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Diversitas: Perspectivas en Psicología

Print version ISSN 1794-9998

Diversitas vol.5 no.2 Bogotá July/Dec. 2009

 

Hipnose e Subjetividade: Reflexões Sobre a Ciência Moderna e a Psicologia **

La hipnosis y la subjetividad: Reflexiones sobre la ciencia moderna y Psicología

Hypnosis and subjectivity: Thinking about modern science and Psychology

Mauricio S. Neubern *

Instituto Milton Erickson de Brasília, Brasil

** Estudio de caso.

Recibido: 30 de octubre de 2008 Revisado: 20 de febrero de 2009 Aceptado: 19 de marzo de 2009



Resumen

El presente artículo invita a una reconsideración crítica y epistemológica de la hipnosis y su relación con la ciencia de la Psicología moderna. En este sentido, busca una discusión de dos vías que trae a colación varias contradicciones presentes en la invocación de esta ciencia en los aspectos modernos. Primero, el artículo enfatiza las dificultades de unir clínica y ciencia; adicionalmente sugiere que las visiones de la hipnosis pueden ser aplicables también, de forma general, a la psicología clínica, que a su vez supone que los pensamientos evocados por la hipnosis todavía tienen una pertinencia considerable para esta asociación, clínica y ciencia. Segundo, el artículo también postula que las instituciones involucradas en la formación de la Psicología tuvieron un papel crucial en la determinación de una visión distorsionada no sólo de la hipnosis sino de lo que podría o no considerarse científico. Finalmente, el artículo propone que aunque el estudio de la hipnosis no muestra una gran cantidad de respuestas en el sentido moderno, todavía es pertinente al invocar preguntas importantes sobre la construcción de dicha ciencia. Algunas de estas preguntas están relacionadas con las deformaciones históricas hechas por los procesos institucionales y por el aspecto científico de la práctica clínica.

Palabras clave: epistemología, subjetividad, psicología, hipnosis, ciencia moderna.



Resumo

O presente artigo propõe uma releitura crítica e epistemológica da hipnose em suas relações com o projeto de ciência da psicologia moderna. Para tanto, busca uma discussão em dois sentidos que destaca diversas contradições presentes na construção dessa ciência nos moldes modernos. Em primeiro lugar, destaca as dificuldades em associar clínica e ciência, destacando, sobretudo, que as críticas efetivadas à hipnose também são aplicáveis às psicologia clínica de um modo geral, o que pressupõe que os problemas trazidos pela hipnose ainda são de considerável pertinência para tal associação. Em segundo lugar, ressalta que as instituições presentes na construção da psicologia possuíram um papel crucial na determinação de uma visão pejorativa sobre a hipnose, como também sobre o que poderia ou não ser considerado científico. O artigo é finalizado propondo que, embora o estudo da hipnose não permita oferecer muitas respostas no sentido moderno, ele ainda é bastante pertinente por trazer perguntas de grande relevância sobre a construção dessa ciência, como as referentes às deformações históricas promovidas por processos institucionais e cientificidade da prática clínica.

Palavras-chave: epistemologia, subjetividade, psicologia, hipnose, ciência moderna.



Abstract

The present article calls for a critical and epistemological reconsideration of hypnosis and its relation with the science of modern psychology. In that sense, it searches for a two-way discussion, which brings up various contradictions present in the upbringing of such science in modern aspects. First of all, this article highlights the difficulties in putting together clinic and science; in addition, it suggests that the views over hypnosis might as well be applicable, in a general approach, to clinic psychology, which in turn supposes that those thoughts brought by hypnosis are still of considerable pertinence to such association - clinic and science. Second, this article also states that the institutions involved in the formation of psychology did have a crucial role in determining a distorted view not only over hypnosis but also of what could or could not be considered scientific. The present article finally proposes that, although the study of hypnosis does not show a whole array of answers in the modern sense, it still is rather pertinent when it comes to bringing important questions concerning the building of such a science. Some of these questions relate to historical deformations brought about by institutional processes and the scientific aspect of clinic practice.

Key words: epistemology, subjectivity, psychology, hypnosis, modern science



Introdução

A hipnose é, com muita freqüência, concebida como um tema polêmico na história da psicologia. Quando não é concebida como uma prática de clarlatanismo ou circo, alguns autores a vêem como uma abordagem pré-científica que possuiu uma importância histórica, mas acabou ultrapassada por propostas que conseguiriam efetivar uma psicologia enfim científica, dentro do projeto moderno de ciência (Benjafield, 1996; Viney & King, 1998). Para tais autores, os primeiros hipnotizadores não passavam de pessoas ingênuas ou despreparadas que ainda não haviam logrado atender as exigências de uma verdadeira empresa científica, mas que talvez tenham contribuído de alguma forma para que o interesse dos homens de ciência se voltassem para a psicologia (Méheust, 1999). Outros ainda concebem a hipnose como um procedimento clínico ultrapassado, incapaz de abordar a complexidade das causas subjacentes aos problemas e de produzir curas efetivas e duradouras (Freud, 1996a; Roudinesco, 1986). Nesse sentido, a hipnose não seria mais que uma técnica cosmética por não permitir um conhecimento acurado sobre a psique e os males que afetam as pessoas, nem produzir uma cura confiável condizente com tal conhecimento.

