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Co-herencia

Print version ISSN 1794-5887

Co-herencia vol.8 no.14 Medellín Jan./June 2011

 

A Democracia Deliberativa como Guia para a Tomada de Decisões Legítimas. Análise teórica a partir de Carlos Santiago Nino e algumas práticas institucionais no Brasil contemporâneo*

 

Miguel Gualano de Godoy**

 

* Este trabalho apresenta resultados de uma pesquisa maior sobre a relação entre Constitucionalismo e Democracia, apresentada como Dissertação de Mestrado na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) em fevereiro de 2011 perante Banca Examinadora composta pelos seguintes membros: Prof. Tit. Dr. Roberto Gargarella (UBA), Prof. Tit. Dr. Clèmerson Merlin Clève (UFPR) e Prof. Dra. Vera Karam de Chueiri (UFPR).

** Bacharel e Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bolsista da CAPES (2009/2011). Membro e Pesquisador do Núcleo "Constitucionalismo e Democracia: Filosofia e Dogmáticas Constitucionais Contemporâneas" da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, Brasil (UFPR), miguelg@seju.pr.gov.br.

Recibido: marzo 27 de 2011. Aprobado: mayo 2 de 2011


Resumen:

La democracia deliberativa parte de la idea de que un sistema político valioso es aquel que promueve, en condiciones de igualdad, la toma de decisiones imparciales mediante un debate colectivo con todas las personas que serán directa o indirectamente afectadas por la decisión. Una democracia sólo se justifica en la medida en que posibilita la construcción de un espacio público de deliberación. Es precisamente tal espacio (estatal y(o) no estatal) en que los ciudadanos pueden, en consecuencia, decidir cuál es el mejor rumbo para sus vidas así como qué principios y normas regirán la sociedad en la que viven. Este artículo busca mostrar como una concepción deliberativa de democracia, en la versión defendida por Carlos Santiago Nino, se muestra como una guía importante para el proceso de toma de decisiones legítimas y, en concreto, como se desarrollan las practicas político-democráticas y de decisión en importantes espacios institucionales en Brasil.

Palabras clave: Democracia deliberativa. Toma de decisiones. Carlos Santiago Nino. Mini-públicos.


Resumo:

A democracia deliberativa parte da ideia de que um sistema político valioso é aquele que promove a tomada de decisões imparciais, por meio de um debat coletivo com todos os potencialmente afetados pela decisão, tratando-os com igualdade. A democracia só se justifica na medida em que permite a construção de um espaço público de deliberação. E será justamente neste espaço (estatal e(ou) não estatal) em que os cidadãos poderão então decidir qual o melhor rumo para suas vidas e que princípios e normas regerão a sociedade em que vivem. Este trabalho busca mostrar como a concepção deliberativa de democracia, tal qual defendida por Carlos Santiago Nino, se mostra como importante guia para a tomada de decisões legítimas e como se dão as práticas político-democráticas e de decisão em importantes espaços institucionais no Brasil.

Palavras chave: Democracia Deliberativa; Carlos Santiago Nino; Minipúblicos.


 

1. Introdução: a Democracia Deliberativa de Carlos Santiago Nino a partir de John Rawls e Jürgen Habermas

Carlos Santiago Nino ao fazer uma leitura comparativa entre as concepções de democracia de John Rawls e Jürgen Habermas se propõe, por meio de sua teoria da democracia deliberativa, a preencher a lacuna deixada por Rawls ao acreditar no debate coletivo, na prática discursiva proposta por Habermas (Nino, 1999: 165). Ao mesmo tempo, não nega que a razão individual de um sujeito também possa, ainda que carente de um debate coletivo, propor soluções adequadas (Nino, 1999: 162). Com isso, Nino busca superar a proposta individualista de Rawls, que conduz a um elitismo moral exacerbado e, também, a proposta de Habermas, a qual pode conduzir a um populismo moral (Nino, 1999: 165)1 .

Nino toma parte das teorizações de Rawls e Habermas, mas, diferentemente deles, concebe que o conhecimento da verdade moral se dá a partir de um procedimento que privilegie uma discussão e decisão intersubjetivas. Dessa forma, o intercâmbio de ideias e a necessidade de se justificar determinada posição aos outros debatedores/participantes incrementam o conhecimento que o indivíduo possui, detectam defeitos no raciocínio e protegem a imparcialidade. No entanto, essa prática não exclui a possibilidade de a reflexão individual também produzir soluções corretas, ainda que este método seja o menos confiável, dada a dificuldade de manutenção da imparcialidade (Nino, 2005: 203-205).

A posição intermediária entre Rawls e Habermas adotada por Nino é por ele intitulada de construtivismo epistemológico (Nino, 2005: 203). Nino fundamenta o valor epistêmico da democracia na busca da solução mais adequada mediante práticas discursivas coletivas e(ou) individuais, e põe em evidência a imparcialidade como requisito essencial para a busca dessa solução. Nesse sentido, a princípio a unanimidade parece ser o equivalente funcional da imparcialidade. Se aqueles que podem ser afetados por uma decisão tiverem participado da discussão em condições de igualdade, a decisão tomada será, provavelmente, imparcial e moralmente correta, sempre que todos a aceitarem livremente e sem coerção (Nino, 1999: 166).

 

2. A Democracia Deliberativa e a legitimidade das decisões

No entanto, preocupado com a realidade complexa e a práxis social cotidiana e, diferentemente de Jürgen Habermas e John Rawls, Nino não pretende alcançar o consenso como resultado mais adequado ou da solução mais justa, nem mesmo quando presentes as condições ideais para o debate. Nino acredita na democracia deliberativa como o método mais confiável para transformar os interesses das pessoas, suas preferências e, assim, chegar ao resultado mais correto. "A diferencia de Habermas, no concibo al consenso, ni siquiera cuando es alcanzado bajo condiciones ideales, como constitutivo de soluciones justas. Tampoco creo que la empresa colectiva de la discusión sea la única forma de conocer esas decisiones justas. Mi posición solo intenta sostener que la democracia deliberativa es el método más confiable para lograrlo." (Nino, 1999: 202).

Daí a sua proposição de conferir legitimidade à decisão majoritária (Nino, 1999: 207). O argumento que confere legitimidade e validade à decisão da maioria não pode ser o de que ela, maioria, está mais perto da unanimidade, visto que a equivalência funcional entre unanimidade e imparcialidade não se reduz a uma questão meramente quantitativa. A passagem da unanimidade para a regra da maioria deve ser baseada na ideia de que a imparcialidade será mais bem preservada por meio da discussão/dissenso do que qualquer outro meio ou resultado advindo do consenso unânime. Ou seja, um processo de discussão moral com certo limite de tempo, dentro do qual uma decisão majoritária deve ser tomada, tem maior poder epistêmico para alcançar decisões moralmente corretas do que qualquer outro procedimento de decisões coletivas (Nino, 2003: 168). Mas, para não recair no mesmo equívoco da teoria de Habermas, a decisão majoritária deve sempre ser vista com cautela, pois a discordância de uma minoria é o que pode, por vezes, até mesmo conferir o grau de imparcialidade necessário para que a decisão tomada seja tida como a mais correta e, também, o fundamento para questionála ou desobedecê-la.

