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Diversitas: Perspectivas en Psicología

versão impressa ISSN 1794-9998

Divers.: Perspect. Psicol. vol.18 no.1 Bogotá jan./jun. 2022  Epub 01-Jan-2022

https://doi.org/10.15332/22563067.5856 

Artículos

Avaliação psicológica no contexto do luto infantil: contribuições da Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano*

Evaluación psicológica en el contexto del duelo infantil: aportes de la teoría bioecológica del desarrollo humano

Psychological Assessment in the Context of Child Grief: Contributions of the Bioecological Theory of Human Development

Karolline de Jesus Saraiva Menezesa  1 
http://orcid.org/0000-0002-2515-7405

Juliane Callegaro Borsa2 
http://orcid.org/0000-0001-7703-5509

1Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

2Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro


Resumo

A avaliação psicológica infantil é um processo dinâmico que envolve a identificação e análise de diferentes características biopsicossociais associadas ao desenvolvimento humano. No contexto do luto, esse processo possibilita investigar os fatores de risco para o desenvolvimento de complicações, planejar ações preventivas e contribuir para a experiência do luto. Este artigo visa apresentar a pesquisa qualitativa desenvolvida a partir da avaliação psicológica de duas crianças em luto decorrente da morte de familiares, a qual foi discutida à luz da Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano. Notou-se a relevância do processo avaliativo e da adoção da referida teoria no contexto do luto, pois contemplaram os componentes individuais e contextuais associados às perdas, que podem contribuir para a melhoria da qualidade de vida das crianças enlutadas.

Palavras-chave avaliação psicológica; criança; luto; teoria bioecológica; qualidade de vida

Resumen

La evaluación psicológica infantil es un proceso dinámico que implica la identificación y el análisis de diferentes características biopsicosociales asociadas al desarrollo humano. En el contexto del duelo, este proceso permite investigar los factores de riesgo para el desarrollo de complicaciones, planificar acciones preventivas y aportar a la experiencia del duelo. El artículo tiene como propósito presentar la investigación cualitativa desarrollada desde la evaluación psicológica de dos niños en duelo por la muerte de familiares, que se discutió a la luz de la teoría bioecológica del desarrollo humano. Se evidenció la relevancia del proceso de evaluación y la adopción de la mencionada teoría en el contexto del duelo, ya que contemplaban los componentes individuales y contextuales asociados a las pérdidas, que pueden aportar a la mejora de la calidad de vida de los niños en duelo.

Palabras clave evaluación psicológica; niño; luto; teoría bioecológica; calidad de vida

Abstract

Child psychological assessment is a dynamic process that involves the identification and analysis of different biopsychosocial characteristics associated with human development. In the context of grief, this process makes it possible to investigate risk factors for the development of complications, plan preventive actions, and contribute to the experience of grief. This article aims to present the qualitative research developed from the psychological assessment of two children in grief from the death of family members, which was discussed in light of the Bioecological Theory of Human Development. The relevance of the evaluation process and the adoption of this theory in the context of grief was noted, as it included the individual and contextual components associated with the losses, which can contribute to the improvement of the quality of life of children in grief.

Keywords psychological assessment; children; grief; bioecological theory; quality of life

Introdução

A avaliação psicológica (AP) é um segmento específico da psicologia e um de seus campos mais antigos (Borsa e Muniz, 2016). Segundo o Conselho Federal de Psicologia, a AP é definida como um “processo estruturado de investigação de fenômenos psicológicos composto de métodos, técnicas e instrumentos, com o objetivo de prover informações à tomada de decisão, no âmbito individual, grupal ou institucional, com base em demandas, condições e finalidades específicas” (Conselho Federal de Psicologia, 2018, p. 2).

A AP é um processo dinâmico, que visa levantar hipóteses que poderão ser confirmadas ou refutadas, com relação a uma ou mais questões psicológicas por meio da coleta, análise e interpretação dos resultados em consonância à(s) respectiva(s) questão(ões). A partir dos processos de AP, é possível investigar características biopsicossociais, tais como cognição, emoção, inteligência, personalidade, memória, percepção, entre outros (Urbina, 2007).

Quanto ao público infantil, a AP visa à prevenção de outras dificuldades ao longo do ciclo vital (Borsa e Muniz, 2016; Schelini, 2019). Entre os aspectos mais frequentemente avaliados junto às crianças, destacam-se os marcos maturacionais, considerando os aspectos típicos e atípicos do desenvolvimento cognitivo, físico, cerebral, linguístico, social e identitário e psicopatologias comuns a essa etapa da vida (Carr, 2016; Trentini et ál., 2016). Entre os principais motivos para a realização da AP, citam-se as dificuldades escolares, a agressividade e a ansiedade (Schelini, 2019), ficando o diagnóstico e o prognóstico associados à possibilidade de identificação precoce de fatores que podem acarretar consequências deletérias para o desenvolvimento (Goulart, 2016). Por isso, é importante adotar diferentes procedimentos de investigação para identificar aspectos individuais, contextuais e relacionais da criança (Borges e Baptista, 2018).

Outra causa importante concerne ao luto, uma vez que este representa uma relevante transição psicossocial que, além de gerar importantes respostas biopsicossociais, promove mudanças em diferentes âmbitos da vida da pessoa enlutada (Parkes, 1998), incluindo as crianças. As especificidades do evento e o meio social influenciam o processo de luto, assim como os aspectos da singularidade e a expressão de sentimentos de tristeza, raiva, saudade intensa e culpa (Parkes, 1998; Worden, 1998). As crianças que sofreram perdas inesperadas ou precoces tendem a apresentar lembranças recorrentes da pessoa que morreu e, caso a morte tenha sido de forma violenta e testemunhada por elas, tais lembranças podem se mostrar dolorosas e persistentes, podendo, inclusive, contemplar os critérios atinentes ao transtorno de estresse pós-traumático (Eth e Pynoos, 1994). Sugere-se prestar o devido suporte e intervenção à criança, a fim de evitar efeitos deletérios à sua saúde física e mental (Andrade, 2013). Recomenda-se, ainda, o atendimento psicoterapêutico sequencial, com vistas a contribuir para a experiencia do processo de luto (Parkes, 1998).

Por meio de procedimento avaliativo detalhado, é possível investigar o histórico de perdas e as recorrentes manifestações de pesar na família, que tendem a facilitar o entendimento das reações das crianças por parte do psicólogo perante o rompimento de vínculo significativo, assim como as estratégias emocionais e comportamentais adotadas que as impedem de viverem o luto (Andrade, 2013; Walsh e McGoldrick, 1998). Nota-se a relevância de uma abordagem teórica integrativa, que possibilite abarcar tanto os componentes individuais quanto contextuais associados à perda, com o objetivo de prestar suporte às necessidades e contribuir para a qualidade de vida das crianças enlutadas (Burman e Allen-Meares, 1994).

Diante do exposto, o presente artigo tem como objetivo apresentar a pesquisa qualitativa desenvolvida a partir da condução de avaliação psicológica de duas crianças em luto decorrente da morte de familiares vítimas de homicídio. Os resultados da AP serão apresentados e discutidos à luz da Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano (TBDH), além de apontadas considerações finais.

Fundamentação teórica

A TBDH, postulada por Bronfenbrenner (2005), entende o desenvolvimento da pessoa como resultado de sua interação com o respectivo ambiente, promovendo mudanças em suas características biopsicossociais, que, consequentemente, repercutem em seu contexto. O modelo de estudo foi denominado “Processo-Pessoa-Contexto-Tempo” (P-P-C-T) e considera quatro componentes: 1) processo proximal; 2) pessoa; 3) contexto e 4) tempo. Esses apresentam conexões e são interdependentes, devendo ser considerados em sua totalidade na percepção de cada indivíduo.

