funcionamento diferencial dos itens (DIF) afirma que não há influência da forma de resposta (presencial ou on-line) sobre os resultados do IDADI (Silva et al., 2020).
Análise de Dados
Inicialmente, foram realizadas análises de frequência para caracterização da amostra. Na sequência, a Análise de Covariância (ANCOVA) foi empregada para verificar as diferenças no desenvolvimento infantil de crianças que frequentam IEI e de crianças que não frequentam IEI, considerando os grupos etários do instrumento, mantendo fixos os efeitos da escolaridade materna e renda familiar. Essas covariáveis foram selecionadas por haver amplo reconhecimento da sua influência no desenvolvimento infantil. A análise foi realizada discriminando os grupos etários do instrumento, a fim de considerar os efeitos da idade nos resultados.
Em seguida, foram testados modelos que incluíam, em um primeiro momento, o efeito de ter brinquedos ou materiais variados e, posteriormente, o tempo que a mãe se dedicava a brincadeiras com a criança durante a semana, para melhor analisar os efeitos de outras variáveis do ambiente da criança na comparação de grupos. Por fim, foram analisadas as diferenças nos domínios do desenvolvimento entre crianças que frequentavam IEI públicas e privadas por meio da ANCOVA, considerando os modelos que testam os efeitos de ter brinquedos ou materiais variados e do tempo que a mãe brinca com a criança, este último empregando como post-hoc o teste de Bonferroni. As análises de covariância foram realizadas utilizando o escore de desenvolvimento infantil estimado a partir do modelo Rasch da TRI. Os dados foram analisados por meio do Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 22.
Resultados
A Tabela 2 apresenta as médias de desenvolvimento que diferiram significativamente entre os grupos etários de crianças que frequentam ou não IEI. Nessa etapa, as análises foram realizadas por faixa etária de forma a homogeneizar o efeito das diferenças de idade dos grupos de crianças que frequentavam ou não IEI nos domínios do desenvolvimento. A análise comparativa das diferenças entre as médias de desenvolvimento conforme ANCOVA apontou que estas foram significativas para o domínio Motricidade Ampla, na faixa dos 21 a 23 meses, F(1, 72) = 4.947, p = 0.029, na faixa dos 36 a 41 meses, F(1, 138) = 6.550, p = 0.012, e na faixa dos 66 a 72 meses, F(1, 116) = 6.954, p = 0.010. Considerando as médias para as faixas descritas, observa-se que as crianças do grupo que não frequenta IEI apresentam maiores valores no domínio analisado (Tabela 2). Diferenças também foram identificadas no domínio Linguagem Receptiva, especificamente na faixa dos 4 a 5 meses, F(1, 75) = 4.033, p=0.048, sendo que as crianças que frequentam IEI apresentaram médias mais elevadas, e na faixa dos 18 a 20 meses, F(1, 78) = 5.728, p = 0.019, em que as crianças que não frequentam IEI apresentaram médias mais elevadas.
Frequenta IEI | |||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Domínio | M | DP | M | DP | F | p | n2 |
Motricidade Ampla | |||||||
21 a 23 meses | 95.99 | 2.43 | 103.96 | 2.57 | 4.947 | 0.029 | 0.068 |
36 a 41 meses | 98.18 | 1.43 | 105.81 | 2.58 | 6.550 | 0.012 | 0.047 |
66 a 72 meses | 98.22 | 1.42 | 113.62 | 5.66 | 6.954 | 0.010 | 0.058 |
Linguagem Receptiva | |||||||
4 a 5 meses | 109.84 | 5.27 | 98.62 | 1.78 | 4.033 | 0.048 | 0.054 |
18 a 20 meses | 94.98 | 2.40 | 103.14 | 2.40 | 5.728 | 0.019 | 0.072 |
A fim de investigar os efeitos das variáveis ambientais, foi inserida no modelo da ANCOVA a variável dispor de brinquedos ou materiais variados, mantendo a escolaridade materna e renda familiar como covariáveis. Os grupos foram analisados sem discriminação por faixa etária, considerando os poucos resultados significativos entre os grupos etários na análise anterior. Os resultados apontaram que ter brinquedos ou materiais variados teve um efeito positivo significativo no desenvolvimento das crianças nos domínios Cognitivo, F(1, 1.660) = 6.865, p = 0.009, Motricidade Fina, F(1, 1.630) = 3.954, p = 0.047, e Motricidade Ampla, F(1, 1.642) = 5.041, p = 0.025. No entanto, todas as interações entre ter brinquedos ou materiais variados, frequentar ou não IEI e os domínios do desenvolvimento não foram significativas (p > 0.05). As diferenças entre as médias referentes a possuir brinquedos ou materiais variados ou não, por domínio do IDADI, são apresentadas na Tabela 3.