Entretanto, tais referências apresentam diversas contradições que nem sempre são discutidas e problematizadas e, menos ainda, relacionadas ao surgimento da psicologia como ciência. Em primeiro lugar, não apresentam uma leitura acurada e crítica dos acontecimentos históricos envolvendo hipnose e psicologia e no mais das vezes omitem nomes, acontecimentos e problemas que foram fundamentais nesse sentido (Carroy, 1991; Méheust, 1999). A leitura extremamente seletiva que tais autores desenvolvem sobre o processo histórico, principalmente na França do século XIX, leva a conceber que, em nome das tendências dominantes da psicologia, como a psicanálise e as psicologias experimentais, procedeu-se a uma série de distorções, a uma forma linear, cumulativa e por demais tendenciosa de contar a história. Em segundo lugar, as críticas clínicas sobre a hipnose, além de desconsiderarem a intensa retomada de interesse atual pelo tema (Melchior, 1998), não se propõe a uma discussão crítica sobre os pressupostos das escolas dominantes em termos de conceber se as psicoterapias modernas efetivamente trazem grandes diferenças quanto à hipnose (Neubern, 2004; 2006). O retorno dos sintomas, a eficiência das psicoterapias a confiabilidade de suas teorias são assuntos que raramente estão presentes de forma crítica entre os autores que se arvoram a uma condição superior quanto à hipnose, uma condição superior em termos de associar clínica e ciência.

Assim, o presente artigo não visa uma proposta que reconsidere a hipnose como um manancial de resposta às pretensões modernas em psicologia, como se ela pudesse sanar o mal estar dessa ciência junto a seu projeto de ciência, já que o próprio autor reconhece que a hipnose se encaixa mal junto a tal projeto. Visa, pelo contrário, a uma releitura da hipnose como um tema que leva a refletir e questionar sobre a psicologia e suas pretensões modernas, colocando questões sobre a pertinência desse projeto ousado e contraditório em dois sentidos distintos. Primeiramente tal questionamento será voltado sobre a relação entre clínica e ciência, onde existe a idéia de que para melhor curar é preciso melhor conhecer. Em segundo lugar, volta-se sobre o papel das instituições presentes na construção da psicologia, dimensão esta que foi poderosa o suficiente para camuflar e esconder as contradições espinhosas de ordem histórica e epistemológica.


Clínica e Ciência - à Sombra do Charlatão

Uma observação mais acurada sobre a obra de Milton Erickson traz algumas reflexões importantes no que se refere ao projeto moderno de ciência e sua relação com a psicologia. Este autor, um dos principais responsáveis pela retomada da hipnose no século XX, assume uma postura radical quanto ao problema do conhecimento, uma vez que abre mão de construir e respaldar uma teoria, centrando seus esforços na eficiência de sua prática clínica (Neubern, 2002). Embora seja possível considerar sua antecipação quanto à pós-modernidade (Combs & Freedman, 1994) ou mesmo traçar uma relação com William James (1907/1987), que enxergava com certo desprezo o racionalismo teórico, pode-se considerar que Erickson (1958) faz uma opção de ruptura com as tendências dominantes ao enfatizar uma dimensão puramente clínica de seu trabalho. Dito de outro modo, a complexidade do processo hipnótico levou-o a fugir do dilema presente nas psicologias modernas entre fazer ciência e fazer clínica, de maneira a situá-lo nitidamente deste último lado.

Apesar de tal postura poder trazer descontentamentos a alguns autores de pretensões modernas (Chertok & Stengers, 1989), é possível considerar certa coerência nesta opção de Erickson (Erickson & Rossi, 1980), principalmente quando se considera a dimensão histórica da clínica moderna e suas relações com a hipnose. O exemplo de Freud é marcante nesse sentido, uma vez que denuncia as dificuldades, à princípio, intransponíveis de associação entre conhecimento científico e prática clínica dentro de uma ótica moderna (Chertok & Stengers, 1989). Após um período de decepções com a hipnose, Freud (1905/1996b; 1917/1996c) entende ter descoberto um método realmente mais eficaz - a psicanálise - no duplo sentido aqui discutido: obter informações fidedignas sobre a psique e, ao mesmo tempo, oferecer curas mais convincentes e duradouras para os problemas aí existentes. A psicanálise nascia, portanto, com a proposta de encarnar essa duplicidade, buscando cumprir com a perspectiva de um conhecimento confiável, capaz de ir além das aparências e, de sua própria maneira, repetir os ideais de explicação, predição e controle. Assim sendo, por melhor conhecer o novo método de Freud seria capaz de melhor curar, fazendo assim com que se calassem as outras propostas terapêuticas até então desenvolvidas.

Freud acreditava que a psicanálise era um método superior à hipnose, pois aquela teria conseguido se livrar do problema da complacência (Stengers, 2001). Para ele, o sujeito em transe hipnótico jamais poderia proceder a uma revelação tipicamente moderna de dados confiáveis, já que não seria possível dizer até que ponto suas expressões remontavam a uma fabricação (ou seja, uma simulação para atender expectativas suas ou do médico) ou uma revelação isenta de dados reais. A psicanálise, por outro lado, concebia um inconsciente capaz de resistir às expectativas do analista e do próprio sujeito, um inconsciente sexualizado que poderia ser separado dos processos fugazes da mente e proceder a uma autêntica revelação. Em termos clínicos tal diferença significaria uma superioridade da psicanálise, comparada a um cirurgia, a um procedimento que atingisse as verdadeiras causas subjacentes ao conflito enquanto a hipnose era vista como um cosmético paliativo, superficial e bastante incerto para cura, já que não seria capaz de acessar a causa dos problemas (Freud, 1905/1996b; 1917/1996c).

