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Antipoda. Revista de Antropología y Arqueología

Print version ISSN 1900-5407

Antipod. Rev. Antropol. Arqueol.  no.7 Bogotá July/Dec. 2008

 

O PARAÍSO AMEAÇADO
SABEDORIA YANOMAMI VERSUS INSENSATEZ PREDATÓRIA

Alcida Rita Ramos*

*Universidad de Brasília. Correo electrónico: alcida.ramos@uol.com.br


RESUMO

A região do Alto Orinoco alimentou a imaginação de muitos navegadores, inclusive a de Cristóvão Colombo que, ao ver tão majestosa foz, tomou o Orinoco como um dos rios do Paraíso Terrestre. Trata-se do território yanomami que abraça a fronteira entre Brasil e Venezuela e exibe toda a pujança amazônica e o sábio uso que os indígenas fazem dela. Ao tomar como foco a rede de trilhas que cada aldeia yanomami vem tecendo na foresta ao longo de gerações, o que se pretende reafirmar enfaticamente que nada há de "vazio demográfco" na vastidão amazônica, desmentindo de forma categórica a difundida falácia de que os vazios amazônicos, sendo uma ameaça à soberania nacional, devem ser preenchidos com projetos de colonização e exploração comercial de seus recursos, desqualificando assim a evidente e importante presença indígena.

PALABRAS CLAVE
Território yanomami


ABSTRACT

The Upper Orinoco region incensed many a European imagination, including Columbus' who bewildered by the sight of its majestic mouth took the Orinoco as one of the rivers of the Earthly Paradise. It is, in fact, yanomami country which straddles the Brazil-Venezuela border. It displays both the grandiosity of the Amazon and the wise use the Indians make of it. By focusing on the networks of trails opened up in the immense forest by unbroken generations, I want to emphatically deny that the Amazon is a "demographic void," thus frmly belying the insidious fallacy that the emptiness of Amazonia places a threat to national security, a danger that should be averted with intensive colonization and economic projects. This recurrent fallacy persistently disqualifes the obvious and important presence of indigenous peoples.

KEY WORDS
Yanomami Country

FECHA DE RECEPCIÓN: AGOSTO DE 2008 / FECHA DE ACEPTACIÓN: SEPTIEMBRE DE 2008


Se ninguém viajasse, o Brasil não existiría
Tom Jobim

A IMAGINAíJÁO DE COLOMBO

Durante sua terceira viagem ao Novo Mundo e até a hora da morte, Cristóvão Colombo estava certo de haver encontrado o paraíso terrestre. Convenceu-se disso quando viu a foz de um grande rio, majestoso, amazônico. Era o Orenoco. A impressão foi tão forte que só o apelo ao divino pôde satisfazer os sentidos do comandante do mar oceano. Tamanha grandiosidade só podia ser coisa de Paraíso; aquele portento líquido, certamente, era um dos quatro rios do éden. Entre a lógica científica e a mística cristã, Colombo oscilou entre o poder divino e a avassaladora constatação empírica de que ali, na sua frente, estava a ponta de todo um continente desconhecido, pondo em cheque o dogma cristão sobre astronomia e a confguração da terra. Assim se expressou o atônito navegador:

    Grandes indiçios son estos del Paraíso Terrenal, porqu'el sitio es conforme a la opinión d'estos sanctos e sacros theólogos. Y asimismo las señales son muy conformes, que yo jamás leí ni oí que tanta cantidad de agua dulçe fuese así adentro e vezina con la salada; y en ello ayuda asimismo la suavísima temperançia. Y si de allí del Paraíso no sale, pareçe aún mayor maravilla, porque no creo que se sepa en el mundo de río tan grande y tan fondo. (Colón 1984: 216).

Ao fm e ao cabo, ele insistiu na primeira suposição que acabou se tornando uma certeza: "Mas estou muito mais convencido em minha mente que lá onde eu disse é o paraíso terrestre" (apud Greenblatt 1991: 79). Seu arrebatamento aumentou ainda mais quando percebeu sinais da presença faustosa de ouro naquelas terras na forma de adereços trazidos pelos nativos locais. Na leitura de Kirkpatrick Sale sobre os argumentos de Colombo, esses nativos "tinham bastante ouro, exatamente como dizia a Bíblia que ele seria encontrado na terra do primeiro rio que escoa do éden; e eles viviam logo acima do equador, onde as mais altas autoridades localizavam o paraíso; e chamavam sua terra Paria, uma forma evidente de Paraíso" (Sale 1990: 175).

Se não chega a corresponder às fantasias edênicas de Colombo, o rio Orenoco merece seu lugar na história por várias razões, dentre as quais o privilégio de abrigar um dos povos indígenas mais conhecidos da atualidade. No alto de suas cabeceiras, metade dos yanomami espalha-se por uma infinidade de igarapés em solo venezuelano e que não são também brasileiros porque a barreira do Maciço das Guianas impede que corram para o sul. Mas, do lado de cá desse magnífico divisor de águas, fonte de inspiração para outras fantasias, como as de Conan Doyle sobre um delirante mundo perdido (Lost World, originalmente publicado em 1912), vive a outra metade dos yanomami. Ao todo são cerca de 25 mil. No Brasil somam aproximadamente 12 mil que repartem com os 360 yekuana de língua caribe (Andrade 2007) os cerca de nove milhões e meio de hectares que hoje compõem a terra indígena yanomami, demarcada em 1991 e homologada no ano seguinte. Os yanomami falam pelo menos quatro idiomas distintos, mas intimamente relacionados; plantam suas roças, exploram os recursos naturais de uma floresta sempre pródiga, desde que respeitada em sua cadência e essência, e passam às novas gerações um estilo cultural que lhes vem garantindo não apenas um nível de vida satisfatório, mas também, até tempos relativamente recentes, a notável capacidade de expandir seu território.