Não possui brinquedos ou materiais variados | Possui brinquedos ou materiais variados | ||||
---|---|---|---|---|---|
Domínio | M(DP) | M(DP) | F | p | n2 |
Cognitivo | 93.06(2.59)* | 99.91(0.39)* | 6.865 | 0.009 | 0.004 |
Socioemocional | 96.68(2.63) | 99.59(0.40) | 1.192 | 0.275 | 0.001 |
Comportamento Adaptativo | 96.21(3.39) | 99.83(0.42) | 1.124 | 0.289 | 0.001 |
Linguagem Expressiva | 97.75(2.73) | 99.27(0.41) | 0.303 | 0.582 | 0.000 |
Linguagem Receptiva | 96.76(2.68) | 99.66(0.41) | 1.150 | 0.284 | 0.001 |
Motricidade Fina | 94.60(2.66)* | 99.96(0.40)* | 3.954 | 0.047 | 0.002 |
Motricidade Ampla | 94.30(2.55)* | 100.10(0.39)* | 5.041 | 0.025 | 0.003 |
Nota. Os asteriscos informam sobre as diferenças de médias significativas entre os grupos (p < 0.05).
Ao considerar no modelo a variável tempo que a mãe se dedicava a brincadeiras com a criança durante a semana, mantendo as covariáveis escolaridade materna e renda familiar, foi identificado efeito significativo desta variável nos domínios Cognitivo, F(1, 1.659) = 8.631, p < 0.001, Socioemocional, F(1, 1.642) = 7.447, p < 0.001, Comportamento Adaptativo, F(1, 1.505) = 4.964, p = 0.001, Linguagem Receptiva, F(1, 1.627) = 6.176, p < 0.001, Motricidade Ampla, F(1, 1.641) = 2.552, p = 0.037, e Motricidade Fina, F(1, 1.629) = 7.891, p <0.001. A análise das médias sugere uma tendência de que o maior tempo que a mãe dispõe para brincadeiras com a criança gera melhores médias nos domínios do desenvolvimento. Novamente as interações entre tempo dedicado pela mãe a brincadeiras com a criança, frequentar ou não IEI e os domínios do desenvolvimento não foram significativas (p > 0.05).
Para melhor explorar estes resultados, foram analisadas possíveis diferenças entre grupos de crianças que frequentam IEI públicas e que frequentem IEI privadas, quando consideradas as variáveis ambientais. Com relação a ter brinquedos ou materiais variados, não foram identificadas diferenças significativas entre as médias nos domínios do desenvolvimento entre crianças que frequentam IEI públicas e IEI privadas. Contudo, quando considerado o tempo que a mãe se dedica a brincadeiras com a criança, foram observadas diferenças significativas nos domínios do desenvolvimento entre os grupos. De modo geral, verificou-se que quanto mais horas a mãe dispõe para brincadeiras com a criança durante a semana, melhores são as médias alcançadas nos domínios do desenvolvimento. Especificamente, no domínio cognitivo, percebe-se que as diferenças foram observadas tanto para crianças que frequentam IEI privadas, F(1, 737) = 2.851, p = 0.023, quanto públicas, F(1, 290) = 3.688, p = 0.006. No domínio socioemocional, também foram apontadas diferenças significativas para crianças de IEI privadas, F(1, 728) = 3.212, p = 0.013, e públicas, F(1, 288) = 2.884, p = 0.023. Diferenças significativas em relação ao tempo que a mãe dispõe para brincar com a criança foram indicadas apenas para crianças de IEI privadas nos domínios comportamento adaptativo, F(1, 709) = 4.445, p = 0.001, linguagem receptiva, F(1, 723) = 5.292, p < 0.001, e motricidade fina, F(1, 723) = 3.956, p = 0.003. Por outro lado, no domínio motricidade ampla, a diferença foi observada apenas para IEI públicas, F(1, 287) = 2.823, p = 0.025. As diferenças entre médias nos domínios do IDADI são apresentadas nas Tabelas 4 e 5.