Por componente “Processo”, denominado de “processo proximal”, entende-se a interação recíproca entre a pessoa em desenvolvimento e as demais pessoas, objetos e símbolos do ambiente, progressivamente mais complexa, cujas partes se mantêm ativas e se estimulam mutuamente (Bronfenbrenner e Morris, 2006). Por exemplo, relações parentais nas quais os limites são negociados e são expressos os sentimentos de forma funcional, proporcionando equilíbrio de poder, reciprocidade e afetividade — que são três aspectos geradores de competência para o desenvolvimento. Inversamente, relações parentais permeadas por agressões físicas e/ou verbais, que podem comprometer a qualidade das competências, culminando em resultados de disfunção (Bronfenbrenner, 2002).

O componente “Pessoa” abarca as características biológicas e psicológicas e aquelas que surgem como resultado das interações com o ambiente. Três características podem ser geradoras de processos proximais ao longo do ciclo vital: (1) disposições, que ativam os processos (por exemplo, engajamento em atividades); (2) recursos de capacidade, experiência, conhecimento, que são necessários para o efetivo funcionamento desses processos (por exemplo, habilidades sociais), e (3) demandas, que convidam as reações do contexto social, bem como podem estimular as operações dos processos proximais (por exemplo, temperamento calmo).

Por sua vez, deficiências de aquisição, desempenho e fluência podem resultar em características inibidoras que, ao longo da vida, tendem a comprometer o desenvolvimento de competências da pessoa. Esses três tipos de deficiências podem também ser relacionados às características da pessoa (as disposições, os recursos e as demandas) e influenciam diretamente os processos proximais (Bronfenbrenner, 2005; Bronfenbrenner e Morris, 1998). Exemplifica-se, com relação às disposições, expressão de raiva por meio de comportamentos agressivos por parte da criança. Para os recursos, doenças graves podem interferir em distintas experiências infantis. E, com relação às demandas, aparência física debilitada pode influenciar as reações ao entorno ante a criança.

O componente “Contexto” foi definido por sistemas inter-relacionados, dividido em quatro níveis: microssistema, mesossistema, exossistema e macrossistema, que contemplam desde ambientes mais próximos até mais distantes, mas que refletem a vida social da pessoa em desenvolvimento (Bronfenbrenner, 2005). O primeiro compreende o ambiente imediato no qual os papéis, as atividades e as interações acontecem face a face, constituindo o contexto primário de desenvolvimento. Exemplifica-se a relação entre a criança e o ambiente familiar, em que aquela observa e se engaja em atividades com o auxílio direto de pessoas com quem tem uma relação afetiva positiva e possuem conhecimentos e competências que ela ainda não possui (Bronfenbrenner e Morris, 2006). Contudo, o ambiente coercivo e que incentiva padrões relacionais baseados em preconceitos e discriminações de gênero e etnia, por exemplo, pode prejudicar o desenvolvimento, aumentando a probabilidade de dificuldades emocionais e comportamentais ao longo do ciclo vital (Bronfenbrenner, 2002). O segundo envolve o conjunto de relações sociais que ocorre entre dois ou mais ambientes em que a pessoa em desenvolvimento participa e cujas interações podem ser promotoras ou inibidoras do desenvolvimento (Bronfenbrenner e Morris, 1998). Exemplifica-se a relação entre a família e a escola, representando um dos mais importantes sistemas, pois a criança se depara com normas, valores e papéis sociais compartilhados pela sociedade onde vive, que ajudarão na constituição de relacionamentos interpessoais saudáveis (Bronfenbrenner, 2002). O terceiro compreende a interconexão entre ambientes em que, apesar de não estar situada, a pessoa em desenvolvimento influencia e é influenciada por eles. Por exemplo, situações ocorridas no trabalho dos pais, que embora seja um ambiente distal à criança, pode influenciar em sua rotina familiar. E o quarto trata-se de um amplo ambiente, onde é compartilhado o conjunto de normas, valores e regras da cultura à qual pertence a pessoa em desenvolvimento (Bronfenbrenner, 2005), como o Estatuto da Criança e do Adolescente, que prima pelo desenvolvimento sadio da criança e do adolescente, além de protegê-los de relacionamentos disfuncionais, por meio de um conjunto de leis (Del Prette e Del Prette, 2001, 2010).

Quanto aos fatores de risco em nível microssistêmico, são exemplo os domínios familiares conflituosos (Cecconello et ál., 2003). Em nível mesossistêmico, a escassez de rede de apoio (Burman e Allen-Meares, 1994; Cecconello et ál., 2003). Em nível exossistêmico, citam-se os casos de instabilidade no exercício profissional de um genitor, que pode interferir na qualidade da educação infantil (Burman e Allen-Meares, 1994). Em nível macrossistêmico, destaca-se o estudo de Koller (1999), que exemplifica a ausência de comprometimento com os direitos da criança e da mulher. Ainda em nível macrossitêmico, o desemprego, a pobreza e a violência podem provocar interferências no acesso aos recursos básicos (por exemplo, saúde, educação e trabalho) e, consequentemente, limitar as possibilidades de estabelecimento de redes de apoio, impactando no nível mesossistêmico (Cecconello et ál., 2003).

Por fim, o componente “Tempo”, denominado de “cronossistema”, que entende o desenvolvimento a partir de condições e eventos históricos (Bronfenbrenner e Morris, 1998). A passagem do tempo tem relação desde a episódios mais próximos da vida familiar, como o divórcio dos pais, até mais distais, como as práticas educativas de pais na década de 1940, quando comparadas às práticas na atualidade (Martins e Szymanski, 2004). Esse componente divide-se em três dimensões: (1) microtempo, envolve a continuidade ou descontinuidade notada em meio a um breve episódio de processo proximal; (2) mesotempo, envolve a periodicidade de um episódio de processo proximal em maiores intervalos de tempo, e (3) macrotempo, abarca o processo de mudança por meio de gerações (Bronfenbrenner e Morris, 1998).

Método

Participantes

Participaram da AP dois meninos, de 6 e 8 anos. O primeiro, Luan, cursava a pré-escola II em escola particular e residia no estado do Rio de Janeiro, Brasil. O menino havia perdido o irmão mais velho, vítima de homicídio em setembro de 2017. Contou-se com a participação de sua genitora ao longo do estudo. Já o segundo, Felipe, cursava o 3º ano do ensino fundamental em escola pública e residia no município do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. O menino havia perdido o pai, vítima de homicídio em março de 2018. Contou-se com a participação de sua cuidadora imediata, avó materna, ao longo do estudo.

Instrumentos

Foram realizadas cinco sessões, com duração de 50 minutos e frequência semanal, com cada criança para a aplicação dos procedimentos e dos instrumentos: 1) entrevista lúdica e roteiro de observação (adaptado de Krug, 2014); 2) Escala Baptista de Depressão Infanto-Juvenil — EBADEP-IJ (Baptista, 2011); 3) desenho da família (Ortega e Santos, 2012) e formulário de registro; 4) teste de apercepção infantil: figuras humanas — CAT-H (Bellak e Bellak, 1981[1965]); 5) Escala Wechsler Abreviada de Inteligência — Wasi (Trentini et ál., 2014). Para fins de estudos e pesquisa, também foram utilizados os instrumentos Escala de Stress Infantil — ESI (Lipp e Lucarelli, 2005) — e Escala de Comportamentos Agressivos entre Pares — PAB-S (Borsa, 2016).