POR TRAS DAS APARENCIAS

Ao olho desavisado, a paisagem do Maciço das Guianas, englobando o sul da Venezuela e o norte de Roraima e nordeste do Amazonas no Brasil, parece despovoada, imanente e só para si, monótona na eterna repetição de um semfim de árvores que se acotovelam por um lugar ao sol. Mas não; ela não é nem um vazio humano nem um manto único e inteiriço tecido em verde. Há que aprender a ver a Amazônia. Na sua intimidade, a mata revela-se diferenciada, habitada, pululando de vida vegetal e animal, transformada pela ação milenar de muitas gerações de homens e mulheres.

Tomemos, por exemplo, o padrão de cultivo de povos como os yanomami. Cada família tem sua roça, algo semelhante em tamanho a um pequeno campo de futebol. Quando essa roça está no auge da produção, já uma nova foi derrubada, ao mesmo tempo em que a outra, velha e tomada pelo mato, ainda fornece banana, pupunha e alguns tubérculos. Nesse ecossistema, a baixíssima fertilidade do solo (como constatou o levantamento feito pelo projeto Radambrasil nos anos 1970. Ver Albert e Zacquini 1979: 133-135) permite no máximo uns três anos de produtividade alta. Roças velhas não são replantadas de imediato. O mato invade, tocos de grandes árvores começam a brotar, a foresta se recompõe e, vinte ou trinta anos depois, parece que aquela roça nunca existiu. Lá, num rincão isolado da fronteira, no fnal dos anos 196 0, vivi meses a fo numa aldeia sanumá (yanomami setentrionais) cercada de roças por todos os lados (Ramos 1990). Menos de trinta anos depois, desnorteada, voltei ao mesmo lugar onde meus anftriões me mostraram em que se transformara aquela aldeia e seu entorno: mata fechada sem vestígio das casas e apenas tênues indícios de que ali houve algum dia uma produção agrícola capaz de alimentar uma centena de pessoas.

Pensemos que cada aldeia tem em média umas vinte famílias, todas abrindo roças num rodízio de dois ou três anos e que, aproximadamente, três mil famílias yanomami fazem o mesmo continuamente só em território brasileiro. Multiplicando esses números pela imensidão de outras famílias de outros povos indígenas pela Amazônia afora (a atual população indígena da Amazônia está estimada em 600 mil pessoas, certamente, um número muito menor do que em séculos passados. Ver ISA 2006: 11), onde o grau de fertilidade do solo varia muito, mas raramente torna exequíveis assentamentos sedentários e permanentes, é difícil imaginar uma foresta ainda virgem, depois de séculos de continuado cultivo, caça e coleta. O que o nosso olhar habitualmente impaciente e deseducado registra como algo eternamente estático é, de fato, o resultado do fuxo sutil de minúsculos desmatamentos pontilhando a paisagem e do refuxo de rejuvenescimento da mata graças à maneira parcimoniosa com que os povos indígenas impõem suas atividades econômicas ao meio ambiente. Do fundo de sua sabedoria, os yanomami desenvolveram um sistema social, político e econômico que privilegia a dispersão territorial, cientes e de que a excessiva concentração demográfca leva, inevitavelmente, ao esgotamento dos recursos naturais. Sua terra é grande e há muitas boas razões para ser.

De fato, o território yanomami é um exemplo de manejo bem-sucedido de recursos naturais notórios por sua fragilidade, que é traduzida na quantidade altamente rarefeita de espécies de fauna e flora. Respondendo a essa dispersão natural, as comunidades yanomami são pequenas (raramente passam de 100 pessoas), distanciadas entre si (de umas poucas horas a dias de caminhada) e ligadas por uma intricada rede de trilhas.

Finas nervuras de terra, ora tortas, ora retas, sempre resolutas, subindo e descendo encostas, detendo-se em igarapés para ressurgir do outro lado, confundindo-se com raízes que serpenteiam pelo chão da mata, com troncos de árvores caídos sobre rios, essas são as trilhas yanomami. Se ao rés-do-chão elas se deixam ver, embora muitas vezes driblando o olho desatento ou inexperiente, do alto de um avião elas são perfeitamente invisíveis, meticulosamente encobertas pela copa cerrada das árvores. Por essas trilhas, o caminhante pode percorrer quilômetros, atravessar estados e até países em minutos, horas, dias ou semanas de viagem, seja para chegar a alguma roça, algum local de caça, ou seja para chegar a uma aldeia vizinha ou distante.

