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Revista de Relaciones Internacionales, Estrategia y Seguridad

Print version ISSN 1909-3063

rev.relac.int.estrateg.segur. vol.16 no.1 Bogotá Jan./June 2021  Epub May 07, 2021

https://doi.org/10.18359/ries.5104 

Artículos

A crise anglófona na República dos Camarões e a inação dos mecanismos africanos de resolução de conflitos*

The Anglophone crisis in the Republic of Cameroon and the inaction of African conflict resolution mechanisms

La crisis anglófona en la República de Camerún y la inacción de los mecanismos africanos de resolución de conflictos

Guilherme Ziebell de Oliveiraa 

Nilton César Fernandes Cardosob 

a Doutor em Ciência Política e mestre em Estudos Estratégicos Internacionais. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. Correio eletrônico: guilherme.ziebell@ufrgs.br ORCID: http://orcid.org/0000-0002-0118-6279

b Doutor e mestre em Estudos Estratégicos Internacionais. Professor auxiliar do curso de licenciatura em Relações Internacionais e Diplomacia, e professor colaborador do Programa de Mestrado em Relações Internacionais e Diplomacia da Universidade de Cabo Verde, Praia, Cabo Verde. Correio eletrônico: nilton.cardoso@docente.unicv.edu.cv ORCID: http://orcid.org/0000-0001-8092-4999


Resumo:

Neste trabalho, pretende-se discutir a atuação dos organismos regionais e sub-regionais africanos na busca por uma solução da crise vivida na República dos Camarões desde 2016. Além de apresentar os elementos que levaram à transformação da Organização da Unidade Africana em União Africana, bem como as principais diferenças entre essas organizações, neste artigo, discutem-se os processos de criação e evolução da Comunidade Econômica dos Estados da África Central e da Comunidade Econômica e Monetária dos Estados da África Central, dando especial atenção para a sua atuação em tentativas de garantir a estabilidade da África Central, além de analisar a crise camaronesa, identificando os principais elementos que levaram ao seu surgimento e discutindo a sua evolução. Evidencia-se, a partir dessa análise, que a despeito da existência de estruturas institucionais, regionais e sub-regionais, voltadas ao tratamento de casos dessa natureza, elas não têm exercido suas prerrogativas e cumprido com suas responsabilidades, o que representa uma ameaça significativa de retrocesso em termos do panorama securitário africano.

Palavras-chave: Camarões; conflito; organizações africanas; segurança

Summary:

The present work discusses the actions of African regional and subregional agencies in search of a solution to the crisis in the Republic of Cameroon since 2016. It also presents the elements that have led to the transformation of the Organization for African Unity into African Union and the main differences between these agencies. The processes of creation and evolution of the Economic Community of Central African States and the Economic and Monetary Community of Central African States and the emphasis of their action in attempts to ensure the stability of Central Africa is analyzed here, as well as studying the crisis in Cameroon, which identifies the main elements that led to its emergence, which also takes its evolution to be questioned. It is clear that, regarding the existence of regional and subregional institutional structures, aimed at the treatment of cases related to this nature, they have not exercised their prerogatives and fulfilled their responsibilities, which poses a significant threat of setback in terms of the African security landscape.

Keywords: Cameroon; conflict; African agencies; security

Resumen:

En este trabajo se discute la actuación de los organismos regionales y subregionales africanos en búsqueda de una solución de la crisis vivida en la República de Camerún desde el 2016. Así mismo, se presentan los elementos que han llevado a la transformación de la Organización para la Unidad Africana en Unión Africana y las principales diferencias entre estos organismos. Aquí se discuten los procesos de creación y evolución de la Comunidad Económica de los Estados de África Central y la Comunidad Económica y Monetaria de los Estados de África Central, y se da énfasis a su actuación en los intentos por garantizar la estabilidad de África Central, además de analizar la crisis de Camerún, en donde se identifican los principales elementos que llevaron a su surgimiento y que ponen en discusión su evolución. Se evidencia que, en cuanto a la existencia de estructuras institucionales regionales y subregionales, direccionadas al tratamiento de casos de esta naturaleza, estas no han ejercido sus prerrogativas y cumplido con sus responsabilidades, lo que representa una amenaza significativa de retroceso en términos del panorama de seguridad africano.