Entretanto, Freud pagaria um preço considerável pelo seu projeto de ciência, que tentava impor noções clássicas de ciências naturais, como causalidade, à complexidade dos processos subjetivos. As primeiras três décadas de seu método não o levaram a um triunfo definitivo como havia previsto, mas à necessidade de reconsiderar suas afirmações, sobretudo, no que se referia à superioridade da psicanálise (Chertok & Stengers, 1989). Ao final de sua vida, ele viria a dizer que ainda não havia sido encontrado algum substituto para a sugestão (Freud, 1937/1996d), o que implicava em considerar que a psicanálise não produzia curas mais eficazes, convincentes e duradouras do que os outros métodos. Neste mesmo texto, Freud parecia enfrentar uma espécie de ironia do destino, pois acabava de afirmar que o tratamento analítico também se mostrava ineficiente em muitos casos e era passível de reproduzir os mesmos problemas que, para ele, eram antes exclusivos da hipnose, como o retorno de sintomas e a piora das neuroses.

Á despeito de grande parte dos analistas desconsiderarem tal passagem, preferindo se entrincheirar junto ao Freud do início da psicanálise, o trecho é bastante significativo. É possível considerar que ele aponta, de modo intencional ou não, para o grave problema da tentativa de aplicar a noção de causalidade nas práticas de cura, o que evoca sempre a figura do charlatão (Guggenbühl-Craig, 2004; Stengers, 1999). Em outras palavras, quem quer que pretenda, em nome da ciência, efetivar um procedimento de cura esbarra no grave obstáculo de evocar causas sobre as quais as afirmações correm sempre o risco da dúvida, pois tais causas nem sempre podem permitir o controle do fenômeno (no caso, a doença), uma previsão correta sobre seu andamento ou um tratamento realmente eficaz. O profissional ou pesquisador que esteja nessa posição sofre, portanto, de considerável desconforto, uma vez que evoca para si a autoridade do saber confiável da ciência moderna que, porém, pode não se traduzir em curas ou melhoras que deveriam confirmar seu poder de predizer. É assim que a postura de quem se arvora ao saber fidedigno está sempre espreitada pela figura sombria e nebulosa do charlatão, vendedor de certezas que, de fato, não possui.

Entretanto, os autores da hipnose que se dispensam de uma obrigação quanto à causalidade moderna possuem uma contribuição bastante relevante para pensar tal dilema que, efetivamente, não resolve o problema de aliar clínica e ciência, mas contribui significativamente para sua reflexão. A partir do momento em que terapeutas como Delboeuf (1885/1993) no passado e Erickson (Erickson & Rossi, 1980) mais recentemente abrem mão de investigar causas confiáveis para voltar suas atenções para o conjunto de influências e trocas subjetivas do contexto o problema pode ser compreendido de um ponto de vista técnico (Nathan, 1994; 1999), o que implica em duas dimensões interligadas. Por um lado, a mudança ou a cura, ao invés de serem ligadas a uma pretensa causa, podem ser pensadas em relação com os processos subjetivos e interativos que as desencadeiam, com as construções que têm lugar neste contexto e com a participação singular de cada sujeito no processo. Isso significa que a pesquisa não se restringe a um foco escondido, exclusivo e invisível no psiquismo do sujeito, mas a uma reflexão sobre a comunicação, as trocas afetivas e as formas de influência que perpassam o contexto onde se constrói a mudança. A idéia, portanto, não é a de buscar uma pretensa causa subjacente e transcendente, mas a de desenvolver um processo reflexivo no qual se estabeleçam as relações entre os processos que constroem a mudança.

Por outro lado, o fato de tal perspectiva romper com a proposta de um contexto invariável e neutro para um contexto de influência, como rezam certas tradições hipnóticas, traz também uma perspectiva distinta diante do conhecimento que se produz na relação com o sujeito. Ao invés de se buscar a aplicação de uma teoria substancializada e universal, visa-se um diálogo com a singularidade de cada um, contemplando-se a subjetivação própria de cada sujeito em termos de suas referências, visões de mundo, sentidos e emoções. Nesse sentido, quando Erickson estava em relação com um sujeito (Erickson, 1952; 1958), ao invés de tentar enquadrá-lo em conceitos e métodos universais, compreendia que deveria utilizar como referência os processos singulares deste, de maneira a construir intervenções hipnóticas e terapêuticas que contemplassem suas singularidades. Em um de seus casos clínicos mais interessantes, Erickson (1958) relata a história de um homem ansioso que não conseguia se sentar para contar sua história, mas ficava andando de um lado para outro. Embora desejasse ajuda, tal homem foi várias vezes acusado de não colaborativo por outros terapeutas, para quem tal comportamento era expressão de resistência em ser ajudado. Erickson simplesmente pediu que o homem continuasse a andar e, notando que ele ficava responsivo a seus comandos, acrescentava-lhe algumas sugestões sobre quantos passos ele deveria dar, em qual ritmo e em qual direção. Com isso, o homem pôde se aproximar de uma cadeira, sentar-se e entrar em transe, iniciando a psicoterapia.

