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Memorias: Revista Digital de Historia y Arqueología desde el Caribe

versión On-line ISSN 1794-8886

memorias  no.32 Barranquilla mayo/ago. 2017

https://doi.org/10.14482/memor.32.10518 

http://dx.doi.org/10.14482/memor.32.10518

A escola de samba entre o umbral e a glória: Uma etnografía dos grupos de acesso de Manaus (AM) e um lado pouco conhecido das escolas de samba brasileiras

The samba school between the thresholá and the glory: An ethnography of the access groups of Manaus (AM) aná an anlmown siáe of the Brazilian samba schools

La escuela áe samba entre el umbral y la gloria: Una etnografía áe los grupos áe acceso áe Manaus (AM) y an lado poco conociáo áe las escuelas áe samba brasileñas.

Ricardo José Barbieri

Doutor em Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Autor do livro "Acadêmicos do Dendê quer brilhar na Sapucaí". Professor do Instituto de Artes da UERJ e colaborador do Centro de Referência do Carnaval. Foi colunista e comentarista de carnaval nos sites especializados OBatuque.com, SRZD e Carnavalesco, bem como nas Rádios Manchete e Arquibancada.

Citar como:

Barberi, R. J. (2017) Martín, A. (2017). A escola de samba entre o umbral e a glória: Uma etnografia dos grupos de acesso de Manaus (AM) e um lado pouco conhecido das escolas de samba brasileiras. Memorias: Revista Digital áe Arqueología e Historia áesáe el Caribe mayo-agosto), 230-262.

Recibiáo: 24 de noviembre de 2016.
Aprobaáo: 1 de agosto de 2017.


Resumo

As escolas de samba no carnaval brasileiro vão além das 12 conhecidas internacionalmente do Grupo Especial do Rio de Janeiro. O presente artigo propõe uma imersão no universo das escolas de samba ocupantes das últimas divisões do carnaval da cidade de Manaus, capital do Estado do Amazonas no norte do Brasil. Através desse olhar buscaremos o elementar das agremiações carnavalescas no limiar de sua existência. Consequentemente paralelos entre casos etnogra-fados no Rio de Janeiro servirão de apoio para reflexão ao caráter liminar no universo competitivo do carnaval.

Palavras-chave: Samba, Carnaval, Escolas de samba, Manaus, liminariáaáe


Abstract

The samba schools in the Brazilian carnival go beyond the 12 known interna-tionally of the Special Group of Rio de Janeiro. The present article proposes an immersion in the universe of the samba schools occupying the last divisions of the carnival of the city of Manaus, capital of the State of Amazonas in the north of Brazil. Through this look we will seek the elementary of the carnival associations at the threshold of their existence. Consequently, parallels between cases ethnographed in Rio de Janeiro will serve as a support of reflection to the liminal character in the competitive universe of carnival.

Keywords: Samba, Carnival, Schools of samba, Manaus, liminarity


Resumen

Las escuelas de samba en el carnaval brasileño van más allá de las doce conocidas internacionalmente del Grupo Especial de Río de Janeiro. El presente artículo propone una inmersión en el universo de las escuelas de samba ocupantes de las últimas divisiones del carnaval de la ciudad de Manaus, capital del Estado de Amazonas en el norte de Brasil. A través de esa mirada buscaremos el elemental de las agremiaciones carnavalescas en el umbral de su existencia. En consecuencia, paralelos entre casos etnografados en Río de Janeiro servirán de apoyo para reflexión al carácter liminar en el universo competitivo del carnaval.

Palabras clave: Escuelas de samba, Carnaval, Samba, Manaus, liminaridad


Na terça-feira antecedente ao carnaval, uma correria predomina na área de concentração da pista de desfiles de Manaus. Gritos de artistas estressados com o pouco tempo e os escassos recursos que têm. Os dirigentes das escolas respondem com mais cobranças e tornam-se indistintos dos operários da folia quando agoniados pelo pouco tempo restante para os desfiles resolvem botar a mão na massa, ficam sujos de graxa, ferro de solda na mão e óculos de proteção no rosto. Naquele momento os carros das escolas dos grupos de acesso de Manaus ainda estão tomando forma. O cheiro de cola mistura-se ao tíner, dentre outras químicas intoxicantes. Enquanto isso, a alguns metros dali as escolas da 1a divisão já finalizam seus carros alegóricos nos barracões. Não é possível vislumbrar significados de algumas daquelas alegorias ainda num formato vazado de aramado e ferro. Alguns ainda mantêm a calma declarando que "vai dar tempo" ou "estamos tranquilos". A verdade é que os três dias - a segunda, a terça e a quarta antecedentes ao carnaval - que antecedem os desfiles do Grupo de Acesso C, a última divisão das escolas de samba de Manaus, são de intensa movimentação na entrada da pista de desfiles, pois é lá, em cima da hora, que as alegorias são confeccionadas.

Os sambistas cariocas costumam reclamar de diversos fatores que minoram as escolas de samba de sua cidade. Ainda que o Rio de janeiro seja reconhecido como berço das escolas de samba, elas dependem de verbas públicas, de patrocínios ou do mecenato do jogo do bicho para viabilizar seus desfiles. Os sambistas cariocas se debatem com dilemas de uma festa que alcançou patamares de espetaculares em que o brilho do sucesso comercial ofusca quem trabalha para a construção do espetáculo. Uma série de problemas recorrentes no carnaval carioca atravessam também a vida das escolas de samba de Manaus, como os escritórios de samba, as disputas fraticidas internas pelo comando das escolas, a necessidade de se reinventar cotidianamente para estar na mídia além dos dias de folia.

Antes é preciso esclarecer, são 87 escolas de samba desfilando entre as atuais seis divisões do carnaval carioca. Apenas 12 delas desfilam na 1a divisão, o chamado Grupo Especial. Na cidade de Manaus, capital do estado do Amazonas no norte do Brasil, são 27 escolas de samba dividas hierarquicamente em quatro divisões.

No caso das escolas que não estão nos holofotes do Grupo Especial, da 1a divisão, das escolas de samba cariocas, tudo isso é mais pungente. Nos chamados Grupos de Acesso cariocas paira uma nuvem de incertezas que vão desde condições insalubres dos que criam as alegorias e fantasias para os desfiles até a básica necessidade de organizar um espaço de ensaios1.

Não esse o caso de uma metrópole como São Paulo ou alguma das cidades satélites do eixo Rio-São Paulo. Em Vitória (ES), por exemplo, as escolas de samba ganham cada vez mais visibilidade impulsionadas pela transmissão nacional de seu carnaval.2 Ou do carnaval fora de época de Uruguaiana (RS)3 que entra com muita força no circuito dos sambistas cariocas.

Aqui enfocaremos a experiência de ser uma escola de samba fora da divisão principal das escolas de samba de Manaus. Tais grupos, como vimos, se caracterizam pela mobilidade, pois a lógica competitiva impõe que uma escola sempre busque sair das divisões de acesso rumo à divisão principal. Nas divisões de acesso estão ou escolas em crise ou escolas em ascensão. Algumas são escolas recém-fundadas e esperando cumprir uma trajetória de sucesso até a iâ divisão; outras são escolas detentoras de títulos, grandes sambas, grandes carnavais, que permaneceram mesmo por longos períodos disputando títulos no grupo principal. Há, entretanto, aquelas que temem não conseguir realizar seu carnaval. São grupos que vivem entre a glória e a desgraça, entre nascer e morrer. Qual é a dinâmica de uma escola de samba pequena? Buscando justificar o interesse em seu funcionamento poderíamos encontrar a inspiração na busca da concepção elementar da religião por Emile Durkheim:

De onde se concluiu que, para descobrir a forma verdadeiramente original da vida religiosa, era necessário ir, através da análise, para além dessas religiões observáveis, decompôlas nos seus elementos comuns e fundamentais e procurar se entre esses últimos, não existe um do qual derivam os outros. (Durkheim, 1989, p. 80)

Com o enfoque das escolas dos grupos de acesso de Manaus, buscamos então verificar o que seria elementar para uma forma carnavalesca ser considerada uma escola de samba. Aquilo sem o que elas não existiriam, desde seu ativo florescimento em seu nascedouro até seu desaparecimento. Podemos encontrar isso nos grupos de acesso em Manaus. Seguiremos seu processo ritual anual: dos barracões para a avenida. No percurso nossa atenção se volta especialmente para as escolas da 4a divisão e a Presidente Vargas, escola que transita entre as diferentes divisões que compõem os grupos de acesso, em especial a 2a e 3a divisões e o Grupo Especial, a 1a divisão.