Palabras clave: Camerún; conflicto; organismos africanos; seguridad

Introdução

As eleições presidenciais na República dos Camarões, em 2018, marcadas por tensões e violência, trouxeram à atenção da comunidade internacional o cenário de grave crise que vinha sendo enfrentada no país, historicamente dividido em duas regiões, uma majoritariamente anglófona (compreendendo cerca de 20% da população) e outra predominantemente francófona. As decisões tomadas em 2016 pelo governo camaronês - composto principalmente por indivíduos francófonos - de impor o francês como língua oficial em todas as escolas do país e de nomear juízes francófonos para atuar nas regiões Sudoeste e Noroeste do território - as quais são de maioria anglófona - levaram a uma escalada das tensões. Diante disso, diversos protestos contrários às medidas adotadas pelo governo passaram a acontecer nessas regiões. Em resposta, as forças de segurança camaronesas foram acionadas, passando a reprimir as manifestações - em muitos casos com o uso da violência. Esse contexto levou ao agravamento da situação, com um significativo aumento da violência e a eventual declaração de secessão das regiões an-glófonas do restante do país em 2017. Diante da situação, as forças do governo intensificaram sua atuação, e o país mergulhou em um conflito armado, com severas consequências humanitárias, que perdura até o presente.

A despeito da longa duração e dos impactos humanitários do conflito, a atuação da União Africana (UA) e das organizações sub-regionais das quais o país é parte, a Comunidade Económica dos Estados da África Central (ECOAS) e a Comunidade Económica e Monetária dos Estados da África Central (Cemac), parece estar bastante aquém de suas prerrogativas e responsabilidades - em grande medida remontando ao padrão de atuação que era adotado durante a existência da Organização da Unidade Africana (OUA) e que se pretendia superado com a sua substituição pela UA. A transformação da OUA em UA, no início do século XXI, teve como principal marca a substituição da noção de "não intervenção" nos assuntos dos Estados membros (remetendo aos valores fundamentais da Organização, como o respeito à soberania e à intangibilidade das fronteiras) pela de "não indiferença". Essa mudança atribuía à UA - e às diversas Comunidades Económicas Regionais (RECS, sigla em inglês) - não apenas o direito, mas também a responsabilidade de intervir em situações em que os Estados-membros se tornassem focos de instabilidade, promovessem violações dos direitos humanos, crimes contra a humanidade, genocídios ou mesmo mudanças inconstitucionais de governo (Dersso, 2014; Murithi, 2008). Até o presente, contudo, a UA, a ECCAS e a Cemac têm se limitado à emissão de declarações que condenam a violência na República dos Camarões, sem que haja qualquer previsão - ou mesmo consideração a respeito da possibilidade - de estabelecimento de missões de estabilização para o país, o que tem aberto espaço para que atores extracontinentais assumam a liderança na tentativa de resolução do conflito (Agwanda et al., 2020).

Nesse contexto, o objetivo do presente artigo é demonstrar que a atuação da UA e das RECS, na crise camaronesa, se mostra bastante aquém de suas responsabilidades e possibilidades, o que foi demonstrado em diversas ocasiões. Para tanto, o trabalho adota uma abordagem metodológica qualitativa, apoiando-se em revisão de literatura especializada e de fontes de imprensa - centrando-se, a partir de uma análise hermenêutica, nos elementos que permitem sustentar o argumento apresentado -, e está dividido em três seções, além desta introdução e das conclusões.

Inicialmente, é apresentada uma discussão a respeito dos elementos que levaram à transformação da OUA em UA, bem como das principais diferenças entre essas organizações. Em seguida, são discutidos os processos de criação e evolução da ECCAS e da Cemac, dando especial atenção para a sua atuação em tentativas de garantir a estabilidade da África Central, de forma a evidenciar as suas estruturas institucionais e discutir as expectativas quanto à atuação de ambas diante da crise da República dos Camarões. Por fim, é realizada uma análise da crise camaronesa, buscando, por um lado, identificar os principais elementos que levaram ao seu surgimento e discutir a sua evolução, e, por outro, avaliar as atuações das organizações regionais na condução da situação.