O valor epistêmico da democracia deliberativa, baseado na discussão e decisão públicas, não se aplica a qualquer decisão, em particular, e tampouco tem o condão de afirmar que todas as decisões majoritárias são as corretas. Ela não é uma confirmação do ditado popular "a voz do povo é a voz de Deus" (Nino, 2003: 181). Por óbvio que decisões democráticas majoritárias podem ser equivocadas e quase sempre excluem, por consequência, interesses minoritários. No entanto, é o valor epistêmico da democracia que deve fundar a aceitação da decisão democrática, inclusive nos casos em que a reflexão individual do sujeito aponte a decisão majoritária como equivocada. Pois, se não fosse assim, um sujeito somente aceitaria o resultado do processo democrático quando tal resultado coincidisse com a sua reflexão individual. E tal postura contraria completamente a conclusão de que o processo democrático-deliberativo é geralmente mais confiável epistemicamente do que o processo de reflexão individual de um sujeito. Vale dizer, deve-se obedecer ao resultado do processo democrático, mesmo quando ele afronte a reflexão individual de um sujeito, sempre que se houver observado as condições sobre as quais se baseou esse processo (Nino, 2005: 207). Isso não significa que um indivíduo não possa se posicionar contra a maioria. Ao contrário, o direito de se criticar a decisão tomada deve sempre ser resguardado e, em certos casos, pode-se até mesmo admitir a abstenção do sujeito em atuar conforme a decisão tomada (objeção de consciência2 ).

Se, por um lado, Nino não descarta a reflexão individual e a busca da verdade moral da melhor decisão, de forma particular, por outro, deve-se, sempre, conferir maior grau de legitimidade à decisão coletiva, deliberada e assistida por todos. Isto porque ele não pretende que a teoria da democracia deliberativa tenha aplicação em toda a dimensão moral. Ao contrário. Segundo Nino, o valor epistêmico da democracia deliberativa encontra limites no princípio da autonomia do sujeito. Isso quer dizer que não se devem admitir, ainda que por meio de um debate público, interferências sobre a vida e a escolha privada do cidadão. Há questões que dizem respeito à intimidade do sujeito como, por exemplo, a sua escolha religiosa, sua opção sexual, dieta alimentar etc., que não devem estar sujeitas ao debate e à decisão públicos.

Para a concretização de sua teoria, Nino parte e depende do pressuposto de que a falta de imparcialidade não se deve às inclinações egoístas dos atores sociais e políticos, mas sim à ignorância destes sobre os interesses dos demais (Nino, 2005: 182-183). É com base nesse pressuposto que Nino reafirma sua crítica a governos ditatoriais ou aristocráticos (elitistas), já que um ditador ou uma minoria detentora do poder deixam de conhecer os interesses dos setores mais afastados da sociedade.

Se o pressuposto adotado por Nino parece ingênuo ao conceber que os sujeitos envolvidos no debate (sejam eles governantes ou governados) não estão, naquele momento, imbuídos de interesses egoístas, o fundamento para legitimá-lo parece a melhor resposta à pretensa singeleza. Definir os interesses da população não é uma questão de simples conhecimento, mas também de escolha. Assim, se um indivíduo não tem nenhuma oportunidade de tomar uma decisão que o permita/ajude a dar uma ordem de preferência aos seus interesses, poderia ver-se impossibilitado de definir essa ordem. Ou seja, o pressuposto de imparcialidade será satisfeito se os sujeitos envolvidos no processo deliberativo tiverem conhecimento sobre os dados fáticos e relevantes da questão em debate (Nino, 2005: 169). Desta forma, evita-se a discricionariedade ou imposição das vontades/decisões dos governantes e abre-se espaço para que se possa eleger coletivamente a melhor decisão, sobretudo por aqueles que serão diretamente afetados por ela.

Ao tratar da influência das negociações e emoções sobre a democracia deliberativa, Nino mostra que tais fatores podem, muitas vezes, representar um malefício na medida em que ensejam decisões parciais, movidas por paixões; mas, podem também ser responsáveis por importantes mudanças estruturais nos modos de decisão, em especial nos sistemas de governos representativos. "Quiero defender aquí una visión de la democracia en la cual se asigna un rol a la negociación y a las manifestaciones de emociones, pero manteniendo para ellas un lugar subordinado a la argumentación en la promoción del poder epistémico del proceso de toma de decisiones mayoritarias". (Nino, 2005: 170-171). Para que a negociação e as emoções possam ser reivindicações legítimas no processo deliberativo elas devem se afirmar pela argumentação e não por seu poder agregador "Admitamos que con la ayuda de factores emocionales y negociaciones sobre la base del auto interés, el debate racional y las decisiones mayoritarias consiguientes no tenderían a ser soluciones imparciales. Sin embargo, el impacto beneficioso de estos aspectos de la democracia sobre su valor moral funciona solo a través de la argumentación". (Nino, 2005: 171).

Vale dizer, se é inevitável que nos processos decisórios possa haver negociação e influência da emoção, é melhor que esses aspectos sejam incorporados ao processo e, assim, submetidos à sabatina argumentativa. Dessa forma, a negociação e a emoção podem até mesmo ser benéficas ao processo de discussão pública, pois permitem a identificação das justificativas levadas a cabo no processo de deliberação. Busca-se, assim, a justificação das propostas e decisões perante os demais sujeitos e grupos. Desta maneira, uma proposta apaixonada ou obtida mediante barganha não pode ser acatada ou sancionada tendo a negociação ou a situação emocionante do momento como próprio fundamento da decisão. Ainda assim, é preciso reconhecer que existe uma linha muito tênue que separa as decisões tomadas com base em negociações e situações de emoção daquelas que, de fato, foram submetidas a um processo genuíno de discussão pública. O que se defende é que em uma democracia deliberativa e em um processo de discussão e decisão é desejável que os sujeitos apresentem suas razões e argumentem de modo imparcial (Martí, 2006: 43).

No entanto, é certo que os indivíduos possuem suas preferências e interesses e, por isso, podem (e isso usualmente acontece) apresentar razões auto-interessadas. Parece muito difícil que um indivíduo argumente sempre de forma imparcial, como se tivesse que ser juiz de si próprio, de seus argumentos e de suas crenças. Além do mais, pretender tal postura seria demasiado exigente. Todavia, o que se pode exigir é que esse cidadão esteja aberto para o debate e, assim, discuta, delibere, apresente suas preferências, interesses e razões para que eles sejam postos à prova e, quiçá, aceitos (Gargarella, 2009: 263). Um cidadão responsável atua devidamente quando está aberto a escutar aos demais e entender seus argumentos. Mas para isso não necessita converter-se em um árbitro de seus próprios interesses, pois é ele parte, e não juiz, e não deve envergonhar-se dessa sua condição de parte. O que se pode reclamar às partes que estão em conflito, em discussão, é que estejam abertas a escutar a parte contrária e a dar-lhe as melhores razões possíveis sobre a posição que defendem3 . Assim, a discussão pública ajuda a impedir ou prevenir a tomada de decisões parciais e viciadas.

Nino não se propõe a estabelecer todas as condições necessárias para que um argumento seja válido. Porém, pela via negativa aponta alguns argumentos que, usualmente, são utilizados e que, em verdade, nada representam ou fundamentam e, portanto, não podem ser utilizados em um processo de discussão e deliberação.

