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Antipoda. Revista de Antropología y Arqueología

Print version ISSN 1900-5407

Antipod. Rev. Antropol. Arqueol.  no.41 Bogotá Oct./Dec. 2020

https://doi.org/10.7440/antipoda41.2020.03 

Paralelos

As múltiplas agências dos encantados: esboço de uma teoria política kiriri*

Las múltiples agencias de los encantados: esbozo de una teoría política kiriri

The Multiple Agencies of the Encantados: An Outline of Kiriri Political Theory

Fernanda Borges Henrique** 

**Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Brasil. Doutoranda em Antropologia Social pela Unicamp, Brasil. Entre as últimas publicações, destaca-se o artigo aceito para publicação: “‘Cada um no seu lugar’: domínios Xucuru-Kariri e Kiriri” (em coautoria com João Roberto Bort Jr.). Revista de Antropologia, 2020, no prelo. f.borgesh@gmail.com


RESUMO

Este artigo trata do povo indígena Kiriri do Rio Verde que, em março de 2017, após sair de Muquém do São Francisco, oeste do estado da Bahia, região Nordeste do Brasil, ocupou uma terra no sul do estado de Minas Gerais, Sudeste do país. A terra ocupada possui 39 hectares e tem como seu proprietário legal o estado de Minas Gerais. A permanência dos Kiriri na área foi autorizada pelo seu verdadeiro dono, um antigo ancestral tapuia que apareceu durante a ciência, momento em que há uma comunicação, como veremos, mais direta e intencional com os encantados, seres outros-que-humanos que habitam o cosmos kiriri. Diferentemente do toré, brincadeira em que ocorre o compartilhamento de comida entre os humanos e os encantados, e em que os cantos são mais fracos para que esses seres outros-que-humanos não se manifestem, na ciência kiriri, os cantos são mais fortes para fazer com que os mestres encostem em pessoas que possuem o dom. Apesar de a ocupação ser legitimada pelo velho tapuia, os Kiriri reconhecem que também precisam negociar com o estado de Minas Gerais, o proprietário legal da área, para conseguirem a regularização da terra. Nesse contexto, este artigo tem como objetivo compreender como os Kiriri criam evidências que a ocupação feita por eles, a partir da atuação conjunta aos encantados, é legitimada pelo verdadeiro dono da terra e como o comunicam ao estado de Minas Gerais. Para olhar para as negociações entre os Kiriri e o estado de Minas Gerais, deve-se reconhecer e analisar a ampla rede de atuação de agentes humanos e outros-que-humanos e, para compreendê-la melhor, propomos atentar também à ciência kiriri. Assim, este artigo esboça questões que tangem ao que podemos chamar de “teoria política kiriri”, evidenciando como as relações diplomáticas de troca e negociação podem ser constituídas no mundo.

PALAVRAS-CHAVE: Ciência; cosmopolítica; encantados; etnologia; Kiriri; seres outros-que-humanos

RESUMEN

El artículo se enfoca en el pueblo indígena kiriri de Río Verde que, en marzo del 2017, luego de salir de Muquém do São Francisco, occidente del departamento de Bahía, región noreste de Brasil, ocupó una tierra en el sur del departamento de Minas Gerais, al sureste del país. La tierra ocupada tiene 39 hectáreas y su propietario legal es el estado de Minas Gerais. La permanencia de los kiriri en el área fue autorizada por su verdadero dueño, una antigua figura ancestral tapuia que “apareció” durante una ciência, momento ceremonial en el que se produce una comunicación, como veremos, más directa e intencional con los encantados, seres otros-que-los-humanos -ancestrales y no ancestrales- que habitan el cosmos kiriri. A diferencia del toré brincadeira, encuentro ceremonial en el que se comparte comida entre humanos y encantados y en el que los cánticos son más suaves para que los otros-que-los-humanos no se “manifiesten”, en la ciência kiriri los cánticos son más fuertes para lograr que los mestres o encantados encosten, esto es, que posean espiritualmente a personas que tienen el don de permitirles manifestarse. Si bien la ocupación es legitimada por el viejo tapuia, los kiriri reconocen que también necesitan negociar con el estado de Minas Gerais, el propietario legal del área, para regular la tierra. Así, el artículo tiene el propósito de comprender cómo los kiriri crean evidencias de su proceso de ocupación de tierras, a partir del actuar de los encantados -acción legitimada por el verdadero dueño de la tierra- y cómo le comunican esto al estado de Minas Gerais. De este modo, para comprender las negociaciones entre los kiriri y el Estado, es necesario reconocer y analizar la actuación de la amplia red de agentes humanos y otros-que-los-humanos y, para entenderlas mejor, planteamos que debe prestarse atención también a la ciência kiriri. En este contexto, el artículo esboza interrogantes acerca de lo que podemos llamar una teoría política kiriri, al evidenciar cómo las relaciones diplomáticas de intercambio y negociación pueden constituirse de un modo “otro” en el mundo.

PALABRAS CLAVE: Ciência; cosmopolítica; encantados; etnología; kiriri; otros-que-los-humanos

ABSTRACT

The article focuses on the Kiriri indigenous people of Rio Verde who, in March 2017, after leaving Muquém do São Francisco, west of Bahia department, in Brazil's northeast, occupied a land in the south of the Minas Gerais department, in the country's southeast. The occupied land covers 39 hectares and its legal owner is the state of Minas Gerais. The Kiriri's permanence in the area was authorized by its verdadero dueño or true owner, an ancient tapuia figure who appeared during a ciência, a ceremonial moment in which a more direct and intentional communication takes place with the encantados (or enchanted), ancestral and not ancestral, other-than-humans, who inhabit the kiriri cosmos. Unlike the tore, brincadeira ceremonial meeting in which food is shared between humans and the encantados, and in which the chants are softer so that the other-than-humans do not reveal themselves, in the kiriri ciência, the chants are louder so that the mestres or encantados encosten; namely, that they spiritually possess those who have the gift of allowing them to reveal themselves. While the occupation is legitimized by the old tapuia, the Kiriri acknowledge that they also need to negotiate with the state of Minas Gerais, the legal owner of the area, to regulate the land. Thus, this article is intended to understand how the kiriri create evidence of the process of land occupation that they conducted, based on the actions of the encantados, an action legitimized by the verdadero dueño of the land and how they communicate this to the state of Minas Gerais. Thus, in order to understand the negotiations between the Kiriri and the State, they must be considered from the standpoint of the recognition and analysis of the actions of the broad network of human and other-than-human agents. To better understand this, we propose that attention should also be paid to the kiriri ciência. In this context, the article outlines questions about what we can call a “kiriri political theory,” showing how diplomatic exchange and negotiation relations can be constituted in an “other” way in the world.

KEYWORDS: Ciência; cosmopolitics; encantados; ethnology; Kiriri; other-than-humans

E que vocês coloquem aí desde já que o presidente da “mesa” tem 18 dias para resolver a situação dos Kiriri do Rio Verde, porque o que acontecer dentro daquela aldeia, quem vai ser o responsável vai ser o Estado. Pode ir polícia para lá, mas vocês se preparem porque naquela aldeia vai correr sangue. Agora nenhum índio vai sair de lá de dentro [...]. (Reunião de negociação entre os Kiriri e o estado de Minas Gerais. Carliusa Ramos, liderança kiriri, Cidade Administrativa do estado de Minas Gerais, 2018)

Com essas palavras, Carliusa, uma das lideranças e esposa do cacique do povo Kiriri do Rio Verde, comunicava ao estado de Minas Gerais que seu povo não sairia das terras ocupadas em 2017 por 16 famílias indígenas kiriri no Rio Verde, um bairro1 rural do município de Caldas, sul do estado de Minas Gerais, região Sudeste do Brasil. Os 18 dias mencionados pela liderança diziam respeito ao prazo que as famílias kiriri teriam para desocupar a terra, segundo ordem judicial expedida no mês de setembro de 2018 pela Advocacia Geral do Estado. Isso porque os 39 hectares de terra ocupados pelas famílias kiriri vindas do município de Muquém de São Francisco, oeste da Bahia, região Nordeste brasileira, estão circunscritos em uma área que totaliza 60 hectares e que tem seu proprietário legal o estado mineiro.