Com as responsáveis, foram realizadas duas sessões para a aplicação dos procedimentos e dos instrumentos: (1) entrevista inicial (na presença dos cônjuges); (2) entrevista de anamnese individual por meio de roteiro de entrevista de anamnese (adaptado de Franco, 2010; Soares et ál., 2006). Na oportunidade, foram aplicados os instrumentos: (1) Escala de Pensamentos Depressivos — EPD (Carneiro e Baptista, 2016) — e (2) Escala dos Pilares da Resiliência — EPR (Cardoso e Martins, 2013). Ao final do processo avaliativo, foram realizadas sessões devolutivas individuais com a criança e o respectivo responsável.

Considerações éticas e procedimentos de coleta de dados

O presente estudo é fruto de pesquisa de mestrado, que foi aprovada pela Comissão de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil, e pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética 04901318.9.0000.5282), além de seguir as recomendações éticas da Resolução 510/2016 (Conselho Nacional de Saúde, 2016).

Para preservar o anonimato dos participantes, usaram-se nomes fictícios. A coleta de dados foi realizada em uma sala de atendimento individual localizada no Serviço de Psicologia Aplicada de uma universidade privada brasileira, sendo assegurados os aspectos de autonomia, sigilo, privacidade e confidencialidade. Como condição para a participação, também foi requerida aos participantes a disponibilidade para iniciar, após a AP, o atendimento psicoterapêutico breve, a fim de prestar o acolhimento e manejo das demandas oriundas da vivência do luto.

Análise de dados

A análise dos dados ocorreu a partir da avaliação de cada caso em profundidade e de forma idiossincrática. Os instrumentos e os procedimentos foram corrigidos individualmente, segundo orientações constantes em seus manuais técnicos. Em seguida, os resultados foram analisados em conjunto, por meio da integração com o histórico de vida das crianças. Essas informações foram obtidas a partir das entrevistas com os responsáveis.

A análise de cada caso será apresentada de acordo com as categorias: 1) histórico da perda e do processo do luto; 2) entrevista e avaliação dos genitores ou cuidadores; 3) avaliação individual da criança e 4) síntese conclusiva das avaliações. Os dados foram integrados para a compreensão dos casos, a partir de uma perspectiva biopsicossocial. A TBDH (Bronfenbrenner, 2005) orientou a discussão dos resultados, segundo o Modelo P-P-C-T, suscitando aspectos comuns e diferenciais relacionados ao luto infantil.

Resultados

Luan

Histórico da perda e do processo do luto

Luan residia com os pais e três irmãos. Foi declarado pela mãe como sendo da raça negra e católico. Ela também informou que a renda familiar mensal era, aproximadamente, entre dois e quatro salários-mínimos. Sua mãe, que participou da pesquisa, tinha 40 anos de idade, havia cursado o ensino fundamental completo e exercia atividade profissional regular como diarista. Seu pai tinha 40 anos, possuía o ensino médio completo e trabalhava em um frigorífico. O casal informou ser casado há 14 anos, manter relação conjugal permeada pelo diálogo e possuir três filhos, sendo Luan (6 anos), uma menina (3 anos) e um menino (6 meses). A mãe acrescentou que tinha mais dois filhos, frutos de um relacionamento anterior, sendo o primogênito falecido (à época, 18 anos) e um adolescente (17 anos). Para melhor compreensão, a Figura 1 representa o genograma da família de Luan.

Fonte: elaboração própria com o auxílio do software GenoPro.

Figura 1. Genograma da família de Luan 

A morte do irmão de Luan foi provocada por agressão física e arma de fogo, em via pública, e não foi testemunhada por nenhum membro familiar. Foi realizado o registro de ocorrência e, segundo os pais, nenhum culpado foi identificado. Os genitores relataram os detalhes da morte do irmão de Luan com muita comoção, sendo necessário prestar o devido acolhimento para ambos.

Os genitores afirmaram que “Luan não foi oficialmente comunicado sobre a morte do irmão”. O menino tampouco participou dos rituais fúnebres. Os genitores declararam que “não conseguem, não têm forças para falar sobre morte com o filho”. Dessa forma, optaram por apresentar justificativas fantasiosas (por exemplo, viagem e mudança de moradia) e, principalmente, manter informações em sigilo tanto para preservar a saúde mental da criança quanto pela dificuldade do próprio casal para lidar com a perda familiar. Eles acreditam que essa postura impacta diretamente a saúde, comportamentos e constantes perguntas da criança sobre a ausência do irmão. Os pais declaram que os irmãos mantinham uma relação muito próxima e afetuosa.

O pai e a mãe contaram que o luto foi vivenciado de formas distintas pelos membros da família, sendo o silêncio um aspecto comum para não esboçar as respectivas reações de pesar. Especialmente com relação a Luan, eles pontuaram ter percebido o menino muito calado e triste e, posteriormente, ele começou a manifestar comportamentos agressivos físicos e verbais, impacientes e enraivecidos nos ambientes familiar e escolar, sendo motivo de constantes queixas da professora. Conforme relataram, até o momento da perda, o filho apresentava comportamento tranquilo. A mãe informou que, em situações de contrariedade, Luan se comporta de forma impulsiva, desconsiderando o contexto, as pessoas envolvidas, bem como a conveniência de suas condutas.

Os pais contaram que Luan realizou acompanhamento psicológico, após a morte do irmão, por um ano, na própria escola, sendo avaliado de forma positiva, pois apresentou melhoras. Contudo, os atendimentos foram suspensos em julho de 2018, sem previsão de retorno. Desde então, os pais perceberam que, além dos sentimentos e comportamentos anteriormente mencionados, Luan passou a apresentar enurese e encoprese. Por fim, os pais enfatizaram que buscam providenciar as assistências necessárias, de acordo com as possibilidades financeiras, para que o menino tenha uma vida mais calma, com saúde e alegria, principalmente por ter passado por essa significativa perda.

Entrevista e avaliação dos genitores

Observou-se que ambos os pais se apresentaram abalados, comovidos e sensibilizados com a situação emocional de Luan e do próprio casal. Apesar de apresentarem aspectos comuns, foi possível perceber algumas diferenças nas preocupações, na experiência do luto e nas estratégias de enfrentamento utilizadas por cada um. O pai, embora sensibilizado, apresentou uma postura mais racionalizada, declarando ter se voltado para a rotina de trabalho. Já a mãe mostrou-se muito mobilizada com a perda, especialmente pelo contexto e pela maneira como ocorreu, afirmando sentir muita mágoa, raiva e revolta pela perda repentina e violenta do filho mais velho. Ela informou ter realizado acompanhamento psiquiátrico por aproximadamente cinco meses, descrevendo vivências de rebaixamento de humor e desorientação. Devido à nova gestação, contudo, ela interrompeu o tratamento, suspendeu o uso dos medicamentos e não retornou para a reavaliação psiquiátrica.

Com a mãe, foi aplicada a EPD; os resultados indicaram que ela apresentava uma frequência mediana de pensamentos depressivos com relação a si própria, associados a uma visão negativa de futuro. Esses pensamentos relacionavam-se às expectativas sobre o futuro, à sensação de sofrimento prolongado e à solidão. Também apresentou frequência mediana de pensamentos negativos quanto ao mundo e às outras pessoas de sua convivência. Houve incidência de pensamentos associados a moderado apoio social. Já na EPR, os resultados sinteticamente apontavam para maior habilidade em adotar uma conduta resiliente ao vivenciar um evento adverso.