A simples expressão do desejo ou descrição do interesse não pode ser utilizada como argumento para fundamentar uma decisão, pois ela, em si, nada justifica. A referência a uma tradição, costume ou divindade pode, no máximo, servir de premissa ao processo de argumentação, porém, não serve como fundamentação, pois tradição e autoridade podem sempre ser postas à prova e questionadas. A proposição de normas que não sejam gerais e abstratas põe em xeque a imparcialidade de uma decisão fundada nestes termos, pois certamente estabelece uma discriminação injustificada. Propostas que são contrárias aos atos ordinários do proponente ou que se aplicam omente a uma situação particular (e não a outras similares) carecem de legitimidade, pois contradizem as posturas habituais do proponente e, seguramente, evidenciam um caso de seletividade infundada. De igual forma, propostas que desconsiderem as necessidades dos indivíduos não se sustentam, porque carecem de razões para serem criadas. Por fim, propostas que tentam resolver um conflito, mas são parciais, também carecem de legitimidade, pois não explicam as razões de suas parcialidades (Nino, 2003: 171-172).

Com isso, busca-se evidenciar que algumas condições que definem o caráter genuíno de um argumento, sem que definam sua validade, devem ser pressupostos de qualquer discussão. Ou seja, qualquer proposta egoísta pode ser apresentada sob a égide de um discurso coletivo, aparentemente imparcial. No entanto, estas disposições, que mostram como determinados argumentos não podem ser utilizados, tendem a minimizar ou ao menos expor como determinados argumento carecem de legitimidade.

Nino apresenta esses argumentos carecedores de legitimidade para coibir propostas parciais, egoístas, sem fundamento substancial, já que, quando postas em xeque perante a coletividade, tendem a ser questionadas e excluídas da decisão. Com isso, o autor não pretende defender uma teoria consensual ou majoritária da verdade fática, lógica ou filosófica, mas apenas mostrar como as questões morais, de interesse abrangente, quando postas em debate para um processo de deliberação, ajudam ao conhecimento da melhor resposta.

Dessa maneira, se de um lado a proposta de Nino busca fugir das decisões utilitaristas e parciais ao expô-las à sabatina argumentativa, por outro não consegue escapar ao fato de que em determinados momentos nem mesmo o procedimento legítimo pode impedir tais decisões. Por isso Nino se preocupa tanto com a defesa das minorias e com a busca e proteção de determinados valores morais, transformados em normas e impassíveis de questionamento. É justamente nesse ponto que Nino acentua a tensão entre constitucionalismo e democracia.

A democracia deve ser adotada como procedimento e experimentação em uma ação comunicativa e argumentativa a fim de serem tomadas as decisões moralmente mais corretas. No entanto, não podem usurpar determinadas conquistas, direitos e garantias estabelecidas pela Constituição. O que diferencia Nino (e, aqui, também deve-se incluir Roberto Gargarella) dos demais teóricos é que não pretende ele uma teoria que ignore esta tensão4. Ao contrário, é a partir dela que se deve teorizar e com ela conviver. Por essa razão, Nino não acredita no consenso tão idealizado por Rawls ou Habermas, mas dá grande valor às decisões coletivas.

A teoria da democracia deliberativa de Carlos Santiago Nino se funda, portanto, na capacidade epistemológica da discussão coletiva e da decisão majoritária para alcançar soluções moralmente corretas. A capacidade epistemológica da democracia deliberativa fundada na discussão pública é importante porque a partir dela pode-se não apenas justificar parcialmente as democracias existentes, como também se pode utilizá-la como guia e parâmetro para transformar esse processo em um procedimento ainda mais democrático, inclusivo, plural e imparcial.

A deliberação é legítima se a inclusão das partes no processo de discussão e decisão se dá em pé de igualdade e sem pressões coercitivas; mediante o conhecimento dos termos fáticos do problema e de tal forma que as minorias não estejam incapacitadas de participar; em momentos em que os indivíduos não se encontrem sujeitos a emoções extremas (Nino, 2003: 180).

Nesse ponto, Nino se aproxima do que propõe Habermas em sua "situação ideal de fala" (Habermas, 1987: 153)5. Diante disso, quando as condições para promover o valor epistêmico da democracia não são satisfeitas ela não alcança a sua completude. Tais condições devem ser cumpridas, na medida em que são elementos de justificação das democracias existentes e também são guias para o incremento de uma democracia mais aprofundada (Nino, 2003: 180).

Entretanto, é justamente na constatação de Nino de que muitas vezes setores da sociedade são impedidos de serem ouvidos que se verificam as interseções entre constitucionalismo e democracia. A democracia, como conquista e processo de tomada de decisões, insere o sujeito/povo nas discussões e deliberações, enquanto o constitucionalismo regula este processo, estabelecendo limites, padrões e até mesmo determinações, como a representação, por exemplo. No entanto, muitas vezes o constitucionalismo pode representar um freio à democracia. Outras vezes, o próprio procedimento democrático deixa de satisfazer direitos e exigências constitucionais.

 

3. O Procedimento Democrático-deliberativo e a Satisfação Prévia de Direitos Substantivos (ou Procedimentalismo com Substancialismo)

A qualidade epistêmica das leis democráticas varia de acordo com o grau no qual os processos de discussão coletiva e de tomada de decisão estão baseados. Quando essas condições não são satisfeitas, as leis se tornam débeis, passíveis de questionamento. Dessa forma, para Nino, o valor epistêmico de uma democracia requer o cumprimento de certas condições e pré-requisitos, quais sejam: a participação livre e igual no processo de discussão e de tomada de decisões; a proposição e a sua justificação; a ausência de minorias isoladas; e a existência de um marco emocional apropriado para a argumentação (Nino, 2003: 192). Alguns desses pré-requisitos podem ser considerados a base de uma declaração de direitos ou, então, considerados como direitos a priori ao processo democrático6 .

A natureza destes direitos, a priori, cria problemas significativos, já que os direitos sociais podem ser encarados como a extensão natural dos direitos individuais clássicos (Nino, 2005: 209). Nino reconhece que desde o lugar de onde escreve (América Latina) esses direitos são violados por ações ou omissões, cotidianamente. Dessa forma, a liberdade e a igualdade, que são pré-condições essenciais do processo democrático, são postas em risco. Vale dizer, as pessoas que sofrem privações materiais têm sua participação limitada e(ou) excluída do processo de discussão e tomada de decisões (Nino, 2003: 193). Por isso, é importante que a própria democracia satisfaça esses direitos a priori, o que fará com que o processo democrático tenha seu valor aumentado ou reduzido de acordo com a sua aproximação ou distanciamento das exigências de uma discussão ampla e aberta, com a participação de todos os potencialmente afetados pela decisão a ser tomada, com as melhores condições de liberdade e igualdade e com a estrita observância e necessidade de se justificarem as propostas por meio de princípios públicos e não de meros interesses particulares (Nino, 2003: 193; 2005: 210). Dessa forma, Nino tenta superar o conflito entre procedimentalismo e substancialismo, pois, para ele, os direitos fundamentais (que subjazem ao processo democrático-deliberativo) se situam no plano ontológico. A democracia deliberativa, por sua vez, se situa no plano epistemológico. Assim, não haveria conflito entre democracia deliberativa e direitos fundamentais, uma vez que pertencentes a planos diferentes (Nino, 2005: 208). No entanto, apesar da proposição de que os direitos fundamentais estão em um plano distinto do plano em que se encontra o processo democrático, ao estabelecer certos direitos como condição do próprio processo democrático-deliberativo (direitos a priori) esse conflito entre procedimentalismo e substancialismo parece não se resolver, mas, ao contrário, ressurgir 7 .