Além de Carliusa e de seu esposo, o cacique Adenilson, estavam presentes naquela reunião outros 12 moradores da aldeia Kiriri do Rio Verde e uma residente local que representava o bairro2 e o desejo dos locais pela permanência kiriri na área. Por meio da Fundação Nacional do Índio, a Funai, as famílias indígenas do Rio Verde souberam que a reunião, realizada na sede do governo estadual de Minas Gerais, teria como pauta a ocupação da terra por essas famílias no município de Caldas. A partir dessa informação, os Kiriri decidiram que Adenilson, o cacique, e Carliusa, sua esposa, já não participariam da reunião sozinhos. Na tentativa de mobilizar e sensibilizar os agentes estatais, outras 15 pessoas participaram da reunião, deslocando-se entre o sul-mineiro e Belo Horizonte, capital do estado e lugar da reunião, para “mostrar ao estado mineiro que são índios mesmo”, como afirmam as lideranças kiriri. A partir desse contexto, este artigo buscará explicitar como os Kiriri do Rio Verde têm formulado suas negociações com o estado de Minas Gerais. Ao olhar para as negociações, veremos que há uma ampla rede de agentes humanos e outros-que-humanos3 atuante e, para compreendê-la melhor, propomos atentar também à ciência kiriri.

Ocupar e negociar a terra

Antes de começarem a frequentar as instâncias do estado de Minas Gerais e logo se instalarem no Rio Verde no início de 2017, mediados por um encantado denominado Chefe da Mata4, os Kiriri entraram em contato com o verdadeiro dono das terras que ocupam no Rio Verde, um velho ancestral tapuia que morreu há muitos anos5. Na negociação, o ancestral kiriri permitiu que as famílias indígenas estabelecessem morada em suas terras, desde que cuidassem das matas e águas do lugar, delimitado pelas quatro lanças colocadas a pedido dos encantados, também chamados de mestres, em cada um dos quatro cantos da terra ocupada. Nesse sentido, quando acionam a categoria dono da terra, diferentemente de outros contextos etnográficos que dizem respeito aos “donos” (Costa 2017; Fausto 2008; Guerreiro Jr. 2012; entre outros), os Kiriri dizem de um parceiro de trocas que, para permitir a permanência em suas terras, exige das famílias indígenas do Rio Verde determinadas ações (Henrique 2019). Diante do estabelecimento da relação de troca com o verdadeiro dono da terra, passam a questionar a pretensa propriedade do estado de Minas Gerais sobre a terra e, nesse sentido, a não a reconhecer. Entretanto, admitem que devem negociar com esse mesmo estado para que regularizem sua permanência na área ocupada e consigam o papel, a escritura da terra onde vivem.

A decisão das lideranças kiriri de levarem consigo outras pessoas do grupo para encontros oficiais com o estado está ancorada na primeira reunião que tiveram com agentes estatais na sede do governo estadual, no final de 2017. Naquela ocasião, Carliusa e o cacique Adenilson disseram se sentirem sozinhos e acuados diante dos funcionários do estado, que pareciam não entender a legitimidade do grupo com relação à permanência na terra. Após a primeira reunião, já no início do ano de 2018, os agentes estatais sugeriram para as famílias kiriri que fossem viver no município de Patos de Minas, região do Triângulo Mineiro, na comunidade rural de Boassara. Ali se estabeleceriam em uma terra privada que tem como proprietário legal um fazendeiro local e que já estaria ocupada por pessoas do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Os agentes estatais argumentavam que ali se adaptariam melhor. Em troca de sua saída, o estado de Minas Gerais prometeu ajuda no novo lugar ocupado, oferecendo materiais para a construção de novas casas de barro, como as famílias haviam feito no sul de Minas, e apoiando oficialmente sua permanência no estado de Minas Gerais.

A saída do sul de Minas Gerais foi, portanto, uma negociação estabelecida entre o estado mineiro e os Kiriri, que tentavam transformar o próprio estado em um parceiro de troca. Contudo, a promessa não foi cumprida, e os Kiriri não obtiveram apoio algum no lugar ao qual foram enviados, sentindo-se de muitas formas enganados. Ademais, disseram que aquele não seria um bom lugar para estabelecerem morada, já que não havia nascentes ou olhos d’água ou mesmo condições para o plantio. Ainda, a terra não seria verde, categoria êmica que, como mostra Henrique (2019), para além da coloração de um espaço específico, diz respeito à possibilidade de construção de relações de toda ordem, tanto com os humanos quanto com seres outros-que-humanos. Em Patos de Minas, também entraram em contato com o verdadeiro dono da terra, um quilombola, através de uma experiência, e não foram autorizados a estabelecer morada naquele lugar. Por não haver áreas de mata na localidade onde pudessem realizar a ciência6, a experiência foi realizada no barraco improvisado com lona, cobertores e madeiras, onde vivia a família do cacique. Concentrados na área comum do barraco para a realização da experiência, um encantado encostou em Carliusa. Ao ouvir a demanda dos presentes, tratou de chamar o velho quilombola para negociar com os Kiriri. Por sua vez, o encantado disse ter sido informado pelo velho de que as famílias indígenas não poderiam permanecer em sua terra e que, em breve, solicitaria que os Kiriri deixassem a área. Por isso, o velho quilombola não permitiria que caçassem ou matassem qualquer animal que não fosse os peixes da água corrente de um rio que passava próximo à localidade. Ou seja, os seres outros-que-humanos do lugar se recusaram à relação com os Kiriri, não permitindo que eles estabelecessem as redes de relações que fazem de um lugar uma “terra tradicionalmente ocupada”. Para verificar se estavam cumprindo o acordo estabelecido com o dono da terra, durante os dois meses que os Kiriri estiveram na região, os encantados eram visitas constantes nos barracos, em forma de animais, como, por exemplo, araras e roedores.

Com a certeza de que deveriam retornar ao Rio Verde, pois lá consolidaram seu lugar de vida e, assim, como também deixaremos claro ao longo deste artigo, construíram uma “terra tradicionalmente habitada”, com parceiros de troca, amizade e ajuda mútua, tais como o tapuia e os moradores locais (Henrique 2019), os Kiriri decidiram deixar Patos de Minas. Com a ajuda financeira dos vizinhos do Rio Verde, que ofereceram um caminhão de mudança, os Kiriri conseguiram retornar ao sul de Minas Gerais em julho de 2018. Após sua chegada, afirmaram que dali não sairiam mais, já que aquela era uma terra verde, propícia para dar continuidade às suas vidas e, sobretudo, porque eram autorizados pelo verdadeiro dono da localidade a construírem ali o seu lugar de vida, trabalho, afeto e significação (Henrique 2019).