Avaliação individual da criança

Luan demonstrou aspecto saudável e aparência bem cuidada. Inicialmente, mostrou-se tímido, mas depois desenvolveu diálogo fluido com a psicóloga. Em geral, Luan demonstrou ser organizado e comunicativo, conseguindo estabelecer diálogo coerente, em consonância com sua idade e objetivo. Houve prontidão para a brincadeira, e a avaliadora foi incluída em todas as atividades. Foi solicitada prévia permissão para usar cada um dos recursos lúdicos, explorando-os de forma cuidadosa. Foi possível observar que Luan se comportou de forma articulada e tolerou os limites da sala de atendimento, sendo explorado todo o espaço. Quando interrompida ou questionada, a criança mostrava impaciência, mas respondia de forma objetiva e respeitosa, sem manifestar agressividade.

Durante os encontros, não mencionou situações de conflito, tão somente o falecimento do irmão mais velho, sem apresentar mais detalhes. Não houve dificuldade para encerrar as sessões, e, por iniciativa própria, o menino arrumou os brinquedos/jogos disponíveis na sala de atendimento. Ao final de cada atendimento, Luan sugeria novos jogos e brincadeiras para os próximos encontros. Acredita-se ter sido estabelecido o vínculo com a criança, que, inclusive, ao final do atendimento, pediu que o encontro fosse repetido no dia seguinte.

Sobre os aspectos cognitivos, os resultados da Wasi indicaram desempenho intelectual mediano com escores altos em tarefas relacionadas ao QI verbal, que envolvem o conhecimento adquirido, o raciocínio verbal e a atenção à informação verbal. Com relação aos aspectos emocionais e comportamentais, no CAT-H, foi possível perceber a produção de histórias com vocabulário condizente à faixa etária, todavia com conteúdo limitado e concreto. Foi possível perceber que a criança buscava a aprovação daqueles a quem ama, especialmente da mãe, esforçando-se para se adaptar e obedecer às regras; ainda assim, quando se sentia ameaçada, expressava-se de forma reativa e agressiva, fruto das frustrações que experimentava. Percebeu-se certa resistência e dificuldade da criança para entrar em contato com os conteúdos afetivos associados à morte familiar. Consequentemente, o menino tendia a associar seus anseios e angústias a outra pessoa, objetos ou evento externo (por exemplo, episódios de conflito escolar e descumprimento das orientações da mãe) e, em alguns momentos, à expressão de reações de desconforto físico.

Luan apresentou resultados indicativos de fase de alerta para estresse na ESI, quando comparado aos pares de faixa etária próxima, além da presença de reações psicológicas, físicas, psicofisiológicas e psicológicas com componente depressivo. Foi possível verificar que a criança apresentava características positivas relacionadas à autoestima, à perspectiva de futuro e ao humor na EBADEP-IJ. Os resultados também indicaram baixa sintomatologia, quando comparados à faixa etária próxima da criança. Observou-se que Luan assinalou as alternativas relativas à agressividade, à tristeza e ao choro recorrentes.

Os resultados da PAB-S indicaram moderada frequência de comportamentos agressivos físicos. No desenho da família, Luan representou sua família composta por nove membros, incluindo ele e o irmão falecido ao lado. Descreveu os papéis de cada membro e o vínculo que ele possui com cada um. No que se refere ao irmão que faleceu, Luan declarou nutrir forte apreço e sentir muito sua falta. Ao final, o menino declarou que família significa cuidado, união, realizar atividades de lazer e fazer as refeições juntos. Constatou-se que a criança verbalizou sobre a perda e, ainda assim, incluiu o irmão em seu desenho. Contudo, percebeu-se dificuldade para entrar em contato com os conteúdos afetivos associados à morte familiar.

Síntese conclusiva das avaliações

Observou-se que Luan apresentava níveis de funcionamento cognitivo e intelectual médio. O menino apresentava características positivas relacionadas à autoestima, à perspectiva de futuro e ao humor, sendo traços de interesse para potencial investimento. Notou-se que a criança apresentava resistência e dificuldade para entrar em contato com os conteúdos afetivos associados à morte do irmão. Observaram-se vivências emocionais bastante mobilizantes com o uso de estratégias defensivas, principalmente, a agressividade. A psicoterapia individual foi apresentada como indicações terapêuticas, com o intuito de ampliar as capacidades de regulação emocional desde a infância, evitar a evolução para a segunda fase do estresse (fase de exaustão) e auxiliar no desenvolvimento de estratégias de enfrentamento e construção de significados diante da perda familiar. No âmbito escolar, recomendou-se estimular continuamente a inclusão e o acolhimento por meio de pontuais iniciativas psicopedagógicas. Para a rotina, sugeriu-se a conservação de rotina estruturada, incluindo atividades de lazer em família, definição de responsabilidades na casa que possam fortalecer a autonomia, contínua prática de atividades esportivas que incentivem o respeito às diretrizes e à percepção gregária, além de outros esforços dirigidos para estimular o desenvolvimento e qualidade de vida de Luan.

No que diz respeito à mãe, observou-se que apresenta pensamentos depressivos em grau médio em relação a si própria e uma visão negativa do futuro, bem como com relação ao mundo e às outras pessoas. Isso se soma às dificuldades para o controle emocional quando vivencia um evento estressor. Contudo, há indicativos de conduta resiliente diante de situações adversas. Recomendou-se psicoterapia individual, considerando a sensação de sofrimento prolongado, a solidão e a violenta perda do filho em prol da experiência do luto, também a reavaliação e conduta por psiquiatra, considerando a interrupção de tratamento, inclusive medicamentoso. Para o âmbito familiar, recomendou-se a realização de aconselhamento/educação sobre a morte e o luto infantil, inclusive com a participação do pai, com vistas a auxiliar o diálogo com a criança sobre a morte do irmão mais velho. Para a vida social, sugeriu-se incentivo à participação em atividades sociais fora do ambiente familiar, a fim de ampliar a rede de apoio.

Felipe

Histórico da perda e do processo do luto

Felipe residia com os avós maternos. Foi declarado pela avó materna como sendo da raça negra e evangélico. Ela também informou que a renda familiar mensal era em torno de dois a quatro salários-mínimos. A avó materna tinha 53 anos no momento da pesquisa, havia cursado o ensino fundamental incompleto e era responsável pelas atividades do lar familiar. O avô materno tinha 55 anos, também possuía o ensino fundamental incompleto e exercia a ocupação de ladrilheiro. Os avós maternos informaram ser casados há 38 anos, manter vida familiar baseada nos preceitos religiosos e possuir três filhas, sendo uma falecida (mãe de Felipe) e duas casadas. Para melhor compreensão, a Figura 2 representa o genograma da família de Felipe.

Fonte: elaboração própria com o auxílio do software GenoPro.

Figura 2. Genograma da família de Felipe 

O casal informou que Felipe nasceu prematuro, foi acompanhado e realizou os tratamentos médicos necessários, que contribuíram para seu desenvolvimento. Com relação aos pais do menino, os avós maternos informaram que o casal coabitava com os dois filhos, mas mantinha um relacionamento instável e permeado por contendas. O casal esclareceu que o irmão mais velho de Felipe (16 anos) foi fruto de um relacionamento anterior de sua filha (mãe de Felipe).