Menos de 30min | 30min a 1h | 1h a 2h | 2h a 3h | 3h ou mais | |
---|---|---|---|---|---|
Domínio | M(DP) | M(DP) | M(DP) | M(DP) | M(DP) |
Cognitivo | 84.06(4.62)a | 96.09(2.30) | 95.14(1.80) | 94.47(1.89) | 100.24(1.55)a |
Socioemocional | 90.95(4.51) | 98.83(2.27) | 97.82(1.75) | 95.41(1.84)b | 102.17(1.52)» |
Comportamento Adaptativo | 95.17(4.55) | 99.74(2.30) | 101.37(1.80) | 96.96(1.90) | 103.34(1.57) |
Linguagem Expressiva | 94.90(5.09) | 96.30(2.57) | 96.52(1.98) | 95.58(2.11) | 99.00(1.73) |
Linguagem Receptiva | 93.40(4.68) | 96.00(2.36) | 99.12(1.82) | 94.57(1.91) | 99.43(1.60) |
Motricidade Fina | 88.53(5.07) | 98.97(2.56) | 98.01(1.97) | 97.93(2.07) | 100.16(1.72) |
Motricidade Ampla | 87.75(4.39)cd | 101.30(2.22) | 98.32(1.71) | 101.37(1.79)c | 101.95(1.49)d |
Nota. As letras em sobrescrito foram usadas para identificação das médias do tempo que a mãe dispõe para brincadeiras que diferiram significativamente (p < 0.05) em cada domínio do desenvolvimento. Em cada coluna, duas letras iguais indicam médias significativamente diferentes.
Menos de 30 min | 30 min a 1h | 1h a 2h | 2h a 3h | 3h ou mais | |
---|---|---|---|---|---|
Domínio | M(DP) | M(DP) | M(DP) | M(DP) | M(DP) |
Cognitivo | 91.79(4.23)a | 99.54(1.72) | 100.95(1.12) | 102.50(1.15) | 103.30(0.82)a |
Socioemocional | 95.14(4.46) | 97.08(1.73)b | 98.82(1.13) | 101.00(1.17) | 102.42(0.84)b |
Comportamento Adaptativo | 87.99(4.24)c | 95.31(1.73) | 97.96(1.14) | 99.55(1.18) | 101.03(0.84)c |
Linguagem Expressiva | 94.72(4.61) | 97.19(1.80) | 98.79(1.18) | 100.76(1.21) | 101.36(0.87) |
Linguagem Receptiva | 84.34(4.45)def | 96.03(1.82) | 99.39(1.20)d | 99.72(1.23)e | 101.73(0.87)f |
Motricidade Fina | 97.70(4.47) | 96.63(1.75)g | 98.35(1.14)h | 100.15(1.18) | 102.73(0.84)gh |
Motricidade Ampla | 94.13(4.25) | 98.09(1.72) | 98.19(1.13) | 98.29(1.17) | 100.95(0.83) |
Discussão
O presente estudo buscou comparar grupos de uma amostra brasileira que frequentam IEI e que não frequentam, em relação aos domínios do desenvolvimento, considerando também as contribuições da estimulação recebida no ambiente doméstico. Adicionalmente, foram investigadas possíveis diferenças entre crianças que frequentam IEI públicas e privadas.