Sabendo, portanto, que também precisam negociar com os agentes estatais para permanecer no Rio Verde, quais as evidências produzidas pelos Kiriri na tentativa de mostrar ao estado mineiro que já possuem legitimidade necessária para permanecer na terra do velho tapuia? Ainda, como e por quem tais evidências são construídas ante um estado que vê a terra kiriri como um espaço que deve ser vendido com o objetivo de pagar dívidas estatais? Além de tentar elaborar respostas a essas perguntas, as páginas que se seguem buscam lançar luz sobre as teias que compõem as trocas com os encantados e sua multiplicidade de agenciamento no mundo. A partir da maneira como agem os encantados, tentamos compreender, de forma ainda incipiente, a ciência kiriri, entendida aqui, nos termos do que afirma Durazzo (2019, 16) para a ciência Tuxá, “como um complexo de práticas rituais, sociais, epistêmicas e cosmopolíticas que conectam inúmeras esferas de ação indígenas, numa rede de relações a se reforçar recursivamente”, e como ela envolve o estado de Minas Gerais. Percorrendo esse caminho, esperamos avançar no debate que tange, sobretudo, ao tema da teoria política kiriri. Como o leitor poderá acompanhar, na primeira parte do artigo debruçaremos sobre os agenciamentos dos encantados em uma dimensão que podemos chamar de “cosmopolítica”, articulando uma rede de seres outros-que-humanos e espíritos ancestrais e não ancestrais. Ao final desse tópico, apontaremos para o que virá na segunda parte do trabalho: a atuação dos encantados junto aos Kiriri ante o estado de Minas Gerais que dá continuidade à política cósmica com a qual estão envolvidos todos esses seres humanos e seres outros-que-humanos habitantes do cosmos.

Ciência e toré no Rio Verde

Na madrugada de 13 de março de 2017, após passarem um tempo na região com seus antigos aliados Xucuru-Kariri, que também vivem em Caldas7, os Kiriri finalmente entraram para a terra do Rio Verde, erguendo barracas de lona que, como relembra o pajé, “só cabiam o corpo deitado”. Pouco tempo depois, decidiram levantar nove casas de taipa, ou casinhas de barro, estancadas por troncos de madeira encontradas na localidade. No início de 2020, a aldeia Kiriri contava com 13 casas. Entretanto, aproveitamos para dizer que, por se tratar de um movimento muito recente, a territorialidade kiriri no Rio Verde é construída e reconfigurada dia a dia (Henrique 2019). Isso significa que, enquanto escrevemos este artigo, é possível que novas casas tenham sido levantadas, novos cômodos construídos e novas famílias chegado ao sul de Minas Gerais.

Além das nove casas de barro iniciais, os Kiriri também construíram uma cabana8 no centro da aldeia para que pudessem dançar o toré. Ademais, nela são realizados uma sorte de assembleias, reuniões, festas e encontros para firmar alianças com os amigos do Rio Verde e com os “amigos que queiram ajudar”9. Antes de estabelecerem morada no Rio Verde, os Kiriri se preocuparam em localizar na terra almejada as áreas de mata e as nascentes que correm ali, já que é importante viver em uma terra também habitada pelos encantados, seres centrais na cosmologia kiriri que habitam matas e águas. Dessa forma, para construírem seu lugar de vida, devem contar com a ajuda dos humanos e desses mestres outros-que-humanos. Por isso, a preocupação com a degradação ambiental e com a necessidade de preservar as áreas de mata e as três nascentes d’água que correm na terra ocupada no Rio Verde é constantemente mencionada entre os Kiriri. A relação entre as condições ambientais e os seres outros-que-humanos não é uma exclusividade dos Kiriri do Rio Verde. De maneira aproximada, para os Mapuche, por exemplo, a incerteza da presença dos ngen na paisagem é resultado de processos que tangem às condições materiais que fazem com que esses seres do mundo mapuche sejam prósperos. Como mostra Di Giminiani (2018, 83), os espíritos mestres “são altamente móveis e sua presença é cronologicamente instável, porque sua permanência depende grandemente de condições ambientais. Degradação, incluindo o esgotamento do solo e o desmatamento, constituem uma ameaça material à sua própria existência”.

Nascimento (1994) demonstra que, ao contrário do que é desejável entre os Kiriri no sul de Minas Gerais, entre os Kiriri de Mirandela, Terra Indígena Kiriri localizada em Banzaê, Bahia, os encantados se manifestam também durante a realização do toré. Durante a brincadeira, utilizando fumo e jurema, os Kiriri evocam seus encantados entoando cantos específicos enquanto dançam em um círculo do qual participam todos os moradores da aldeia. No Rio Verde, o toré acontece no primeiro sábado de todo mês sob a cabana. A preparação para a brincadeira ocorre durante todo o dia. São horas dedicadas ao cozimento dos grãos de milho que, após serem pisados no pilão, se transformam no vinho do milho, bebida oferecida aos presentes no final. “Todo sábado à noite é dia de brincadeira. Os índios cantam e dançam ao som das maracás, marcadoras do ritmo”, informa-nos Nascimento (1994, 18). Para esse autor, qualquer observador atento ficaria impressionado ao perceber no toré “o transe mediúnico, a possessão ou, se preferirmos usar categorias nativas, enramar ou manifestar. É através dessa possessão que os encantos se manifestam” (Nascimento 1994, 18). No caso dos Kiriri do Rio Verde, a presença dos encantados durante o toré deve ser mais controlada. Não é desejável, por exemplo, que os mestres se manifestem durante a brincadeira e, por isso, usa-se alho, sob a autorização dos encantados, para fechar o corpo. Apesar de ser desejável que não se manifestem, os mestres podem ser percebidos através das oferendas como, por exemplo, a cachaça e o vinho do milho, também consumidos pelos Kiriri, que são aspergidos na parte externa e interna da cabana, mas não no interior do círculo formado pelas pessoas.

Em uma das ocasiões em que estivemos presentes, configurando um círculo, após realizarem as orações católicas do “Pai-Nosso” e da “Ave-Maria”, os Kiriri, sob a orientação de Carliusa, pediram proteção e ajuda aos encantados para conseguirem regularizar a terra que ocupavam. Em seguida, formaram uma fila em frente ao pajé para que ele pudesse sinalizar a cruz na testa dos presentes com água e alho, que substituía a raiz da jurema. Após a proteção do corpo, o círculo foi reestruturado e o pajé, como de costume, liderou a roda entoando cantos que, em sua maioria, fazem referência à relação dos Kiriri com as matas, as águas e os pássaros. Ao som do maracá, seguiram o pajé, o cacique Adenilson e os outros homens que dão sequência ao círculo. Após o último homem, posicionou-se a mulher mais velha da aldeia, seguida de Carliusa e das outras mulheres. Os cantos foram entoados no círculo que seguia o ritmo do maracá e da pisada do pajé. Em determinado momento, a irmã de Carliusa se deslocou de seu lugar junto às demais mulheres, posicionando o paú - cachimbo utilizado no toré e na ciência - com o fornilho aceso virado para dentro da boca e expondo as pessoas ao redor do círculo à fumaça que saia diretamente de sua boca. Em seguida, posicionou-se ao lado do pajé e, ao seu lado, continuou entoando os cantos.

Pouco antes de terminar a brincadeira, as pessoas começaram a pedir ao pajé para despachar o vinho do milho, já que estariam com fome. O líder kiriri se retirou do círculo e dirigiu-se ao centro da roda. Nesse momento, o filho da irmã de Carliusa assumiu a frente do círculo, dando continuidade à brincadeira. O pajé abriu pela primeira vez o pote de cerâmica e ali acrescentou água e açúcar. A colher de pau, localizada entre o pote de cerâmica em que se encontrava o vinho e as pequenas cabaças chamadas de “coité” que foram utilizadas para bebê-lo, foi usada para mexer a bebida. Em seguida, colocou-se o vinho em um pote de plástico, destinado somente ao uso ritual, e o pajé seguiu aspergindo o líquido somado aos pedaços do grão de milho cozido ao entorno do círculo, dentro e fora da cabana. O alimento foi oferecido primeiramente aos encantados. Em seguida, o pote de plástico foi colocado ao centro da roda novamente e os cantos foram cessando aos poucos: é chegada a hora de consumir o vinho do milho. Após compartilharem o alimento e comerem juntos com seus encantados, a noite de festa e brincadeira termina, e todos retornam para suas casas.

