O novo coronavírus (Sars-Cov-2), que ocasiona a doença do coronavírus, denominada "covid-19", detectado inicialmente em dezembro de 2019 na China, rapidamente alastrou-se por todo o mundo, tendo sido decretada pandemia em 11 de março de 2020. Até abril de 2022, ela foi responsável por mais de 500 milhões de casos e 6 milhões de mortes (Organização Mundial da Saúde, 2022). Estima-se que mais de 2 bilhões de pessoas sofreram impactos emocionais e econômicos (Zhang et al., 2021). A pandemia da covid-19 tornou-se uma das maiores crises de saúde pública vivenciadas pelo mundo contemporâneo, com alto potencial lesivo para a saúde mental da população (Hossain et al., 2022; Machado et al., 2020).
Em estudo realizado com adultos brasileiros durante a pandemia da covid-19, identificou-se que aproximadamente 70 % dos participantes apresentaram sintomas depressivos e ansiosos Esses dados sugerem possível elevação da quantidade de casos desses transtornos mentais, quando comparado ao período pré-pandêmico (Zhang et al., 2021). Em outros países, também foram encontrados números elevados na prevalência de transtornos de ansiedade e de depressão (Chacón-Andrade et al., 2020; Desouky et al., 2021; Koçak et al., 2021; Villarreal-Zegarra et al., 2021), o que indica o alcance dos impactos psicológicos decorrentes dessa situação estressora.
Eventos estressantes, como uma pandemia, configuram-se fator de risco significativo para ansiedade e depressão (Kujawa et al., 2020). Isso ocorre não só com relação ao agravamento de condições preexistentes, mas também ao desencadeamento em pessoas sem histórico prévio (Taylor, 2022). Somadas a isso, pesquisas já indicaram que os transtornos de ansiedade e depressivos tendem a ser comórbidos (Andreescu et al., 2018; Beekman et al., 2000; Kaiser et al., 2021). O processo de estresse é desencadeado quando os estressores excedem os recursos que o indivíduo possui para enfrentá-los, ou seja, quando o indivíduo percebe o meio como ameaça ao seu bem-estar ou quando essa interação supera a sua capacidade adaptativa (Lazarus & Folkman, 1984).
Durante a pandemia, os efeitos psicológicos têm sido considerados maiores que os efeitos médicos, pois os impactos mentais tendem a ser mais intensos, generalizados e duradouros (Kujawa et al., 2020; Taylor, 2022). Estudo com adultos americanos e canadenses, realizado no início da pandemia, indicou que 20 % apresentaram sintomas graves de ansiedade e depressão, ao passo em que apenas 2 % foram diagnosticados com a covid-19. Além disso, para cada morte relacionada à doença, existem em média cinco familiares enlutados (Taylor, 2022). Estudo realizado na Inglaterra previu que cerca de 20 % da população precisará de apoio psicológico como consequência direta da covid-19 (O'Shea, 2020). Já no Brasil, levantamento indicou que 29 % dos entrevistados buscaram ajuda profissional em decorrência de problemáticas relativas à saúde mental e 34 %, apesar de não terem procurado ajuda, informaram que desejariam obter apoio para lidar com a ansiedade e com o estresse (Ministério da Saúde, 2021).
Há também a perspectiva de que o longo alcance e cronificação dos efeitos psicológicos será uma condição observada nos próximos anos (Huang & Zhao, 2020). Além disso, o exame das respostas a eventos de grandes proporções, com efeitos generalizados, pode gerar informações fundamentais como o nível de risco e da capacidade de enfrentamento da população (Kujawa et al., 2020). Portanto, parece ser pertinente a vigilância contínua e o monitoramento das consequências psicológicas relacionadas à experiência da covid-19, algo já destacado por diferentes autores (Bakkar et al., 2021; Caycho-Rodriquez et al., 2021; Chacón-Andrade et al., 2020; Huang & Zhao, 2020; Pakpour & Griffiths, 2020).