Foram identificadas diferenças significativas entre os grupos de crianças que frequentam e que não frequentam IEI no domínio motricidade ampla, especificamente nos grupos etários de 21 a 23 meses, de 36 a 41 meses e de 66 a 72 meses, sugerindo que crianças que não frequentam a escola apresentaram melhores médias nesse domínio. Os dados do presente estudo contradizem a literatura que sugere que crianças inseridas em IEI apresentam melhor desenvolvimento motor (Souza et al., 2008).
Uma hipótese para a compreensão desse resultado direciona para a qualidade dos ambientes de IEI no Brasil. Existem evidências de que um ambiente físico adequado, enriquecido e com orientação dos educadores tende a promover ganhos importantes no desenvolvimento motor da criança que frequenta IEI (Almeida & Valentini, 2013; Palma et al., 2014). No entanto, dados prévios sobre as IEI brasileiras sugerem que um ambiente doméstico enriquecido pode se equiparar às IEI que contam com recursos ideais para a estimulação das crianças (Becker & Piccinini, 2019). Frente a isso, no contexto estudado, pode-se pensar que as crianças que ficam sob cuidados apenas no ambiente familiar dispõem de espaço físico e conseguem explorar o ambiente de maneira mais livre, favorecendo a evolução do domínio motor amplo, em comparação com as vivências das crianças que estão nas IEI. Embora o desenvolvimento motor siga uma sequência praticamente universal, é importante compreender que este se dá em um processo dinâmico de coordenação ativa de múltiplos sistemas da criança em relação ao ambiente (Martorell et al., 2020). Nesse sentido, a qualidade das IEI torna-se mais relevante para as crianças que as frequentam, visto ainda o importante papel da área motora apoiando o desenvolvimento de outros domínios. A qualidade das IEI merece ser melhor explorada em investigações futuras.
Além do domínio motor amplo, também foram encontrados resultados que favorecem as crianças que não frequentam IEI no grupo etário de 18 a 20 meses em relação ao desenvolvimento da linguagem receptiva. Entende-se que a linguagem é de extrema importância para o desenvolvimento e que, na educação infantil, se bem explorada, pode enriquecer significativamente a capacidade da criança pequena de se comunicar (Tibério, 2017), o que contraria os achados do presente estudo. Por outro lado, Silva et al. (2015) registraram atrasos na linguagem de crianças de seis a 18 meses que frequentavam IEI públicas. Os autores discutem o fato de que os cuidados com os bebês até 18 meses podem ser muito mais voltados a aspectos físicos e de higiene, nem sempre se evidenciando um espaço de estimulação verbal. Nesse sentido, ainda que tais cuidados sejam necessários na rotina das crianças pequenas nas IEI, esses momentos devem ser uma excelente oportunidade para nomeação de objetos e verbalizações, reforçando os elementos para o desenvolvimento do vocabulário receptivo e da compreensão.
Novamente, outro ponto importante relacionado ao maior investimento e exploração da linguagem receptiva na educação infantil é a qualidade da IEI, que envolve a formação e orientação dos educadores de crianças pequenas, atentando para o conhecimento sobre desenvolvimento infantil e as interações educador-criança-ambiente (Albuquerque & Aquino, 2021; Amaro et al., 2015; Lordelo et al., 2007). Becker et al. (2013) salientam a importância de considerar, na formação de educadores, suas crenças e práticas de cuidado com os bebês. Embora exista uma dissociação na literatura entre cuidar e educar, o estudo das referidas autoras sugere o quanto é preciso valorizar e integrar os cuidados e as práticas relacionadas à educação, uma vez que as necessidades dos bebês são distintas de crianças maiores. Além disso, durante os momentos de cuidado e estimulação dos bebês dentro das IEI, deve existir respeito e afeto entre os educadores e o bebê, pois é um momento propício e único para troca individual e qualificada entre a criança e o educador, em um ambiente no qual grande parte do cuidado é coletivo.