Os Kiriri do Rio Verde reiteram que o toré é uma brincadeira marcadamente diferente da ciência, sendo este último um ritual mais sério, com cantos mais fortes que objetivam evocar a manifestação dos encantados no corpo de quem possui o dom, diferentemente do toré, em que há o controle corporal com alho para que o encantado não encoste em alguém durante a brincadeira. Para realizar a ciência, deve-se estar com a mente limpa e seguir criteriosamente a preparação que acontece durante todo o dia que a antecede. Ao decorrer do dia, Carliusa dedica-se à feitura dos vinhos de maracujá, de milho e de mandioca. Em uma das situações acompanhadas, os Kiriri não usariam, pela primeira vez, a raiz sagrada da jurema que, através da efusão de sua entrecasca, obtêm-se o vinho da jurema, importante bebida utilizada e difundida em alguns rituais por todo o Nordeste indígena, o que Nascimento (1994) chama de “complexo da jurema”. Apesar de não possuírem a jurema no sul de Minas Gerais, os Kiriri trouxeram a raiz da planta algumas vezes quando estiveram no oeste da Bahia. Quando não há o vinho da raiz, os Kiriri estão autorizados pelos encantados a utilizarem alho e fumo, facilmente encontrados em Minas Gerais, para estabelecerem comunicação com tais entidades e manterem seus corpos protegidos. O uso do tabaco nas atividades rituais não é novidade entre os Kiriri. Como mostra Reesink (2002, 65), o tabaco e a fumaça “figuram com destaque em todas as cerimônias descritas das culturas ‘originais’ na área do Nordeste”. Ainda, como acrescenta o autor, o tabaco tem um “papel de defesa sobrenatural” e continua presente, sendo indispensável na forma ritual contemporânea, sobretudo dos Kiriri.

Ao tratar dos Kiriri de Mirandela, Nascimento (1994) esclarece que, apesar da negativa de que os encantados só se manifestam em mulheres, no dia a dia da aldeia são algumas delas que possuem o dom de receber um mestre. Ainda, o autor considera que o estado em que se encontram as pessoas que recebem os encantados se aproxima de uma espécie de transe. De forma que existem dois tipos de transe:

um de possessão, em que o médium (a manifestante ou o pajé), fica inconsciente (dormindo) e seu corpo é tomado (enramado) pelo encanto; e outro, mais próximo do que normalmente se entende por xamanismo, em que o pajé, ou outra pessoa de mais entendimento - p. e. uma mestra - enxerga, conscientemente, um outro plano de realidade e, talvez, chegue mesmo a abandonar o próprio corpo, agindo nesse mundo paralelo, invisível à grande maioria. (Nascimento 1994, 292)

No caso dos Kiriri do Rio Verde, apesar de estarem presentes no toré e de serem percebidos cotidianamente através de cheiros, como, por exemplo, o aroma do tabaco ou de leves brisas que podem sentir os Kiriri quando estão caminhando pela mata, é na ciência que os encantados se manifestam e conversam com os presentes através das pessoas que os recebem. Apesar de dizerem que qualquer pessoa pode ter o dom, são algumas das mulheres da aldeia que de fato o possuem. Além da cunhada do cacique, irmã de Carliusa, podem receber os encantados a própria esposa do chefe kiriri e uma de suas filhas residentes no Rio Verde que, por sentir medo, prefere que os mestres não se manifestem através de seu corpo.

Contam os Kiriri que, durante a ciência, após a chegada do primeiro encantado, com um tecido estendido sobre o chão de terra, dão início ao que chamam de “mesa da ciência”. O primeiro mestre a se manifestar, dizem os Kiriri, é o encantado Chefe da Mata, representante dos Kiriri na mesa. Através do corpo da dona da ciência, a irmã de Carliusa, o encantado ensina ao pajé como o alho, o fumo e, quando é o caso, o vinho da jurema, devem ser preparados e utilizados. Quando precisam de conselhos específicos, dizem os Kiriri, o Chefe da Mata pede licença e solicita que outros encantados se manifestem, a depender do assunto. Dessa forma, além de organizar e controlar a mesa, o Chefe da Mata, manifesto no corpo da dona da ciência, atua como um mediador entre os humanos e os seres outros-que-humanos ali presentes, seguindo uma lógica de mediação e diplomacia ante a alteridade, compondo o complexo universo da cosmopolítica kiriri10. Ainda, quando precisam conversar com um ancestral, como foi o caso do tapuia, ou não ancestral, como o caso do velho quilombola das terras de Patos de Minas, o encantado pode se manifestar no corpo de quem possui o dom e mandar chamar o ancestral ou o não ancestral para que possam dialogar11.

Carvalho e Reesink (2018) concordam com Viegas (2007) e alertam para a necessidade de tratar de temas que tangem à etnologia produzida no Nordeste a partir de lacunas teóricas e, por isso, sugerem um diálogo etnográfico e teórico entre a bibliografia produzida acerca dos povos indígenas no Nordeste e da Amazônia. À luz do que propõem Viegas (2007) e Carvalho e Reesink (2018), trata-se de pensar a relação entre etnologia amazônica e pesquisas no Nordeste, incluindo os estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, ao que diz respeito ao tema do xamanismo, resguardando as aproximações e os distanciamentos entre os diferentes contextos etnográficos, olhando para importantes lacunas teóricas que podem ajudar a compreender a ciência kiriri e a multiplicidade agentiva dos encantados, como faremos a seguir.

Langdon (1996) nos mostra que a palavra “xamã” é uma tradução da língua siberiana tungue e indica um mediador entre o mundo humano e o mundo dos espíritos. Abordagens mais recentes, como aponta a autora, consideram o xamanismo como um ponto de vista coletivo, que se caracteriza como “um sistema social no sentido de que gera papéis, grupos e atividades sociais, nas quais o xamã é o ator principal, mas não o único. Inclusive, o conceito de xamã e suas diferentes especializações variam de cultura para cultura” (Langdon 1996, 26). Langdon (1996, 26) informa que o xamanismo é “um sistema cosmológico no qual, na sua expressão simbólica, o xamã é o mediador principal”.

Atualmente, a Antropologia vai ainda mais além, aprofundando sua percepção acerca do papel do xamã nas práticas de intermediação entre humanos e os seres outros-que-humanos. Ao realizar uma revisão da bibliografia disponível na literatura etnológica das terras baixas da América do Sul sobre o tema, entre 1996 e 2016, Sáez (2018, 18) questiona, baseado nas recentes análises, se “o xamã precisa mesmo existir para que haja xamanismo”. Como acrescenta o autor, é frequentemente possível encontrar um xamanismo em que não haja um xamã ou, em algumas situações, em que todos são xamãs. Pensando à luz de Sáez (2018) e do que argumenta Langdon (1996), Arianne Lovo (2019) esclarece que

a ideia de poder xamânico é central, seja relacionado a uma pessoa humana ou a outros seres (plantas, animais, espíritos etc.), pois é através dele que se consegue obter força; a percepção de um universo de múltiplos níveis, invisível e visível; um princípio de transformação no qual pessoas humanas adquirem formas não humanas, animais ou de outra ordem, e vice-versa; o uso de plantas psicoativas, como ayuasca e tabaco, sonhos, danças, cantos e outras técnicas para atingir a mediação entre mundos; a existência de xamanismo sem xamã. (87)

Sáez (2018) adverte que, ao tratarmos das atividades xamânicas, devemos lembrar que não há apenas um xamanismo, mas xamanismos que se manifestam de formas diversas, sobretudo nas sociedades indígenas das terras baixas da América do Sul. Isso pois vemos surgir o xamanismo com uma variedade de práticas e especialistas em cada lugar onde se pode identificá-lo (Sáez 2018). Assim, cada contexto etnográfico diz de sua forma própria de xamanismo, com suas manifestações particulares, possibilitando uma multiplicidade de investigação.