As trilhas yanomami são o testemunho mais pedestre, por assim dizer, das movimentações desse povo que parece ter sido feito para andar, locomoverse, espraiar-se. Abertas a facão, acentuadas e conservadas pela batida intermitente de múltiplas passadas, as trilhas nascem, vivem e morrem ao sabor do interesse das pessoas em manter seus vínculos com este ou aquele lugar. Se, por um passe de mágica —ou extraordinário avanço tecnológico— todas as trilhas já abertas em terras yanomami durante os séculos de sua ocupação viessem à tona e novamente se tornassem visíveis, teríamos um mapa viário dos mais densos e intricados, mostrando um retrato fidedigno de todas as rotas ligando todas as roças, todas as aldeias e todos os acampamentos sazonais, passados e presentes, numa estonteante profusão de indícios gráficos da eficiência talvez milenar com que os Yanomami vêm ocupando a parte ocidental da região das Guianas. Um tal mapa hipotético derrubaria de um golpe os argumentos que muitas vezes surgem contrários ao reconhecimento pelo estado brasileiro da terra indígena yanomami, argumentos esses precariamente sustentados na debilidade de opiniões impressionistas e míopes para defender a fcção dos vazios demográficos que condenariam a Amazônia ao atraso e abandono. Dizem que é um desperdício "dar" tanta terra a tão poucos índios que, além do mais, não a ocupam toda, que não sabem explorar os seus recursos naturais e que são até responsáveis, mesmo indiretamente, pela penúria de legiões de brasileiros desvalidos e sem terra, e que acabam por abrir um flanco à cobiça estrangeira. Em suma, está aí exposta a epítome da soberba "civilizada": aquilo que o olho de branco urbano não vê, não existe.

Aliás, abrindo um parêntese, a mesma arrogância se fez sentir no caso que ficou lamentavelmente conhecido como "o massacre de Haximu", em 1993, quando o assassinato por garimpeiros que ceifou 16 vidas yanomami foi questionado pela ausência de cadáveres (Albert 1996). Explicado ad nauseam por índios, antropólogos e até mesmo agentes da Polícia Federal, o fato de que os yanomami não deixam seus mortos jazendo pelo chão, mas, ao contrário, cremam-nos e guardam as cinzas em cumprimento de um dever cultural, não parece ter tido qualquer efeito nas mentes presumidamente cartesianas que insistem no "não vejo, ergo, não existe" ou, mais à moda comezinha de São Tomé, no "ver para crer".

Em outro registro, mas em consonância com a tese dos vazios demográficos, é a tecla batida intermitentemente, como uma goteira crônica, principalmente por militares, sobre uma outra falácia, segundo a qual terra indígena contínua em zona de fronteira ameaça a soberania nacional, pois, numa lógica weberiana vulgar, território quer dizer estado independente, portanto, tão logo um povo indígena tenha seu próprio território, especialmente na faixa de fronteira, automaticamente desejará tornar-se uma nação soberana e própria. Porque isso ocorreria apenas na fronteira e porque agora e nunca no passado (quando os povos indígenas eram considerados verdadeiras "muralhas dos ser-tões" [ver Farage 1991] e como o próprio presidente da república, no dia 8 de maio de 2008, declarou pública e enfaticamente que ainda o são), esses proponentes da ameaça indígena nunca explicam1. Também não parecem interessados em saber que não há casos conhecidos de povos indígenas nas Américas que tenham reivindicado independência estatal, nem que as sociedades indígenas brasileiras têm qualquer vocação para isso (Clastres 1978 ; Ramos 1996a).

Voltemos ao hipotético mapa viário da terra indígena yanomami. Chegamos ao século XXI com a possibilidade de, ao menos em parte, tornar tecnológico o passe de mágica com o qual concebi, ainda em meados dos anos 1990, sobre a densa cartografia yanomami. Novos instrumentos de pesquisa são agora capazes de revelar em detalhe padrões de utilização dos recursos naturais e, até certo ponto, o que as marcas do tempo escondem do olho nu. Quando aliadas à meticulosa pesquisa etnográfica, essas novas ferramentas contribuem significativamente para ampliar a nossa compreensão de uma determinada situação empírica. Refiro-me ao trabalho, ao mesmo tempo minucioso e espetacular, de rastrear essas marcas por meio de GPS e imagens de satélite de alta definição. Combinando alta tecnologia e trabalho de campo in loco, o antropólogo francês Bruce Albert e o geógrafo também francês François-Michel Le Tourneau rastrearam exaustivamente a região do Demini (Watorikï ) no nordeste do estado do Amazonas. Demonstraram, por exemplo, que as trilhas de caça, pesca e coleta daquele grupo yanomami, ao contrário do senso comum etnográfico que atribui aos povos indígenas da Amazônia uma prática de zoneamento em círculos concêntricos, seguem um padrão reticular de caminhos que se bifurcam (numa manifestação realista do imaginário borgesiano), confirmando a minha percepção adquirida no convívio prolongado de pesquisa de campo com os sanumá, mesmo sem o aparato tecnológico dos pesquisadores franceses (Ramos 1990)2. As imagens de satélite daquela área revelam também trilhas e roças já em desuso, trazendo à tona informações mais precisas sobre a magnitude da cartografia cultural daquele subgrupo yanomami. Os autores puderam, assim, detectar um modelo "estruturado pelo conhecimento coletivo e o uso de uma teia de caminhos (principais e secundários) identificados na mata ligando sítios importantes e reconhecidos por topônimos próprios (acampamentos de caça e coleta, antigas habitações e roças, grupos de árvores frutíferas, traços geográ-fcos, e assim por diante)" (Albert e Le Tourneau 2007: 584). Esses caminhos que se entrecruzam, subdividem e bifurcam refetem uma série de atividades, ora individuais, ora coletivas, traçando rotas que chegam a cobrir quase vinte quilômetros, se medidas em linha reta (ibid, 589). Note-se que os autores se limitam às atividades de ordem econômica, não explorando outras esferas da vida yanomami, como, por exemplo, visitas a outras aldeias.