Quando a criança vem de um ambiente domiciliar no qual recebe estímulos satisfatórios, em um contexto em que as pessoas se dirigem e interagem com ela para promover sua comunicação desde o primeiro ano de vida, existe maior possibilidade de desenvolver bem sua linguagem (Dailey & Bergelson, 2022; Hines et al., 2022; Justice et al., 2019). Além disso, aos 18 meses, já se pode evidenciar a diferença no vocabulário entre crianças pertencentes a distintos níveis socioeconómicos, sendo as provenientes de ambientes menos favorecidos com menor vocabulário (Fernald et al., 2013). Além de fatores como o nível socioeconómico, os estímulos recebidos no ambiente familiar, como o discurso direcionado à criança, também podem contribuir para o desenvolvimento da linguagem (Dailey & Bergelson, 2022). Nesse sentido, essas evidências parecem corroborar os achados deste estudo. Considerando que as crianças podem receber estímulos adequados e suficientes para o desenvolvimento da sua linguagem ainda em casa, essa pode ser uma possível explicação para as crianças de 18 a 20 meses que não frequentam IEI apresentarem melhor desempenho da linguagem receptiva do que as crianças que frequentam IEI. Em relação às diferenças encontradas na linguagem receptiva de crianças do grupo etário de quatro a cinco meses, hipotetiza-se que o resultado pode ter sido influenciado pelo baixo número de crianças na amostra que frequenta IEI nessa faixa de idade, visto que, no contexto brasileiro, as políticas direcionam que crianças a partir dos quatro anos obrigatoriamente frequentem IEI.
No que diz respeito à influência de variáveis do ambiente doméstico, o fato de a criança dispor de brinquedos ou materiais diversos gerou maiores médias nos domínios cognitivo, motricidade ampla e motricidade fina. Já o tempo que a mãe dispõe para brincadeiras com a criança durante a semana impactou positivamente a maioria dos domínios do desenvolvimento avaliados pelo IDADI. Esse resultado reforça a importância dos brinquedos e materiais diversos no ambiente da criança, assim como a estimulação recebida pelos pais como um dos principais preditores para o desenvolvimento infantil em diferentes dimensões (Chou et al., 2022; Kalkusch et al., 2021; Saccani et al., 2013). Por exemplo, no contexto do desenvolvimento cognitivo e motor, já é indicado pela literatura que as características do ambiente doméstico (incluindo o espaço físico, a rotina de atividades e os materiais para brincadeira), as práticas parentais de estimulação e o conhecimento dos pais sobre o desenvolvimento infantil podem se sobrepor às influências biológicas (Pereira et al., 2016).
Por outro lado, o ambiente familiar com poucos recursos disponíveis pode ser um fator de risco para o desenvolvimento. Somam-se a isso outros fatores de risco, como a baixa escolaridade materna e nível socioeconómico familiar menos favorecido (Saccani et al., 2013), considerando que nesses lares é mais comum que a criança disponha de menos estímulos e brinquedos (Saccani et al., 2013). Entretanto, é visto que, não apenas vivenciar um ambiente enriquecido de estímulos e demais recursos, mas também a presença e participação ativa do adulto nas brincadeiras gera um maior impacto desenvolvimento da criança (Kalkusch et al., 2021; Palma et al., 2014). Tais resultados reforçam o sentido de programas governamentais de promoção do desenvolvimento de pré-escolares, como o caso do programa brasileiro Criança Feliz (Brasil, 2018b), que trazem como benefício a orientação às famílias acerca de meios para estimulação e a qualidade de tais interações.