Clarice Mota (1996) afirma que, para os Kariri-Xocó, o papel do pajé confirma a ideia de que o xamanismo atua como uma força central na expressão da cosmologia indígena. No caso Kariri-Xocó, o xamanismo permite a “‘volta do Encantado’ Caboclo Lindo para casa, para que não precise continuar andando por terra alheia em busca de uma ciência e uma cultura perdidas” (Mota 1996, 276). Ainda, para Langdon (1996), o xamã funciona como uma sorte de guardião do equilíbrio das pessoas e da natureza, de seu grupo e, sobretudo, intermediando o mundo visível e invisível. Assim, o xamã é um mediador entre o mundo dos humanos e o mundo dos seres outros-que-humanos. Para Mota (1996, 277-278), que aponta sua reflexão a partir da atuação de um pajé kariri-xocó, “um pajé, ao ser ‘feiticeiro’, é um mestre que se comunica com os ‘mestres do universo’ ou as forças que dominam os homens e que são tidas como sagradas”.

Ao retornar à história dos Tuxá de Rodelas, para pensar a ciência tuxá,Durazzo (2019, 153) relembra que, anteriormente ao cargo de pajé, havia uma multiplicidade de “especialistas rituais chamados mestres e mestras”. O autor ainda demonstra, a partir de seus interlocutores, como as mulheres sempre estiveram aptas a lidar com a força da ciência. Nascimento (1994) deixa claro que, durante o toré, entre os Kiriri de Mirandela, apesar de manifestarem em quem bem desejam, os encantados de fato só se enramam nas mulheres. Também chamadas de “mestras” quando estão “em situação de transe” (Nascimento 1994, 24), as mulheres que manifestam os encantados são pertencentes “àquelas parentelas do cacique, dos conselheiros, ou do pajé” (Nascimento 1994, 48). Nesse sentido, aproximando-se dos Tuxá e guardando certa continuidade com os Kiriri de Mirandela, a ciência entre os Kiriri do Rio Verde também é protagonizada por mulheres que possuem o dom de receber os encantados, que se corporalizam a partir delas. Enquanto o encantado toma forma no corpo da dona da ciência, atuando como um mediador de mundos, o pajé, que também é filho do cacique kiriri, aprende atentamente os modos de fazer e de usar importantes elementos que compõem a ciência.

Portanto, é na ciência que os encantados ensinam ao pajé, através da dona da ciência, que ali parece ter seu corpo tomado como instrumento de mediação, como fazer uso das plantas medicinais e como curar as doenças de encanto12. Em troca dos ensinamentos, de ajuda e proteção, os encantados pedem para não serem esquecidos, fazendo parte do dia a dia kiriri e, sobretudo, de importantes ocasiões, mesmo quando envolvem os Kiriri e seus vizinhos, amigos, entidades não governamentais e toda a sorte de relações que conseguem estabelecer.

A exemplo desta última atuação dos encantados, temos um importante almoço realizado entre os Kiriri e os moradores do Rio Verde. Sob a cabana, mediados pela igreja católica, os Kiriri ofereceram uma refeição aos moradores do Rio Verde, em um sábado da “semana santa”. Muito satisfeitos por conseguirem estreitar as relações com os locais que inicialmente estranhavam a presença das famílias no bairro, os Kiriri compreenderam aquele almoço como um evento importante que contava com a presença de vizinhos e encantados. Por isso, antes de autorizarem que as pessoas se servissem, o pajé se aproximou da mesa em que estavam as grandes panelas e serviu um pouco de cada alimento em um prato, levando-o para a mata de modo a oferecer o alimento primeiro aos encantados, pois são considerados parte do universo de relações políticas kiriri.

Até aqui, tentamos mostrar que os encantados têm uma sorte de capacidades agentivas dentro da aldeia Kiriri do Rio Verde. Através de algumas mulheres da aldeia, sobretudo da dona da ciência, atuam como auxiliadores de cura, ensinam como o pajé deve providenciar e manejar determinados elementos rituais, dão conselhos e, se necessário, aplicam interdições como, por exemplo, quando proíbem algum valente kiriri de fazer uso de bebida alcoólica para evitar brigas e confusões dentro e fora da aldeia. Como mostramos acima, os encantados estão presentes em situações de troca e negociação, portanto quando os Kiriri estão fazendo política. A descrição feita até aqui coloca relevo sobre a política kiriri como cosmopolítica, isto é, como atuar, pensar e vislumbrar possíveis são resultado de conexões dessa ordem. Assim, preservar matas, conectar com os encantados e imaginar possíveis, como a vida na terra verde, são elementos que se compatibilizam no mundo kiriri. A partir disso, tentaremos elucidar como essa complexa rede cosmopolítica se dá no encontro com a política do Estado ou nos termos desse.

Encantados para além da terra ocupada

Na tentativa de tecer acordos com o estado de Minas Gerais, os Kiriri estiveram presentes em diversas reuniões, muitas delas, como a que tratamos etnograficamente neste artigo, integrando o que os agentes estatais chamavam de “mesa de negociação”. Em todos os encontros, os agentes do Estado se mantiveram em certa medida indiferentes com relação à demanda pela permanência na área. Em primeiro lugar, diziam, a terra serviria para quitar dívidas mantidas pelo Estado; em segundo, para tais agentes públicos, os Kiriri, por “serem da Bahia”, estariam gerando uma espécie de ônus indevido ao estado de Minas Gerais. Sobre esse tema, Henrique (2019) acrescenta que o estado mineiro parece estar ancorado na ideia de que uma “terra tradicionalmente ocupada” seria uma área já habitada por muitas gerações de um mesmo povo. Contudo, como aponta Coelho de Souza (2017), o conceito de “terra tradicional” não está dado e deve ser ocupado etnograficamente, sobretudo ao que se compreende enquanto “tradicional”. Seguindo essa argumentação, Henrique (2019) mostra que os Kiriri possuem um modo tradicional de se relacionar com o mundo a partir das redes de troca, parceria e negociação que remontam à forma tradicional de constituir relações com humanos, seres outros-que-humanos e com a própria terra ocupada, mesmo no Rio Verde, onde os agentes estatais são incapazes de vislumbrar tradicionalidade. Assim, o que os agentes estatais apontam como “terra tradicional” não pode ser encontrado na etnografia que trata dos Kiriri do Rio Verde, de forma que Henrique (2019) propõe a noção de “equivocação” para pensar os ruídos e distorções dos termos mobilizados pelos agentes estatais de Minas Gerais e pelas famílias indígenas do Rio Verde.

Pensando à luz dos possíveis equívocos emergentes de relações, Cristobal Bonelli (2015), ao se referir às diferentes práticas visuais realizadas por curandeiros pehuenche e profissionais de saúde pública estadual no Sul do Chile, demonstra que, ao passo que profissionais da saúde não indígenas procuram dar visibilidade às práticas de cura pehuenche, os Pehuenche tratam de evidenciar os espíritos malignos causadores das doenças. Tomando o que apresenta Bonelli (2015) acerca do tornar visível, pensamos que as práticas de mundo e negociação são diferentes de acordo com as relações que se estabelecem, e que os equívocos dispostos entre relações são, como indica o autor, problemas de ordem ontológica. José Antonio Kelly (2010) também coloca as questões acerca da equivocação evidenciadas a partir de encontros realizados em La Esmeralda, entre representantes yanomamis e agentes de saúde da Venezuela. O “Encontro de Saber” pode ser considerado um momento, como apresenta o autor, de tradução e interpretação recíproca, revelando os equívocos que geralmente caracterizam os encontros entre povos indígenas e o Estado. Como demonstra Kelly (2010), nesses eventos, as pessoas estão tentando se entender e, no contexto abordado pelo autor, as categorias “branco” e “índio”, resultantes das concepções de “identidade” e “cultura”, funcionam em um esquema de equívocos: “homônimos entre dois sistemas de referência distintos” (Kelly 2010, 290). Nesse sentido, Bonelli (2015) e Kelly (2010) são eficazes quando colocam, a partir de sua etnografia, o problema dos equívocos, aqui também lembrando Viveiros de Castro (2018), enquanto disputas pela realidade, tornando as negociações esquemas em disputa.