Essa tentativa de instituir um conjunto de direitos básicos e extraí-los em maior ou menor grau do processo democrático é típica do liberalismo que tenta conciliar o ideal democrático com a ideia de direitos substantivos básicos. Assim como Nino, John Rawls adota essa estratégia ao diferenciar as condições de justiça (constitutional essentials) e o âmbito da democracia (Rawls, 2000: 221-223/272-281); Ronald Dworkin concebe certos direitos como trunfos (e, portanto, prévios ao processo democrático) (Dworkin, 1984: 152). Jürgen Habermas também o faz, ao estabelecer uma compreensão indissociável entre autonomia pública e autonomia privada, entendendo-as como indissociáveis e co-originais (Habermas, 1997: 139).

O que se percebe é que essa tensão é permanente, não se resolve e, ao final, conforme José Luis Martí, tem-se um substancialismo fraco, que dê uma pequena preferência à garantia de direitos substantivos8, ou um procedimentalismo fraco, que dê uma pequena preferência ao procedimento democrático9 (Martí, 2006: 155-156).

Ora, se a democracia deliberativa, tal como vem sendo apresentada e defendida neste trabalho, se justifica como epistêmica, é porque ela é concebida como o procedimento mais adequado e confiável para se chegar a uma decisão coletiva imparcial e legítima. E ela assim o é porque é o método que melhor trata a todos os cidadãos e envolvidos no processo de discussão e decisão com igual respeito e consideração (igual autonomia política e igual dignidade). Mas, se ao fim e ao cabo ela pressupõe uma justificação substantiva (o tratamento valorativo e igualitário que ela supõe e confere aos indivíduos), pode-se concluir que não há justificação epistêmica da democracia deliberativa sem uma justificação substantiva anterior que a respalde. No entanto, essa pressuposição substantiva não subtrai da democracia deliberativa o seu caráter epistêmico, procedimental (a sua confiabilidade como melhor procedimento democrático de tomada de decisões) e, tampouco, o faz supérfluo ou desnecessário. Ao contrário, o caráter epistêmico da democracia deliberativa é importante porque, ainda que pressuponha um fundamento substantivo, é o procedimento democrático de decisão que mais abre espaço à participação coletiva, à incorporação, antes e depois do voto, de momentos e espaços para a argumentação pública sobre as razões que justificam a adoção de uma decisão (ou sua revisão, uma vez tomada tal decisão). Além do mais, uma justificação meramente substantiva careceria dos benefícios que a justificação epistêmica produz - um procedimento amplo, imparcial e que melhor desenvolva justamente esses princípios substantivos.

Dessa forma, se direitos substantivos são adotados como fundamento intrínseco ao processo democrático, então se pode concluir que não apenas as justificações epistêmicas e substanciais se pressupõem na fundamentação da democracia deliberativa, mas que . não há justificação epistêmica sem uma justificação substancial10. Ademais, é difícil conceber uma teoria democrática e uma teoria da decisão (e, ainda mais, uma teoria democrática da decisão) que não esteja, de alguma forma, vinculada a uma fundamentação substantiva. E isso não impede a defesa da democracia deliberativa, como teoria e prática (procedimental) da busca por decisões legítimas e democráticas.

Todo esse raciocínio e conclusão são importantes porque assim se deixa clara a posição aqui adotada. Vale dizer, dá-se preferência à concepção deliberativa de democracia e, consequentemente, à sua fundamentação e exigências procedimentais, mesmo que tal fundamentação e exigências estejam vinculadas a considerações substantivas11.

Nino, apesar de defender a satisfação prévia de direitos substantivos e encontrar o limite do processo democrático-deliberativo na autonomia do sujeito, entende ser possível defender uma concepção que outorgue uma pequena prioridade ao procedimento democrático. Isso porque Nino deixa claro que se for necessário satisfazer todas as pré-condições do processo democrático-deliberativo para outorgar valor epistêmico a esse processo, restariam muito poucas questões a serem definidas pela democracia. Ou seja, não se pode exacerbar o fortalecimento das pré-condições a tal ponto que a sua ação diga respeito somente a questões do próprio processo, a questões de coordenação, pois o conhecimento dos direitos, a priori, seria inacessível se o procedimento fosse epistemologicamente estéril (Nino, 2003: 193). Daí a proposição de Nino de que o valor epistêmico da democracia não se outorga segundo o critério de tudo ou nada, mas, sim, de forma gradual. Vale dizer, a falta de satisfação completa das condições a priori pode privar o processo democrático de algum grau de valor, mas não, necessariamente, quita a sua validade total (Nino, 2003: 194). E é justamente essa justificação epistemológica da democracia, a qual tem por função definir o conteúdo dos direitos e o valor do próprio processo democrático, que faz de Nino um autor que possibilita a aposta no procedimento democrático-deliberativo.

Nesse mesmo sentido, Roberto Gargarella, ao fazer uma leitura comparativa entre as propostas de John Rawls (1993), Bruce Ackerman (1984; 1991), Samuel Freeman (1990: 122-157; 1992: 3-42) e Jeremy Waldron (1999), deixa transparecer que o compromisso com o igual status conferido aos sujeitos é, justamente, reafirmado pelo processo democrático (Gargarella, 2005). Ou seja, é porque os sujeitos são considerados iguais que o debate e a decisão democráticos são possíveis. Tal afirmação não rechaça, de forma alguma, um compromisso forte com os direitos, mas, ao contrário, é a expressão desse compromisso robusto (Gargarella, 2005: 12). E é justamente porque há um dissenso sobre o significado e conteúdo desses direitos que o debate democrático é imprescindível, pois somente por meio dele se poderá estabelecer o valor e o alcance desses direitos (Gargarella, 2005: 13).

Autores como Rawls ou Freeman ainda poderiam alegar que o apelo a procedimentos majoritários, sob condições em que o entendimento público sobre os requisitos da soberania democrática encontra-se enfraquecido ou em conflito, levaria a um resultado fraco, débil e vacilante. Entretanto, Gargarella mostra que se autores como Rawls ou Freeman querem que suas posições sejam aceitas deveriam, antes, comprovar que, de fato, os déficits que imputam aos procedimentos majoritários, e em especial o debate produzido no âmbito legislativo, não serão reproduzidos no âmbito do Poder Judiciário. Pois, também os Tribunais tomam decisões de forma dividida, fracionada, por intermédio de maiorias frágeis e dissidentes. Além disso, os argumentos e justificativas do Poder Judiciário são (e devem ser) sempre mais limitados. Os juízes e debates jurisdicionais, ao contrário dos debates populares e legislativos, não podem recorrer a concepções amplas de bem, não podem fundamentar suas decisões com argumentos que não pertençam à esfera pública (Gargarella, 2005:13) Aos juízes compete um discurso de aplicação e não de justificação (Günther, 2004: 361-413).

Diante disso, surgem muitas questões que suscitam uma postura crítica ante o Poder Judiciário: por que razões pensar que o Poder Judiciário vá, de fato, aceitar as restrições argumentativas que a teoria político-jurídica (defendida pelos próprios autores substantivos que defendem um maior protagonismo dos juízes) lhes impõe? Por que acreditar que os juízes irão, efetivamente, afirmar e não negar o igual status de cada cidadão? Por isso, Gargarella propõe uma postura crítica diante de qualquer proposta destinada a delegar a autoridade interpretativa do povo, dos cidadãos, aos juízes (Gargarella, 2005: 14).