As dificuldades que predominam no cotidiano de uma escola do grupo de Acesso em Manaus obrigam a agremiação a buscar a construção de seu carnaval por meio de alianças feitas individualmente seja entre pessoas seja com outras agremiações carnavalescas. Quanto maiores as dificuldades enfrentadas por uma escola, mais explícitas serão as alianças que configuram uma rede colaborativa.

Já na Acadêmicos do Dendê deparei-me em diversos momentos com as trocas ou doações de material entre as escolas (Barbieri, 2012). Um chassi de carro alegórico, uma escultura, até mesmo fantasias inteiras eram doadas pelas escolas de grupos superiores na hierarquia para escolas de grupos inferiores. Escolas do mesmo grupo desenvolviam redes de colaboração, visando especialmente trabalhar em harmonia num espaço comum.4 Anteriormente já havia observado estreitos laços entre as escolas de samba relacionados à convivência em um mesmo espaço de preparação de alegorias5.

Nas escolas de samba cariocas, Eugênio Araújo (2008) constatou em sua pesquisa junto aos grupos de acesso a prática artística do reaproveitamento de materiais, que levava escolas de samba do grupo Especial a manter um galpão apenas para armazenagem de esculturas vendidas ou cedidas as escolas de samba dos Grupos de Acesso. Estas esculturas circulavam posteriormente entre as escolas numa dinâmica de transformação de significados das esculturas que podiam, por exemplo, representar em um contexto representar seres espaciais e em outros negros escravizados. Aqui alcançamos a ressignificação do desalento dos carnavalescos frente à efemeridade das alegorias conforme observado por Nilton Santos (2009), onde a carnavalesca Maria Augusta relata a dramaticidade da destruição de uma decoração em um baile de carnaval do Theatro Municipal, o posterior reaproveita-mento desse material em uma alegoria do carnaval da Acadêmicos do Salgueiro e a posterior destruição da alegoria ao final do desfile (Santos, 2009, pp. 225-226).

A formação de redes de colaboração ocorre entre as escolas de Manaus. Atualmente as escolas da 1a divisão de Manaus ocupam um conjunto de galpões construídos especialmente para a confecção dos carnavais das escolas locais, conjunto chamado de Morada do Samba. Ao lado dos nove galpões, existe um estacionamento ocupado pelas escolas dos grupos de acesso, e mesmo a área de concentração do sambódromo de Manaus é utilizada como barracão das escolas dos grupos de acesso nos dias que antecedem aos desfiles. Cabe aqui mencionar que a preparação dos carros alegóricos das escolas dos grupos de acesso de Manaus ocorre geralmente nos quinze dias antecedentes aos desfiles ou mesmo uma semana antes dos

Esse espaço de preparação compartilhado pelas escolas de acesso em Manaus não conta com nenhuma divisão interna, tampouco há proteção contra chuvas e outras intempéries.

A gente trabalha com dificuldades, a gente trabalha no tempo. Não temos um barracão, uma estrutura. Os grupos de acesso são feitos dessa forma. Todos, como você está vendo aí, a céu aberto, com chuva ou sol. Mas independente disso está pronto. E vai estar pronto na hora. No momento do desfile os carros vão estar preparados para desfilar. (Alexandre, artista da Legião de Bambas -entrevista em 07/02/2013)

No carnaval de 2012, quando o número de escolas na 1a divisão foi maior que o de barracões disponíveis na Morada do Samba (eram nove escolas para oito galpões), a escola que havia ascendido da 2a divisão para a 1a no ano anterior ocupou este espaço externo contíguo, deixando seus carros ao relento. Para amenizar a situação, foram instaladas tendas onde os adereços eram preparados e lá os artistas se abrigavam das chuvas frequentes. Tal qual ocorre nas escolas que preparam seu carnaval na área de concentração do sambódromo, as instalações elétricas dos equipamentos são precárias e improvisadas a partir de caixas de energia do sam-bódromo ou da Morada do Samba.

Entre 2013 e 2014 as escolas dos grupos de acesso permaneciam ocupando estes espaços improvisados, mas em menor número e com melhor organização na área de estacionamento da Morada do Samba. Por outro lado, o fim das obras na Arena da Amazônia, estádio de futebol vizinho ao sambódromo, permitiu que a área de concentração do sambódromo fosse ampliada e melhor iluminada. O calor dos dias que antecedem os desfiles acabou inspirando a denominação informal deste espaço, a exemplo do que ocorre com o Carandiru carioca: é o Inferninho.

Aqui é até melhor aqui. Por mais que é esse sufoco. Aqui chama Inferninho né? Então aqui nesse Inferninho acho até melhor. Aqui paga melhor que as escolas grandes. Aqui paga melhor porque por mais que se passe dois meses lá dentro ali, tem semana que não tem dinheiro. Aí fica aquele negócio de não tem. Até o pessoal da minha terra lá de Parintins que trabalha nos barracões aí sabe que a dificuldade é grande. E precisa de dinheiro. E para quem tem família? Aqui não, a escola se mantêm vai divagando... É duas semanas só de trabalho aqui. Esse só foi uma semana! (...). Tenho um grupo de 12 comigo. Sempre estamos formando novos artistas. Todo dia entra um e sai outro. Já teve um que começou ontem e desistiu. Para trabalhar com alegoria do Grupo de Acesso tem que gostar. (Gilmar, artista da Leões de Barão Açu - entrevista em 07/02/2013)

Com tantos problemas, trabalhar como artista em uma escola de um dos grupos de acesso de Manaus, passa a envolver certa vocação, dedicação e muita vontade. Apesar de, as escolas pagarem em dia e a carga de trabalho ser menor, segundo o artista Gilmar as dificuldades e o curto prazo pesam. A perspectiva de seguir no ostracismo ou encarar o bloqueio da chegada ao grupo especial cria um cenário ainda mais desestimulante a jovens artistas. Esta, porém é uma das poucas alternativas para quem quiser entrar no mundo das escolas de samba e alcançar um espaço nas escolas do Grupo Especial. As falas lembram o que ouvi de Laerte Guli-ni, quando carnavalesco de uma escola carioca, a Acadêmicos de Vigário Geral, na época ocupante de um espaço no já extinto Carandiru da Zona Portuária carioca que dizia: "a gente faz porque a gente gosta".