O que o exemplo acima ilustra é a uma forma radicalmente distinta das propostas modernas, já que busca tecer um conhecimento que não contempla uma causalidade universal e por vezes coisificada, mas a um conjunto de relações singulares entre os processos de um sujeito que solicita ajuda clínica. Nesse sentido, talvez não seja coerente afirmar que esta é uma nova forma de causalidade, mas uma perspectiva distinta que abre espaço para uma investigação voltada ao singular da vivência do sujeito e a um conjunto de relações que não se prendem a uma lógica moderna tipicamente linear. Não, portanto, sem razões que Erickson (1952) insistiu em não associar seu trabalho a um desenvolvimento teórico, pois, em sua época, isto implicaria na adoção de noções como causas e conteúdos universais que de forma alguma permitiriam a construção de uma abordagem que contemplasse o singular em profundidade.

Sendo assim, tais perspectivas talvez possam remeter a uma noção comum entre os hipnotistas (Bellet, 1992), segundo a qual a hipnose é a mãe das terapias. Isso não se refere apenas a um caráter histórico, mas, principalmente, à noção de influência aqui apresentada que, embora contradiga condições caras ao paradigma moderno, como a separação sujeito-objeto, perpassa os processos terapêuticos independentemente de suas filiações teóricas. A noção de causa, com todo o exclusivismo moderno que lhe é própria, fica, desse modo, em uma situação questionável, uma vez que as diferentes escolas de psicoterapia, com suas respectivas noções de causalidade, podem desencadear curas (Mahoney, 2001) ao mesmo tempo em que encontram as mesmas dificuldades que as aproximam do charlatão. Contudo, apontando-se para essa raiz comum que a hipnose lega, entende-se que é mais interessante buscar compreender a eficácia de um processo em termos dos processos subjetivos e relacionais que o constituem do que em nome de uma hegemonia teórica que não tem como se sustentar.


Uma Ciência dos Homens (Instituição)

A controvérsia que sempre existiu em torno da hipnose na história da psicologia possui muitas de suas raízes na ausência de paz que impregnou este tema esteve desde seu surgimento como alvo de interesse científico. Em diversas circunstâncias, a hipnose parece possuir o desagradável papel de apontar para as contradições de se buscar adequar o projeto moderno de ciência à subjetividade, o que contraria a perspectiva histórica das referências dominantes segundo as quais seria possível considerar a psicologia, principalmente a experimental, como uma empresa enfim científica (Benjafield, 1996; Viney & King, 1998). Não é sem razões que os autores imbuídos dessa perspectiva triunfalista sempre enxergaram a hipnose de forma pouco favorável, seja pelo desdém, seja pela ironia, ou ainda pela consideração de que ela possuiu um valor puramente histórico para a psicologia (Méheust, 1999).

Entretanto, o que é importante destacar é que os espinhos trazidos pela hipnose estão presentes desde as primeiras tentativas de unir a racionalidade científica ao estudo de processos até então pertencentes ao universo subjetivo do paradigma ocidental (Neubern, 2004). É justamente no julgamento de Mesmer que tal problemática vem à tona, principalmente no que se refere à participação dos cientistas enquanto sujeitos na avaliação de processos de ordem científica que possuíam um intenso interesse público. Devido à notoriedade que seu método de cura, o magnetismo animal1, havia conquistado e às constantes polêmicas que inspirou entre diferentes setores da sociedade, Mesmer teve sua proposta submetida à avaliação de duas comissões científicas nomeadas em 1784 por Louis XVI, rei da França.2 Contudo, foram verificados vários problemas no procedimento metodológico, que atentavam contra sua coerência, mas não impediram que o magnetismo animal fosse duplamente condenado: a existência do dito fluido era descartada, já que as curas foram atribuídas à imaginação (Bailly, 1784/2004a), e a técnica de Mesmer ainda era julgada como um processo potencialmente perigoso para as mulheres que poderiam ser induzidas aos desejos indecentes de médicos sem escrúpulos (Bailly, 1784/2004b).

No entanto, o que nem sempre está explicito nas referências históricas é que, além desse julgamento moral e metodológico, havia uma série de incoerências cometidas pelas comissões que poderiam mesmo comprometer a legitimidade de seus resultados. A primeira delas refere-se à própria escolha do método, que foi o de um procedimento de cegos e duplos cegos, onde determinadas variáveis eram controladas. Pedia-se, por exemplo, a um jovem magnetizado que descobrisse qual árvore havia sido magnetizada por seu médico em meio a um pomar com centenas de árvores ou ainda dizia-se para um sujeito que uma xícara de xá entre duas havia sido magnetizada, sem que de fato o fosse, e que ele deveria entrar em crise magnética ao descobrir a tal xícara (Bertrand, 1826/2004; Deleuze, 1813/2004). Nesse sentido, uma questão importante que se levanta sobre o uso dos métodos é a forma sobre sua pertinência quanto ao que se adota (Demo, 2000). É uma questão árdua e questionável tentar aplicar a metodologia consagrada numa ciência a um outro campo de saber, onde as exigências de pesquisa são distintas, como também o é a natureza de seus sistemas e objetos. Vale lembrar que boa parte dos conceitos de ordem qualitativa foram desenvolvidos exatamente por não serem passíveis de legitimação por métodos estatísticos e experimentais, como se deu com a maioria dos conceitos clínicos em psicologia (Gonzalez Rey, 2005; Turato, 2000). Imaginem-se, no tocante ao problema, quantas dificuldades e impossibilidades noções como libido, da transferência, sentido ou do senso de atualização encontrariam se dependessem da validação de métodos experimentais para serem aplicados e aceitos3.