Para melhor compreender as repercussões psicológicas à pandemia, é necessário a consideração de uma emoção específica, o medo (Ornell et al., 2020). Crises em saúde, como a pandemia causada pelo novo coronavírus, aumentam os níveis de medo (Pakpour & Griffiths, 2020) e, assim, desencadeiam intenso sofrimento na população (Harper et al., 2020). O medo é uma das reações psicológicas mais frequentes no contexto pandêmico (Broche-Pérez et al., 2020; Şimşir et al., 2021) e, junto com a ansiedade, em grau excessivo, compõem os transtornos de ansiedade. O medo é definido como uma reação emocional a uma ameaça iminente real ou percebida e está associado com mais frequência à excitabilidade autonômica; já a ansiedade está relacionada a uma fonte de ameaça futura, associada à tensão muscular e vigilância (American Psychiatric Association [APA], 2023). Quanto aos transtornos depressivos, a característica comum é o humor triste acompanhado de alterações físicas e cognitivas que interferem significativamente no funcionamento psicossocial do indivíduo (APA, 2023).
Dados sugerem que o medo de uma doença e as mudanças comportamentais associadas podem se espalhar através do contágio emocional, no qual a emoção e o comportamento vivenciado por um indivíduo podem ser influenciados por outras pessoas (Taylor, 2022; Wheaton et al., 2021). As respostas emocionais à ameaça pandêmica, como ansiedade, depressão e medo, podem ser socialmente disseminadas. Assim, esses estados emocionais também podem ser transmitidos por meio das mídias sociais, pois contribuem significativamente para o aumento das percepções de risco (Taylor, 2022; Wheaton et al., 2021).
Apesar de o medo ser considerado um mecanismo adaptativo de defesa básico e fundamental para a sobrevivência, quando crônico ou desproporcional, pode gerar prejuízos e culminar no desenvolvimento de transtornos mentais (Ornell et al., 2020). Pesquisas sobre o medo da covid-19 entre a população brasileira em 2020 indicaram nível moderado de medo (Giolo et al., 2022; Modena et al., 2022). O medo, durante a pandemia da covid-19, esteve associado à adoção de comportamentos preventivos, como a higienização das mãos e o distanciamento social, que, pelo seu caráter protetivo, foi tido como consequência benéfica para dado momento (Broche-Pérez et al., 2020; Harper et al., 2020). Porém, o aumento drástico e a persistência no nível de medo da população levaram a sérias limitações na capacidade de pensar e reagir ao evento adverso, bem como a desfechos negativos em saúde mental (Broche-Pérez et al., 2020; Şimşir et al., 2021). Estudos apontaram que o medo da covid-19 foi o preditor mais poderoso dos sintomas de ansiedade e depressão (Assi et al., 2021; Yildirim et al., 2021).
O medo excessivo da covid-19 tem sido relacionado a diversas situações problemáticas, como casos de suicídio (Alyami et al., 2020; Sakib et al., 2020), comportamentos de marginalização social e estigmatização (Sakib et al., 2020; Satici et al., 2020), oscilação entre negação e fobia (Soraci et al., 2020) e pensamentos irracionais (Satici et al., 2020). Estudos conduzidos em diferentes países também demonstraram que o medo da covid-19 está intimamente associado a sintomas de depressão e ansiedade (Assi et al., 2021; Desouky et al., 2021; Şimşir et al., 2021; Warren et al., 2021), sendo considerado precursor de respostas psicopatológicas atualmente (Harper et al., 2020). Logo, evidências têm sido encontradas que indicam a intensidade do medo como fator de vulnerabilidade para o desenvolvimento de problemas em saúde mental.
Os achados sobre o medo e sobre as condições de saúde mental apontam para a importância de mensurar e avaliar o medo da covid-19, possibilitando a previsão e controle dos seus efeitos na população (Bitan et al., 2020). Estimar o medo nesse contexto, considerando suas especificidades, torna-se fundamental para a elaboração de programas de educação e prevenção diretivos e eficazes para o manejo do medo da covid-19 e para a promoção do envolvimento em comportamentos preventivos (Pakpour & Griffiths, 2020). A fim de atender essa necessidade, medida foi desenvolvida para avaliar especificamente o medo da covid-19, a Fear of COVID-19 Scale (Escala de Medo da Covid-19 - EMC-19; Ahorsu et al., 2020). Os escores da escala foram significativa e positivamente correlacionados com instrumentos que avaliam depressão e ansiedade (Pakpour & Griffiths, 2020), em diferentes países (Assi et al., 2021; Bakkar et al., 2021; Chaudhary et al., 2021; Şimşir et al., 2021).