Nessa situação, a ajuda das escolas da 1a divisão é realmente relevante como vemos no depoimento de componente de uma das escolas de samba na época da 4a divisão, a Vila da Barra. Naquele ano, a escola preparou suas alegorias ao lado do barracão de uma das escolas da 1a divisão, a gres Sem Compromisso:

Nós estamos aqui ao lado da Sem Compromisso até porque não temos galpão. E ontem ainda teve um corte de energia nos barracões como o da Sem Compromisso que também nos deixa sem energia. A energia vem do barracão deles. E nós mesmo assim ficamos aqui no tempo. Quando chove tem que parar, quando falta luz tem que faltar e atrasou muito o andamento da confecção do carro. (...)A gente tem uma parceria com a Sem Compromisso. Mesmo com o passar dos anos a Sem Compromisso tem uma parceira com nossa bateria. A gente junta bateria com eles, eles juntam com a gente. E esse ano o presidente viu nossa realidade, nosso sufoco e ofereceu esse espaço aqui ao lado do barracão deles que tem dado um apoio. Até o artista que está fazendo o nosso carro é o mesmo da Sem Compromisso. Eles ajudam até com materiais, sobras e local para alimentação. (Pedrinho, Diretor de Patrimônio da GRES Vila da Barra -06/02/2013)

Este fato é corriqueiro e tem até um termo nativo para descrevê-lo, o chamado "enxerto", termo que denomina o empréstimo ou cessão de material utilizado na produção de um desfile por uma escola a outra. Em Manaus, a prática do enxerto é veementemente desconsiderada por alguns dos foliões. Um dos componentes de uma escola da 2a divisão com quem conversei no carnaval 2015 rechaçava a possibilidade da concorrente do mesmo grupo, a Acadêmicos da Cidade Alta, fazer um bom desfile pois "estavam colocando todas as esculturas que iam para o lixo na Vitória Régia em seus carros". Outro componente, este da Reino Unido da Liberdade, descartou a possibilidade de sua escola desfilar com a mesma escultura do ano anterior: "Aqui nós fazemos tudo de novo a cada ano" disse ele. No carnaval de 2012, lembro-me de um torcedor da Aparecida enfurecido com o fato de que segundo ele: "A Vitória Régia reaproveitou toda a decoração de Natal da cidade nos seus carros! Ficou muito feio isso!" No ano seguinte seria Unidos da Alvorada a acusada - com a rigidez do termo - de reapro-veitar as esculturas do carnaval anterior no seu vice-campeonato de 2013.

Todo ano é assim, esse sacrifício. A gente fica até um pouco chateado pela falta de atenção dos organizadores do carnaval porque nós ficamos aqui sem sequer um banheiro químico para as necessidades básicas do ser humano. Carro de bombeiro aqui não tem. Enfim, todo apoio que deveria ser dado não chega até as escolas de samba dos grupos de acesso. Sempre somos vistos como um primo pobre dessa história toda. Pessoal só tacha que aproveita coisa, o corpo de um índio, o corpo de um caboclo feito em outros carnavais. Isso aí é outra situação interessante porque esse ferro é todo jogado na natureza. Então quando chega as escolas pequenas que querem fazer um globo e tem já um globo feito no ferro e só encapar e dá outro sentido para a alegoria, isso aí também colabora com nosso meio ambiente. E colabora com a escola porque o orçamento é apertado. (Gilson, artista da Mocidade da Raiz - entrevista em 07/02/2013)

Apesar de vermos nos barracões o desenho de uma rede de colaboração, o ambiente de rivalidade entre as escolas de samba de Manaus acirra fatores fazendo com que essa colaboração tenha um papel secundário em comparação a outros como a participação de componentes das escolas em outras festas populares da cidade. Chama atenção, por exemplo, a situação de convívio entre a Unidos da Alvorada e o Boi-bumbá Brilhante, quando em 2007 ambas as agremiações integrantes de diferentes festas da cidade conviveram no mesmo espaço de preparação de suas alegorias, trocando inclusive materiais na confecção de suas alegorias tal qual observou Alvatir Silva (2009) em trabalho sobre o festival folclórico de Manaus e sobre a organização dos grupos participantes que têm estreitas relações com as escolas de samba:

Nota-se que o [boi-bumbá] Brilhante tem relação de parceria com as escolas de samba da Zona Leste (A Grande Família e Mocidade do Coroado), pois em 2007 usou o barracão dessas escolas para confeccionar suas alegorias e indumentárias. Não é difícil imaginar que o grupo folclórico esteja estreitando relações com a escola de samba Unidos da Alvorada, cuja as cores são azul e branco, coincidentemente as mesmas do Brilhante. (Silva, 2009, p. 67)

O mesmo Boi Brilhante, das cores azul e branca e participante do Festival Folclórico de Manaus realizado no período entre final de julho e início de agosto, conviveu com a escola de samba Primos da Ilha, do bairro São Francisco, Zona Sul de Manaus. Neste outro caso, o grupo dividiu inclusive a quadra de ensaios com a escola de samba.

Outra agremiação folclórica de convivência muito próxima com uma escola de samba é o Boi-bumbá Corre Campo, sediado no bairro da Cachoeirinha que abriga também a escola de samba local, a Andanças de Ciganos. Ambos dividem a mesma quadra de ensaios.

Não se limitam apenas aos bumbás de Manaus as relações de colaboração das escolas de samba de Manaus. No carnaval de 2015, quando homenageou a cidade de Manacapuru, vizinha à capital Manaus, a escola de samba Balaku Blaku contou com a presença maciça de integrantes das cirandas6 daquela cidade em seu desfile. A escola de samba A Grande Família, do bairro do São José na Zona Leste de Manaus, tem laços estreitos com a ciranda local homônima que também divide seu espaço de ensaios com a escola de samba. Como vimos no primeiro capítulo desta tese, o calendário da cidade está adequado a uma série de eventos que configuram um calendário festivo anual (Silva, 2009). Diante da complexidade da metrópole e seus múltiplos pertencimentos o sambista de uma escola de samba manauara parte de uma escola para um boi bumbá tão logo esteja encerrada a apuração das notas do carnaval. Entre fevereiro e junho dedica-se a seu boi bum-bá. Depois dos festivais folclóricos, o ciclo carnavalesco retorna e, com ele, toda rede de trocas e colaborações. O calendário festivo norteia também a sociabilidade local nos bairros. A proximidade - ainda que não necessariamente geográfica - de agremiações folclóricas e seus componentes permeia a rede de colaborações dos carnavais.

Nos barracões das escolas de samba, observamos que não necessariamente a colaboração se dará entre uma escola da 1a divisão e alguma escola do grupo de acesso.

Havia quem indicasse que as trocas mais frequentes ocorriam entre escolas das divisões de acesso:

As escolas do Grupo Especial elas se acham intocáveis. Então tem muitas delas que estão lá e acostumadas a tirar um ano, dois anos, três anos em último lugar e não acontece nada, ela sabe que vai continuar ali. (... ) São grupos fechados. As escolas de samba do Grupo Especial elas se ajudam. Elas fazem um corporativismo. E as escolas dos grupos A, B e C são da mesma forma. No sentido de união, não existe uma união da categoria C ao Especial. É cada um por si e Deus por todas. (Gilson, artista da Mocidade da Raiz - entrevista em 07/02/2013)

É o que de fato constatamos não apenas no exemplo já citado entre a Presidente Vargas e uma escola da 4a divisão que desfilava um dia antes. A convivência no espaço comum obriga-as ao estreitamento dos laços, mas não explica tudo. Há certa solidariedade advinda do sentimento de desfavorecimento a que se percebem submetidas tais escolas. É inegável que dentre elas existem as rivais, mas a solidariedade é necessária para viabilizar a existência de cada uma delas. Temos um universo competitivo hierarquizado onde as regras, tal como no carnaval carioca, têm por parâmetro as escolas da primeira divisão. Tal como acontece nas escolas cariocas, as pequenas se colocam numa situação de oposição às escolas de samba da 1a divisão carioca (Araújo, 2008). Apenas uma escola terá o privilégio de ascender dentre todas, enquanto em muitos dos anos duas ou até três escolas são rebaixadas da primeira divisão para a segunda. Para simplesmente existirem como escolas de samba, critérios mais duros são adotados ainda inspirados pelo modelo sofisticado do topo. Além da solidariedade interna nestes grupos, há sempre esperanças postas nas disputas internas das escolas que estão no topo e que abririam eventualmente espaço para um acesso ao topo. Assim, de tempos em tempos, a primeira divisão aumenta o número de componentes, mas seja por competência na pista ou pelo trabalho realizado nos bastidores um novo grupo pode permanecer anos na primeira divisão. O importante é a brecha mais visível para a ascensão: o dia de desfiles. Os próprios sambistas indicam o caminho para a subida através da repetida frase "carnaval se ganha na avenida". Então é no desfile que elas apostam todas as suas fichas.