Produzir relações de troca e negociação é central para os Kiriri. Por isso foi necessário negociar com o verdadeiro dono da terra a permanência no Rio Verde, mas também negociar com o estado de Minas Gerais. Portanto, entendemos que existem pelo menos dois atores que se colocam como donos da terra, embora um deles seja o verdadeiro. Por essa razão, as relações de negociação devem ser estabelecidas com ambos. Estamos, assim, diante de uma noção de propriedade que, apesar de dialogar e reconhecer o estado de Minas Gerais como proprietário legal, excede essa concepção. Dessa forma, para usar a categoria apreendida por Marisol de la Cadena (2018) através de um de seus interlocutores, a noção de propriedade mobilizada pelos Kiriri diz respeito “não apenas” ao reconhecimento do tapuia como o dono com quem se deve negociar, mas também “não apenas” diz respeito ao reconhecimento do Estado como proprietário legal da terra ocupada. Nos contextos abordados pela autora, a noção de propriedade também emerge como um conceito múltiplo. Em um exemplo, conta Marisol de la Cadena (2018), uma “guardiã das lagoas” no norte dos Andes do Peru se recusa a vender suas terras para um projeto de mineração corporativa. E, ao explicar a impossibilidade de separação entre seu “estar-com-a-terra”, propõe a autora, a “guardiã das lagoas” excede o limite do conceito de propriedade, considerando, no entanto, a mineradora também em seu confronto para a permanência na localidade. Assim, acrescenta:

“Tornar-se com a terra” excede a noção legal de propriedade e emerge no seu limite (ou seja, quando o conceito legal não é mais). “Recusar-se de sair” pode ser motivado por uma rejeição ideológica ao desejo da mina de destruir lagoas, e também pode ser uma prática que desafia a comensuração, tornando a terra “inocupável” pelo mercado, pois é integralmente ocupada por e ocupa “a mulher que não vai sair”. (De la Cadena 2018, 110)

Considerando o que apresentam os autores supracitados, compreendemos as reuniões de negociação entre os Kiriri e o estado de Minas Gerais enquanto encontros carregados de “equivocações não controladas” que escondem sua existência e fazem “com que a homonímia oscile entre percepções de ‘entendimento’ e ‘mal-entendido’, sempre dentro do sistema de referência do ator em questão” (Kelly 2010, 290). Dessa forma, gostaríamos de pensar aqui que talvez o que o estado mineiro veja como “mesa de negociação” não seja apenas isso para os Kiriri, de forma que a noção de propriedade de terra kiriri exceda a noção de propriedade de terra mobilizada pelo estado de Minas Gerais. E, como veremos, o excesso é o lugar em que a política de negociação kiriri se torna possível a partir da criação de evidências com a ajuda dos encantados, na tentativa de tornar os corpos dos agentes estatais, a partir da captura e do controle de seu pensamento, aptos a compreender sua legitimidade de permanência na terra ocupada, como demonstraremos.

Os encantados são, portanto, figuras centrais para as “negociações diplomáticas” empreendidas pelas famílias do Rio Verde (Henrique 2019), participando também de importantes reuniões com o estado de Minas Gerais para negociar sua permanência nas terras do Rio Verde. Antes dos encontros oficiais com o Estado, os Kiriri realizam a ciência para que possam entrar em contato com os mestres. Os encantados, por sua vez, orientam os Kiriri como proceder nos encontros e, sobretudo, garantem que estarão presentes, guiando as ações dos agentes estatais através de sussurros no ouvido desses sujeitos. Nesse sentido, os encantados podem atuar fora das fronteiras do Rio Verde, agindo para além da forma-corpo de quem possui o dom.

Além dos Kiriri, na reunião relatada no início deste artigo, estavam presentes lideranças dos povos Pataxó e Kamakã Mongoió, que também litigiam “questões territoriais” ante o estado mineiro. Também estavam no encontro representantes de organizações não governamentais e da Comissão Pastoral da Terra. Naquela ocasião, os Kiriri estreitaram relações de apoio político com esses sujeitos e, ao final da reunião, quando um dos agentes estatais afirmou o encerramento do encontro, o pajé kiriri pediu que ainda não abrissem a porta da sala, pois gostaria de convidar a todos para uma apresentação de toré13. Atônitos, os quatro agentes estatais presentes na reunião continuaram sentados, em alguma medida constrangidos, mantendo seus olhares baixos, enquanto os outros presentes dançavam em círculo ao redor da mesa em que a reunião acabara de ser realizada, entoando cantos comuns entre os Kiriri, os Kamakã Moingoió e os Pataxó.

Os encantados são figuras centrais para compreender o processo de recuperação territorial empreendida pelos Tupinambá na Serra do Padeiro, município localizado no estado da Bahia (Alarcon 2014; Ubinger 2012). Helen Ubinger (2012) demonstra que, nesse contexto, esses “‘seres de luz’ são respeitados como os ‘donos da terra’, igualmente responsáveis pela demanda da demarcação da Terra Indígena, isto sendo um ‘resgate espiritual’, base de uma ‘missão a cumprir’, como meta de retomar um território que lhes pertence” (Ubinger 2012, 69). Assim, apesar de possuírem domínios específicos, os encantados podem circular de maneira livre pelo território tupinambá e, aproximando do contexto kiriri, também deixam notar sua presença através de cheiros e sons. Os encantados auxiliam os Tupinambá de Serra do Padeiro aconselhando-os quais terras devem retomar e como devem proceder suas ações de retomada. Ainda, esses “seres de luz” dão diretrizes de como podem se proteger e proteger a terra e aguardarem quando os dias difíceis chegarem ou voltarem para a aldeia na eminência de algum perigo após entrarem para a terra retomada. Assim como acontece aos Kiriri, os encantados ajudam e aconselham os Tupinambá do litoral baiano a se protegerem e agirem corretamente em demandas territoriais.

No caso kiriri, vemos uma atuação diferente dos encantados com relação à demanda territorial das famílias indígenas do Rio Verde. Além de aconselhar, esses seres outros-que-humanos os acompanham nas reuniões com o estado mineiro, traduzindo o universo de demandas kiriri com relação à necessidade de ocupar a terra no sul-mineiro, a partir de falas ao pé do ouvido dos agentes estatais. Aqui encontramos diferenças e aproximações entre a atuação dos encantados na aldeia e em reuniões com o estado de Minas Gerais. Quando estão na ciência, assim como o fazem em encontros oficiais entre os Kiriri e agentes estatais, os encantados traduzem outros mundos aos Kiriri e o universo kiriri para outros sujeitos do cosmos. Contudo, na aldeia, essa tradução é feita a partir de uma forma-corpo manifesta na dona da ciência, que parece atuar como mediadora da relação. Já na ocasião das reuniões oficiais com o Estado, o agenciamento de funcionários estatais acontece fora do corpo kiriri. Entretanto, podemos afirmar que, na ocasião dos encontros entre as famílias indígenas do Rio Verde e os funcionários do Estado, os Kiriri e os encantados estabelecem uma rede de atuação em que agem juntos a fim de comunicar ao Estado, cada um à sua forma, acerca da legitimidade de sua permanência na terra ocupada no sul de Minas Gerais.