A literatura tem mostrado que as respostas de medo, ansiedade e depressão durante a pandemia da covid-19 podem ser influenciadas por variáveis sociodemográficas e de proximidade com o vírus, afetando determinados grupos da população de modo diferente e modificando a possibilidade de piores desfechos em saúde mental (Caycho-Rodriquez et al., 2021; Koçak et al., 2021). Por exemplo, pesquisas realizadas durante a pandemia da covid-19 demonstram que as mulheres têm apresentado maior nível de medo e distresse (Broche-Pérez et al., 2020; Chacón-Andrade et al., 2020; Hossain et al., 2022; Nino et al., 2021; Zhang, et al., 2021). Além das mulheres, populações minoritárias em termos raciais tendem a se perceberem mais vulneráveis a ameaças como a covid-19 (Nino et al., 2021).
Outro aspecto é que conhecer pessoas que morreram em decorrência da covid-19 é um fator de risco para a presença de sintomas de ansiedade, depressão e estresse pós-traumático (Archibald et al., 2023; Nguyen et al., 2023). Com relação à variável idade, não foi possível perceber um consenso entre os achados das pesquisas. De qualquer maneira, alguns estudos apresentaram os adolescentes e adultos jovens, outros apontaram para indivíduos mais velhos, como detentores de maiores chances de desenvolver medo, sintomas de ansiedade e de depressão relacionados à covid-19 (Chacón-Andrade et al., 2020; Holeva et al., 2021; Koçak et al., 2021; Machado et al., 2020; Nino et al., 2021; Zhang, et al., 2021). Por fim, níveis de escolaridade até o ensino fundamental e o ensino médio foram associados a maiores níveis de medo da covid-19 (Bakkar et al., 2021).
Observa-se que essas variáveis sociodemográficas e de proximidade com a covid-19 colecionam evidências de interação tanto com o medo quanto com a sintomatologia ansiosa e depressiva. Contudo, tal interação múltipla não permite afirmar se essas variações afetariam a forma como o medo e os sintomas ansiosos e depressivos estão interrelacionados, simultaneamente. Por exemplo, muitas pesquisas apontam que a variável sexo apresenta relação com o medo da covid-19, com a ansiedade e com a depressão (Broche-Pérez et al., 2020; Chacón-Andrade et al., 2020; Hossain et al., 2022), mas não se sabe se, ao serem controlados os efeitos dessa variável sobre a relação entre medo da covid-19, depressão e ansiedade, o medo permaneceria sendo fator explicativo relevante para esses quadros psicopatológicos. Panorama similar pode ser aplicado para outras variáveis, a exemplo da idade, do nível de escolaridade e da cor da pele, raça ou etnia. Entende-se que avaliar a interação entre todas essas variáveis -medo, desfechos em saúde mental e covariáveis- vem a ser um passo importante para o melhor entendimento das repercussões psicológicas da pandemia.
Por meio da consideração de covariáveis na análise, espera-se que seja possível não apenas entender o efeito específico do medo sobre a sintomatologia ansiosa e depressiva, mas, sobretudo, controlar potenciais impactos de outras variáveis sobre essas relações. Assim, o presente estudo pressupõe que, depois de controlar as variáveis gênero, cor da pele, raça ou etnia, idade, escolaridade e conhecer alguém que morreu por causa da covid-19, pessoas com medo severo apresentarão maiores níveis de ansiedade e depressão quando comparadas aos participantes com medo moderado e leve. Diante disso, o presente estudo avaliou o efeito do medo da covid-19 sobre ansiedade e depressão, considerando a influência de variáveis confundidoras sociodemográficas e de proximidade com a covid-19. Um modelo explicativo é apresentado na Figura 1.

Figura 1 Modelo explicativo efeito do medo da covid-19 sobre ansiedade e depressão, considerando a influência de variáveis confundidoras
Método
Participantes
Este foi um estudo transversal, que teve como público-alvo adultos, de ambos os gêneros, residentes de todos os estados brasileiros, incluindo Distrito Federal. Foram adotados como critério de exclusão não residir no Brasil no momento da pesquisa e ter menos que 18 anos. A amostra foi composta de 4.641 adultos. Esta pesquisa foi aprovada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (registro: n° 30485420.6.0000.0008). O termo de consentimento livre e esclarecido, o qual continha informações sobre a pesquisa e sobre os aspectos éticos, foi incluído na primeira página do formulário, de modo que o participante só tinha acesso às perguntas do questionário após a confirmação de consentimento. O questionário era apresentado em uma única seção, não era possível enviar o formulário com dados omissos, já que era obrigatório responder a todas as questões. A coleta de dados foi realizada na primeira quinzena de junho de 2020 e o recrutamento de participantes, que foi por conveniência, ocorreu por meio de redes sociais, como WhatsApp, Facebook e Instagram. Os dados foram coletados e armazenados na plataforma Survey Monkey em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018).