2. Umbral das escolas de samba:
a última divisão do carnaval de Manaus

O desfile das escolas de samba do Grupo de Acesso C, a 4a divisão do carnaval de Manaus, acontece numa quinta-feira antecedente ao carnaval, antecedendo a sexta de desfiles da 2a e 3a divisões (Grupos de Acesso A e B); e o sábado de desfiles da 1a divisão, o Grupo Especial. Nesse dia, seis escolas com menos de mil componentes desfilam no colossal sambódromo de Manaus para um público menor que o número de seus componentes. Vamos tentar compreender quais elementos configuram essa posição que podemos caracterizar como o umbral da hierarquia das escolas de samba. Estas escolas levam para o desfile geralmente um pequeno carro alegórico e em torno de dez alas7. A subvenção pública para esse desfile é muito menor do que a distribuída as escolas da 1a divisão. Enquanto na primeira divisão cada escola recebia em 2014 o valor de 400 mil reais, apenas 5 mil reais foram distribuídos para cada escola da 4a divisão.8 Com tamanha discrepância não surpreende o fato de essas escolas apresentarem desfiles visualmente bem mais modestos e consequentemente despertarem menor interesse do grande público. Sendo este último grupo muito pouco divulgado, pouco material de registro se produz sobre seus desfiles salvo quando alguma escola com passagem pela 1a divisão chega ao último grupo.9

Retomando o caso das escolas de samba cariocas que desfilam na Intendente Magalhães vemos a recorrência do olhar pejorativo lançado sobre essas escolas:

'Já temos escolas demais' tornou-se uma frase comum entre os gestores do carnaval, quase sempre seguidas por justificativas que começam com 'Essas esco-linhas são muito mal administradas'. Tal diminutivo tem toda a ambiguidade desta forma nominativa: muitas vezes usado de forma carinhosa, traduzindo a atenção e o afeto diferenciados que merecem as coisas pequenas, em outras é sacado para realçar a desimportância. (...) Na verdade ninguém quer ser "esco-linha"; uma prerrogativa desejável na trajetória de uma escola de samba é seu crescimento. (Araújo, 2009, p. 54)

Uma forma de refletirmos sobre esta visão, trazida especialmente por quem olha o conjunto das escolas a partir do topo da pirâmide competitiva, é através do conceito de poluição nos sistemas rituais elaborado Douglas (2014). A autora reflete sobre as possibilidades transformadoras dentro da condição poluidora onde inicialmente "um tipo de perigo que se manifesta com mais probabilidade onde a estrutura, cósmica ou social, estiver claramente definida (...) Os 'poluentes' nunca têm razão. Não estão no seu lugar ou atravessaram uma linha que não deveriam ter atravessado e este deslocamento resultou num perigo para alguém" (Douglas, 2014, p. 134). A marca subversiva do impuro foi também ressaltada por Mary Douglas: "A pureza é inimiga da mudança, da ambiguidade do compromisso. Certamente que nos sentiríamos mais seguros se pudéssemos fixar de maneira duradoura a forma da nossa experiência" (Dougla, 2014, p. 188). Essa perspectiva nos leva a relativizar a qualificação pejorativa dessas escolas de samba, que de acanhadas podem ser percebidas como criativas.

Consideremos também a condição liminar que foi iluminada por Van Gennep (2013) em sua formulação dos rituais de passagem. A sequencia de tais ritos pressuporia a passagem de uma condição a outra de modo processual por meio de fases que se sucedem: a separação, a liminaridade ou margem, e finalmente a agregação (op.cit, p.30). Van Gennep chamou atenção para o caráter ambíguo do ser em estado liminar. As características simbólicas da liminaridade foram elaboradas por Victor Turner (2013), com o caráter ambíguo do liminar opondo-se ao plano da estrutura definida de posições e estados estáveis, criando um momento situado "dentro e fora do tempo e dentro e fora da estrutura". Assim, a limina-ridade implica que "o alto não poderia ser alto sem que o baixo existisse e quem está no alto deve experimentar o que significa estar no baixo". (Turner, 2013, pp. 98-99). No caso das escolas de samba, para que a hierarquia competitiva se estabeleça as situações liminares são fundamentais e podem ser experimentadas na 4a divisão. Temos aqui, um estágio especial onde as escolas tais como noviços experimentam a passagem, um estado de suspensão. Sem público, sem dinheiro, quase sem companheiros de desfile; os componentes de cada escola experimentam de forma particular, cada um, o seu rito de passagem da decadência e ostracismo daquelas que um dia gozaram de glórias na 1a divisão ou as dificuldades estruturais daquelas que ainda tem um caminho a percorrer antes de chegar até lá. Os sambistas que desfilam nas divisões de acesso, junto com as escolas podem alcançar a fama na 1a divisão e depois posteriormente voltar ao ostracismo da 4a divisão. A grande diferença é que de modo diverso do que ocorre com as escolas, os foliões podem experimentar estar em todos os grupos da estrutura competitiva das escolas de samba, ou seja participam de mais de uma escola simultaneamente. É justamente nessa expansão da possibilidade de participação em, e de acesso ao mundo das escolas de samba que reside a importância destas escolas dos grupos de acesso.

Persiste, entre os sambistas de Manaus, em todos os anos que acompanhei enorme desconhecimento sobre estes grupos. Um dos foliões, bastante informado sobre escolas de samba da 1a divisão e moderador de um grupo de debate sobre carnaval na internet insistia em chamar as escolas da 4a divisão de "escolas de bloco". Muitos que o acompanhavam terminavam por desvalorizar as agremiações ou suas apresentações, separando-as de um desfile de escolas de samba de fato. Outros, tal como ocorre em outras praças carnavalescas, surgiam como ferrenhos combatentes destes grupos na defesa de uma redução do número de escolas de samba. Partem estes últimos do mesmo argumento do renomado pesquisador carioca já citado que trata destes desfiles como "espetáculos mambembes" indignos de convivência com a "ópera espetacular" do modelo das escolas de samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro:

Nem sei se isso são escolas (referindo-se aos desfiles da 4a divisão). É tanta desorganização que nem ala direito tem!

Essas escolas de samba são pirentas10. Escola de samba para mim tem que ter carros bem-acabados. Tem que ser uma coisa grandiosa. Até a gente que desfila nessas escolas é feia.

O que são as escolas de samba de Manaus? É Aparecida, Vitória Régia, Reino Unido e A Grande Família. Tem mais Sem Compromisso e Alvorada para fazer um número. Todo o resto é insignificante. Por mim pode acabar e ficar só com seis no Grupo Especial e seis no Grupo de Acesso.

(Depoimentos de foliões e sambistas de Manaus - entre 2013 e 2015)

Acompanhei estes desfiles nos quatro carnavais em que estive presente em Manaus - entre 2012 e 2015 - e pude registrar trajetórias que podemos considerar como incipientes. Trata-se afinal da quarta divisão, um grupo introduzido na hierarquia do carnaval de Manaus apenas em 2008, abrigando escolas de fundação recente em sua maioria. O primeiro desfile deste grupo abarcou apenas quatro escolas.