A morte do pai de Felipe foi provocada por agressão física e atropelamento em via pública, e não foi testemunhada por nenhum membro familiar. A avó materna não soube informar se foi realizado o devido registro de ocorrência e a identificação de culpado(s). Antes da morte do pai, os avós maternos informaram que a criança havia sofrido a perda da mãe em março de 2016 e, três meses depois, perdeu a irmã mais nova. Devido à morte dos pais de Felipe, os avós maternos afirmaram que tramita um processo de disputa de guarda entre eles e os avós paternos, sendo definido, até o momento da pesquisa, a guarda unilateral para o casal de avós maternos, com visitação quinzenal para os avós paternos. Eles ponderaram perceber Felipe ainda mais ansioso com a possibilidade de outra mudança em sua vida. Em oportunidade, foi enfatizado tanto para a criança quanto para os avós maternos que a avaliação psicológica que estava sendo realizada visava compreender as dificuldades da criança apresentadas nesse momento, não objetivando tomar partido na disputa da guarda.

Os avós maternos relataram sobre cada morte com muita comoção. Sobre a morte da mãe, eles avaliam que foi uma experiência traumática para a criança, pois ela testemunhou o evento. À época, a avó materna pontuou ter percebido o menino muito abalado, triste e com sentimentos de culpa e desvalia. Contudo, dois meses depois, o menino perdeu a irmã mais nova, sendo motivo de muita tristeza e pesar para a criança e a família. Em 2018, Felipe passou por mais uma perda — a morte do pai —, a partir da qual os avós maternos perceberam sentimentos de tristeza, revolta e desamparo, bem como a presença de comportamentos agressivos e regressivos (por exemplo, fala infantilizada), postura impaciente e choro descompensado por parte de Felipe. Além disso, o menino passou a se autoagredir, provocando arranhões nos braços e nas pernas. De acordo com a avó materna, apesar das perdas anteriores à morte do pai, foi somente a partir desse evento que ele passou a exibir os comportamentos descritos. Ela informou que, em situações de contrariedade, Felipe se comporta de forma impulsiva, desconsiderando o contexto, as pessoas envolvidas e a conveniência de suas condutas.

Os avós maternos disseram que Felipe desejou participar somente dos rituais fúnebres do pai, ou seja, não participou do enterro da mãe e da irmã mais nova. Rememoraram que foi um momento muito delicado, tendo sido feitas muitas perguntas pela criança acerca da causa da morte do pai, do sepultamento e de como ficaria a vida familiar, uma vez que perdera os pais e a irmã. Os avós maternos declararam que buscaram sanar as dúvidas, porém optaram, algumas vezes, por amenizar ou manter em sigilo certas informações para preservar a saúde mental da criança e por apresentarem suas próprias dificuldades para lidar com mais uma perda na família. A avó materna buscou acompanhamento psicológico na rede privada para Felipe após a morte da mãe, sendo encerrado após seis meses pela psicóloga sob a justificativa de “melhora do estado emocional do menino”. Após as mortes da irmã e do pai, a avó materna buscou acompanhamento psicológico na rede pública, porém não obteve êxito, impedimento explicado ora pelo abarrotamento da rede para o serviço de psicologia, ora pela ausência de profissional para prestar atendimento. Por fim, os avós maternos enfatizaram que vêm procurando providenciar as assistências necessárias para o menino para que ele tenha uma vida mais tranquila, com saúde e alegria, principalmente por ter passado por consecutivas perdas.

Entrevista e avaliação dos cuidadores

Observou-se que ambos se apresentaram abalados, comovidos pela situação emocional dos netos e bastante sensibilizados pelas mudanças concernentes à morte da filha, da neta e do genro. Embora apresentassem aspectos comuns, foi possível perceber algumas diferenças nas preocupações, nas experiências do luto e nas estratégias de enfrentamento utilizadas por cada um. O avô materno, apesar de sensibilizado, apresentou uma postura mais racional, voltando-se para as atividades profissionais e os compromissos como pastor na igreja que frequentava. Já a avó materna se mostrou muito mobilizada com as recorrentes perdas, especialmente da filha, descreveu situações que envolviam vivências de ansiedade e depressão. Ainda assim, ela declarou que almeja promover a felicidade, conforto e paz na vida de sua família.

Com a avó materna, foi aplicada a EPD, a qual indicou presença de pensamentos depressivos em relação a si própria, associados a uma visão negativa de futuro e menor frequência de pensamentos negativos com relação ao mundo e às outras pessoas de sua convivência. Desses pensamentos, muitos relacionam-se à sensação de incapacidade de resolver problemas, à confusão e a ideias sobre cessação da própria vida. Todavia, há incidência de pensamentos associados a moderado apoio social. Já na EPR, sinteticamente, os resultados indicaram que a avó materna apresentava maior dificuldade em ter uma conduta resiliente ao vivenciar um evento adverso.

Avaliação individual da criança

Felipe demonstrou aspecto saudável e aparência bem cuidada. Foi possível perceber que a criança rangia os dentes nos atendimentos iniciais, percebendo-se a redução desse comportamento no decorrer dos encontros. Em geral, a criança mostrou-se organizada e comunicativa, conseguindo estabelecer diálogo coerente, em consonância com sua idade, e objetivo. O menino pediu permissão para usar cada um dos recursos lúdicos, brincando de forma cuidadosa e incluindo a avaliadora em todas as atividades. Observou-se que Felipe tolerou os limites da sala de atendimento, sendo explorado todo o espaço. Quando interrompida ou questionada, a criança respondeu de forma coerente e objetiva, sem manifestar frustração ou agressividade.

Durante os encontros, não mencionou situações de conflito, exceto o processo de guarda entre os avós (maternos e paternos) e a morte de três pessoas importantes de sua família, sendo a última de seu pai. Não houve dificuldade para encerrar as sessões, e, por iniciativa própria, o menino arrumava os brinquedos. Ao final de cada atendimento, o menino sugeriu novos jogos e brincadeiras para os próximos encontros.

Sobre os aspectos cognitivos, os resultados da Wasi indicaram desempenho intelectual acima da média com escores mais elevados nas tarefas relacionadas ao QI verbal, que envolvem o conhecimento adquirido, o raciocínio verbal e a atenção à informação verbal. Com relação aos aspectos emocionais e comportamentais, no CAT-H, foi possível perceber a produção de histórias com a presença frequente de elementos relacionados à morte e com desenlaces negativos. O discurso da criança apresentava conteúdo ansiogênico e pesaroso, sentimentos de impotência, solidão, medo, repreensão e agressividade, vulnerabilidade e desamparo, sendo adotada como modo de expressão e de comportamento a fala infantilizada diante das situações com as quais sente dificuldade para lidar, principalmente aquelas alusivas às perdas familiares.

Felipe apresentou resultados indicativos de fase de alerta para estresse na ESI, além da presença de reações psicológicas, físicas, psicofisiológicas e psicológicas com componente depressivo. Inclusive, essas reações foram relatadas durante a aplicação do instrumento. Também foi possível verificar que a criança apresentava características positivas relacionadas à autoestima e ao humor na EBADEP-IJ. Os resultados também indicaram o limiar para a próxima faixa referente à sintomatologia leve. Observou-se, ainda, que o menino assinalou as alternativas associadas à existência de ideias sobre a cessação da própria vida e a desesperança.