Instrumentos
Escala de Medo da Covid-19 - EMC- 19 (Ahorsu et al., 2020). É uma medida unidimensional usada para a investigação do medo da rrde 1 = discordo totalmente a 5 = concordo totalmente). Obtém-se o escore total a partir da soma dos itens, variando entre 7 e 35 pontos. O estudo de adaptação e identificação de evidências de validade da EMC-19 em contexto brasileiro encontrou resultados psico-métricos satisfatórios e propôs a estratificação dos escores, adotada neste trabalho, em três categorias: de 7 a 19 pontos como medo leve, de 20 a 26 pontos moderado e, a partir de 27 pontos, severo (Faro et al., 2022). Neste estudo, o seu alfa de Cronbach foi 0,87, o qual indica boa consistência interna.
Generalized Anxiety Disorder Scale-7 - GAD-7 (Spitzer et al., 2006). Essa escala foi utilizada para avaliar a frequência dos sintomas de ansiedade presentes nas últimas duas semanas. Esse instrumento de autorrelato é composto de sete itens, respondidos em uma escala de 0 (nenhuma vez) a 3 (quase todos os dias) pontos. O escore mínimo é 0 e o máximo é 21. Os indicadores acerca de suas propriedades psicométricas e evidências de validade no Brasil são considerados satisfatórios (Moreno et al., 2016). Neste trabalho, constatou-se excelente consistência interna (α = 0,90).
Patient Health Questionnaire - PHQ-9 (Kroenke et al., 2001). Escala que mede a frequência de sinais e sintomas de depressão nas últimas duas semanas, com nove itens, respondidos em uma escala de 0 (nenhuma vez) a 3 (quase todos os dias) pontos. O escore total varia entre 0 e 27 pontos, com a pontuação igual a 10 ou mais indicando depressão. No Brasil, a escala apresenta características psicométricas satisfatórias (Bergerot et al., 2014). No presente estudo, houve excelente consistência interna (α = 0,90).
Para a caracterização da amostra, aplicou-se um questionário sociodemográfico com perguntas sobre o sexo do participante (feminino ou masculino), idade (em anos), cor da pele, raça ou etnia (branca, preta, parda, amarela, indígena ou outra), nível de escolaridade (até o ensino fundamental, ensino médio ou ensino superior) e sobre conhecer alguém que morreu por causa da covid-19 (sim ou não).
Análise dos dados
Os dados foram submetidos a procedimentos de ajustes e análises descritivas no software SPSS (versão 25). Posteriormente, conduziu-se análise multivariada de covariância (MANCOVA). Essa análise é considerada a extensão multivariada da ANCOVA, pois trabalha com diversas variáveis dependentes simultaneamente, levando em conta a combinação entre essas variáveis. A MANCOVA permite avaliar se há diferenças estatisticamente significativas entre diferentes grupos, após controlar a ação de variáveis confundidoras (Tabachnick et al., 2019). Neste estudo, analisaram-se as diferenças das médias dos escores de depressão e ansiedade entre os estratos de medo, sendo adotados como covariáveis o sexo, a cor da pele, raça ou etnia, a escolaridade, a idade e ter alguém próximo que morreu por conta da covid-19. Em função da distribuição não normal da variável "idade" (assimetria = 0,922; achatamento = 0,072), optou-se pela criação de pontos de corte através do percentil, estabelecendo-se cinco grupos (de 18 a 21 anos, de 22 a 25 anos, de 26 a 30 anos, de 31 a 39 anos e a partir de 40 anos).