Os mecanismos africanos de prevenção e resolução de conflitos: da OUA à UA

Desde o início dos processos de descolonização, na década de 1950, a África tem sido palco de conflitos armados de grande intensidade e crescente letalidade (Reno, 2011; Williams, 2014). Diante da ameaça que tais conflitos representavam para a consolidação dos Estados nascentes, em 1963, os países africanos independentes criaram a OUA, baseada em ideais panafricanistas e na ideia de criar uma estrutura forte e unificada para combater o jugo colonial e o racismo, e para promover o desenvolvimento económico e a estabilização política dos países-membros (Mays, 2003).

A Organização, contudo, era fortemente baseada em princípios estritos de respeito à soberania de seus membros, o que foi estabelecido como uma forma de garantir que a OUA não se tornasse uma instituição supranacional. Isso contribuiu, entretanto, para que sua atuação fosse bastante limitada, sobretudo em questões de segurança (Dersso, 2014; Murithi, 2008). Essas restrições institucionais e funcionais, associadas à natureza dos conflitos africanos1 e ao não pagamento das cotas de manutenção por parte dos Estados-membros, acabaram comprometendo o sucesso da OUA em diversos eventos importantes que demandavam uma postura mais ativa da Organização, como em intervenções militares e na estabilização do continente (Cardoso e Oliveira, 2018). Nesse contexto, ao longo das décadas de 1960 e 1970, ações da OUA no âmbito securitário restringiram-se à mediação de disputas fronteiriças, utilizando abordagens ad hoc e o envio de pequenas missões de observação de cessar-fogo. A Organização também desempenhou um papel central no apoio aos movimentos de libertação nacional, na articulação de uma posição comum para o continente em relação aos regimes racistas na África do Sul e na Rodésia e no desenvolvimento económico africano (Adebajo, 2013; Chazan et al, 1999).

A primeira tentativa da OUA de realizar uma missão de manutenção da paz ocorreu somente na década de 1980, diante da intensificação da guerra civil iniciada no Chade na década anterior. Nesse contexto, foi estabelecida, em 1981, a Missão de Paz da OUA, com o mandato de manter a paz no Chade, supervisionar as eleições a serem realizadas em uma data acordada pelas facções em combate e auxiliar na integração dos combatentes ao exército chadiano. Contudo, a falta de recursos humanos, logísticos, materiais, financeiros e técnicos, e a incapacidade da OUA de estabelecer um cessar- fogo, somados aos crescentes ataques sofridos pelos contingentes da OUA, contribuíram para o fracasso da missão (Cardoso e Oliveira, 2018; Chazan et al., 1999). A OUA somente voltou a se envolver com processos de pacificação na década de 1990. A partir daí, todavia, não houve mais o envio de tropas, mas de missões neutras de observação da paz. Paralelamente, uma série de discussões passou a ter lugar na OUA, começando em 1989, com o Movimento Kampala, e se aprofundando ao longo dos anos 1990, no sentido de criar um mecanismo capaz de viabilizar a atuação da organização em situações de crise no continente2 (Adebajo, 2013; Mays, 2003).