Os resultados da PAB-S indicaram baixa frequência de comportamentos agressivos físicos e relacionais. No desenho da família, Felipe representou a composição familiar formada por oito membros, incluindo ele mesmo, e o animal de estimação. Descreveu os papéis de cada membro e o vínculo que possui com cada um. Quanto aos avós maternos, Felipe declarou nutrir forte apreço por ambos. Acrescentou que gostaria de ter representado a mãe, mas optou por não a desenhar e projetar o evento no futuro para não lembrar que a referida morreu. A criança não mencionou o pai, tampouco a irmã. Constatou-se que a criança apresentou resistência e dificuldade para abordar os conteúdos afetivos associados às mortes familiares. Ainda assim, percebeu-se que a criança era atenta e perceptiva aos eventos e às relações afetivas na família.

Síntese conclusiva das avaliações

Observou-se que Felipe apresentava níveis de funcionamento cognitivo e intelectual acima da média. O menino apresentava comportamentos positivos relacionados à autoestima e ao humor, sendo características para potencial investimento. Além disso, ele apresentou baixa frequência de comportamentos agressivos diretos físicos e relacionais, embora eventualmente frequentes. Notou-se que a criança apresentava resistência e dificuldade para entrar em contato com os conteúdos afetivos associados às mortes da mãe, da irmã e do pai, especialmente com relação à primeira, além da nova dinâmica contextual que ainda estava se organizando. Também foram observadas vivências emocionais bastante mobilizantes com o uso frequente de regressão como estratégia defensiva. Felipe manifestou a existência de ideias sobre a cessação da própria vida e a desesperança quando rememora as perdas familiares. Foram apresentadas como indicações terapêuticas psicoterapia individual, além de avaliação e conduta por psiquiatra. Tais recomendações visavam evitar a evolução para a segunda fase do estresse (fase de exaustão) e evolução para a próxima faixa referente à sintomatologia depressiva (leve). Além disso, desenvolver capacidades de regulação emocional e auxiliar no desenvolvimento de estratégias de enfrentamento e construção de significados após as sucessivas perdas familiares. Para o âmbito escolar, recomendou-se o estímulo contínuo à inclusão e acolhimento da criança. Para a rotina, sugeriu-se a conservação de rotina estruturada, incluindo atividades de lazer em família, definição de responsabilidades no ambiente doméstico que possam fortalecer a autonomia, prática de atividades esportivas e demais esforços dirigidos para estimular o desenvolvimento e a qualidade de vida de Felipe.

Acerca da avó materna, observou-se a presença de pensamentos depressivos sobre si própria e uma visão negativa do futuro, e, ainda que em menor frequência, pensamentos negativos com relação ao mundo e às outras pessoas. Isso se somava às dificuldades para a resolução de conflitos e acentuavam as ideias sobre a cessação da própria vida. Também havia indicativos de dificuldade associada à conduta resiliente diante de situações adversas que podem influenciar diretamente sua vida pessoal. Recomendou-se psicoterapia individual em prol da experiência do luto diante das recorrentes perdas familiares, além de avaliação e conduta por psiquiatra, considerando as ideias sobre a cessação da própria vida. Para o âmbito familiar, recomendou-se a realização de aconselhamento/educação sobre a morte e o luto infantil, inclusive com a participação do avô paterno, a fim de auxiliar o diálogo com a criança sobre as mortes familiares. Por fim, para a vida social, incentivou-se maior participação em atividades sociais fora do ambiente familiar, com vistas a promover maior autonomia e ampliar a rede de apoio.

Discussão dos resultados das avaliações de Luan e Felipe a partir de um olhar bioecológico

O luto é um processo dinâmico voltado para a reconstrução de significados e sentidos associados à perda. Pode ser entendido como resultado das experiências situadas em determinado tempo e contexto, envolvendo a interação entre a pessoa enlutada e seu entorno (Neimeyer et ál., 2006). As perdas provocam importantes mudanças na vida não somente da pessoa enlutada, mas também de toda sua família. Essas mudanças tendem a promover novas formas de pensar, fazer e sentir que reverberarão no contexto ou nos papéis e atividades desempenhadas pelo enlutado (Parkes, 1998). Nesse sentido, cita-se o conceito de transição ecológica, que, de acordo com Bronfenbrenner (2002), refere-se a elementos-base que acarretam consequências e instigam o processo de aprendizagem no trajeto desenvolvimental. Dessa forma, acredita-se que o luto pode ser considerado como uma importante transição ecológica, pois envolve mudanças de papéis, condições e ambiências (Bronfenbrenner, 2002).

A interação entre a pessoa enlutada, nesse caso, a criança, o familiar falecido e os familiares sobreviventes pode ser considerada como um processo proximal. Esse componente, segundo Bronfenbrenner e Morris (2006), refere-se à interação recíproca entre a pessoa e os demais objetos, pessoas e símbolos do ambiente, cujas partes se mantêm ativas e se estimulam mutuamente. O conjunto de interações pode contribuir para promover o surgimento de novos significados e expressões com relação à perda familiar (Neimeyer et ál., 2006). Nessa perspectiva, a AP permitiu avaliar a composição do processo proximal associado à perda e ao vínculo entre a criança e a psicóloga.

A maneira como os adultos transmitem suas próprias percepções sobre a morte e a vivência do próprio luto às crianças durante as interações é relevante para a vivência do luto infantil (Andrade, 2013; Walsh e McGoldrick, 1998). Averiguou-se que ambas as responsáveis pelas crianças apresentaram pensamentos depressivos com relação a si e visão negativa do futuro, do mundo e das pessoas. Além desses pensamentos, a genitora de Luan apresentou também sensação de sofrimento prolongado, dificuldades para manter o controle emocional quando vivencia um evento estressor e sentimento de solidão. Sobre a avó materna de Felipe, além das dificuldades descritas antes, observaram-se dificuldades associadas à conduta resiliente para a resolução de conflitos, além de ideias sobre a cessação da própria vida. Tais aspectos tendiam a impactar o processo de reconstrução de significados associados às perdas vivenciadas por Luan e Felipe.

Um aspecto positivo que pode desempenhar o papel de fator de proteção refere-se à presença de indicativos de empatia e valores positivos às questões sociais por parte da avó materna de Felipe e a expressão de conduta resiliente diante de situações adversas por parte da mãe de Luan. Em conjunto com os respectivos esposos, elas buscavam atender às necessidades dos meninos para que tivessem uma vida mais tranquila, com saúde e alegria, considerando a vivência precoce das perdas familiares. Ambas as famílias enfatizaram o desejo de proporcionar bem-estar e saúde, e contribuir para a realização dos sonhos das crianças. A dedicação e o atendimento às necessidades delas pelos cuidadores possibilitaram o estabelecimento de vínculo baseado na confiança, fator fundamental para os estágios iniciais do desenvolvimento (Bronfenbrenner, 2005; Bronfenbrenner e Morris, 1998).

Segundo Bronfenbrenner (2005), as pessoas podem ser descritas pela capacidade de se adaptarem ao ambiente e a mudanças, assim como por sua complexa capacidade de sentir, pensar e agir. Durante o processo avaliativo, as atividades lúdicas, como brincar de professor/aluno, contar histórias e diferentes jogos foram momentos interativos que possibilitaram constituir o processo proximal entre as crianças e a psicóloga, uma vez que foram estabelecidas bases de contato relacionais e de estimulação mútua para uma atividade comum. Foi possível perceber que essas atividades mobilizaram sentimentos e emoções, como alegria, confiança, respeito, entusiasmo e cumplicidade. Ademais, foi preciso prestar o devido acolhimento e adotar escuta ativa às necessidades de Luan e de Felipe, sobretudo nos momentos de comoção e de desconforto ao relatar as experiências de suas perdas familiares, que foram fundamentais para que os meninos pudessem explorar as atividades inerentes ao processo avaliativo em si, recorrendo, quando necessário, ao amparo da psicóloga. Estabelecer relações de afeto e confiança, fatores relevantes apontados por Bronfenbrenner (2002), foi essencial para o desenvolvimento das atividades durante a AP.