A qualidade dos desfiles mesmo dentro deste grupo não foi homogênea em nenhum dos quatro carnavais. Sempre havia uma escola vista como campeã ou favorita antes dos desfiles e cuja apresentação agradava muito aos sambistas presentes no pequeno público da quinta-feira. Nem sempre, entretanto, a escola apontada como superior se confirmava como campeã, algo que veremos mais a frente com nossa atenção voltada para apuração das notas. De qualquer forma, a escola favorita tinha como vantagem, e seria até possível ver nisso uma estratégia, o que os sambistas chamavam de "cumprir as obrigatoriedades". O cumprimento básico das exigências regulamentares era muito valorizado pois, justamente, muitas tinham dificuldades em angariar número mínimo de componentes para alas ou alas especiais como baianas, comissão de frente e bateria. As escolas que não cumprem essas obrigatoriedades têm uma perda de pontos rigorosa que resulta quase em uma eliminação antecipada do páreo, ou seja, sua ausência no desfile.

No carnaval de 2012, as escolas de samba reclamavam da não liberação antecipada dos recursos para a preparação dos desfiles. Tal fato se repetiu em 2013 e 2014. Apenas em 2015 algumas escolas conseguiram obter antecipadamente a subvenção para a preparação do carnaval. Mesmo assim, todas as inscritas na quarta divisão se apresentaram em todos estes anos. Como apenas uma escola sobe e nenhuma é eliminada, o grupo de cinco escolas componentes deste grupo permaneceu ao longo desses anos sem muitas mudanças. As escolas de samba Leões de Barão Açú e Império do Mauá permaneceram neste grupo oscilando entre a 3a e a 5â posições. Gaviões do Parque foi campeã em 2012, mas logo retornou ao grupo em 2013. A escola de samba Legião de Bambas também foi presença constante na 4a divisão até 2015 quando finalmente sagrou-se campeã. As escolas citadas têm fundação recente, tendo sua entrada como escola no carnaval de Manaus apenas a partir do final da década de 1990. Outras escolas oscilaram entre as últimas divisões e se apresentam num crescente como atualmente a Vila da Barra; e a novidade foi a chegada de uma escola com presença recente na 1a divisão no último grupo, a Mocidade Independente do Coroado.

A trajetória da escola do bairro do Coroado, na Zona Leste de Manaus chamou atenção por sua rápida queda. Depois da última colocação na 1a divisão em 2012, repetiu o insucesso nos carnavais 2013 quando esteve na 2a divisão e novamente no carnaval 2014 quando desfilou na 3a divisão. A chegada à 3a divisão revela a dimensão da crise interna enfrentada pela escola. Revelam ainda a importância deste grupo na dimensão competitiva das escolas de samba. Trata-se de um espaço de morte e da possibilidade de renascimento como a Mocidade do Coroado evocaria ainda que não obtivesse sucesso na missão de conquistar o título do grupo, terminando em segundo lugar.

Estar na 4a divisão explicita a condição e contradição das escolas de samba e ilumina a situação do carnaval da cidade como um todo. Um momento considerado pelos foliões como de crise no carnaval 2014 acentuou os problemas dos desfiles das escolas do último grupo. As escolas desfilaram com carros alegóricos que repetiam a estrutura de anos anteriores e apenas alguns metros de tecido e alguma pintura os decoravam. Seus contingentes estavam muito mais reduzidos e parcamente vestidos. A agremiação com desfile mais coeso, com o conjunto plasticamente mais coeso, e que de fato acabou se sobressaindo na apuração das notas, foi a campeã naquele ano, Vila da Barra. Um intérprete, Nelson Pilão, se repetiu em três escolas consecutivas - Leões de Barão Açu, Império da Mauá e Gaviões do Parque - fato inusitado até mesmo para o último grupo de Manaus. Destas, duas -Leões de Barão Açu e Gaviões do Parque - desfilaram com o mesmo grupo de ritmistas. Um folião que acompanhava a movimentação explicou como funcionava a prática:

Essas escolas não conseguiram nem lugar para ensaiar. Para montar um ensaio e arrecadar para o carnaval você precisa de dinheiro. Então acredito que talvez nem tenham ensaiado. O que elas fazem: combinam com um diretor de bateria que mobiliza o pessoal. Só paga um dinheiro para ele montar a bateria para o desfile. Estas duas combinaram com o mesmo diretor. Por isso a correria de sair de um desfile e entrar em outro. (entrevista com folião anônimo -27/02/2014)

Tal situação, de fato, repetiu-se nos outros dias de desfiles. Muitas escolas finalizariam seus carros ali na concentração mesmo. Ou nem finalizariam. Como foi o caso da Império da Mauá na imagem que abre este tópico (ver figura 6). A mesma Império da Mauá traria apenas este carro alegórico; além de um grupo folclórico de cangaceiros como Comissão de Frente; dois integrantes do mesmo grupo folclórico carregando o pavilhão da escola como casal de mestre-sala e porta-bandeira; e uma ala de pessoas vestidas com camisetas de um artista de boi-bumbá antecedendo a bateria que trajava a mesma camiseta.

Pouco depois, circulando a área de concentração, vi a imagem que levaria a superar o malestar causado pela impressão de pobreza e desorganização do desfile.

Um ônibus bem antigo, daqueles difíceis de imaginar como ainda se movimentam, recebia muitos componentes desta mesma Império da Mauá. De dentro um adolescente, provavelmente de uns 15 anos e tamborim na mão apressava outros, gritando que faltava muito para chegar na Zona Leste - o bairro do Mauazinho, onde a escola está sediada fica na Zona Leste. Mesmo sem ensaios, mesmo sem muito público, sem muita atenção midiática, ali estavam os componentes da escola, representando o bairro.

E quantos não foram os sorrisos de satisfação daqueles que pisaram pela primeira vez no sambódromo. Sim, pois estas escolas não cobram fantasias para seus componentes. Muito pelo contrário, componentes em certas ocasiões são caçados na área de concentração. Ali era possível experimentar a sensação de desfilar numa ala de baianas, dada a grande quantidade de baianas jovens e até homens. Nas divisões de acesso, ritmistas iniciantes encontram espaço para compor as baterias. Intérpretes novatos ou já próximos da aposentadoria tem seu palco. Sem falar da já abordada importância para os artistas. Em suma, percebi claramente o valor de porta de ingresso no mundo do fazer carnavalesco que aquelas escolas de samba representavam. Se por um lado o folião ou dirigente de uma escola da 1a divisão, ao rejeitar uma escola de samba do último grupo, sugerir sua extinção, busca afastar a possibilidade de tornar-se uma daquelas. Rejeita a possibilidade de um dia ver sua agremiação desfilando em condições por ele consideradas paupérrimas. Ele sabe que a possibilidade existe. É como desejar que suas rivais fossem eliminadas para sempre mesmo sabendo que sem a existência das rivais o carnaval não teria a menor graça. A possibilidade de chegar à 4a divisão deveria ser possível para qualquer escola se tomado o pressuposto de uma competição igualitária e com regras bem definidas. São estas escolas do último grupo que, ao mesmo tempo, podem subverter essa estrutura concorrendo no futuro ao título da 1a divisão. Tornam-se assim, criadoras e mobilizadoras da inventividade na sua aflição em subir de grupo ou evitar uma queda maior. Está em jogo o que é essencial para ser uma escola de samba. Para além de ser uma escola da 1a divisão é preciso enfrentar as dificuldades e manter os elementos considerados essenciais, estejam eles descritos nos quesitos ou não. Quando algum elemento essencial falta - como componentes na ala de baianas, na bateria, um puxador para cantar o samba e até mesmo a bandeira da escola de samba - sua existência é colocada em jogo. O risco de "enrolar a bandeira", como os sambistas se referem à escola que deixa de desfilar, é tão iminente quanto à possibilidade de sucesso num futuro próximo. Vejamos então um caso em que essa tensão se desenrola.