A literatura aponta que o desenvolvimento cognitivo também pode ser prejudicado em ambientes familiares considerados de risco, como mencionado anteriormente (Andrade et al., 2005). Porém, quando a criança recebe estímulos e cuidados adequados dentro da família, que lhe proporcionam trocas de afeto, segurança e a construção de um bom vínculo, ela pode ter um ambiente protetivo, que promove o seu desenvolvimento, considerando-a como um ser integrado e ativo nos contextos dos quais faz parte, não sendo possível vê-los de forma isolada (Bronfenbrenner, 1979/2002). Além disso, a qualidade da interação da criança com os cuidadores é fundamental para que ela tenha experiências adequadas de estimulação dentro do ambiente familiar. Nesse sentido, a literatura aponta que quanto maior a estimulação, com um espaço com materiais e brinquedos adequados, além da disponibilidade dos pais e cuidadores importantes para a criança, melhor será o seu desenvolvimento cognitivo (Andrade et al., 2005).
Porém, enquanto a literatura aponta a importância da vivência na IEI para o desenvolvimento da criança (Almeida et al., 2018), na presente amostra, frequentar a educação infantil não foi significativo quando controlado o efeito de outras variáveis. Esse resultado é compatível com estudos que sugerem que famílias mais favorecidas economicamente podem oferecer estímulos adequados e necessários aos filhos, que também são encontrados no ambiente escolar, fazendo com que a criança não se beneficie tanto com o estímulo recebido na IEI (Becker & Piccinini, 2019). Embora o efeito da renda familiar tenha sido controlado nas análises, uma considerável parte das respondentes indicou renda familiar acima de cinco salários mínimos, indo ao encontro dos estudos acima mencionados. Com relação às crianças pertencentes a famílias de baixa renda, a IEI pode ter maior relevância como estímulo cognitivo, desde que seja de qualidade satisfatória, bem como oportunidades de aprendizagem que podem não estar disponíveis no ambiente familiar (Cóté et al., 2013).
Não foi possível obter informações a respeito da qualidade das IEI frequentadas pelas crianças, em função de o presente estudo fazer parte de um projeto maior, no qual se coletaram dados on-line a respeito de um grande número de crianças, sem entrar na especificidade de avaliação da escola. Embora o presente estudo não tenha como foco a qualidade das IEI, sejam elas públicas ou privadas, essa foi uma questão presente na discussão dos resultados e mencionada pelos autores dos estudos nacionais e internacionais, o que sugere esse ponto como uma possível justificativa para os resultados encontrados. Um dado importante a ressaltar é o de que, ainda que não sejam apresentadas informações concretas sobre a qualidade das IEI, as características sociodemográficas das famílias das crianças participantes sugerem que a maior parte delas é pertencente à classe "B2", que são famílias com renda média de R$ 2013,00 (Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa [ABEP], 2018). Esse dado vai ao encontro do aumento observado de matrícula de crianças na rede privada, fruto de um processo de ascensão económica de um estrato da população à época do estudo. Soma-se a essa realidade a importância de distinguir essa parcela de alunos de escolas particulares do consenso de que pertencem à realidade de famílias de elite e mais favorecidas, uma vez que existe um universo heterogêneo (e desconhecido) de alunos das instituições privadas de ensino, considerando as de baixo custo, das quais fazem parte famílias com menos condições que a elite brasileira (Siqueira, 2016). Em suma, além da diferenciação entre escolas públicas e privadas, o presente estudo atento para a diversidade e heterogeneidade das IEI privadas no país, que devem ser melhor diferenciadas de acordo com a realidade de cada localidade.
De forma geral, os resultados do presente estudo sugerem pouca ou nenhuma influência da IEI para o desenvolvimento, bem como uma falta de interação entre as variáveis do ambiente doméstico e escolar das crianças nos domínios do desenvolvimento. Pensando na criança a partir do modelo bioecológico, ou seja, considerando a importância do contexto no qual ela faz parte e se relaciona, esperava-se que houvesse a interação entre os principais ambientes dos quais a criança pequena faz parte: família e escola. Uma possível razão para a falta dessa interação pode estar relacionada a uma questão preocupante, como já mencionado anteriormente, que diz respeito à qualidade das IEI. Diversos estudos brasileiros que investigam a influência das IEI para o desenvolvimento infantil também questionam a qualidade delas a partir de seus resultados (Almeida et al., 2018; Amaro et al., 2015; Lordelo et al., 2007).