A AP possibilitou perceber os seguintes aspectos para o estabelecimento dos processos proximais na interação entre a psicóloga e cada criança, conforme as proposições de Bronfenbrenner (1999), a saber: 1) envolvimento em uma atividade — atenção das crianças às instruções de cada atividade, assim como a reflexão com a psicóloga sobre o ocorrido em cada encontro; 2) base regular em períodos prolongados— nove encontros com duração de 50 minutos, periodicidade semanal e por um período de dois meses, aproximadamente; 3) atividades progressivamente mais complexas — programação de atividades e reflexões dos conteúdos com complexidade crescente; 4) reciprocidade nas relações interpessoais — interesse nos discursos e apoio mútuo entre as crianças e a psicóloga; 5) estímulo à exploração, manipulação e imaginação em relação aos materiais utilizados na presente pesquisa. A partir da AP, percebe-se o potencial da díade para a relação de atenção estabelecida pelas crianças em uma dada atividade com a psicóloga em prol do desenvolvimento humano (Bronfenbrenner, 1999), incluindo o processo de desenvolvimento cognitivo com relação ao conceito de morte.

Quanto ao componente “Pessoa”, Bronfenbrenner e Morris (1998) entendem que as características biopsicossociais da pessoa são mutáveis, ainda mais quando são expostas às situações adversas. Os autores consideram que três atributos são importantes: as disposições, os recursos e as demandas, e que eles influenciam diretamente os processos proximais. Além disso, existem características que podem ser geradoras de processos proximais, enquanto outras tendem a comprometer o desenvolvimento de competências da pessoa.

As disposições descrevem elementos que colocam os processos proximais em movimento e os sustentam (Narvaz e Koller, 2004). Entre as forças geradoras contidas nas disposições, exemplificam-se o engajamento das crianças e as respostas às iniciativas propostas pela psicóloga durante todo processo avaliativo. Tais características, em consonância às postulações de Bronfenbrenner e Morris (1998), possibilitaram iniciar e manter o processo proximal com a psicóloga para a realização das atividades programadas para cada encontro. Entre as forças inibidoras, exemplifica-se a expressão de raiva através da manifestação de comportamentos agressivos por ambas as crianças, especialmente em Luan, nos ambientes domésticos e escolares. As dificuldades no controle sobre seus comportamentos e sobre suas emoções tendiam a comprometer a qualidade dos processos proximais e a regularidade na manutenção das relações nos referidos ambientes (Narvaz e Koller, 2004). Acredita-se que essa reatividade refletia o funcionamento psicológico das crianças perante as perdas familiares, comprometendo a maneira como elas se relacionavam com os ambientes e as pessoas ao redor.

Os processos avaliativos possibilitaram, ainda, compreender outros aspectos biopsicossociais associados ao luto vivenciado por Luan e Felipe diante das perdas violentas do irmão e do pai, respectivamente. Esses aspectos foram divididos em: 1) físicos — sensação de exaustão ou fadiga, sudorese e queixas de dores de cabeça. Ressalta-se que Worden (1996) sinalizou que as crianças mais novas, em função das limitadas competências comunicacionais de que dispõem, somatizam mais as reações à perda quando comparadas aos adolescentes; 2) cognitivos — pensamentos recorrentes associados ao familiar falecido. Mallon (2011) aponta a ativação de pensamentos mágicos, por meio dos quais as crianças supõem o regresso da pessoa falecida; 3) emocionais — tristeza, sensação de solidão, vergonha, medo, isolamento, culpa, raiva e ansiedade; 4) comportamentais — choro recorrente, dificuldades na interação social em decorrência da expressão de comportamentos regressivos, como fala infantilizada, os quais, segundo Mallon (2011), decorrem do sentimento de insegurança gerado pelo luto, sendo mais evidentes quando associados a outros fatores estressores, como a mudança de residência ou outra perda familiar. A autora aponta que ambos os comportamentos traduzem sentimentos que não são comumente verbalizados, sendo recomendadas atenção e assistência profissional, quando necessária (Mallon, 2011).

Para a eficiência dos processos proximais, os recursos que abrangem as experiências, os conhecimentos e as habilidades necessárias (Bronfenbrenner e Morris, 1998) podem ser evidenciados em ambos os meninos através de suas habilidades discursivas orais, autoestima e humor. Além disso, no caso de Felipe, acrescentam-se níveis de funcionamento cognitivo e intelectual acima da média. No caso de Luan, acrescentam-se comportamentos positivos relacionados à perspectiva de futuro e níveis de funcionamento cognitivo e intelectual médio. Todas essas competências tendiam a promover nos contextos das crianças o acesso a experiências positivas, recursos e oportunidades em prol do desenvolvimento, que contribuem para a efetividade dos processos proximais (Narvaz e Koller, 2004).

A prematuridade que se configura, a priori, como um fator de risco biológico para o desenvolvimento da criança (Zomignani et ál., 2009), pode ser entendida como força inibidora. Conforme relato dos avós maternos na entrevista inicial, Felipe nasceu prematuro; no entanto, observou-se que essa condição não exerceu influência significativa. Exemplificam-se os resultados acima da média na avaliação cognitiva do menino. Acredita-se que a referida condição de prematuridade promoveu mudanças nos processos proximais estabelecidos com a família e os profissionais de saúde que prestaram assistência ao menino, refletindo em postura de cuidado para o desenvolvimento sadio da criança (Mondin, 2005). Conforme o relato dos pais de Luan, ele passou a apresentar enurese e encoprese. Forças inibidoras, quando contínuas, podem comprometer as experiências da criança e, nesse caso, atravancar o desempenho dos processos proximais (Bronfenbrenner, 1993). Acredita-se que as referidas condições também representem o funcionamento psicológico do menino perante sua perda familiar.

As demandas, que se referem aos aspectos que podem estimular ou desencorajar as interações sociais e estabelecimento dos processos proximais (Bronfenbrenner e Morris, 1998), apresentam-se em ambas as crianças por meio de aspecto saudável e aparência bem cuidada. Essas características físicas, consideradas atrativas, podem influenciar as interações com os ambientes sociais e favorecerem o processo desenvolvimental (Bronfenbrenner e Morris, 2006) de Luan e Felipe. Bronfenbrenner e Morris (1998) assinalam que as características associadas à etnia, à aparência física, à idade e ao gênero podem exercer influências desfavoráveis para a instituição dos processos proximais, a depender da forma como essas características são interpretadas no contexto. Conforme as declarações dos responsáveis, esses aspectos não se constituíram como fator desencorajador para as relações interpessoais, tampouco impactou no curso do desenvolvimento das crianças. Acredita-se que os fatores de proteção presentes em seus contextos suplantaram esse aspecto (Narvaz e Koller, 2004).

No que diz respeito ao “Contexto”, esse componente foi definido por Bronfenbrenner (2005) como sistemas inter-relacionados, divididos em quatro níveis, que contemplam desde ambientes mais próximos até os mais distantes, refletindo na vida social da pessoa em desenvolvimento. Além disso, é possível identificar fatores de risco ou proteção que podem atuar em cada nível. Os fatores de risco são definidos como eventos e experiências negativas de vida que, quando presentes, aumentam a probabilidade de gerar disfunções físicas e sociais. Fatores de proteção são definidos como ações realizadas para evitar ou para superar as situações de experiências negativas (Reppold et ál., 2002).