3. O encontro com a escola de samba Presidente Vargas no bairro da Matinha.

Registrado em meu diário de campo como uma incursão "empolgante e inesperada", minha primeira vez na escola de samba Presidente Vargas foi em sua escolha de samba de enredo para o carnaval 2014. O evento aconteceu em uma tarde no final de outubro. A final aconteceria no coração do bairro, o beco Boa Sorte, famoso entre os locais como Ferro de Engomar pelo formato das ruas que se cruzam.

O bairro de 7944 habitantes com aproximadamente 493 mil km2, localizado na Zona Sul da cidade de Manaus. Não há uma data precisa e oficial de fundação do bairro, mas seus moradores comemoram em uma simbólica data de 15 de setembro. Contam mais de um século desde que uma pequena vila de casas de taipa aglomeradas se formou na região hoje conhecida como beco Boa Sorte. A região já vivia sob o estigma de foco da leishmaniose, graças ao fato de concentrar muitos oleiros de vasos de barro. Antes tomada por tucumanzeiros, a vegetação baixa fez com que o nome "Matinha" pegasse na cidade toda. Nos tempos de industrialização da cidade, a chegada da Jutal, fábrica de sacarias de juta, marcou a história do bairro. Além da devoção à Santa Luzia padroeira da igreja do bairro, as manifestações culturais sempre marcaram forte presença. Foram os Garrotes Luz de Guerra, o Mina de Ouro e o Teimosinho; as quadrilhas juninas Caipiras na Folia e Brasinha na Roça. Hoje o estigma da violência persiste (Oliveira, 2010).

De fato, meu encontro com a escola de samba Presidente Vargas foi em desfile. Naquela madrugada de 18 de fevereiro de 2012, a Presidente Vargas faria o seu desfile campeão do carnaval na 2a divisão. Um samba elogiado pelos sambistas, alegorias feitas com esmero e um clima de muita confiança entre os componentes. Em 2013, das arquibancadas vi seu desfile na 1a divisão, tendo como enredo o clube dos mais tradicionais na história do futebol amazonense, o Atlético Rio Negro Clube. Naquele carnaval a escola se apresentou com o mesmo garbo que o ano anterior, muitos dos companheiros de arquibancada atreviam a aponta-la como favorita e eu respondia, "mas ela acabou de subir". Parecia antever daquelas perversidades que muitas vezes a apuração reserva. Não se sabe se os jurados viram mais defeitos que o público, ou julgaram a escola pelo fato de ter acabado de subir, como pré-julgará antes do desfile, fato é que a escola terminou em último e voltou para a 2a divisão. O meu encontro com a intimidade da escola da Matinha aconteceu apenas no final de 2013, durante os preparativos para 2014.

A escola de samba das cores azul e amarelo, fundada em 1985 já foi chamada Unidos da Matinha e Mocidade Independente de Presidente Vargas.11 Depois de um longo período como bloco a agremiação, que tem na família do atual presidente Márcio Almeida expoentes fundadores, alcançou a condição de escola de samba em 1995. Alcançou o grupo principal do carnaval de Manaus pela primeira vez apenas em 2007. Atualmente seus componentes tem orgulho do fato de sambistas que fazem sucesso em outras escolas serem oriundos da Presidente Vargas, por isso adotam o lema Matinha maternidade do samba.

A escola conquistou quatro títulos no carnaval, todos nos grupos de acesso nos anos de 2000, 2001,2007 e 2012. Naqueles anos não havia uma circulação entre as escolas das divisões de acesso e a 1a divisão, ou seja, ninguém subia ou descia. A instituição do acesso e descenso à 1a divisão retornou apenas em 2007, justamente quando a Presidente Vargas conseguiu o título e o direito de desfilar na 1a divisão em 2008. Permaneceu por lá graças a nova suspensão do rebaixamento de escolas ao Grupo Especial que perdurou até 2011. No carnaval de 2010, porém, um fato inusitado e que denota a tensão reinante nos resultados. Impedida de desfilar entre as escolas da 1a divisão componentes contam que foram trancafiados pela polícia no barracão da escola:

Foi um absurdo! Crianças, baianas, bateria; todo mundo ficou preso com correntes colocadas nas portas do barracão pela polícia, pelo choque. Foi o único jeito de nos impedirem de desfilar. Porque nós somos persistentes. A gente não desiste e no ano seguinte fizemos o mesmo enredo que fomos impedidos de apresentar. (Márcio Almeida, presidente da grces Presidente Vargas - entrevista em 08/06/2014)

A situação naquela ocasião envolvia um conflito judicial entre a escola, a associação organizadora dos desfiles, a AGEESMA (Associação do Grupo Especial das Escolas de Samba de Manaus)12 e até mesmo políticos locais. Ninguém soube precisar o que de fato motivou aquele conflito, mas as razões variaram entre o fato da escola ou da AGEESMA "não ter apresentado prestação de contas a prefeitura", o que inviabilizaria o recebimento da subvenção pública por todas as escolas; ou "ter tentado permanecer no grupo apesar da última colocação do grupo" e até uma "tentativa judicial de tornar-se membro da AGEESMA". Os jornais do período pouco citaram a contenda, o que dificulta ainda mais o desvendar do caso. O único registro que se tem do imbróglio é uma postagem no antigo blog da já extinta AGEESMA reproduzindo o deferimento da liminar13 que garantiria a participação da Presidente Vargas no desfile da 1a divisão.

O fato de a escola ser marcada pela persistência torna-se inegável quando lembramos que, após ser rebaixada em 2011, ela retornou à 1a divisão em 2012. Porém esta não seria a última batalha da escola da Matinha por não aceitar a condição de estar nas divisões de acesso, como veremos a seguir.

3.1. A Matinha e seu dilema: Buscando o topo e fugir do umbral nos carnavais 2014 e 2015

Quando o antropólogo explicita seus sentimentos em uma pesquisa que requer o distanciamento e a objetividade, algo nisto pode ser objeto de investigação. O fato é que me senti instigado por aquilo que senti na minha primeira ida à Matinha: "Qual não foi minha surpresa ao ver um bairro tranquilo em que me senti tranquilo e uma escola radiante". O cenário que presenciei na minha primeira vez não se modificou significativamente em outras idas à escola. O palco, montado embaixo de um sobrado e no toldo de um estabelecimento que vende frango assado. A sede da escola de samba fica ali ao lado do pequeno largo, um outro sobrado ainda mais simples pintado nas cores azul e amarela da escola. A bateria geralmente ficava de frente para esta sede ou de costas para o palco improvisado. No meio da rua, onde se encontram os becos Boa Sorte 2 e 3 fica o público interditando por alguns instantes e quando possível a passagem de alguns poucos veículos que vez por outra interrompem os ensaios.

Àquela altura a escola alimentava ainda uma esperança de desfilar pelo grupo Especial. Devido a uma disputa judicial entre Andanças de Ciganos e Império da Kamélia pela vaga no Grupo Especial, a Presidente Vargas que havia sido rebaixada no carnaval de 2013 poderia ser mantida no grupo fato que acabou não se consolidando com a Andanças de Ciganos desfilando no Grupo Especial, Império da Kamélia mantida no acesso e Presidente Vargas rebaixada.