E assim chegamos um pouco mais perto de demonstrar aos recalcitrantes defensores do dogma dos vazios demográficos quão vazio é o conhecimento leigo sobre a complexidade da vida indígena na Amazônia.

YANOMAMI EM MOVIMIENTO

A partir do mapa que, em grande medida, ainda nos é invisível, mas não menos real, traçado no terreno das experiências históricas e geográficas dos yanomami, é possível delinear alguns movimentos de magnitudes e consequências diversas. Esses movimentos, embora tendo efeitos semelhantes por resultarem em deslocamentos no espaço, têm distintas origens e motivações sociais e econômicas. Alguns representam mudanças muito pequenas, outros podem ser chamados de migrações, enquanto ainda outros advêm de potentes pressões externas sobre a vida normal das comunidades. Mas, antes de tudo, é preciso não confundir esses movimentos espaciais com a falácia do nomadismo, tão presente no imaginário ocidental sobre o primitivo exótico. Essa falácia inquieta especialmente por seu caráter insidioso e persistente no vocabulário antropológico. Talvez originário do tempo em que as primeiras cidades-estados se escondiam atrás de muralhas para deixar de fora os "bárbaros nômades", esse conceito tem sido um dos baluartes mais usados para marcar a diferença entre civilizados e primitivos e reforçar o já sólido valor que tem o sedentarismo no mundo ocidental. Podemos dizer, como Bourdieu (1989: 16-58) que o nomadismo é um conceito que entrou de contrabando ou, nas palavras de Bourdieu, teve uma "introdução clandestina" (ibid, 33) na linguagem e pensamento antropológicos e, como uma erva daninha, é muito difícil de extirpar.

O senso comum tem, nos dicionários, o cânone da verdade e é aí que encontramos a maior justifcativa para a persistência da falácia do nomadismo (Ramos 1998). Por exemplo, no Dicionário Aurélio da língua portuguesa lemos que, em primeiro lugar, nômade se refere a "tribos ou povos errantes, sem habitação fxa, que se deslocam constantemente em busca de alimentos, pastagens, etc.". Vemos também que nômade é o "indivíduo que leva vida errante; vagabundo". Ora, como em nossos meios urbanos vagabundo é aquele que não tem residência fixa e quem não tem residência fixa, um domicílio facilmente identifcável, está sujeito a penalidades legais, chega-se muito perto das últimas consequências desse capcioso silogismo: nomadismo beira à ilegalidade, como foi considerado no passado longínquo (Amoroso 1992) e nem tão longínquo assim (Fisher 1995), submetendo povos indígenas a um tratamento abusivo e totalmente inapropriado.

Contra esse senso comum que toma qualquer tipo de mobilidade espacial dos índios como sinal de nomadismo, é preciso deixar absolutamente claro que a descrição a seguir trata de um povo móvel, mas não "nômade", como tão veementemente insistiu o geógrafo William Smole em seu estudo sobre um subgrupo yanomami da Venezuela: "Os yanoama são um povo muito móvel. No entanto, essa mobilidade não deve ser equacionada com nomadismo. Os nômades não têm moradia fixa, enquanto que cada [aldeia] yanoama tem uma [casa comunal] à qual retorna invariavelmente" (Smole 1976: 80). Vejamos quais são os movimentos yanomami, dos menores aos maiores.

Parte da sabedoria com que os yanomami manejam seu território refetese na prática de dois tipos de microdeslocamentos. Um é ditado pela necessidade de se abrir novos roçados a cada dois ou três anos e de buscar novos locais de caça, quando os animais escasseiam ou desaparecem das imediações das aldeias. Assim, as comunidades se deslocam, em parte, à procura de novos sítios onde a mata seja mais propícia ao cultivo, à coleta e à caça. Se uma comunidade permanece muito tempo no mesmo lugar, começa a rarear a fonte de proteína animal e a aumentar a distância entre a aldeia e as roças, até chegar ao ponto em que é mais prático e sensato mudar a aldeia para mais perto das roças novas. Esses deslocamentos fazem-se normalmente num raio de cerca de três quilômetros a cada cinco ou dez anos. Para quem convive constantemente com os yanomami ou os visita a cada ano, esses movimentos são quase imperceptíveis, mas tornam-se bastante evidentes quando retornamos depois de alguns anos de ausência.

O outro micromovimento é de prazo mais longo e pode advir do esgotamento acumulado de uma determinada área. A atividade intensiva de roças e de caça pode superar a capacidade de rejuvenescimento de uma microrregião, geralmente, envolvendo mais de uma comunidade. De modo a contrabalançar essa tendência, mais ou menos a cada geração, mudam as aldeias para mais longe num raio de cerca de dez a trinta quilômetros (Albert e Zacquini 1979).