Para ser efetuada, algumas suposições para a análise de covariância precisam ser averiguadas (Tabachnick et al., 2019). Primeiro, devem ser avaliadas a linearidade e a multicolinearidade entre as variáveis dependentes. A linearidade foi examinada pela análise do gráfico de dispersão, que mostrou relação linear aparente entre os escores da GAD-7 e PHQ-9. Quanto à avaliação da multicolinearidade, foi identificado valor de 2.241 para o Variance Inflation Factors de cada variável dependente, o que indica baixa correlação entre as variáveis (Kim, 2019). Segundo, são requeridas normalidades univariada e multivariada. A distribuição normal univariada das variáveis dependentes dentro dos grupos foi avaliada pela análise dos valores de assimetria e achatamento obtidos no spss, identificando-se valores satisfatórios. Quanto à normalidade multivariada, utilizou-se calculadora on-line (https://webpower.psychstat.org/models/kurtosis/) para calcular o valor da assimetria e do achatamento de Mardia. Os resultados (assimetria [b = 0,056; z = 43.373;p < 0,001]; achatamento [b = 0,056; z =; -8.989; p < 0,001]) indicaram que os dados não apresentaram distribuição multivariada normal (Wulandari et al., 2021). Contudo, de acordo com a literatura, a violação dessa suposição não tem impacto significativo em grandes amostras (Hair et al., 2009), como no caso deste trabalho. Terceiro, a igualdade de matrizes de variância e covariância deve ser analisada através dos testes de Levene e M de Box, os quais não podem ser significativos para qualquer uma das variáveis dependentes (Field, 2009; Hair et al., 2009). Tanto o teste de Levene (GAD-7 [2] = 10.228,p < 0,001; PHQ-9 [2] = 7.258, p = 0,001) quanto o teste de M de BOX (Box's M = 9.070; F[9.839, 6], p < 0,001) não acataram esse pressuposto. Entretanto, foi possível dar prosseguimento à MANCOVA, uma vez que, como medida estatística, foi adotado o critério de Pillai, considerado como mais robusto e a melhor escolha em casos de violação desse tipo (Hair et al., 2009). O tamanho de efeito foi estimado pelo índice eta ao quadrado (η 2 ). Nos testes a posteriori, a avaliação foi feita por meio da técnica de Bonferroni. Um p-valor abaixo de 0.05 foi adotado como indicador de significancia estatística.
Resultados
Perfil amostral
A idade média dos participantes foi de 30,3 anos (DP = 10,57; Mínimo [Mín.] = 18,0 e Máximo [Máx.] = 59,0), cuja maioria era constituída por mulheres (86,9 %, n = 4.035). No que se refere à cor da pele, raça ou etnia, em que 52,0 % (n = 2.414) dos respondentes declararam ter pele branca, 36,2 % (n = 1.681) parda e 11,8 % (n = 546), preta. Sobre o nível de escolaridade, 76,6 % (n = 3.555) apresentavam nível superior e 23,4 % (n = 1.086), nível médio. Quando questionados sobre conhecer alguém que faleceu devido à covid-19, 60,4 % (n = 2.803) dos participantes responderam negativamente. A média do escore total da EMC-19 foi de 22,9 pontos (DP = 5,91). A maioria dos participantes apresentou medo moderado da covid-19 (42,7 %, n = 1.981), seguido por medo severo (28,9 %, n = 1340) e medo leve (28,4 %, n = 1.320). O escore médio de ansiedade foi de 11,2 (DP = 5,81) e de depressão foi de 13,4 (DP = 7,36).
Resultados da MANCOVA
As covariáveis "cor da pele, raça ou etnia" (F[4632.000] = 2.438, p = 0,080; η 2 = 0,001) e "escolaridade" (F[4632.000] = 1.610, p = 0,200; η 2 = 0,001) não apresentaram efeito estatisticamente significativo. As covariáveis "sexo" (F[4632.000] = 20.903, p < 0,001; η 2 = 0,009), idade (F[4632.000] = 275.672, p < 0,001; rf = 0,106) e "conhecer alguém que morreu por causa da covid-19" (F[4632.000] = 3.723, p = 0,024; η 2 = 0,002) apresentaram efeito significativo no modelo. Por fim, a variável "medo da covid-19", mesmo após o controle das covariáveis (sexo, idade e conhecer alguém), manteve efeito estatisticamente significativo (F[9266.000] = 332.211, p < 0,001; η 2 = 0,125).
Análises a posteriori demonstraram que pessoas com medo severo apresentaram escores maiores de ansiedade e depressão quando comparados com pessoas no estrato moderado e leve. Os participantes classificados na categoria "medo moderado" apresentaram níveis mais elevados de ansiedade e depressão quando comparados com o grupo de pessoas com medo leve. A Tabela 1 apresenta os resultados das diferenças entre os grupos.