Voltaria ainda em outra ocasião à Matinha no final de 2013. A escola realizava uma espécie de confraternização de final de ano entre seus componentes. Na ocasião conversei com o presidente da escola, Márcio Almeida sobre o imbróglio envolvendo a escola e a indefinição sobre em que grupo ela desfilaria. Márcio é ouvidor do Conselho de engenharia local, sobrinho de João Almeida, um dos fundadores e presidente que ocupou o cargo por mais tempo na escola. Além disso carrega o sobrenome da família que marcou a história da escola tendo ocupado por anos a presidência e cargos diretivos em diferentes gestões. Como vimos, a Presidente Vargas havia sido rebaixada com a última colocação na 1a divisão no carnaval de 2013 após um desfile considerado por muitos, superior aos de algumas escolas que desfilaram pela 1a divisão naquele ano. O presidente durante a entrevista falou sobre os entraves da burocracia da sec-am14 e a indefinição acerca da divisão que a escola disputará na avenida:

Por alguns motivos de desorganização mesmo do carnaval. Hoje a minha escola está considerada como escola de Grupo de Acesso mas ainda nada definido de Grupo de Acesso. Fizemos um trabalho de Grupo Especial mas é um trabalho que vamos dizer é um plano B. (Márcio Almeida, Presidente da GRCES Presidente Vargas - entrevista em 29/12/2013)

Por outro lado, naquele momento até de forma cautelosa o presidente e muitos dos componentes não reclamavam das condições de seu carnaval. O presidente inclusive frisava isso, dizendo estar "se preparando para disputar o acesso, mesmo julgando a decisão injusta". O imbróglio foi causado pelas brigas na apuração ainda no carnaval 2013. Julgando-se injustiçada pelas notas do júri, a Presidente Vargas recorreu do resultado final por vias judiciais. Naquele ano a Império da Kamélia e Andanças de Ciganos haviam terminado empatadas na 2a divisão do carnaval. Como o regulamento não previa critérios de desempate mas havia apenas uma vaga e um barracão disponível para a campeã da 2a divisão na 1a divisão no ano seguinte, os representantes das escolas decidiram em reunião fechada pouco depois da apuração estabelecer um critério de desempate. Neste a escola consagrada campeã da 2a divisão em 2013 foi a Andanças de Ciganos. Buscando resguardar sua vaga na 1a divisão, a Império da Kamélia tentou contestar o resultado na justiça o que criou certa esperança entre os componentes da Presidente Vargas da escola permanecer na 1a divisão. Apenas faltando pouco mais de um mês para os desfiles do carnaval 2014 que se decidiu pela manutenção da Kamélia na 2a divisão e o rebaixamento da Presidente Vargas.

Conversei com o Luciano, diretor de bateria, no momento que seus ritmistas se preparavam para começar o ensaio. Ele nasceu em Minas Gerais, mas passou no Rio sua infância onde por 15 anos foi ritmista da Mocidade Independente de Padre Miguel. Chegando em Manaus a trabalho passou a frequentar as escolas de samba. Não participa de outras festas, tampouco grupos de pagode, dedicando-se única e exclusivamente ao carnaval das escolas de samba. Depois de passar pela escola do bairro vizinho, a Império da Kamélia, aceitou convite para fazer parte da Presidente Vargas. Ali a maior dificuldade era cobrar seriedade e compromisso dos ritmistas já que segundo ele "os mesmos sabiam da carência de gente que saiba tocar e por isso deixavam pra chegar em cima do dia do desfile que teriam a roupa ali".

Pouco mais à frente e no carnaval seguinte o discurso de Luciano era bem mais otimista em relação a sua bateria. Junto com ele a bateria ganhou certo reconhecimento que um período de descensos poderia ter colocado em jogo. Acontece que, neste mesmo carnaval 2014, a Presidente Vargas amargou a última colocação da 2a divisão. De fato, a escola apresentou muitos problemas na confecção de suas alegorias. Uma pendência burocrática antiga, dos tempos em que a escola foi trancafiada em seu barracão para que não desfilasse, como vimos no carnaval de 2010, ainda perdurava e impedia o acesso da agremiação as subvenções públicas. O rebaixamento após um desfile de 2013 na 1a divisão desmobilizou boa parte de seu contingente. As brigas internas após resultado adverso também contribuíram. Frente estas dificuldades o rebaixamento era inevitável. No dia do desfile em 2014 muitos de seus componentes pareciam tensos. O discurso do presidente Márcio refletia esta tensão, emocionado, porém recheado de palavras de baixo calão. O presidente fez questão de frisar que "manteve o logotipo dos órgãos públicos nas camisas da diretoria por obrigação regulamentar" apesar destes órgãos não terem patrocinado o desfile da escola. O abre-alas trazia a estrutura do abre-alas do ano anterior com a águia símbolo da escola já desgastada pelo tempo e galhos de bambu ornamentando. O casal de mestre-sala e porta-bandeira desfilou sem fantasia e com a bandeira de outra escola, a Gaviões do Parque, pois antes do desfile a bandeira da escola sumiu. Luciano reclamou de certa crueldade nas notas dos jurados que chegaram a atribuir nota mínima (oito) para sua bateria. Segundo ele, a bateria teria se apresentado de forma correta, com um bom contingente.

Em 2015, já nos ensaios, constatamos que a bateria aumentou o número de componentes. Além dos ensaios serem mais frequentes, o mestre Luciano conseguia manter o que considerava um nível ideal de "organização que lhe permitia ousar mais na avenida". Neste carnaval, Luciano foi convidado a integrar a comissão de bateria do Reino Unido da Liberdade. Desta forma, muitos dos ritmistas da Reino Unido desfilaram também na bateria "1000graus" como gostavam de ser chamados. A parceria se estendeu para os instrumentos já que alguns foram cedidos entre as escolas. No dia do desfile, mesmo o presidente Márcio Almeida desfilou na Reino Unido.

Uma outra parceria aconteceu com a Andanças de Ciganos, escola do grupo Especial. No desfile da Andanças, mestre Luciano ainda participaria auxiliando o mestre de bateria Kleber Sahdo, bem como Márcio Almeida tocando caixa de guerra. Outras alianças eram encetadas por ritmistas da Presidente Vargas com outras escolas do Grupo Especial eram os casos do repiqueiro Dudu com a Moci-dade de Aparecida; a ala de tamborins com ritmistas da Aparecida e da Balaku Blaku, como outro repiqueiro, o Mestre Major. Podemos agora aguçar o nosso olhar sobre como as escolas manipulam estas redes de colaboração com as escolas de divisões superiores em um ambiente de rivalidade tão acirrada como acontece em Manaus.

No evento de escolha do samba para o carnaval 2015, a bateria estava impecavel-mente vestida e muito organizada. Naquela ocasião, o evento aconteceria em na quadra poliesportiva próxima da igreja do bairro. Acabou remanejado para o Ferro de Engomar mas manteve a atratividade para o público mesmo com a mudança de última hora. Um dos sambas era de compositores do bairro e preferido dos moradores que prestigiavam o evento, porém não era o preferido de muitos dos dirigentes. Logo foi apelidado pelos sambistas, como é usual nestes concursos em escolas de samba, de "samba da comunidade". Foi o último samba a se apresentar. Teve a maior e mais empolgada torcida, os cantores do coral da igreja do bairro, familiares de personalidades citadas no enredo - sobre o bairro onde a escola está sediada.15 Tinha tudo para ser o escolhido como de fato foi.

Com o carnaval homenageando seu bairro, a Presidente Vargas esteve ainda mais próxima dos grupos folclóricos da Matinha. As quadrilhas juninas do bairro foram importantes no contingente de desfile da escola de samba e se apresentaram em alas coreografadas e em carros alegóricos no carnaval 2015. Nesse carnaval, a escola desfilou mais organizada e disposta a desempenhar dentro de suas condições como concorrente da 3a divisão. A adesão de moradores do bairro ao desfile pareceu ainda maior do que no carnaval anterior.

Como vimos, no entanto, boa parte da construção do desfile da Presidente Vargas ainda se fez através de mediações pessoais importantes. De carnaval para carnaval, a figura do mediador pode mudar de acordo com as relações estabelecidas pela necessidade da escola. Não necessariamente caberá ao presidente, ao vice-presidente ou um diretor de carnaval desempenhar este papel de mediação. No carnaval de 2014, a mediação coube ao mestre-sala da Presidente Vargas, Apo-lo Ferreira, que na época também era presidente da escola de samba Vila da Barra do bairro da Compensa. Por conta desta intermediação, a escola de samba emergente da Compensa pode contar com materiais e alegorias da Presidente Vargas e a Presidente Vargas com materiais e a participação de componentes da escola da Compensa em seu desfile.