Mas esse efeito espacial também ocorre por outras razões. A eclosão de epidemias ou a ocorrência de confitos entre comunidades pode provocar uma debandada. A subsequente instalação em novo local, geralmente longe do anterior, acaba produzindo novos rearranjos geopolíticos e sociais numa dada subárea. Isto tudo está intimamente ligado a uma das características mais marcantes da organização social e política dos yanomami, qual seja, o padrão de segmentação das comunidades, segundo o qual novos grupos locais podem surgir a cada duas ou três gerações. As rivalidades políticas que fermentam no interior das comunidades ocasionam cisões periódicas. Convertem-se, desse modo, em instrumentos hábeis para manter as aldeias dentro de limites demográficos condizentes com a capacidade econômica dos recursos naturais.Os grupos dissidentes afastam-se e procuram novos locais onde possam residir e exercer suas atividades econômicas de maneira eficiente. Por sua vez, os laços de sangue e de casamento mantêm vivo o interesse mútuo entre os grupos que se separam. Aliadas a princípio, essas comunidades, antes uma só, vão se afastando com o tempo até não terem entre si vínculos maiores do que os que as ligam a outras tantas. Por esse processo, conseguem dois resultados positivos: um é o de evitar os efeitos deletérios do crescimento exagerado que resulta da concentração demográfica continuada, com muita gente explorando os mesmos recursos ao mesmo tempo; o outro é o de preservar e até aumentar a grande rede de relações que cobre todo o território yanomami.

Um terceiro processo de mobilidade, que podemos chamar de migratório, está estreitamente relacionado aos dois primeiros em sua dinâmica, mas tem características e consequências geopolíticas diferentes. Foi o que permitiu a expansão territorial dos yanomami na região guianense. É um processo ainda pouco conhecido, pois, na ausência de dados arqueológicos, nem os registros históricos nem os depoimentos dos próprios índios nos reportam a um passado suficientemente distante para permitir a reconstrução do início da presença yanomami em seu atual território. O que temos à nossa disposição é pouco, mas já dá uma ideia da trajetória histórica desse povo nos últimos 200 anos. Além disso, onde existe um vazio no registro histórico, certas técnicas linguísticas procuram preencher com inferências retiradas do grau de semelhança e diferença entre as quatro línguas conhecidas: yanomae, yanomamo, yanam e sanumá.

HISTÓRIA CALADA

Os membros da família linguística yanomami já vivem na região do Maciço das Guianas desde, pelo menos, o século XVIII, data da primeira referência escrita da sua presença por exploradores europeus (Albert e Zacquini 1979). Mas, se levarmos em conta os resultados da aplicação da glotocronologia, técnica linguística que procura medir a distância entre as várias línguas faladas hoje, temos cifras reveladoras. Por meio desse procedimento metodológico, o linguista Ernesto Miggliazza (1972) afirma que a primeira língua a se separar do idioma yanomami original foi o sanumá, no século XIII da era cristã. Isto significa que seriam necessários, pelo menos, 700 anos para que todas as quatro línguas se subdividissem e chegassem ao nível de diferenciação atual. Com base nesses cálculos, o geógrafo estadunidense William Smole (1976), que desenvolveu pesquisa de campo com os yanomami na Venezuela, conclui que o fato de os falantes das quatro línguas viverem hoje relativamente próximos uns dos outros indica que seu território original deve ter sido muito maior do que é hoje. Só assim podemos entender como uma primeira dispersão geográfica resultou em tamanhas diferenças linguísticas, pois se a proximidade tivesse sido sempre como é agora, suas línguas não seriam tão diferentes. Depois da expansão máxima, teria havido uma contração territorial.

O registro linguístico é um dos poucos sinais que nos é legado pela história remota dos yanomami. Por um lado, as condições climáticas da Amazônia são pouco propícias a achados arqueológicos; o clima quente e úmido destrói em pouco tempo a maior parte dos materiais de origem orgânica, como casas, enfeites etc. Por outro lado, um dos traços mais distintivos dos yanomami é a cremação dos mortos e, na maioria dos subgrupos, a ingestão ritual pelos parentes das cinzas dos ossos carbonizados. Não deixam, portanto, vestígios de seus corpos e de muito pouco de sua cultura, como machados de pedra ou frágeis panelas de barro. Resta a glotocronologia, os escritos de exploradores e a história oral dos próprios yanomami.

Num capítulo mais recente dessa história, temos os relatos, por exemplo, dos sanumá, o subgrupo mais setentrional, da chegada yanomami ao vale do rio Auaris (afuente do Parima que, por sua vez, desemboca no Uraricoera que mais abaixo se transforma no Rio Branco) em Roraima.

Há três ou quatro gerações, os sanumá e seus atuais vizinhos, os yekuana, combatiam-se dura mente pela ocupação de um território deixado semivazio pela dizimação de povos inteiros, principalmente, de origem caribe e aruaque. Um após outro, eles sucumbiram aos maus tratos e às epidemias dos conquistadores brancos no norte da Amazônia e, em especial, aos excessos do boom da borracha no século XIX. Os sanumá, vindos do sudoeste, expandiam-se e entravam em terras tradicionais yekuana, um dos pouquíssimos grupos que restaram daquele flagelo (Arvelo-Jiménez 1974 , Andrade 2007), a quem enfrentaram em sua marcha rumo ao norte e leste. Depois de numerosas incursões dos sanumá contra aldeias yekuana, estes decidiram contra-atacar a tiro de espingarda (um legado dos tempos da invasão branca) para acabar de uma vez com a guerra intertribal, no início do século XX (Ramos 1980). Cessaram então os conflitos bélicos e, desde então, os dois grupos passaram a coexistir na mesma região, mantendo relações pacíficas, mas tensas, num clima que lembra a inquieta paz da guerra fria. Alguns intercasamentos selaram essa paz e hoje o alto Auaris é ocupado majoritariamente pelos sanumá e por uma crescente população yekuana.