Tabela 1 Diferenças das médias de ansiedade e depressão em razão dos estratos de medo
Ansiedade | Depressão | |||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Comparações entre grupos (níveis de medo) | Diferença de médias (DP) | 95 % IC por diferença | Diferença de médias (DP) | 95 % IC por diferença | p | |||
Limite inferior | Limite superior | Limite inferior | Limite superior | |||||
Medo severo | Medo moderado | 4,5 (0,17) | 4.074 | 4.905 | 3,9 (0,23) | 3.378 | 4.482 | < 0,001 |
Medo leve | 7,5 (0,19) | 7.010 | 7.929 | 6,3 (0,25) | 5.700 | 6.922 | < 0,001 | |
Medo moderado | Medo leve | 3,0 (0,17) | 2.563 | 3.397 | 2,3 (0,23) | 1.827 | 2.936 | < 0,001 |
Notas. DP = desvio-padrão; IC = intervalo de confiança.
Discussão
O advento da pandemia da covid-19 desencadeou, no mundo inteiro, o interesse de pesquisadores em estudar os seus efeitos nas mais diversas áreas da vida do indivíduo. Os achados das pesquisas têm convergido para o entendimento de que os impactos psicológicos, em especial, são crescentes e duradouros, exigindo, portanto, a continuidade e o aprofundamento das investigações nesse âmbito. Por razões como essa, este estudo avaliou o efeito do medo da covid-19 sobre a sintomatologia ansiosa e depressiva, considerando o impacto de variáveis sociodemográficas e de proximidade com o vírus sobre essas relações.
Observou-se que, no geral, os participantes apresentaram nível moderado de medo (de 20 a 26 pontos; Faro et al., 2022), com média de 22,9 (DP = 5,91) pontos. Esse resultado foi similar a outras investigações sobre o medo da covid-19 entre a população brasileira durante a segunda metade de 2020. Pesquisa conduzida em julho com 7.430 brasileiros identificou média de 19,8 (DP = 5,30) pontos (Giolo et al., 2022). Em investigação com 1.437 universitários brasileiros, realizada de setembro e novembro, a média do medo da covid-19 foi de 20,7 (DP = 6.28 [Modena et al., 2022]). É interessante observar que, durante esse período, o Brasil enfrentava a propagação da pandemia da covid-19 para cidades de menor porte e as vacinas ainda estavam na etapa de desenvolvimento, o que ajuda a entender o estado de medo percebido.
Em conformidade com achados de estudos anteriores (Broche-Pérez et al., 2020; Hossain et al., 2022; Nguyen et al., 2023), foi identificado que as covariáveis "sexo' e "conhecer alguém que morreu por causa da covid-19" apresentaram efeito significativo sobre os desfechos investigados. Embora a população experimente estressores em comum, nem todos foram igualmente impactados pela pandemia. Por exemplo, quando considerada a variável "sexo", evidências apontam que as mulheres estiveram mais vulneráveis ao adoecimento psicológico nesse contexto (Chacón-Andrade et al., 2020; Nino et al., 2021; Zhang et al., 2021). Por sua vez, o impacto de conhecer alguém que morreu por causa da covid-19 pode ser compreendido ao considerar que isso provavelmente afeta a percepção de proximidade com o vírus, aumentado a avaliação de ameaça à vida (Nguyen et al., 2023).
Ainda que as variáveis "sexo" e "conhecer alguém que morreu por causa da covid-19" tenham se mostrado estatisticamente significativas no modelo, foi identificado pequeno tamanho de efeito, o que significa que apresentaram pouca influência sobre a variabilidade das respostas. A variável idade, no entanto se destacou no modelo investigado, sendo capaz de explicar 11 % da variabilidade das respostas. Observa-se que diferentes faixas etárias enfrentaram desafios únicos e específicos devido ao coronavírus, tornando a idade fator relevante para a compreensão desse contexto (Chacón-Andrade et al., 2020; Holeva et al., 2021; Koçak et al., 2021). Os resultados foram inesperados com relação à ausência de efeito das covariáveis "cor da pele, raça ou etnia" e "nível de escolaridade". Muitas desigualdades na saúde impulsionadas pelo racismo e pelo classismo foram amplificadas durante a pandemia da covid-19. Reflexos dessas disparidades foram identificados em investigações anteriores em que pessoas com menor grau de escolaridade e com cor de pele preta apresentaram com maior frequência efeitos psicológicos adversos (Bakkar et al., 2021; Nino et al., 2021). Destaca-se que este estudo apresentou maioria de participantes de cor de pele branca e com nível superior de escolaridade, portanto é provável que análises em amostras mais representativas sejam capazes distinguir possíveis efeitos cor da pele, raça ou etnia e nível de escolaridade, o que sugerimos que seja explorado em futuros trabalhos.