O final da Guerra Fria teve como resultado a perda de relevância estratégica da África e sua progressiva marginalização no sistema internacional, acompanhada de forte debilidade económica e de crescente instabilidade política. Com isso, diversos países africanos enfrentaram conflitos internos de grande intensidade e letalidade que, marcados pela emergência de fenómenos como os senhores da droga, as guerras de milícias e os "diamantes de sangue", e destituídos - para as potências centrais - de caráter estratégico, foram retratados como guerras tribais, bárbaras e irracionais (Taylor e Williams, 2004). Nesse contexto, o fracasso das intervenções da Organização das Nações Unidas (ONU) na Somália (1993) e em Ruanda (1994), somado à falta de interesse demonstrada pelas antigas potências atuantes na região pela manutenção da paz e da estabilidade africanas, deixava cada vez mais clara a necessidade das lideranças africanas buscarem soluções internas para os problemas do continente por meio da institucionalização de uma série de mecanismos de aquiescência (prevenção, monitoramento, intervenção, resolução de conflitos) que visassem à estabilização da África e à promoção do desenvolvimento económico integrado (Cardoso e Oliveira, 2018). Assim, teve início um longo processo de reformas que culminou no estabelecimento de uma nova Arquitetura Africana de Paz e Segurança, em 2002, com a adoção de uma ampla agenda de segurança e defesa. No âmbito sub-regional, as RECS africanas, que tiveram um papel marginal na manutenção da paz e da segurança continentais durante a Guerra Fria, adota-ram uma nova agenda de cooperação, que passou a incluir questões de segurança e defesa, com base no que dispõe o capítulo VIII, artigos 52 e 53 da Carta da ONU, com o objetivo de responder de forma satisfatória aos novos desafios de segurança (Akokpari e Ancas, 2014; Francis, 2006).

No âmbito continental, em 1999, teve início um longo processo de reforma da OUA, que culminou na sua substituição, em 2002, pela UA, a qual adquiriu um escopo conceitual e institucional mais amplo que sua antecessora. A UA surgiu com o objetivo de reunir uma vasta quantidade de instituições sub-regionais, capazes de promover a cooperação e a integração continentais, fomentar as relações entre os países nos âmbitos social, económico e político - diminuindo a probabilidade de conflitos entre os Estados-membros -, e estabelecer um aparato institucional que permitisse a participação efetiva dos países africanos no mercado internacional e nas negociações financeiras, entre outros (Badmus, 2015).

Na esfera securitária, a principal mudança em relação à OUA foi a substituição do princípio da "não intervenção" pelo da "não indiferença" e a introdução da noção de intervenção legítima nos assuntos internos dos Estados-membros, caso eles se tornassem focos de instabilidade interna, promovessem violações dos direitos humanos, genocídio, crimes contra a humanidade ou mudanças inconstitucionais de governo (Mwanasali, 2008; Williams, 2014). Assim, a UA não só passava a ter a responsabilidade de intervir (sem necessidade de consentimento das partes) para proteger a população e restaurar a paz e a estabilidade, mas, sobretudo, para prevenir que situações de violência e instabilidade ocorressem.

Foi estabelecida, nesse contexto, uma arquite-tura da paz e da segurança, constituída por diversos órgãos, cujo objetivo é reforçar a capacidade de prevenção, gerenciamento e resolução de conflitos da UA, além de construir capacidades efetivas de apoio humanitário, manutenção e construção da paz. Entre os órgãos criados, destacam-se o Conselho de Paz e Segurança da União Africana, o Conselho de Anciãos, as Forças Africanas de Pronto Emprego, o Sistema Continental de Alerta Antecipado, o Comitê Militar e de Segurança e o Fundo para Paz (Badmus, 2015).

O Ato Constitutivo da UA também concedeu à organização o direito de intervir em um Estado membro, com a utilização de meios coercitivos quando necessário, mesmo sem o consenso no Conselho de Paz e Segurança da organização. Além disso, a UA adotou uma concepção multidimensional de segurança, englobando os conceitos de segurança humana, bem-estar económico, político e social (Apuuli, 2018; Mwanasali, 2008). A União assumiu, assim, a responsabilidade primária na manutenção de paz e segurança no continente, atuando em estreita cooperação com as RECS e a ONU. Desde sua criação, a UA já estabeleceu três grandes operações de paz, no Burundi (African Union Mission in Burundi [Amib], 2003-2004), no Sudão (African Union Mission in Sudan [Amis], 2004-2007) e na Somália (African Union Mission to Somalia [Amisom], 2007-presente), e mediou dezenas de crises políticas no continente (Apuuli, 2018).