Além das trocas não materiais, como aquelas entre as baterias da Presidente Vargas e da Reino Unido da Liberdade, trocas materiais se impõem. O carnavalesco nos anos de 2014 e 2015 da Presidente Vargas, Varildo Alves, teve importante papel de mediação e articulação dessas redes de colaboração. Anteriormente carnavales-co da Unidos da Alvorada, Varildo havia integrado a comissão de carnaval dessa escola como autor dos enredos cuja parte plástica foi desenvolvida pelo artista parintinense Juárez Lima. O conhecimento artístico e a circulação no meio educacional lhe conferiam a autoridade para circular nestes meios buscando apoio material para a escola.

O papel do mediador nas relações sociais foi explorado como agente de trânsito entre diversos mundos e emerge com vigor nas sociedades urbanas contemporâneas. Na complexidade da cidade, tais indivíduos "estão potencialmente expostos a experiências muito diferenciadas, na medida em que se deslocam e têm contato com universos sociológicos, estilos de vida e modos de percepção da realidade distintos e mesmo contrastantes. Ora, certos indivíduos mais do que outros não só fazem esse trânsito mas desempenham o papel de mediadores entre diferentes mundos, estilos de vida e experiências" (Velho e Kuschnir, 2001, p. 20). No universo das escolas de samba, o carnavalesco emerge com importante papel de mediação sócio cultural baseado tanto em sua circulação em meios sociais mais amplos como em sua competência artística (Cavalcanti, 2015).

4. Conclusão

Demonstramos aqui como a Presidente Vargas se reestruturou diante da iminência de deixar de ser uma escola de samba por conta da ausência de elementos essenciais para tanto. O caráter liminar das divisões de acesso aqui emerge e, mais do que isso, seu aspecto de communitas. Nessas divisões, as escolas muitas vezes enfrentam juntas suas privações. Sem padrinhos que as amparem, vistas como poluidoras por aqueles que não estão na mesma condição de precariedade, elas precisam da inventividade. A criatividade faz com que possam enfrentar a condição em que estão. Uma criatividade capaz de incorporar os elementos essenciais e característicos de uma escola de samba como expressão carnavalesca singular. Essa condição torna-se então poderosa, de modo assemelhado ao "poder dos fracos" indicado por Victor Turner como um atributo da communitas. No ambiente das escolas de samba manauaras caraterizado pela extrema rivalidade, a colaboração e a criatividade das escolas de samba nas divisões de acesso revelam sua importância. No entanto, tudo dependerá do resultado: a escola superará ou não sua condição liminar?


1 Existem mesmo pessoas ligadas às escolas de samba cariocas que as chamam de forma pejorativa de "mambembes".

2 O carnaval de Vitória acontece uma semana antes do carnaval (Monteiro, 2010). O fato de antecipar a semana de carnaval tornou-se chamariz para transmissões nacionais de TV como a da Band a partir de 2012.

3 O desfile das escolas de samba de Uruguaiana (RS) realiza importante intercâmbio de componentes e alegorias com escolas de samba cariocas possibilitado em boa parte por sua posição no calendário - duas semanas após o carnaval (Duarte, 2011).

4 As escolas dos Grupos B ao D do carnaval carioca atualmente dividem um galpão localizado próximo à Estrada intendente Magalhães no bairro de Campinho. Neste espaço, um antigo depósito de bebidas, não há divisórias entre as escolas que tem que compartilhar iluminação, eletricidade, água e até mesmo algumas ferramentas para preparar seus carros alegóricos. As condições precárias do ambiente levaram os sambistas a apelidar o espaço de Carandiru 2 numa menção ao espaço que anteriormente abrigava escolas de samba na Zona Portuária carioca e inspirado no já desativado presídio paulista (Barbieri, 2012).

5 Além do caso já citado, envolvendo o Acadêmicos do Dendê e a União da Ilha, observei outras relações do mesmo tipo envolvendo o Dendê e a Unidos de Padre Miguel. Muito dessa relação é levada a cabo por alguns dos componentes das escolas em suas relações pessoais trançadas no mundo do carnaval, cada um deles se torna um potencial centro de articulação e de mediação ao conectar-se com diferentes escolas. A proximidade dos barracões da Acadêmicos do Dendê e da Unidos de Padre Miguel estreitou ainda mais esses laços de colaboração(... ) assim, durante a preparação do carnaval de 2009, a Unidos de Padre Miguel cedeu algumas esculturas excedentes, não utilizadas nos seus tripés que viriam antes do abre-alas da escola. Antes mesmo da chegada da Unidos de Padre Miguel ao Carandiru em 2008, as relações entre as duas escolas já eram cordiais, com a troca e cessão de esculturas em anos anteriores. " (Barbieri, 2012, pp. 131-132)

6 As cirandas são grupos folclóricos que encenam uma dança de roda típica da região. Atualmente é a principal atração do festival folclórico realizado na cidade de Manacapuru, vizinha à Manaus, no mês de setembro. Neste festival rivalizam em uma competição festiva organizada a partir de 1980 três grupos: Flor Matizada, Guerreiros Mura e Tradicional (Nogueira, 2008). Na cidade de Manaus são inúmeros os grupos desta dança que se enfrentam em diferentes níveis na competição do Festival Folclórico de Manaus, realizado entre final de julho e agosto.

7 Os números aqui apresentados foram colhidos na experiência em campo já que o acesso ao regulamento destes grupos são difíceis e geralmente são organizados, elaborados e votados alguns dias antes do dia de desfile mesmo.

8 O primeiro contato com estes valores foi em entrevista com Daniel Sales em junho de 2012. Posteriormente os valores se confirmaram nos anos de 2013, 2014 e 2015 em matéria publicadas nos jornais Diário do Amazonas ("Arthur anuncia repasse de R$ 1 milhão para escolas" em 18 de janeiro de 2013) e A Crítica ("Governo repassa quase 4 milhões às escolas de Samba" em 29 de janeiro de 2013) e do portal G1 Amazonas ("Carnaval em Manaus deverá receber verba de R$ 4,6 milhões, anuncia SEC" em 27 de dezembro de 2012).

9 Como foi o caso da Mocidade Independente do Coroado no carnaval 2015.

10 Uma gíria local que se refere a algo defeituoso ou doente.

11Até hoje o prenome "Mocidade Independente" persiste na apresentação das notas da escola em apurações e documentos oficiais da Secretaria de Cultura do Amazonas. Seus componentes, porém, o abandonaram encurtando a nominação para Presidente Vargas. Até mesmo a bandeira da escola apresenta a mesma como Grêmio Recreativo Cultural e Escola de Samba Presidente Vargas - Matinha Maternidade do Samba.

12 Entidade que congregava as escolas de samba da 1a divisão do carnaval de Manaus. Foi extinta em 2014 e substituída pela CEESMA (Comissão Executiva das Escolas de Samba de Manaus). O principio das duas entidades era o mesmo: organizar os desfiles e a competição consequente através da decisão colegiada dos presidentes das escolas associadas.

13 Com o título "Sinésio não conseguiu" publicado em http://ageesma.wordpress.com em 04 de fevereiro de 2010.

14 A SEC-AM (Secretária Estadual de Cultura do Amazonas) é importante órgão na organização dos desfiles das escolas de samba de Manaus. Além de administrar a pista de desfiles, o sambódromo da cidade de Manaus, coordena a seleção dos jurados além de fornecer infraestrutura e subvenção para as escolas de todos os grupos junto da associação de escolas de samba do respectivo grupo.

15 "Matinha, uma história de amor, cultura e arte" de autoria de Varildo Alves


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