Os dados deste estudo apontaram que o medo da covid-19 apresentou impacto significativo nos sintomas de ansiedade e depressão, sendo identificado que o efeito do medo sobre os desfechos investigados permanece quando controladas as variáveis sociodemográficas e de proximidade com o vírus. Isto é, quando se controla o efeito do sexo, da idade e de conhecer alguém que morreu por causa da covid-19 na relação entre medo, ansiedade e depressão, o medo se mantém como uma variável preditora significativa dos sintomas ansiosos e depressivos. O valor do eta ao quadrado identificado para o tamanho do efeito do medo da covid-19 foi de 0.125, que pode ser classificado como moderado (Cohen, 1988) e significa que 13 % da variância total dos sintomas de ansiedade e depressão podem ser explicados pelo medo. Verificou-se também que as pessoas em níveis mais elevados de medo apresentaram maiores escores de ansiedade e depressão. Inclusive, na ausência de outros parâmetros para a avaliação do tamanho de efeito, entende-se que o achado aqui obtido adquire relevância para a comparação em futuras pesquisas ou mesmo para a estimação do impacto de intervenções voltadas à percepção de medo na população.
Outros estudos também já ressaltaram os efeitos do medo da covid-19 sobre os sintomas ansiosos e depressivos. Por exemplo, estudo realizado no Líbano aplicou regressão múltipla para avaliar se o medo da covid-19, a insegurança no trabalho, a ruminação sobre a covid-19 e a confiança política poderiam predizer sintomas de ansiedade e depressão. Observou-se que o medo da covid-19 foi o preditor mais poderoso, explicando cerca de 15 % na variação da depressão e 35 % na variação da ansiedade (Assi et al., 2021). Em achados de outra pesquisa em que também foi adotada regressão múltipla, verificou-se que o medo da covid-19 apresentava maior capacidade explicativa dos sintomas de ansiedade (23 %) e depressão (12 %) do que enfrentamento religioso positivo e negativo, sexo e idade (Yildirim et al., 2021).
Este trabalho se diferencia pela análise estatística empregada. Ao considerar a combinação da ansiedade e depressão, avaliando esses sintomas simultaneamente, e ao controlar os efeitos das covariáveis, é possível detectar com maior clareza o impacto do medo. Foi possível perceber que embora variáveis sociodemográficas e proximidade com o vírus sejam fatores envolvidos na complexa relação entre ansiedade e depressão, os resultados evidenciaram a importância do medo da covid-19. Assim, mesmo que exista um contexto de vulnerabilidade ao redor de certos grupos, nota-se que uma característica única das infecções virais pandêmicas é o medo (Ahorsu et al., 2020). A própria natureza do vírus, invisível e altamente contagioso, em conjunto com suas implicações, suspensão da rotina, imposição de distanciamento social, insegurança econômica, levam ao enfrentamento de adversidades que desafiam a capacidade de adaptação. Desse modo, os achados deste estudo contribuem para o entendimento do papel que o medo da covid-19 desempenha nos desfechos de ansiedade e depressão, demonstrando a necessidade de que essa variável seja considerada no processo de desenvolvimento de estratégias para prevenir e minimizar o impacto psicológico provocado pela pandemia da covid-19.
Entre as limitações desta pesquisa, vale destacar que a amostra, apesar de ampla, não é randomizada, o que compromete a capacidade de representação da população brasileira em sua totalidade, por exemplo, ao apresentar maioria da amostra com nível superior de escolaridade. Outra limitação a se considerar é o risco de viés de participante, uma vez que só foi possível coletar dados de pessoas com acesso à internet. A fim de contribuir para a expansão de conhecimento sobre esse tópico, recomenda-se que pesquisas futuras realizem análises com diferentes variáveis, a exemplo de identidade de gênero. Além disso, sugere-se que futuras pesquisas façam uso de um desenho longitudinal que permita identificar as variações na relação entre medo, ansiedade e depressão ao longo dos diferentes estágios de pandemia vividos no Brasil. Embora tenham sido detectadas essas limitações, acredita-se que a integração dos achados deste estudo às pesquisas que já foram realizadas nessa direção colabora para o aprimoramento da compreensão do papel do medo, bastante presente no contexto pandêmico, sobre o adoecimento mental.