Essa realidade ainda levanta a discussão do papel que a educação vem de fato exercendo nas crianças brasileiras, principalmente as pertencentes a contextos menos favorecidos. Embora não estejam sendo associadas a resultados negativos, as IEI no país podem não estar possibilitando benefícios condizentes, por exemplo, com a literatura internacional sobre o tema. Tal reflexão não sugere que as crianças não devam frequentar a educação infantil, mas sim ao alerta de que o seu potencial transformador, que pode ir muito além da educação em si, talvez esteja sendo pouco aproveitado (Lordelo et al., 2007). Associado a isso pode estar o fato de que as propostas pedagógicas da educação infantil em si, que, sem dúvida apresentam conteúdos importantes, podem não estar indo ao encontro da literatura científica atual acerca do desenvolvimento infantil. Ainda, uma escola considerada de baixa qualidade pode anular os benefícios do ambiente familiar da criança (Almeida et al., 2018), seja ela pública ou privada.
Nesse sentido, ao remeter à proposta teórica de Bronfenbrenner (1999), para além das interações dos microssistemas família e escola, o olhar também deve recair para o macrossistema, considerando as políticas educacionais e legislações nacionais. Assim, retomando as metas projetadas do PNE para a educação infantil no Brasil até o ano de 2024, não apenas se fazem necessárias a ampliação da oferta de creches e a universalização da pré-escola, mas também, para a próxima década, incluir indicadores de qualidade, que sejam periodicamente monitorados, de modo a se aproximar do objetivo central da lei, que é uma melhoria na educação no país.
Considerações finais
Os resultados do presente estudo trouxeram importantes informações a respeito do desenvolvimento integral da criança e a interação entre variáveis domésticas e escolares. Os achados sugerem a importância da estimulação e cuidados recebidos pela criança junto à família e a criação de estratégias que favoreçam e contribuam para a qualidade das experiências vividas no ambiente familiar como um importante promotor do desenvolvimento infantil nos seus diversos domínios (Andrade et al., 2005). Outro ponto importante abordado foi a respeito da qualidade e da heterogeneidade das IEI no país, investigação que necessita ir além da dicotomia público x privado, uma vez que mesmo as instituições privadas apresentam muitas diferenças e desigualdades. Adicionalmente, o estudo traz como elemento inovador a utilização de instrumento de avaliação do desenvolvimento infantil construído e adaptado para o contexto do país, com uma amostra normativa de diferentes regiões brasileiras.
Como limitações do estudo, encontram-se questões como a falta de maiores informações sobre características individuais da criança, do ambiente familiar e da qualidade das IEI que as crianças frequentavam, bem como o fato do desenvolvimento ser avaliado apenas pelo relato materno. Ademais, não foi contemplado o tempo que a criança permanece dentro ou fora da IEI, o que permitiria incluí-lo como variável, que, além de ser importante dentro do modelo bioecológico do estudo e compreensão do desenvolvimento da criança, poderia contribuir na explicação dos resultados. Como direções futuras, sugerem-se novos estudos que busquem incrementar a avaliação do desenvolvimento também com tarefas para a criança, assim como intervenções que tenham como objetivo promover maior qualidade da interação e de estímulos disponíveis para a criança no ambiente familiar e estudos que investiguem as diferenças entre as diversas IEI privadas, e não somente entre pública e privada.
Os dados do presente estudo reforçam a importância do investimento e intervenção nas experiências dentro do ambiente familiar para promoção do desenvolvimento infantil, bem como a reflexão sobre a influência e qualidade das IEI e seus possíveis efeitos no desenvolvimento infantil. Para além das intervenções clínicas e educacionais, é necessária uma política pública consistente que inclua tais indicadores nas suas propostas para o setor.