De fato, embora tal metodologia tenha apontado para a inexistência do fluído, os componentes da comissão, com exceção de Jussieu, não conheciam o campo do magnetismo animal ou ao menos se prestaram a uma observação mais abrangente e sistemática do mesmo, a fim de poderem afirmar se tal método cumpriria ou não com as exigências de legitimidade para estudá-lo. Assim, os membros da comissão não se dispuseram a observações mais acuradas sobre os procedimentos magnéticos que mal conheciam e desprezaram qualquer pressuposto empírico de seus praticantes, como a idéia de que o magnetismo só pode ser conhecido por seus efeitos no tratamento, não sendo passível de ser captado pelos sentidos físicos (Mesmer, 1779/2005). O método experimental foi eleito de forma à priori como se pudesse responder a qualquer indagação e atender qualquer exigência empírica de um campo desconhecido e, o que era ainda mais grave, sem comportar qualquer possibilidade de questionamento de sua legitimidade.

Mas, além do problema da legitimidade, houve também outra situação desconfortável, como a disputa entre os métodos, fomentada pela dissidência de Laurent de Jussieu que, percebendo o autoritarismo metodológico das comissões, partiu para uma pesquisa independente (Crabtree, 1993: Ellenberger, 1970; Laurence & Perry, 1988). Ele procedeu a uma série de observações de campo, indo aos locais de tratamento e observando todo o cenário que ocorria em torno do baquet.4 Embora tenha encontrado alguns resultados semelhantes aos da comissão, como o toque, a imitação e a imaginação, Jussieu também se deparou com um fenômeno curioso em que uma paciente cega, à distância, sentia exatamente a região que ele apontava com um pequeno bastão de ferro, como se este transmitisse à tal paciente uma espécie de força sem, porém, tocá-la com o bastão. Tal fenômeno, que se repetiu aleatoriamente algumas poucas vezes com outros pacientes, foi designado como calor animal que, para Jussieu (1784/2004) poderia ser útil na explicação de algumas curas obtidas pelo mesmerismo.

Entretanto, o que chama à atenção nessa passagem é o fato de que, tendo surgido resultados distintos entre duas metodologias que estudavam o mesmo fenômeno, as instituições oficiais da época recusaram-se a debater o assunto, legando os estudos de Jussieu ao silêncio. Ora, tal problema requeria, ao menos, a consideração de que o assunto não estava esgotado que o debate deveria prosseguir até que a questão fosse melhor compreendida, até que as dúvidas pudessem, ao menos, ser melhor conhecidas. Mas, seguindo-se o caminho contrário, muitos médicos foram expulsos ou ameaçados de exclusão dos quadros das instituições caso suas práticas fossem relacionadas com a doutrina de Mesmer (Deleuze, 1813/2004; Bertrand, 1826/2004; Laurence & Perry, 1988).

Mas, o que parece ter assumido o caráter mais desconcertante em meio a tal processo foi o resultado final das comissões, para quem os fenômenos produzidos pelo mesmerismo seriam resultados da imaginação dos pacientes. Tal resultado aproximou-se mais de um parecer de senso-comum do que de uma conclusão científica, respaldada por seus procedimentos e pelas implicações de seus achados. Isto porque seria possível à comissão afirmar a inexistência do fluído, falsificando-o com uma possibilidade explicativa que não resistiu ao método (Popper, 1973). Contudo, a partir do momento em que definiu a imaginação como causa, seria necessária sua submissão aos mesmos procedimentos e exigências a fim de se averiguar sua possibilidade de resistir ou não às exigências do método aplicado, de maneira que, tendo a imaginação resistido a tal processo árduo de batismo, ela deveria ser definida em termos operativos e explicada em suas relações com os processos de cura. Entretanto, as comissões não procederam com o mesmo rigor à sua própria conclusão, não explicaram o que seria essa conclusão (imaginação) e nem se dispuseram a explicar suas ações nos tratamentos magnéticos. Curiosamente, essa imensa lacuna passou desapercebida dos membros das sociedades científicas da época, como também da maior parte das referências dominantes em história da psicologia (Méheust, 1999; Stengers, 2002). Em outros termos, em nome da Razão, atentava-se contra os próprios procedimentos que legitimam a confiabilidade da ciência legada pela Razão.