Ainda que haja um dissenso sobre o significado e conteúdo dos direitos, pode-se e deve-se alcançar um acordo sobre o procedimento que irá definir o valor e o alcance desses direitos. Dessa forma, pode-se encarar o procedimento democrático como condição necessária da legitimidade da decisão, enquanto os direitos que o fundamentam, a satisfação desses direitos, irão justamente definir o valor epistêmico (e, também, a consequente legitimidade) do processo democrático-deliberativo (Martí, 2006: 169). É precisamente porque há uma discordância entre os sujeitos que, falar, discutir e deliberar são ações necessárias.

A única forma de se resolverem os problemas de coexistência, as diferenças sobre o conteúdo dos direitos e do próprio processo democrático de tomada de decisão é mediante o diálogo mútuo sobre referidos problemas (Martí, 2006: 172). Ou seja, é porque há uma pluralidade inegável, diferenças tão profundas (quiçá, insuperáveis) que é necessário dialogar, discutir, comunicar. De tal forma que, ao fim e ao cabo, vale a máxima do paradoxo da linguagem: "nós nos comunicamos porque não nos comunicamos" (Neto, 2001: 11-20). É o diálogo, a discussão e a deliberação que possibilitam essa comunicação que, devido às profundas diferenças existentes, em outro contexto não aconteceria. Desta maneira, deve-se sempre encarar o processo democrático como um procedimento contínuo (ongoing). O processo nunca se detém, novas razões sempre podem ser analisadas (a favor ou contra a decisão tomada) de tal forma que o resultado do processo não é nunca, necessariamente, permanente. O consenso é, assim, um consenso que se sabe provisório e a decisão é uma decisão que se sabe sempre precária.

Essa difícil relação entre substância e procedimento, pré-condições (direitos a priori) e deliberação democrática não precisa, necessariamente, ser dissolvida, resolvida, pois essa tensão não tira do processo democrático-deliberativo seu valor e sua importância. Mais do que satisfazer todos os princípios e as pré-condições da democracia (o que seria muito difícil e demasiado ideal) para somente após se iniciar o processo, há que se reconhecer, de saída, um patamar mínimo que por meio do processo (ou por causa dele) se satisfaz. Vale dizer, deve-se buscar um equilíbrio gradual que permita a satisfação progressiva do ideal democrático, uma vez que as restrições impostas pelas pré-condições se atenuam na medida em que o próprio processo democrático, paulatinamente, se refere a elas (Martí, 2006: 122)12.

 

4. Práticas da Democracia Deliberativa: minipúblicos, orçamento participativo e conselhos

O processo democrático-deliberativo com valor epistêmico não é ideal, senão real e, evidentemente, deve se preocupar com a complexa realidade fática e social contemporânea (Nino, 2003: 183). As situações enfrentadas pelas sociedades e governos atuais são bastante difíceis devido, por exemplo, às diferenças abismais existentes entre os cidadãos e o tempo quase inexistente que estes dedicam à defesa de seus interesses na esfera pública. Somado a isso, as exigências técnicas de conhecimento para a deliberação de certos temas, a inevitável formação de grupos orientados à defesa de seus próprios interesses não somente são situações inevitáveis, como também dificultam o processo de deliberação e decisão. Mesmo assim, Nino pensa sua teoria preocupada com complexidades das sociedades contemporâneas, em especial, com as dificuldades dos países latinoamericanos (Nino, 2003: 183). E é a partir desse pressuposto e da fundamentação teórica acima esboçada que se pode pensar em práticas políticas democráticas e deliberativas.

O repensar dessas práticas democráticas, em geral, se concentra sobre as instituições, a partir de sugestões de novos arranjos institucionais e de poder (como, por exemplo, uma nova estrutura legislativa ou o controle do Poder Judiciário etc.), quase sempre baseadas em teorias abrangentes e complexas (Habermas, 1997). No entanto, sem ignorar ou menosprezar essas discussões sobre a (re) estruturação da esfera pública, pode-se chamar atenção, concomitantemente, para projetos e práticas menores, porém também efetivos nesse repensar. Esses projetos e práticas consistem em reunir os cidadãos, sejam poucos, sejam muitos, para deliberações públicas organizadas de maneira autoconsciente, o que Archon Fung chama de minipúblicos.

Esses minipúblicos podem funcionar de diversas maneiras: reuniões (regionais, municipais etc.), associações, grupos reformistas etc. Os minipúblicos são importantes porque eles representam, atualmente, os esforços construtivos mais promissores para o engajamento cívico e a deliberação pública na política contemporânea. Ademais, tendo em vista a enorme pluralidade e diversidade política, econômica, social, cultural etc., fortalecer e aprofundar diversos minipúblicos pode ser mais fácil e eficaz do que modificar e aprimorar um grande público (Fung, 2004: 174)13. Até mesmo para se repensar novos arranjos institucionais que incentivem e promovam uma participação pública, deliberativa, maior e mais efetiva, é útil saber como funciona a deliberação em âmbitos menores, mais restritos e específicos. Essa prática é importante porque ela traz também consigo e inclui em suas discussões e propostas, a responsabilidade pública, justiça social, administração efetiva e mobilização popular. Os minipúblicos contribuem, assim, para o projeto democrático, para o revigoramento da esfera pública, modelando o ideal que se quer alcançar e aprimorando a qualidade da participação e da deliberação públicas (Fung, 2004: 175).

Segundo Archon Fung, a primeira escolha a ser feita na formação de um minipúblico é estabelecer sua função. Responder ao que se presta um minipúblico já revela quais contornos esse espaço irá assumir. Pode-se entender o minipúblico como "fórum educativo" (Fung, 2004: 176), preocupado em criar condições quase ideais de diálogo. Assim, os cidadãos formariam, articulariam e refinariam opiniões em igual condição, o que qualificaria a opinião pública. As enquetes deliberativas também podem ser situadas no âmbito do fórum educativo e já se mostraram como instrumento hábil a estimular discussões, incrementando e transformando as opiniões dos participantes (Fung, 2004: 191).

Além da função de aperfeiçoar opiniões, os minipúblicos podem desenvolver relações com os responsáveis pela tomada de decisão, de maneira que os consensos obtidos nesses minipúblicos sirvam de informação ao Estado. Este segundo tipo de minipúblico é chamado de "conselho consultivo participativo" e busca possibilitar participação popular e conferir legitimidade social às decisões governamentais (Fung, 2004: 176). Há também os minipúblicos criados como "cooperação para a resolução participativa de um problema", cujo pressuposto é um relacionamento contínuo entre cidadãos e agentes políticos que desejam resolver um mesmo problema (Fung, 2004: 177). O Estado apresenta suas propostas para a resolução dos problemas enquanto os cidadãos contribuem na proposição de novas soluções para problemas coletivos e na responsabilização do Estado por suas ações (accountability social). Um quarto padrão de minipúblico se forma pela "governança participativa", cujo objetivo é inserir a população na formulação das políticas públicas, tal como ocorre, por exemplo, com o orçamento participativo praticado em alguns municípios brasileiros (Fung, 2004: 177)14.