A Amib foi estabelecida com o mandato de estabelecer e supervisionar o acordo de cessar-fogo, auxiliar no processo de desarmamento, desmobilização e reintegração dos ex-combatentes no exército nacional, e na criação de um ambiente favorável para o estabelecimento de uma força de paz da ONU no país. Após entrar em ação, a força passou a enfrentar dificuldades financeiras, logísticas, materiais e técnicas em sua ação, o que contribuiu para que a organização recorresse a auxílios de atores extrarregionais para a operacionalização da Amib (Cardoso e Oliveira, 2018). Apesar das dificuldades, as ações da Amib foram fundamentais para o retorno da ajuda aos refugiados e deslocados internos, para a assistência humanitária, para o fornecimento de escoltas armadas aos comboios humanitários e para o auxílio na formação e no estabelecimento de uma nova força de segurança no país, e logrou estabilizar boa parte do território do Burundi (Badmus, 2015).

Após o encerramento da sua operação de paz no Burundi, a UA autorizou a criação da Amis, com o mandato de supervisionar o acordo de cessar-fogo de N'Djamena, assinado em abril de 2004, e auxiliar na estabilização da região de Darfur. Diante da intensificação do conflito e das dificuldades da UA em manter a paz, em função da falta de recursos financeiros, técnicos, materiais, logísticos e de planejamento, em 2007, a Amis foi transformada uma missão híbrida (United Nations-African Union Mission in Darfur [Unamid]), conduzida conjuntamente pela ONU e pela UA (Apuuli, 2018).

A Amisom, por sua vez, foi a terceira experiência da UA com uma missão de manutenção de paz no continente. Na tentativa de mediar o prolongado conflito na Somália, a missão foi autorizada com o mandato de auxiliar o governo de transição nos seus esforços para estabilizar o país, promover o diálogo e a reconciliação entre as partes envolvidas no conflito, facilitar a prestação de assistência humanitária e criar condições propícias à estabilização, à reconstrução e ao desenvolvimento do país no longo prazo (Cardoso e Oliveira, 2018). A ascensão e a consolidação do grupo al Shabaab, aliadas às dificuldades financeiras, logísticas, materiais e técnicas da UA, colocaram sérias limitações à Amisom, que, assim como as missões anteriores da UA, foi marcada por grande dependência de recursos (e da disposição de cedê-los) de atores não africanos, especialmente a União Europeia e os Estados Unidos, para sua operacionalização e sustentação (Murithi, 2008).

ECCAS e Cemac e os desafios de segurança na África Central

A África Central é formada por nove países de grande diversidade política, económica, linguística e populacional, abrangendo uma vasta área geográfica que se estende da costa ocidental atlântica (Golfo da Guiné) até o deserto do Saara. Em termos securitários, a região foi marcada por décadas de instabilidade política (tensões internas, golpes e conflitos armados) em grande parte dos Estados e pelas constantes intervenções militares francesas nas suas ex-colónias para salvaguardar seus interesses (Adebajo, 2013). A materialização dessa política francesa se deu, historicamente, pela assinatura de acordos de cooperação militar, pelos pactos de defesa e pelo oferecimento de apoio económico aos países francófonos, o que aumentou a influência francesa na região. Paris manteve bases militares no Chade, no Gabão e na República Centro-Africana (RCA), as quais lhe permitiam intervir rapidamente na região para defender seus interesses em caso de instabilidade interna ou de ameaça externa (Taylor, 2010).

No início da década de 1980, baseados nas estratégias estabelecidas pelo Plano de Ação de Lagos, os países da região buscaram um instrumento capaz de amenizar a crise económica e promover o desenvolvimento. Nesse contexto, em 1983, sob a liderança do Gabão, que buscava conter a influência da República dos Camarões na União Económica e Aduaneira dos Estados da África Central (Udeac), foi aprovado o Tratado de Libreville, criando oficialmente a ECCAS, composta por dez Estados da região.3 A ECCAS entrou em funcionamento em 1985, buscando, através do incremento da relação comercial entre seus membros e da cooperação em programas de desenvolvimento, acelerar o crescimento económico autossustentável, tendo por meta a integração económica entre esses países. Contudo, a crise económica e a instabilidade política na região inviabilizaram o funcionamento pleno da organização ao longo dos anos 1980 (Adebajo, 2013; Meyer, 2015; Nagar e Nganje, 2018).