Semelhante irracionalidade ganha algum sentido quando se considera o cenário social que envolvia a figura de Mesmer e das sociedades de ciência da época (Ellenberger, 1970; Laurence & Perry, 1988). Mesmer havia saído de Viena com a reputação abalada devido a sérios desentendimentos com as instituições científicas e com alguns nomes da alta nobreza, chegando a Paris numa época politicamente instável, onde era necessária uma diplomacia maior do que estava habituado. Ao mesmo tempo em que se retirou de uma conferência na Académie des Sciences, alegando que não falaria a um público que não respeitava um expositor, o médico vienense também se colocou em situação desagradável frente a duas sociedades rivais, a Faculté de Médecine e a Société Royale de Médecine (Laurence & Perry, 1988). Quanto à primeira, Mesmer adotou uma postura intransigente recusando-se a negociar com seus membros uma forma de avaliar os resultados de seus trabalhos; já quanto à segunda, adotou a indelicada postura de fazer com que esta submetesse suas avaliações prévias dos doentes, aos membros da sociedade rival, a Faculté de Médecine. Assim, além do fato de entrar como um concorrente profissional dos médicos locais por pacientes da alta burguesia e da nobreza, Mesmer criava uma indisposição nada desprezível com seus colegas de profissão que se viam cada vez menos inclinados a compreendê-lo e ouvir suas propostas.

Também é necessário ressaltar a condição marginal em que o mesmerismo se situava face ao contexto social da França da época. Embora fosse praticado por nobres e burgueses, o magnetismo animal referia-se a qualidades naturais do humano que independiam de origem social, o que atraía pessoas contrárias à estratificação social intensa daquele país numa época pré-revolucionária (Darntorn, 1968). Suas associações com a maçonaria e com a insatisfação diante dos métodos da medicina tradicional também lhe valeram muitos simpatizantes e inimigos (Laurence & Perry, 1988). Ao mesmo tempo, a visibilidade conferida às mulheres, mesmo que por meio de crises, trouxe-lhe críticas exacerbadas de setores conservadores da sociedade, para quem as mulheres deveriam ser confinadas ao espaço privado do lar (Carroy, 1991). Era, portanto, uma doutrina que trazia, à revelia de Mesmer, um grande potencial revolucionário, uma vez que atacava pilares centrais das instituições dominantes, num contexto social onde já fervilhavam inúmeras turbulências políticas.

Tal cenário é bastante significativo para uma compreensão mais abrangente sobre a rejeição ao mesmerismo e a verdadeira maldição que incidiu sobre sua descendente direta, a hipnose. Ele auxilia no entendimento do processo de distorções e omissões históricas que povoam as referências dominantes daqueles que defendem uma psicologia que finalmente teria cumprido com as exigências do paradigma moderno. De fato, as instituições dominantes, como a Igreja, o Estado e a Ciência viam-se por demais incomodadas em alguns de seus pressupostos com respeito a tal procedimento e as implicações ideológicas ligadas a ele (Crabtree, 1993; Ellenberger, 1970; Laurence & Perry, 1988). Ao mesmo tempo, os membros da comissão, exceto Jussieu, não pareciam conceber o magnetismo como uma hipótese viva5, como diria William James (1896/2001), isto é, pareciam destituídos do interesse de que a existência do fluido fosse realmente uma possibilidade concreta, apesar das curas que apresentava. Logo, torna-se possível conceber que a dimensão política e institucional foi de importância fundamental para o fracasso do mesmerismo, cujo acesso à cidadania científica foi interditado. Dito de outro modo, as indisposições políticas e sociais, juntamente com os problemas epistemológicos espinhosos para o projeto moderno, perpassaram a subjetividade daqueles que poderiam ou não outorgar o estatuto de ciência ao magnetismo animal.

Entretanto, no que se refere à história da psicologia, a dimensão institucional conta ainda com outra faceta, caso se avance pouco mais de um século para se analisar o caso de Freud e sua relação com a hipnose. É correto afirmar que, de modo similar ao mesmerismo, a psicanálise também encontrava sérias resistências no contexto social, fosse das instituições científicas, fosse de setores puritanos da sociedade para quem as propostas relativas à sexualidade eram vistas como imorais. Entretanto, percebendo a guerra que se anunciava por várias formas de resistência, Freud (1914/1997; 1925/1998) adotou uma postura radicalmente contrária à de Mesmer: ao invés de buscar conquistar o apoio das instituições científicas dominantes, Freud acabou desenvolvendo sua própria instituição de maneira a criar seus próprios critérios de legitimidade e, numa só palavra, sua própria ciência de acordo com a leitura que fazia do projeto moderno.

Nesse sentido, a psicanálise erigia-se sob uma bandeira de independência, não devendo nada a qualquer conhecimento, pois não necessitava do reconhecimento da medicina ou da biologia para se validar; também se afastava da psicologia, colocando-se como um saber à parte, um saber que deveria depender apenas de si mesmo em termos de legitimação num processo de auto-sustentação constante. No caso específico da hipnose este afastamento era visto como uma necessidade científica e não institucional, uma vez que esta não respondia às exigências para um saber que pudesse revelar a realidade. Tratava-se de uma decisão necessária, para Freud (1925/1998) para que a perspectiva moderna tivesse condições de triunfar.