Estabelecida a função do minipúblico, segundo Archon Fung, há que se selecionar seus participantes. O mecanismo mais comum é a autosseleção voluntária. Ou seja, participam aqueles que assim desejaram. A vontade de participar, entretanto, esbarra na disposição de tempo, interesse e recursos. Essas condições e possibilidades comprometem de saída, porém, a igual representação, restringindo, assim, o espaço público aos cidadãos que em geral possuem um status mais elevado (pois dispõem de mais tempo e condições econômicas e, assim, têm mais possibilidade de participação). Esse desequilíbrio pode ser contornado por meio de ações afirmativas, como maior divulgação das reuniões em comunidades que seriam sub-representadas e disposição de recursos que facilitem a participação desses cidadãos, como, por exemplo, a utilização de equipamentos de informática que auxiliem as opiniões e posições dessas pessoas.

Após estabelecer a função e os participantes do minipúblico, é preciso estabelecer qual assunto será apreciado pelo debate público. Qualquer restrição já de antemão configuraria indevida restrição às liberdades de expressão e política. Matérias que demandam conhecimentos técnicos muito especializados prejudicam a discussão e a deliberação, sobretudo se não há a participação de intermediadores que solucionem as dúvidas dos cidadãos. Por isso, em geral devem ser escolhidas matérias de interesse público, que beneficiarão todos os potencialmente afetados pela decisão.

As decisões devem ser tomadas após a veiculação dos diferentes posicionamentos e deverão pautar-se pela força do melhor argumento (Fung, 2004: 179). Os minipúblicos devem gerar discussão, de modo que as posições apresentadas sejam ponderadas e refinadas. Desse processo podem resultar importantes benefícios, como o aprendizado público e a responsabilidade estatal (accountability ) (Fung, 2004: 182). Aquele diz respeito à aquisição de conhecimento sobre estratégias e práticas políticas que poderão ser empregadas. Já a accountability atua como instrumento de pressão sobre os representantes, aumentando a transparência e legitimidade das decisões.

A frequência das reuniões deve ser ditada pelo próprio minipúblico. As reuniões voltadas à participação e decisão vinculativas deveriam ocorrer com maior frequência, visto que suas decisões exigem constante atualização. Mas a frequência das reuniões também está ligada à importância dada a elas pelo minipúblico e o efeito que elas possuem sobre a ação a ser tomada. Esta afirmação encontra respaldo quando analisadas as diferentes experiências de Orçamento Participativo, como em Porto Alegre e Recife. Na capital gaúcha, verificou-se o aumento da participação popular nas assembleias porque os cidadãos avaliavam que o dispêndio de tempo e esforço valiam a pena. A proliferação de Organizações encorajou a população a se empenhar em negociações e deliberações face a face (Wampler, 2004: 219). Por outro lado, em Recife, que também adotou o Orçamento Participativo, as taxas de participação permaneceram baixas e uma das razões foi a pequena ênfase depositada nas reuniões de discussão e deliberação (Wampler, 2004: 225)15.

Para Fung, um minipúblico é empoderado quando as deliberações tomadas por ele influenciam as decisões políticas (Fung, 2004: 182). Um minipúblico atuante, que influi sobe as decisões políticas contribui para um governo democrático ao estabelecer a ponte entre os anseios da população (mediante a deliberação pública) e ações estatais.

Um exemplo de minipúblico atuante e empoderado pode ser encontrado nos grupos que se formam para discutir e deliberar sobre o orçamento participativo. O orçamento participativo, assim, amplia a responsabilidade estatal e se mostra como um bom mecanismo de controle social sobre a alocação e aplicação das verbas públicas (Fung, 2004: 221).

O orçamento participativo foi adotado pelo município de Porto Alegre a partir de 1989 e, assim, subordinou a alocação de significativa parcela do orçamento municipal à tomada coletiva de decisões, combinando mecanismos diretos e representativos (Fung, 2004:199). Foram realizadas assembleias nos dezesseis distritos de Porto Alegre, das quais participaram residentes e integrantes do governo municipal. As discussões sobre o orçamento participativo ocorrem em duas rodadas de assembleias. Na primeira, o governo oferece aos cidadãos participantes informações técnicas e financeiras que servirão de base às decisões (Fung, 2004: 223). Líderes comunitários procuram convencer os demais sobre a necessidade de alocar recursos em áreas que, em geral, são de interesse da maior parte da população. O que caracteriza, portanto, o orçamento participativo é justamente promoção de uma política de deliberação pública e de uma cultura de direitos.

Na segunda rodada de reuniões, após a definição de prioridades gerais do município, os participantes se reúnem em seus bairros para selecionar os projetos específicos que serão incluídos na agenda de obras públicas (Wampler, 2004: 222-223). Dessas reuniões produzse em um único orçamento municipal, ponderado e detalhado sobre cada uma das preferências dos distritos. (Fung, 2004: 199). Em Porto Alegre, o orçamento participativo engloba todo o montante do orçamento cuja aplicação é discricionária - excluídos gastos com pessoal, dívidas e manutenção (Wampler, 2004: 231). O que se vê é que o orçamento participativo, como minipúblico, além de estabelecer a alocação de recursos públicos segundo as preferências dos cidadãos, também exerce a função de monitoramento, pois as assembleias revisam a extensão e a qualidade da implementação das políticas públicas constantes no orçamento do ano anterior (Fung, 2004: 182).

A lógica do minipúblico e do orçamento participativo incita a participação das camadas populares de baixo status, de modo que estas são sobre-representadas nas reuniões do Orçamento Participativo. (Fung, 2004: 199). Os recursos são alocados para cada região de Porto Alegre conforme: i) população; ii) perfil socioeconômico; e iii) infraestrutura existente. Isso garante que regiões mais populosas, carentes e precárias recebam maior parcela do orçamento público, mas não determina a maneira como tais recursos serão aplicados (Wampler, 2004: 222).

A experiência do orçamento participativo destacou-se por aumentar o nível de responsabilidade (accountability) oficial, diminuindo o desvio de verbas e ainda proporcionando aumento nos rendimentos fiscais. Resultado disso é que o governo, junto da participação popular, revestiu-se de maior legitimidade, promovendo mais justiça e eficácia no setor de obras públicas (Fung, 2004: 200)

O Orçamento Participativo de Porto Alegre, iniciado em 1989, caracterizou-se, assim, pela participação popular, deliberações e negociações públicas, bem como pelas distribuições de maiores recursos às regiões em desvantagem (Wampler, 2004: 211). Seu desenho institucional reflete as estratégias de seus maiores defensores: resoluções imediatas pra problemas sociais e maior participação popular na tomada de decisões públicas que envolvem grandes parcelas da população.

No Brasil, somente entre 1997 e 2000, foram conduzidas 104 experiências de orçamento participativo (Vitale, 2004: 245). Destas, 53 foram conduzidas em administrações do PT, 13 do PSDB, 11 do PSB, 9 do PMDB, 8 do PDT, 3 do PPS, 3 do PV, 2 do PTB e 2 do PFL. Em termos regionais, foram 47 no Sudeste, 39 no Sul, 14 no Nordeste, 03 no Norte e apenas 01 no Centro-Oeste. A comparação entre as experiências de orçamento participativo nos municípios de Porto Alegre (RS), Belo Horizonte (MG), Belém (PA), Campina Grande (PB), Itapecerica da Serra (SP) e Medianeira (PR), mostram a influência dos fatores tempo e maturidade sobre os resultados obtidos (Vitale, 2004: 243).