Espraiados em leque, os sanumá acabaram por ocupar não apenas o vale do alto Auaris, mas também outros rios, como o Merevari na Venezuela. Eles mesmos apontam a região do rio Ocamo, afluente do Orenoco, também na Venezuela, como o local de onde começaram a sua longa e extensa migração rumo ao extremo norte do Brasil e sul da Venezuela. Contam que fugiam de ataques de outros yanomami, como, por exemplo, o que eles chamam de Samatali, membros do subgrupo yanomamo. Nessa lenta fuga, conjuntos de comunidades detiveram-se em vários locais sucessivos onde abriram roças, tiveram filhos, subdividiram-se, formaram novas alianças. Em duas gerações, colonizaram praticamente toda a área que antes pertencera a grupos caribe e aruaque extintos pelas invasões de forasteiros brancos. Por razões sem dúvida ligadas ao difícil acesso das cabeceiras dos rios guianenses, os yanomami conseguiram escapar dessas invasões sem, no entanto, ficar imunes aos efeitos indiretos e letais da presença dos brancos na região, como, por exemplo, epidemias de sarampo e alguns bens manufaturados que chegaram até eles muito antes de se verem frente a frente com os invasores. Poupados daquela dizimação, os sanumá, em particular, e os yanomami, em geral, reuniam as condições necessárias para empreender a ocupação de novos territórios que até então lhes eram desconhecidos. Avançaram por terras novas numa verdadeira migração que difere muito das pequenas mudanças de residência que se limitam ao espaço definido por tradição e consenso (Ramos 1995). Nenhum desses deslocamentos, volto a insistir, tem qualquer semelhança com a figura imaginada do índio nômade, sem eira nem beira, eternamente em busca de um sustento mínimo que o livre por mais um dia da inanição. Neste sentido, nem os yanomami nem qualquer outro povo indígena conhecido se encaixa nesse imaginário preconceituoso dos brancos que, ao atribuírem nomadismo aos índios, nada mais fazem do que afirmar sua crença na superioridade do sedentarismo.

GANÂNCIA QUE MATA

De meados do século XX e entrando pelo XXI, os yanomami têm vivido longos momentos extremamente dramáticos e trágicos, talvez os piores de sua existência. O trauma da construção da rodovia Perimetral Norte nos anos 1970 deixou um rastro de morte que extinguiu comunidades inteiras (Ramos 1979). Os sobreviventes de quatro aldeias do alto rio Catrimani, atingidas por uma epidemia de sarampo que matou metade de seus habitantes, conseguiram superar aquela devastadora turbulência e se reorganizaram para fundar o que hoje é a comunidade do Demini, quartel general do conhecido líder Davi Kopenawa e quiçá o exemplo mais bem-sucedido de gerenciamento indígena na era do recente contato interétnico. O projeto agropecuário do Apiaú expulsou as comunidades yanomami que lá viviam e reduziu seus remanescentes a párias nos povoados circundantes (Taylor 19 79).

Numa funesta materialização das fantasias de Colombo sobre a terra de Paria, a partir de agosto de 1987, dezenas de milhares de garimpeiros invadiram, virtualmente, toda a área yanomami numa desenfreada corrida do ouro que, naquela época, alcançara altas cotações nas bolsas de Londres e Nova Iorque (MacMillan 1995). Em questão de meses, aqueles aventureiros provocaram a pior pandemia de malária já vista na região. Inúmeras comunidades foram devastadas e os sobreviventes fadados a vagar de aldeia em aldeia em busca de um novo domicílio e uma nova base de subsistência (Menegola e Ramos 1992; Ramos 1995; Castro Lobo 1996). Aquela inusitada maneira de se mover no espaço foi involuntária e totalmente imposta por circunstâncias criadas por forasteiros. Violenta e caótica, aquela mobilidade forçada carregou no seu bojo, não o efeito de uma cadeia social em expansão, mas, ao contrário, a retração social que sempre acompanha o desmantelamento social e a desagregação psicológica que mortes em massa acarretam. A malária em especial tem o potencial de transformar em realidade a fcção dos "vazios demográfcos" da Amazônia em geral e da área yanomami em particular, ao devastar comunidades e recursos naturais e contrair o seu espaço vital (Ramos 1996b).

A desagregação social deu-se em vários níveis, a começar pela destruição da base econômica das comunidades: roças destruídas pela força de enormes mangueiras vomitando colossais jorros contra barrancos desmoronados em segundos; trilhas seccionadas por imensas crateras abertas à força de tremendos jatos d'água, cortando o acesso a roças, acampamentos e aldeias; animais de caça escorraçados pelo pandemônio do trânsito constante de aviões e helicópteros e do infernal barulho do tosco maquinário que serve o incontrolável afã de buscar ou ro a qualquer preço. Tudo isso foi acompanhado da implacável sangria de vidas indígenas, fosse por doenças altamente contagiosas, fosse pura e simplesmente por assassinatos. Mesmo as comunidades que não experimentaram diretamente a presença física dos garimpeiros e suas máquinas demolidoras acabaram sentindo as ondas de choque da desenfreada corrida ao ouro. Epidemias que começam num determinado lugar grassam como fogo selvagem por dezenas, centenas de aldeias, deixando um rastro de devastacáo. Tuberculose, malária e, menos dramática, mas inexorável, oncocercose, são doenças que mutilam ou matam, destroçando o equilíbrio demográfico de regióes inteiras. Por essas ondas de choque a tragédia yanomami ampliava-se a cada nova pista, a cada novo barranco, a cada novo acampamento garimpeiro. Não há comunidades imunes, nem as que ficam do outro lado da fronteira, em solo venezuelano. Com um efeito de metástase, o impacto da atividade garimpeira corrói arterias, veias e capilares da grande cadeia orgánica que é a sociedade yanomami. Nos dois primeiros anos de atividade garimpeira, estima-se que cerca de mil e quinhentos, OU 12,5% da populacáo yanomami estimada no Brasil, morreram em consequéncia imediata da corrida do ouro. Se pensarmos em termos de proporcáo, isso equivale a cerca de 14,4 milhóes de brasileiros, ou seja, urna hecatombe nacional. E hecatombe foi exatamente o que viveram os yanomami no Brasil ñas vésperas do século XXI.