A radicalidade de uma tal postura implicou em várias conseqüências, que podem ser sintetizadas em dois processos. Primeiramente, levou a psicanálise e, em conseqüência, as psicologias que receberam sua influência a uma postura de isolamento no que se refere ao reconhecimento das outras ciências (Stengers, 1996). Como o projeto moderno pregava o acesso a uma realidade única os achados de uma ciência faziam referência a tal realidade de maneira a permitir as trocas com os pesquisadores de outras ciências, que poderiam deles se servir para suas próprias práticas e interesses. Entretanto, malgrado a aspiração de Freud (1937/1996d) pelo projeto moderno, a psicanálise não pôde oferecer os mesmos dados, fosse pelos problemas já levantados pela hipnose, fosse por se fechar em seus próprios critérios de maneira a afastar os críticos competentes provenientes de outros saberes, aqueles que poderiam julgar em nome da ciência a pertinência dos dados psicanalíticos. Logo, ao mesmo tempo em que tal trajetória conferiu autonomia a Freud, também lhe legou uma posição a bem dizer maldita, por situar sua obra a meio caminho de atingir o ideal moderno que tanto buscava6. E aqui se encontra um grande contra-senso, pois Freud se afastava da hipnose a fim de conseguir se adequar ao projeto moderno, mas também se afastou das exigências modernas para manter viva a psicanálise.

Em suma, a psicanálise sobreviveu, em grande parte, devido a sua habilidade institucional para afastar qualquer fator que ameaçasse seus princípios, fosse em nome da ciência, fosse mesmo contrariando a ciência.

Em segundo lugar, também é possível considerar que Freud inspirou uma maneira distinta de fazer ciência, malgrado todas as limitações aí presentes. Isto porque ao invés de um contexto que pudesse fabricar a hegemonia, como o laboratório, a psicanálise se fundamentou no pensamento teórico de seu criador, de onde provinham os instrumentos para ler o empírico e conhecê-lo dentro de uma legitimidade teórica. Em outras palavras, a teoria e não o método se tornava a instância em torno do qual os seguidores deveriam se reunir de maneira a tecerem as idéias e afirmações que poderiam ou não ser aceitas. Essa tendência do mestre fundador de emprestar seu nome a uma teoria, contrariando de certa forma a impessoalidade do projeto moderno de ciência, estendeu-se não só pelas psicologias, mas também pelas ciências humanas e sociais, levando consigo as possibilidades e contradições que lhe eram próprias (Gonzalez Rey, 2002; Stengers, 1995). Assim, se por um lado, a psicanálise trazia as eternas dificuldades em cumprir com a proposta de revelar o real, por outro, acabou realçando, mesmo que sem intenções, a dimensão social das ciências, pois a eleição do teórico como fonte de legitimidade colocou os homens mais que nunca frente a frente no tocante aos assuntos de seu interesse.

No entanto, a hipnose permitiu realçar ainda um ponto interessante no que se refere a tal prevalência teórica. Pouco importava que a psicanálise não efetivasse o acesso ao real com a precisão anunciada inicialmente ou que apresentasse os mesmos problemas de eficiência da hipnose, como o retorno dos sintomas e a piora das neuroses. Pouco importavam as querelas entre Freud e Ferenczi (Chertok & Stengers, 1989) sobre a influência, a empatia e a sugestão que denunciavam a necessidade de um retorno da reflexão sobre a hipnose, ainda presente no setting analítico. Pouco importava que o próprio Freud se colocasse de modo crítico e contundente quanto a suas próprias idéias, como o fez ao afirmar que ainda não havia sido encontrado substituto algum para a sugestão (Freud, 1937/1996d). As oposições, como as que poderiam surgir da hipnose, não ganhavam sentido, justamente porque uma teoria se estabelecia e não lhes reconhecia o valor, a condição de evidência ou mesmo os embaraços que poderia causar. A teoria deixou de ser uma propriedade pessoal e se tornou uma instituição ou o ponto central desta, que seria capaz de repelir ou abafar idéias contrárias a seus pressupostos, não importando de onde tais idéias viessem. Tornou-se o foco em torno do qual os grupos poderiam se reunir e ganhar força, conquistar espaços institucionais na sociedade, como também manter práticas endógenas de legitimação e resistir aos ataques de idéias contrárias. Desse modo, muitos psicanalistas se tornaram mais freudianos que o próprio Freud, a ponto de se tornaram mais imbuídos de um corpo de pensamentos a priori do que de uma forma de diálogo com a realidade, um corpo de pensamentos que deveria ser protegido e mantido a qualquer custo. O poder da hipnose, portanto, acabava inspirando o surgimento da psicologia, pois, por um lado, fazia com que os homens de ciência a banissem devido a suas imprecisões e decepções_sucessivas mas, por outro, acabava fazendo com que os homens se organizassem de modo a garantir pela força de suas instituições a ascensão ao tão sonhado projeto de ciência.


Conclusão: Das Respostas às Perguntas

A hipnose surgiu, inicialmente, como uma proposta técnica e metodológica da modernidade que envolveu grandes expectativas de um estudo confiável e científico da subjetividade. Entretanto, ela não tardou a decepcionar os representantes mais eminentes dessa ousada proposta, fosse pelo problema da complacência, fosse pela tentativa polêmica de associar clínica e ciência (Chertok & Stengers, 1989). Sendo assim, a hipnose se apresentava como um saber contraditório que, enquanto procedia com considerável eficiência, que remonta hoje a uma tradição de dois séculos de grandes terapeutas, não conseguia propiciar a realização do maior desejo do pensamento moderno: respostas confiáveis. Seus procedimentos se mostraram nebulosos e pouco condizentes com os desejos de precisão e certeza do projeto moderno, assim como seus processos se apresentaram pouco afeitos às caras pretensões de predição e controle dos mesmos.