A dimensão direta de participação, complementar ao sistema representativo, foi mais exitosa em cidades de maior dimensão: justamente nas cidades cuja população ultrapassa 1 milhão de habitantes (Vitale, 2004:247). Outro aspecto fundamental está ligado à vontade política do Poder Executivo em instituir e implementar o orçamento participativo. Os altos índices de cumprimento das decisões fruto do orçamento participativo em Porto Alegre e Belo Horizonte, por exemplo, podem ser atribuídos à conjugação de dois fatores: o compromisso da Prefeitura em cumprir as prioridades deliberadas e a arrecadação suficiente de verbas para viabilizar os investimentos (Vitale, 2004: 251). Tempo e continuidade também são fatores determinantes para o sucesso do programa de orçamento participativo. Porto Alegre e Belo Horizonte, por exemplo, utilizam o orçamento participativo há mais de dez anos - este, desde 1993 e aquele, desde 1989 (Vitale, 2004: 252). Em ambos os municípios, são crescentes os níveis de participação e sofisticação, voltadas a superar limites de regionalização e incluir deliberações temáticas. É certo que dificuldades são encontradas durante os primeiros anos de implementação do orçamento participativo, os quais residem, principalmente, na criação de uma nova cultura de gestão da coisa pública e no incentivo ao envolvimento e participação dos cidadãos. Passado algum tempo, são colhidos resultados mais consistentes, seja na democratização formal e material do procedimento participativo, seja na distribuição dos recursos (Vitale, 2004: 252).

Além do orçamento participativo, outro canal de participação política direta sobre as políticas públicas se dá por intermédio dos Conselhos estaduais e municipais especializados. É pela via desses Conselhos que a população consegue expressar suas necessidades, requisições, reclamações, influenciar a tomada de decisões e também exercer o controle social sobre a elaboração e realização de políticas públicas.

Nesse sentido, o Conselho Municipal de Saúde de Curitiba é um exemplo da possibilidade de participação política (democrático-deliberativa) da população do município de Curitiba em temas relativos à saúde. Essa participação tem um impacto direto sobre as políticas públicas de saúde e, assim, também sobre a própria população do município16.

A competência legal desse tipo de Conselho é supervisionar a gestão governamental do Sistema Único de Saúde (SUS) por meio 86 16 de instrumentos deliberativos e fiscalizatórios. O Conselho Municipal de Saúde, basicamente, se faz presente na formulação e fiscalização das políticas públicas a serem executadas pelo SUS no município. Porém, os instrumentos de controle de que dispõe o Conselho são poucos e informais17. Apesar disso, a fiscalização não deixa de ser realizada e é exercida de outros modos - principalmente pela pressão feita sobre o governo na condição de instituição representante do interesse público18. Essa prática de fiscalização é possível e é favorecida, sobretudo, mediante a participação política equilibrada entre os segmentos que compõem o Conselho (membros do governo municipal, prestadores de serviços de saúde, cidadãos), a configuração de uma arena politicamente ativa e uma agenda voltada a vistorias e deliberações de teor impositivo (Fuks, 2004: 107).

É interessante ressaltar que nas discussões e decisões plenárias do Conselho, em geral são os usuários que assumem a liderança nas intervenções, enquanto prestadores de serviço raramente emitem opiniões. Nesse processo de discussão há também a figura do visitante - atores da sociedade civil que não integram o Conselho, mas que participam das discussões. Há, ainda, a possibilidade de outras participações externas, tais como as realizadas por agentes do governo, que, em geral, se apresentam na condição de "quadro de apoio" para apresentar programas governamentais, esclarecimentos e pareceres (Fuks, 2004:30). Essa participação do visitante e do quadro de apoio (que não se confundem com o "quadro técnico" que compõe o Conselho) apenas mostra como o Conselho se configura como um espaço permeável à ampla participação em todos os seus momentos de tomada de decisão.

Todavia, não raro, o ideal de participação política equilibrada é frustrado devido a diferenças socioeconômicas (como renda e escolaridade) (Fuks, 2004: 107). A ocorrência de desigualdades profundas prejudica, evidentemente, o desempenho das funções fiscalizadoras, pois impedem a veiculação de todos os interesses, sobretudo os dos sujeitos em situações de maior carência, no espaço público. A existência de desigualdades agudas reduz a participação popular à figura dos conselheiros, os quais muitas vezes não se interessem pelo exercício do controle social e necessidades de setores vulneráveis da população.

Apesar disso, é necessário destacar que nas discussões e decisões do Conselho há, em geral, a polarização entre usuários, de um lado, e agentes governamentais e gestores, de outro. E tal polarização tem se mostrado positiva e contribuído para o efetivo exercício do controle social, possibilitando que ideias e interesses (muitas vezes) divergentes sejam expostos, discutidos e decididos de forma ampla, coletiva e democrática.

Ao final, apesar da falta de instrumentos efetivos de fiscalização e controle e a existência de desigualdades socioeconômicas entre os participantes, o Conselho tem se mostrado um espaço aberto, plural, pelo qual é possível que a população tome parte direta nas discussões, decisões e controle social de políticas públicas de saúde no município.

 

5. Considerações Finais

O que essas experiências práticas de discussão e decisão coletivas mostram é que, de fato, é possível estabelecer um processo democrático-deliberativo e, por vezes, um processo democrático direto, sem representação ou intermediações. São experiências, práticas, de minipúblicos, que têm influência direta sobre planejamentos e políticas públicas. É evidente que essas experiências e práticas possuem limitações, que o processo democrático-deliberativo não é isento de falhas. Não se trata de idealizar a democracia deliberativa. Mas, ao contrário, mostrar que as limitações existentes não tiram dessas práticas o seu valor. E é pelo estabelecimento de uma prática adequada, efetivamente democrática, que se deve lutar. Se essas experiências, esses minipúblicos mostram as limitações da prática democráticodeliberativa, é, no entanto, com fundamento e por meio da própria prática democrática e deliberativa que se deverá recuperar, fortalecer e revigorar esses importantes espaços.

Talvez seja justamente nesse recuperar da prática democrática que o Poder Judiciário tenha um importante papel a cumprir. Não no sentido de ditar as regras do jogo democrático, pois a ele não cabe esse papel, mas sim, no sentido de fazer tais regras serem respeitadas. E se o Poder Judiciário tem algum papel a cumprir (e, certamente, tem) na tarefa de garantir e respeitar a democracia, também a teoria da democracia, a democracia deliberativa, tem um papel a cumprir sobre a prática jurisdicional.

 

Notas al pie

1 Vale observar que essa diferenciação que Nino faz de sua teoria com a teoria de Habermas ao atribuirlhe as teses ontológica e epistemológica é passível de refutação. Isso porque é possível que, ao contrário do que afirma Nino, Habermas talvez não aceitasse integralmente as teses que Nino lhe atribui e, ao contrário, possivelmente até se aproximasse mais das teses que Nino elabora e estabelece para a sua própria teoria. Para uma reflexão crítica e aprofundada sobre as semelhanças e diferenças entre as teorias de Nino e Habermas vide: (Oquendo, 2008).

2 Sobre a objeção de consciência vide: (Rawls, 2008: 458-462), (Dworkin, 2007: 315-341), (Nino, 2007: 400-411).

3 Segundo Gargarella, "os bons cidadãos não são os que se convertem ou atuam como árbitro, senão aqueles que podem atuar como são - partes de um todo - sendo, por sua vez, respeitosos das regras que finalmente se convertem em lei para todos.". (Gargarella, 2009: 265).

4 Vale ressaltar que Gargarella ao tratar da democracia deliberativa e das maneiras de argumentar nesta seara, não ignora o cenário conflituoso e tampouco idealiza o sujeito. Ao contrário, o concebe como indivíduo situado e partícipe de certa comunidade, com todas as características que daí possa advir e adquirir. (Gargarella, 2009).