Povo do movimento, do fluxo e da expansividade, os yanomami continuam enfrentando os assaltos, ainda que em menor grau, de levas de garimpeiros, mesmo depois de o estado brasileiro, desde 1992, ter investido milhóes de reais em repetidas, mas ineficazes operacóes de desocupaçáo da térra indígena yanomami. Nos primeiros anos deste século, um cuidadoso programa de saúde gerido pela ONG Urihi-Saúde yanomami, com recursos do Ministerio da Saúde, conseguiu reverter a alta mortalidade da década anterior, fosse por malária, tuberculose, desnutricáo e outros males, chegando a diminuir em 80% a mortalidade infantil e em 100% o número de casos de malária no fnal de 2002 ñas regióes sob a sua responsabilidade (Urihi, Resumo das Atividades de Assisténcia á Saúde Yanomami, abril 2003; ver também Brum 2002: 56-57). Desativado abruptamente devido ás mudanças políticas que vieram com o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, esse programa foi substituído pela incompetência e corrupcáo de órgáos públicos despreparados para atuar junto a povos indígenas como os yanomami. Resultado: a volta da malária, a exacerbacáo da tuberculose, a insatisfacáo generalizada de índios e agentes de saúde que com eles trabalham diretamente.

Além desses novos transtornos, os yanomami ainda enfrentam um outro perigo, que são as tentativas intermitentes por parte de alguns políticos de anular o que lhes é garantido por direito: um território suficientemente amplo capaz de assegurar a continuidade de seu modo fluido e sábio de viver.

LIÇÕES YANOMAMI

Nesta era pós-progresso de contínuos desastres ecológicos e de estupefaçáo global com os abusos da megalomanía tecnológica, já é um truísmo falar da sabedoria indígena no trato da natureza. Mas, seguindo o exemplo do estilo retórico de muitos povos, o poder da repeticáo, como o ditado da água mole em pedra dura, talvez consiga que a mensagem seja em algum momento devidamente entendida e assimilada. Por isso, à guisa de conclusão, trago alguns relatos da sutentável beleza do viver yanomami que, de modo nenhum, se restringe ao bom-senso ecológico, o que para eles, afinal, é um truísmo. São passagens da vivência prolongada de pesquisadores com subgrupos yanomami no Brasil e na Venezuela e, completando o conjunto, uma fala de Davi Kopenawa Yanomami, o homem que de sua aldeia na Amazônia projetou para o ocidente o universo e a saga interétnica dos yanomami (Kopenawa 2000: 18-23; 2004: 44-45). O que há em comum nos relatos é o extraordinário esforço etnográfico desses pesquisadores para chegar à compreensão de uma cultura que suscitou em todos eles o respeito e a admiração irrestritos pelo extraordinário universo yanomami.

    Durante incontáveis gerações os yanoama têm mantido um sistema econô-mico estável ... [com] atividades plenamente articuladas a muitos outros sistemas da cultura e não apenas como meios de ganhar a vida.

    Os yanoama utilizam o espaço das roças criteriosamente e com uma clara compreensão do que cada planta requer. Com poucas exceções, eles cultivam de maneira vegetativa (usando mudas) e não usando sementes, o que favorece a clonagem perene eliminando, por coincidência, toda possibilidade de fertilização mútua e consequente hibridização (Smole 1976: 99, 116-117).

    Com os sanumá aprendi a admirar —embora nem sempre a imitar— a sabedoria da relativização de verdades e mentiras; a paciência de se lidar com crian-ças nos seus piores humores; a capacidade de direcionar a raiva unicamente para o objeto que a provocou e continuar de bem com o resto do mundo; a esfuziante alegria de viver e o inesgotável gosto pelo drama (Ramos 19 90: 11).

    Uma parte importante da vida sanumá é ... a sua interação com uma vasta rede de espíritos e seres sobrenaturais que vivem acima do céu, embaixo da terra e nas matas dos territórios de virtualmente todas as comunidades yanomami, conhecidas ou não. A importância dessas plagas longínquas fica mais clara no caso dos animais-espíritos que sempre vivem na floresta em torno de aldeias distantes. Uma vez que as pessoas vivem e morrem em sintonia com seus animais-espíritos, pode-se dizer que suas vidas dependem da fauna desses territórios tão afastados. Para explicar certas doenças e mortes, os sanumá lançam mão de um alvo de culpabilidade, como os xamãs inimigos, os fantasmas, e os espíritos maléficos de comunidades distantes com suas matas circundantes. Os xamãs com quem conversei enumeraram nada menos de 74 dessas comunidades que conhecem através de seus espíritos (Taylor 199 6: 149).