No entanto, a importância que a hipnose possui está muito mais ligado às reflexões e questionamentos que proporciona do que às respostas que deixou de fornecer (Neubern, 2004; Stengers, 2001). Além de denunciar estratégias tendenciosas para a forma de contar a história da psicologia (Méheust, 1999), ela acaba levantando um questionamento mais profundo aquele sobre o mal estar desta ciência em sua adequação ao projeto moderno, basicamente em dois sentidos.

Primeiramente, ao romper com noções como revelação, certeza e controle a hipnose destaca que a subjetividade, enquanto objeto de estudo, possui outras exigências de abordagem que não são atendidas (ou ainda são mal atendidas) pelas metodologias modernas utilizadas para abordá-la. Aliar clínica e ciência tem se mostrado um desafio ingrato, uma vez que a atividade de cura, principalmente em termos das trocas relacionais que lhe são próprias, não se coaduna com precisão com o modelo clássico do laboratório, com uma perspectiva de revelação ou ainda com o princípio de uma realidade única. Não é sem razões que muitos psicólogos sob a inspiração moderna, incomodados com a diversidade teórica do campo, ainda acalentam a utopia de que ainda surgirá uma teoria que suplantará as diferenças e eliminará de vez a diferença de status entre a psicologia e as demais ciências.

Em segundo lugar, ao destacar a dimensão social da psicologia, como um processo necessário para o nascimento desta na modernidade, ela destaca, de maneira contundente, a participação dos sujeitos e das instituições que formaram foi decisiva para o nascimento da psicologia como ciência, malgrado seus desconfortos. Em outros termos, a história da hipnose mostra como tais protagonistas, imbuídos de motivações diversificadas e pareceres nem sempre racionais (Ellenberger, 1970; Laurence & Perry, 1988) proporcionaram o juízo sobre o que seria ou não digno de estudo científico. É possível afirmar, assim, que a participação dos mestres fundadores e das instituições constitui-se em um verdadeiro golpe de força para que a psicologia pudesse nascer enquanto um saber reconhecido (mesmo que mal reconhecido) pelo projeto moderno (Neubern, 2003, 2006; Stengers, 2001). Um golpe de força contra a incoerência do projeto moderno, das decisões de seus protagonistas e contra ameaças, como a hipnose, que colocavam em risco semelhante utopia que acabou por se realizar.

Tais reflexões levam a conceber que o fracasso da hipnose, como um procedimento de respostas confiáveis, ocorreu no passado e talvez continue ocorrendo indefinidamente. Porém, o que vale pensar nesse sentido é o que esse fracasso quer dizer, o que ele leva a pensar diante de uma tentativa insistente de submeter a subjetividade e às exigências da ciência moderna. A persistência desse fracasso talvez indique que seja necessário buscar um caminho diferente do que foi até aqui traçado, um caminho no qual a psicologia se debruce para compreender mais a fundo o que é subjetividade e quais suas exigências de estudo e não simplesmente enquadrá-la em suas ferramentas a priori traçadas sob a pretensão de abordar e estudar objeto qualquer que seja sua natureza.



Rodapé

1 Mesmer acreditava na existência de um fluido magnético que poderia ser transmitido entre as pessoas com fins terapêuticos (Mesmer, 1779/2005). Era comum que tal procedimento levasse à crises, vistas como integrantes da cura. A hipnose é considerada uma sucessora direta do magnetismo animal (Carroy, 1991; Laurence & Perry, 1988).
2 A primeira comissão, de 12 de março, era composta por Borie, Sallin, d'Arcet e Guillotin (da Faculté de Medecine) e por Bailly, Lavoisier, LeRoy, Bory e o então embaixador americano, Benjamin Franklin (da Académie des Sciences). A segunda comissão, de 5 de abril, era composta por membros da Societé Royale de Médecine, como Poissonnier, Caille, Mauduyt, Andry e o naturalista Laurent de Jussieu (Laurence & Perry, 1988).
3 Vale lembrar que a maioria dos sistemas psicológicos surge ou se mantém devido ao pensamento qualitativo. Caso a perspectiva da comissão fosse adotada a própria legitimidade desta ciência seria abalada. Lamenta-se que os muitos historiadores da psicologia não façam essa reflexão.
4 Baquet era uma espécie de tina de água magnetizada de onde partiam vários cordões que, acreditava-se, conduziam o magnetismo para os doentes. Estes seguravam nas pontas dos cordões fazendo, assim, uma espécie de corrente magnética (Ellenberger, 1970).
5 Para James (1896/2001) uma hipótese viva é aquela na qual o pesuisador enxerga uma possibilidade de que seja confirmada. Caso a hipótese não conte com essa possibilidade não faz sentido ao pesquisador proceder com a pesquisa, pois tenderá sempre para a negação.
6 Não é preciso fazer muito esforço para destacar que a maldição lançada sobre Freud estendeu-se por toda a psicologia moderna, mesmo àquelas que se autorizam como cientificas (Neubern, 2003).



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* Doctor en Psicología. Profesor adjunto Departamento de Psicología Clínica, Instituto de Psicología. Universidad de Brasília, Brasil. Correspondencia: Maurício S. Neubern. Dirección postal: Centro Universitário de Brasília - UniCeub. Faculdade de Ciências da Saúde e Educação. SEPN 707/907, Campus do UniCEUB, 70790-075, Brasília-DF, Brasil. Correo electrónico: mneubern@hotmail.com.

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