Sabe-se que os agentes estatais não se dão conta da presença dos seres que atuam junto aos Kiriri para evidenciar a legitimidade de sua ocupação de terra no Rio Verde; são, para falar como De la Cadena (2018), “antropo-cegos”. Apesar de terem legitimidade para permanecer na terra ocupada conferida peloverdadeiro dono, o velho tapuia, os Kiriri, que admitem a necessidade de negociar também com o estado de Minas Gerais, se encontram diante de um dilema: comoprovarao estado mineiro que, apesar de terem vindo do oeste da Bahia, conseguiram a autorização de umancestralpara ficar em sua terra? Diante dessa questão, os Kiriri dizem que, se contarem ao estado de Minas Gerais sobre a conversa que tiveram com o tapuia, os agentes estatais entenderão o dito como algo da esfera da crença, ou seja, algo que pode ser respeitado como “cultura”, mas que inexiste enquanto realidade. Assim, devem negociar com o estado mineiro de forma a utilizar a linguagem mobilizada pelo próprio Estado para tecer acordos. E, dessa forma, como mostra Bruce Albert (2004) acerca dos movimentos indígenas da Amazônia, é preciso disputar com o Estado a partir da reinvenção de categorias mobilizadas pelo próprio Estado. O que quer dizer, portanto, que os Kiriri, como outros, produzem equivocações produtivas sabendo, inclusive, dos excessos entre categorias homônimas, como terra, por exemplo, que, dito pelos agentes do Estado assim como pelos Kiriri, conduz a plasticidades conceituais que divergem, ainda que conversem, possibilitando uma comunicação pela diferença.

Nesse sentido, através de sussurros no ouvido dos agentes do Estado, há ali uma tentativa de capturar e controlar opensamentodos sujeitos. Entretanto, a habilidade de capturar opensamentodas pessoas não é uma exclusividade da relação entre os encantados e os agentes estatais. Como dizem meus interlocutores, os encantados são capazes de deixar uma pessoa com acabeça variada,o que significa dizer que, por exemplo, se, durante uma caçada, não houver um pedido de permissão para abater os animais que habitam o domínio dos encantados, opensamentodo caçador pode ser capturado e gerar confusão, deixando-o perdido ou mesmolouco. No caso da relação entre os Kiriri e o estado mineiro, é preciso falar sobre o regime de propriedade em uma linguagem inteligível ao Estado em um nível e, por isso, tratar depapéis,dimensões territoriais e monetização da terra, e, por outro lado, em algum nível, é preciso capturar opensamentodos agentes estatais e fazer com que elesvariempara que só assim compreendam, a partir dessa forma de evidenciação, que eles não são os únicos, tampouco osverdadeiros donosda terra.

O conceito de “cosmopolítica” foi proposto inicialmente por Stengers (1997) e vem sendo amplamente debatido na Antropologia. Blaser (2016), na tentativa de expandir e complexificar o conceito, sugere que o processo cosmopolítico não é necessariamente fazer daquilo que diverge uma convergência. A noção de cosmopolítica está muito mais próxima da ideia de habitar os excessos. Expandindo tais ideias, Blaser e De la Cadena (2018) propõem o pluriverso como um arcabouço analítico, considerando cosmopolítica como uma ferramenta para pensar disputas que concebem e incluem participantes cuja presença não é reconhecida por todos aqueles que participam do encontro. Dessa forma, há certa dinamicidade no conceito que diz respeito às disputas políticas da realidade. Blaser e De la Cadena (2018) sugerem ainda o conceito de “ontologia política” para exceder a noção de cosmopolítica e possibilitar a designação de um imaginário para políticas da realidade. Assim, “ontologia política” opera na presunção de mundos divergentes que estão em constante negociação, sendo atravessados e interrompidos. Nesse sentido, propomos aqui acompanhar tais autores para pensar a presença dos encantados nas reuniões entre os Kiriri e o estado de Minas Gerais.

Antes de participarem da reunião que nos serve de exemplo neste artigo, como é costume, os Kiriri perguntaram aos encantados como seria o encontro com os agentes do estado de Minas Gerais. Os encantados, por sua vez, pediram que os Kiriri não deixassem de ir ao encontro, já que colheriam bons resultados a partir dali. Ainda, os encantados afirmaram que, como o fazem constantemente, sussurrariam no ouvido dos agentes estatais o que os Kiriri queriam dizer quando solicitavam suas demandas. Após aquela reunião, os Kiriri relataram que, como adiantaram os encantados, ficaram satisfeitos com o encontro e que, através dele, conheceram novos aliados políticos, como, por exemplo, lideranças kamakã mongoió e pataxó, para somar na luta pela terra kiriri.

Logo depois das eleições estaduais de 2018, a promotoria federal do sul de Minas Gerais, procurada pelo cacique kiriri Adenilson e sua esposa, Carliusa, solicitou um outro encontro entre agentes do estado mineiro para discutir a questão da ocupação. Antes da reunião, os Kiriri pediram a proteção e ajuda de seus encantados que afirmaram a importância daquele encontro oficial para a regularização da terra ocupada no Rio Verde. Na ocasião, o estado mineiro, em conjunto com a promotoria federal do sul de Minas Gerais, decidiu que, mediados pela promotora, deveriam tentar a permuta da terra com a Funai para que os Kiriri continuassem suas vidas no sul mineiro. Os Kiriri consideram que tais andamentos favoráveis ao seu desejo de permanecer na terra possuem relação com a atuação e produção de evidências dos encantados nas conversas com os agentes públicos.

Nesse sentido, apesar de possuírem legitimidade do verdadeiro dono para permanecer na terra, os Kiriri compreendem que devem negociar com o Estado para conseguirem regularizar seu território. Contudo, tal negociação é feita em muitas esferas políticas, com aliados da promotoria federal, estadual, vizinhos e encantados. Sobretudo, os encantados agem em favor de produzir evidências para o estado mineiro, variando o pensamento dos agentes estatais, traduzindo a demanda kiriri por terra para os agentes estatais e confirmando a legitimidade que essas pessoas possuem para permanecer na terra ocupada.

Considerações finais

Neste artigo, discutimos como os Kiriri produzem evidências ante o estado de Minas Gerais a fim de demonstrar que possuem legitimidade para ocupar a terra onde vivem desde março de 2017 no bairro rural do Rio Verde, município de Caldas. Isso pois, como vimos, o Estado é o proprietário legal da área ocupada, mas seu verdadeiro dono, um antigo tapuia que apareceu na ciência, momento em que os Kiriri se comunicam com seus encantados, importantes seres outros-que-humanos da cosmologia kiriri, já os autorizou, a partir de uma relação de troca, a permanecerem na localidade. Vimos, assim, que a noção de propriedade de terra kiriri excede a noção de propriedade de terra mobilizada pelo estado de Minas Gerais. Nesse excesso, tomando a equivocação como um importante conceito para pensar tal situação, os Kiriri produzem as negociações com o estado mineiro com a ajuda de seus encantados.

Para compreender melhor a forma como os encantados agem na relação entre os Kiriri e o estado de Minas Gerais, olhamos para a ciência kiriri. Como demonstramos, os encantados possuem uma múltipla capacidade agentiva a depender do contexto em que estão atuando, fazendo notar uma complexa rede de política cósmica na qual estão envolvidos todos esses seres humanos e outros-que-humanos. No toré, os encantados não se manifestam através do corpo, diferentemente da ciência, momento fundamental de comunicação entre os Kiriri e os mestres. Através do que chamamos aqui de “corporalização”, os encantados se comunicam, a partir da dona da ciência, com o pajé kiriri e com as outras pessoas presentes na ciência. Durante a ciência, um encantado específico, denominado Chefe da Mata, atua também como mediador da relação entre os Kiriri e os outros encantados.