    É através da caça, da pesca e da coleta que os yanomami adquirem de 70 a 75% de proteínas indispensáveis a seu equilíbrio alimentar. Essas atividades permitem-lhes ter também uma alimentação extremamente diversificada. Ca-çam ... rastreando ou atraindo animais, imitando seus sons, 35 tipos de mamíferos e 90 tipos de pássaros (apanham também 6 tipos de quelônios e 8 tipos de répteis). Com linha e timbó pescam 106 espécies de peixe. Coletam na mata, aproximadamente, 129 tipos de plantas comestíveis (entre frutas, tubérculos e cogumelos), mas também vários tipos de crustáceos (5 tipos), batráquios (10 tipos), lagartas (16 tipos), larvas de insetos (em particular de vespas e cupim, 15 tipos) e mel selvagem (25 tipos) (Albert e Gomez 1997: 34).

    Um dia, transcrevia uma entrevista quando parei para observar uma sessão xamânica que transcorria na segunda fogueira depois da minha rede. O caminho traçado pelo xamã ia do local em que eu estava sentada até à rede da paciente. Eu estava obviamente inserida no contexto da sessão xamânica. Depois de prestar muita atenção, comecei a compreender que, em suas idas e vindas, os espíritos auxiliares [do xamã] brincavam comigo, chamando minha atenção para a tarefa infactível a que me havia proposto. Diziam: "você veio aqui 'gravar' nossas palavras, mas nossas palavras nunca acabam, por isso nós as damos". Desta forma, os espíritos auxiliares do xamã zombavam de mim, apontando tanto para o aspecto mutante daquilo que eu pretendia fixar em escrita nos meus cadernos, como para a forma ilógica com que eu me apropriava desse conhecimento, acumulando-o em cadernos e papéis. As palavras escritas negavam [três] aspectos importantes do conhecimento xamânico: sua oralidade, circulação e mutabilidade (Smiljanic 1999: 7).

    A teoria sanumá a respeito da origem do mundo ou do universo baseia-se em um princípio semelhante à lei lavoisieriana: "na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma". No universo sanumá, os seres não surgem a partir do nada, eles se fazem do que já existe. Novos corpos, novos espaços, novos tempos são como reciclagens, produtos de operações sobre o que já está dado. No início, parecia reinar a amorfia, não havia inimigos ou animais, mas só os sanumás ainda indefinidos. Com o surgimento dos dois irmãos Omawa e Soawö, heróis transformadores, intensifcaram-se os processos de diferenciação, de transformação e criação do cosmos e dos seres, que continuam até hoje (Guimarães 2005: 12).

    O que vocês chamam "natureza" é, em nossa língua, urihi a, a terra-foresta e sua imagem vista pelos xamãs, urihinari. É porque existe essa imagem que as árvores são vivas. O que chamamos urihinari é o espírito da foresta: os espíritos das árvores, huutihiripë, das folhas, yaahanaripë, e dos cipós, thoothoripë. Esses espíritos são muito numerosos e brincam no chão da floresta. Nós os chamamos também urihi a, "natureza", da mesma maneira que os espíritos animais yaroripë e mesmo os das abelhas, das tartarugas e dos caracóis. A fertilidade da floresta, në rope, também é "natureza" para nós: ela foi criada com a floresta, é sua riqueza.

    A terra da floresta possui um sopro vital, wixia, que é muito longo. O dos seres humanos é muito menor: vivemos e morremos depressa. Se não a desmatarmos, a floresta não morrerá. Ela não se decompõe. É graças a seu sopro úmido que as plantas crescem (Kopenawa 2004: 23).

Sobre a fantasia edênica de Colombo, podemos supor que, se ele tivesse rumado Orenoco acima até às cabeceiras, e se acreditasse mais nos seus sentidos do que na sua imaginação, teria tido surpresas ainda maiores do que as que teve naquela terceira viagem ao novo mundo. Mas, para isso, seria preciso supor o impossível, ou seja: abrir mão de suas ideias recebidas e deixar-se embeber pelo que se mostrasse à sua capacidade plena de percepção.


Comentarios

1 Em abril de 2008, durante as comemorações da semana do índio, o comandante militar da Amazônia, general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, seguindo o que parece já ser uma tradição militar no Brasil (Ramos 1998: 222-242), pronunciou-se contra a existência da terra indígena raposa-Serra do Sol, no leste de Roraima, já demarcada e homologada, mas objeto de ferrenha disputa envolvendo uns poucos rizicultores há anos lá instalados ilegalmente e a esmagadora maioria dos povos que vivem na região. A preocupação declarada do general é que, sendo contínua, aquela terra indígena constitui-se em ameaça à soberania nacional. Trata-se de um refrão cuja sobrevivência nos meios políticos do país é tão espantosa quanto resistente a qualquer demonstração em contrário.

2 A primeira versão deste artigo, mais curta, foi publicada em Travessia, Revista do migrante, janeiro-abril, 1996. Naquela ocasião, sem os recursos tecnológicos atuais, lancei mão de outro tipo de recurso, o do imaginário, para expressar a minha compreensão de como os sanumá ocupam suas terras. Foi com grata surpresa que vi parte da minha percepção confirmada pela pesquisa minuciosa e muito mais precisa dos colegas Albert e le Tourneau


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