O processo avaliativo permitiu identificar fatores de risco e de proteção em cada nível contextual em que as crianças participavam. Para Felipe, como fatores de risco identificados, evidenciam-se, no nível microssistêmico, o relacionamento instável e conflituoso dos pais presenciado pela criança quando morava com eles, conforme apontado pelos avós maternos; no nível mesossistêmico, a rotatividade da criança entre as residências dos avós maternos e paternos. Os avós maternos informaram perceber reflexos no comportamento da criança, como ansiedade, devido à possibilidade de mudança decorrente de ação de guarda que estava em curso; no nível exossistêmico, a rede pública de saúde que não dispunha de profissional para prestar assistência psicológica à criança enlutada; no nível macrossistêmico, evidenciam-se o crescimento e a naturalização da violência (Koller, 1999), especificamente de homicídios no estado do Rio de Janeiro (Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, 2019).

Para Luan, como fatores de risco identificados, evidenciam-se, no nível microssistêmico, omissão de informações sobre a morte do irmão por parte dos pais; no nível mesossistêmico, a ocorrência de frequentes queixas da professora e da coordenação psicopedagógica atinentes aos comportamentos agressivos expressos pela criança que repercutiam no ambiente familiar; no nível exossistêmico, a interrupção de assistência psicológica na escola para suporte à criança enlutada; no nível macrossistêmico, também se sobressaem os aspectos relacionados à violência urbana.

Para ambos os casos, processos de resiliência foram evidenciados como fatores de proteção nos ambientes residenciais e escolares dos quais as crianças participavam. Eles representam potenciais recursos para a transformação em meio às situações adversas (Ungar, 2004). Foi possível perceber a presença de apoios familiar e social, como os ofertados pela escola, pela igreja, pela vizinhança e pelo esporte, conforme as possibilidades e limitações de cada rede de apoio. Acredita-se que essa rede contribuiu para a manifestação dos processos de resiliência (Poletto e Koller, 2008) durante a vivência do luto. Cabe ressaltar a importância de fortalecer os recursos, as estratégias de enfrentamento e as habilidades das crianças para que possam responder às respectivas perdas e investir em novos objetivos (Greeff et ál., 2011). Reitera-se que foram propostas indicações terapêuticas para cada criança a fim de promover sua qualidade de vida.

No tocante ao componente “Tempo”, a TBH postula que eventos históricos podem promover significativas mudanças que repercutem diretamente no desenvolvimento durante o ciclo vital em regulares dimensões de tempo (Bronfenbrenner e Morris, 2006). No presente estudo, as dimensões desse componente foram identificadas tanto na interação entre as crianças e os responsáveis como na interação entre as crianças e a psicóloga.

Sobre a primeira interação, foi possível identificar a dimensão “microtempo” a partir do pequeno lapso temporal entre a notícia da morte do genro e a comunicação pela avó materna a Felipe sobre a morte de seu pai, assim como a ausência de “diálogo oficial” entre Luan e genitores sobre a morte do irmão. Para a dimensão “mesotempo”, cita-se o conjunto de diálogos havidos sobre a morte (ainda que baseado em justificativas fantasiosas, por exemplo, mudança de residência) entre os meninos e seus responsáveis em um intervalo maior de tempo, 18 meses aproximadamente, entre as mortes familiares e o início do processo avaliativo. E, para a dimensão “macrotempo”, os processos de reconstrução de significados atribuídos às perdas familiares pelas crianças e pelos responsáveis ao longo do ciclo vital.

Destaca-se a importância do diálogo aberto, uma vez que este favorece a qualidade das relações, envolve os responsáveis nas práticas educativas por meio do afeto, da reciprocidade e da confiança, com vistas ao desenvolvimento e bem-estar das crianças, ainda que expostas, em dado momento, a situações de vulnerabilidade (Bronfenbrenner, 2002; Hawley e DeHann, 1996). Especificamente com relação ao luto, reiteram-se as postulações de Mazorra (2009) e Paiva (2011) sobre a importância da educação sobre a morte e a respectiva comunicação a respeito dela desde as etapas iniciais da infância, de forma que as crianças questionem a si mesmas e aos adultos ao redor sobre a temática, o que permite reforçar a sensação de confiança entre eles.

Durante o processo avaliativo, também foi possível identificar a dimensão “microtempo” a partir da ocorrência de encontros em uma base regular de tempo (50 minutos), com a realização de atividades progressivamente mais complexas, a fim de propiciar a efetividade do processo proximal com a psicóloga. Para a dimensão “mesotempo”, cita-se a periodicidade dos encontros semanais, o que visava favorecer o desenvolvimento do processo proximal com Luan e Felipe. Por fim, para a dimensão “macrotempo”, menciona-se o desenvolvimento da capacidade cognitiva para representar o conceito de morte (Torres, 1999[1979]). Ao longo do processo avaliativo, com duração total de dois meses, o processo proximal estabelecido com a psicóloga almejou favorecer a capacidade de Luan e Felipe para representar a experiência de perda e o conceito de morte.

Considerações finais

A multiplicidade de fatores que envolveram as mortes nas famílias de Luan e Felipe evidenciaram ritmos próprios e o uso de estratégias diferenciadas para lidarem com as perdas, mobilizando recursos intrínsecos e extrínsecos para se adaptarem aos novos contextos de vida. Foi fundamental adotar diferentes métodos para investigar as características cognitivas, emocionais e comportamentais das crianças enlutadas, bem como as respectivas características das dinâmicas familiares e os dados sociodemográficos.

Segundo Campos (2013), evidencia-se o processo de AP como um saber-fazer com potencial para a transformação, que visa apresentar a pessoa em sua singularidade e potencialidade para o desenvolvimento. O autor ainda aponta que a interpretação dos resultados contempla as variáveis internas e externas relacionadas ao sujeito e transcende os números ao revelar o processo de historicização do sujeito, entendendo-o como sujeito de sua própria história.

Acredita-se que a TBDH, postulada por Bronfenbrenner (2005), mostrou-se uma importante ferramenta teórica para a análise e a interpretação dos dados atinentes ao processo avaliativo. Isso possibilitou olhar o indivíduo de forma contextualizada, considerando suas características individuais e contextuais, além das especificidades da etapa do desenvolvimento, nesse caso, a infância. Igualmente, possibilitou ampliar o conhecimento sobre o fenômeno do luto infantil a partir da conceitualização dos quatro componentes do modelo bioecológico.

Observa-se que, a partir dos resultados obtidos e da análise apresentada, muitas questões surgiram, abrindo possibilidades para as pesquisas futuras que envolvam diferentes campos de saber. Exemplificam-se a resiliência como um fator de proteção importante para a experiência do luto (Mallon, 2011; Neimeyer, 2001) e a importância do acesso aos serviços públicos de saúde para a assistência às pessoas que perderam familiares vítimas de homicídio (Soares et ál., 2006). Aspira-se que o presente estudo fomente reflexões e debates, considerando a origem profunda e multidimensional da referida temática.

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*Artigo de pesquisa. Este trabalho é apoiado pela agência de financiamento Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Recebido: 22 de Novembro de 2020; Aceito: 12 de Setembro de 2021

a Autora de correspondência. Endereço postal: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), R. Marquês de São Vicente, n.º 225 (Edifício Cardeal Leme) / 2º andar – Departamento de Psicologia. CEP: 22451-900. Gávea, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

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