Também na ciência, os Kiriri perguntam aos encantados como devem proceder em determinada reunião com o estado de Minas Gerais. Nesses momentos, os mestres dizem aos Kiriri se a reunião será boa para eles ou não. Normalmente, eles também tranquilizam os Kiriri dizendo que estarão presentes durante o encontro, sussurrando no ouvido dos agentes estatais de maneira que possam compreender as demandas kiriri. Assim, notamos ainda que os encantados, figuras centrais no mundo, desempenham um papel de mediação e tradução ante o estado mineiro. Diferentemente do que fazem quando estão na ciência, observamos que os encantados transitam, junto aos Kiriri, para os importantes encontros entre os agentes do estado de Minas Gerais e esse povo, a fim de mediar e traduzir o que estes últimos dizem para aqueles. Por sua vez, é através da variação e, por isso, da captura do pensamento dos agentes estatais, que os encantados atuam para produzir evidências para o estado de Minas Gerais.

Sugerimos, portanto, o aprofundamento dos estudos que dizem respeito às relações entre os Kiriri, os encantados e os estado de Minas Gerais, o que contribuiria para a compreensão da ciência kiriri e da forma como fazem política com os seres humanos e outros-que-humanos.

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* Este artigo é um desdobramento do trabalho etnográfico desenvolvido no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, na Universidade Estadual de Campinas, Unicamp, Brasil, que suscitou na dissertação de mestrado intitulada “Por um lugar de vida: os Kiriri do Rio Verde, Caldas-MG”, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), no âmbito do Convênio Fapesp-Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, sob o processo n.º 2017/13949-0.

1O destaque em “itálico” será utilizado para identificar categorias mobilizadas pelos Kiriri do Rio Verde.

2“Bairro” é a maneira como os moradores locais se referem à comunidade rural do Rio Verde, lugar em que vivem. Nos contextos rurais do Sudeste brasileiro, bairro é uma categoria que organiza “grupos de vizinhança, cuja as relações interpessoais são cimentadas pela grande necessidade de ajuda mútua, solucionada por práticas formais e informais, tradicionais ou não; pela participação coletiva em atividades lúdico-religiosas que constituem a expressão mais visível da solidariedade grupal” (Queiroz 1973, 195).

3Seguindo o que sugere De la Cadena (2015), propomos utilizar a terminologia “outros-que-humanos” para tratar da diversidade de seres que habitam o cosmos kiriri, sobretudo para dizer respeito aos encantados.

4Como mostraremos neste artigo, os encantados são seres outros-que-humanos que compõem o cosmos kiriri e que possuem múltiplas capacidades de agenciamento.

5Como nos mostra Pompa (2003), a categoria “tapuia” aparece, desde os primeiros relatos coloniais, colada à noção de sertão, espaço do imaginário em que a alteridade bárbara vai sendo incorporada à colonização aos poucos, em posição subalterna ao mundo colonial. Feroz habitante do espaço desconhecido do sertão, o “tapuia” é a alteridade humana radical que, ao passo que as aldeias de índios conquistados “descem” para mais perto dos currais, dos engenhos e da palavra missionária, vai se afastando nas mais inacessíveis serras do sertão brasileiro (Pompa 2003).

6A ciência é realizada entre os Kiriri do Rio Verde uma vez ao mês. Como veremos ao longo deste artigo, é o momento por excelência em que os Kiriri entram em contato com os encantados. Diferentemente do toré, para chamar os encantados durante a ciência, os Kiriri cantam cantos mais fortes e se concentram mais. Para saber mais sobre a ciência no Nordeste indígena, conferir a dissertação de mestrado de Marco Tromboni Nascimento (1994), a coletânea organizada por Rodrigo Grunewald (2005), a tese de doutorado de Leandro M. Durazzo (2019), entre tantos outros trabalhos.

7A relação de apoio político e aliança entre os Kiriri e os Xucuru-Kariri de Caldas se consolidou quando um importante chefe Xucuru-Kariri passou as terras que seriam doadas ao seu povo pela Funai em Muquém de São Francisco para os Kiriri que ainda coabitavam com os Pankaru. Em 2001, os Xucuru-Kariri se estabeleceram no município de Caldas, momento em que alguns Kiriris “passaram um tempo” na região com o objetivo de ajudarem seus antigos aliados a se estabelecerem na localidade. Dezesseis anos depois, quando decidiram também se estabelecer na região, os Xucuru-Kariri não aprovaram a ocupação da terra do Estado e, por isso, a antiga relação de aliança e apoio político estabelecida entre os antigos chefes se transformou em inimizade e desafetos (Bort Jr. e Henrique 2020, no prelo; Henrique, 2019).

8A cabana é uma estrutura circular que possuía, inicialmente, um teto de folhas de palha encontradas no sul de Minas Gerais, sustentadas por longos troncos de madeira. Atualmente, a cabana, que possui laterais abertas, é coberta por telhas de amianto e possui um chão cimentado, o que é melhor, como dizem nossos interlocutores, para dançar o toré.

9Por se sentirem em uma situação de vulnerabilidade com relação à permanência na terra ocupada, os Kiriri afirmam que devem receber bem os “amigos que queiram ajudar”. Para melhor compreender as categorias amigo e ajuda no contexto kiriri, ler Henrique (2019).

10Aqui nos remetemos ao debate proposto pela filósofa da ciência Isabelle Stengers, que perpassa pela história da ciência para elaborar o que chama de “proposição cosmopolítica” (Stengers 2018). Acrescenta-se que há um esforço na Antropologia de adequar etnograficamente a proposta de Stengers (Blaser 2016; Cardoso 2018; De la Cadena 2018; Durazzo 2019; entre outros).

11Por se tratar de um tema bastante complexo, a maneira como o Chefe da Mata manda chamar outros encantados, ancestrais e não ancestrais é ainda uma questão que deve ser melhor trabalhada etnograficamente.

12Apesar de apresentar a ciência kiriri de maneira incipiente neste artigo, observamos aqui uma questão que permite complexificar o tema. Devemos reiterar que não queremos afirmar que a dona da ciência não está presente durante a ciência. Ela, na verdade, pode estar agindo em conjunto com o encantado através de seu corpo. Queremos, assim, apontar caminhos para as perguntas: estaria a dona da ciência presente ou não na ciência? Ela e o encantado corporalizado agem juntos? A essas questões, ainda não temos respostas. Contudo, efetivamente serão temas de investigações futuras e contribuirão fundamentalmente para aprofundar o debate da multiplicidade de agência dos encantados para o contexto kiriri e para além dele.

13Henrique (2019) mostra que os Kiriri do Rio Verde diferenciam dançar o toré de apresentar o toré. Segundo demonstra a autora, apresentar o toré acontece em situações em que precisam mostrar aos outros esse importante sinal diacrítico encontrado em diversos outros povos indígenas que habitam o Nordeste brasileiro. Já dançar o toré acontece apenas na aldeia e é caracterizado por somente permitir a presença de não indígenas autorizados pelos encantados (Grunewald 2005).

Como citar este artigo: Henrique, Fernanda Borges. 2020. “As múltiplas agências dos encantados: esboço de uma teoria política kiriri”. Antípoda. Revista de Antropología y Arqueología 41: 57-77. https://doi.org/10.7440/antipoda41.2020.03

Recebido: 31 de Março de 2020; Aceito: 28 de Julho de 2020

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