5 "Habermas parte do pressuposto de que sujeitos capazes de linguagem e ação estabelecem práticas argumentativas através das quais se asseguram intersubjetivamente e compartilham de um contexto comum, de um ‘mundo da vida'. O objetivo da ética discursiva habermasiana é explicar como é possível, frente a um conflito normativo, a obtenção de um acordo racionalmente motivado. Por isso, a ética discursiva recorre ao modelo de um amplo e irrestrito diálogo, no qual todos os participantes têm igual acesso e onde prevalece a força do melhor argumento. Este modelo Habermas designa como situação ideal de fala e impõe uma série de condições: não limitação, ou seja, ausência de impedimentos à participação; não violência, inexistência de coações externas ou pressões internas; seriedade, todos os participantes devem ter como objetivo a busca cooperativa de um acordo" (Citadino, 2009: 110-111).

6 "Hay derechos que son condición para que el procedimiento democrático de discusión y decisión tenga algún valor epistémico. Si los participantes en el procedimiento no se pueden expresar libremente y en relativa igualdad de condiciones, si su vida o seguridad se pone en peligro con la defensa de ciertas posiciones, si están sujetos a los intereses de los demás, el procedimiento de intercambio de propuestas y decisión mayoritaria carece de todo valor epistémico. Esto nos permite distinguir ciertos derechos como derechos a priori". (Nino, 2005: 208-209). "El valor epistémico de una democracia requiere que se cumpla con ciertos prerrequisitos sin los cuales no existirá una razón para diferenciar los resultados de la democracia. Estas condiciones incluyen: la participación libre e igual en el proceso de discusión y toma de decisiones; la orientación de la comunicación en el sentido de la justificación; la ausencia de minorías congeladas y aisladas, y la existencia de un marco emocional apropiado para la argumentación." Vide também: (Nino, 2003: 192). Em fim, esses direitos a priori, para Nino, podem ser associados aos juízos a priori de Kant, cujo conhecimento se dá por meio de um método transcendental de investigação das pré-condições do conhecimento empírico. Estes direitos são reconhecidos por serem pré-condições para o conhecimento do resto da moralidade intersubjetiva, incluindo outros direito. Vale ressaltar aqui também a importante e necessária crítica do Comunitarismo e do Republicanismo, que vêem as virtudes cívicas como condições necessárias para o procedimento democrático.

7 Nesse sentido, José Luis Martí mostra como essa tensão representa um conflito circular. Vide (Martí, 2006: 119).

8 Como John Rawls (2008) e Ronald Dworkin (2007).

9 Como Jürgen Habermas (1997), Joshua Cohen (1989) ou Jeremy Waldron (1999).

10 Para uma leitura crítica e aprofundada sobre essa relação entre justificação epistêmica e justificação substantiva da democracia deliberativa vide: (Gargarella, 2005), (Martí, 2006: 177-214), (Bayón, 2009: 198-225), (Moreso, 2009: 315-320).

11 Vale ressaltar aqui a diferença existente entre os princípios estruturais da democracia, compreendidos como as propriedades características da democracia (liberdade dos participantes, igualdade formal entre os sujeitos, participação, argumentação etc.) e os direitos a priori, compreendidos como pré-condições do processo democrático. Os princípios estruturais da democracia são as propriedades formais do processo democrático, constituem e definem a democracia. Os direitos a priori, ao contrário, são as condições que devem ser garantidas, alcançadas para que a democracia seja possível, são suas condições de possibilidade. E, dessa forma, muitas vezes, serão também condições necessárias de um ou mais princípios estruturais da democracia. Essa distinção é importante para se evitar o comum equívoco de se considerar autores defensores do processo democrático majoritário (e, portanto, desconfiados e refratários à jurisdição constitucional) como sujeitos despreocupados com a proteção de direitos necessários ao processo democrático. Ao contrário, e é o que aqui se defende, é plenamente possível defender e adotar uma postura que leve em consideração as condições substantivas necessárias para a existência da democracia (satisfação e garantia de direitos a priori) e, no entanto, na dimensão do processo democrático de decisão, defender e adotar uma postura majoritária, que respeite a regra da maioria (sempre cuidando com os direitos da minoria). Sobre essa distinção entre os princípios estruturais do processo democrático e os direitos compreendidos como condição do processo democrático, bem como a possibilidade de se defender uma postura substancial relativa às garantias das pré-condições para o processo democrático e uma postura majoritária relativa ao processo democrático de decisão vide: (Martí, 2006: 88-108). Vide ainda: (Silva, 2008: 216-217).

12 É importante ressalvar, no entanto, que conceber o valor epistêmico, prático, da democracia deliberativa como algo gradual, e não de tudo ou nada, não é algo óbvio e fácil. A distinção entre o ideal e as condições de realização desse ideal não é sempre expressa, evidente. Muitas vezes, estar perto de um ideal a ser alcançado não significa necessariamente uma boa situação ou um bom resultado. Por vezes, uma situação de completa ausência desse ideal a ser atingido é o que gera consciência e ação para alterar tal situação. Num contexto de relativa desigualdade, por exemplo, talvez fosse muito mais difícil lograr alterações estruturais na política democrática do que num contexto de completa desigualdade, onde as dinâmicas ativadoras da percepção da desigualdade possivelmente funcionassem muito mais vigorosamente. Para uma leitura crítica do valor gradual da democracia deliberativa, vide: (Ovejero, 2009: 323-332).

13 Com minipúblicos, Archon Fung busca aprimorar a ideia de Robert Dahl de um minipopulus e a ideia de Jack Nagel de Assembleias Deliberativas de Base Aleatória. A noção de minipúblicos de Fung é mais profunda porque busca congregar as ideias anteriores, tornando sua proposta de minipúblicos mais inclusiva e ligada à sociedade civil e ao Estado.

14 Um exemplo desse tipo de situação em que condições de tempo e socioeconômicas privilegiam cidadão mais abastados se deu com a discussão sobre o Plano de Saúde do Oregon, nos Estados Unidos. A participação popular contou majoritariamente com o envolvimento de cidadãos tipicamente ricos e altamente instruídos, visto que a participação era voluntária e poucos esforços foram direcionados para obter adesão em comunidades menos favorecidas que não dispunham de tanto tempo ou recursos financeiros para poder participar.

15 Entende-se que "efeitos demonstração" positivos, baseados na deliberação, negociação e implementação respondem pelo aumento de participação como visto em Porto Alegre e Belo Horizonte. Contrariamente, baixos resultados em Recife não produziram o "efeito demonstração" necessário para alavancar o aumento da participação de cidadãos nas reuniões do OP.

16 Para esta análise sobre os Conselhos estaduais e municipais e, em especial, sobre o Conselho Municipal de Saúde de Curitiba, foi utilizado o estudo teórico e prático organizado e realizado por Renato M. Perissinoto, Nelson Rosário de Souza e Mário Fuks. Vide: (Fuks - Perissinoto - Souza, 2004).

17 Dessa forma, não havendo muitas possibilidades de se promoverem sanções efetivas, resta aos Conselhos recorrer a outras instituições e órgãos (em geral, o Poder Judiciário) para que estes tomem as providências adequadas.

18 (Schevisbiski - Sales - Fuks, 2004: 106). Os Conselhos cumprem, neste caso, a função de "indutores de responsabilidade social".

 

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