No início dos anos 1990, com a escalada de novos conflitos na região e a relutância da comunidade internacional em intervir, as lideranças regionais passaram a buscar soluções internas para resolver seus problemas. Nesse contexto, por iniciativa do presidente camaronês, Paul Biya, teve início, ainda no final dos anos 1980, um processo de revitalização da ECCAS, apoiado pela ONU, que, em 1992, estabeleceu o Comitê Consultivo Permanente das Nações Unidas para as Questões de Segurança na África Central (CCPNU-QSAC), o qual passou a trabalhar em estreita cooperação com os países-membros da organização. Diante da paralisação da ECCAS, o Comitê se transformou gradualmente em um instrumento de comunicação entre os Estados da África Central em questões de segurança (Francis, 2006; International Crisis Group [ICG], 2011).

Entre 1994 e 1996, os Estados-membros da ECCAS assinaram um Pacto de não Agressão, que, contudo, teve pouco efeito prático. Em 1998, durante a Cúpula Extraordinária da ECCAS, os Es-tados-membros não só concordaram em relançar a organização, como também decidiram ampliar o escopo de cooperação, passando a incluir uma agenda de segurança. O objetivo principal era criar uma estrutura institucional capaz de dar uma resposta política e militar rápida e assertiva, além de prevenir conflitos na região, criando um ambiente propício ao desenvolvimento económico de seus membros.

O principal avanço, contudo, foi a assinatura do Protocolo para o Estabelecimento do Conselho de Paz e Segurança da África Central (Copax) e sua incorporação à estrutura da ECCAS, em 1999. Seu objetivo era construir capacidades efetivas de apoio humanitário, manutenção e construção da paz. Baseado no modelo do CCPNU-QSAC e no Mecanismo de Prevenção, Resolução, Gestão, Manutenção de Paz e Segurança de Conflitos da ECOWAS, o Copax é um órgão consultivo e decisório, e um fórum de diálogo sobre paz e segurança, tendo por função planejar e supervisionar as intervenções militares da ECCAS (Francis, 2006; Meyer, 2011, 2015).

Em 2000, os Chefes de Estado e de Governo da ECCAS assinaram um protocolo que estabelecia os princípios fundadores e os órgãos da Copax e um Pacto de Defesa Mútua entre os Estados-membros, que previa que agressões contra qualquer um destes seriam consideradas como ameaças coletivas, sendo respondidas, portanto, de forma coletiva. Em 2002, os países adotaram o Protocolo para o Estabelecimento do Copax, que entrou em vigor em 2003. Vale ressaltar que, além do presidente ca-maronês, Paul Biya, os presidentes Omar Bongo, do Gabão, e Denis Sassou Nguesso, da República do Congo, tiveram papel central na reforma da ECCAS, o que reflete suas preocupações internas e regionais - bem como as do seu principal aliado externo, a França (ICG, 2011; Meyer, 2015; Ukeje e Mvolo Ela, 2013).

Paralelamente ao processo de revitalização da ECCAS, em 1994, foi estabelecida, por seis países da região,4 uma nova organização regional de cooperação. Com sede na RCA, a Cemac tem por objetivo monitorar e promover a convergência das políticas económicas nacionais, coordenar as políticas setoriais e, progressivamente, criar um mercado comum. A Cemac entrou em funcionamento em 1999, após a ratificação do tratado de N'Djamena, substituindo oficialmente a Udeac (Meyer, 2008).

Diferentemente da ECCAS, a Cemac não apresenta uma estrutura institucional voltada para questões de segurança, embora tenha enviado uma missão de paz para a RCA entre 2002 e 2008, a Força Multinacional na República Centro-Africana (Fo-muc). Após o encerramento da missão, a organização voltou a centrar-se em questões económicas e monetárias, relegando as questões de segurança à ECCAS e à UA. Percebe-se, portanto, que a Ce-mac assumiu a responsabilidade pela manutenção da paz na RCA quando a estrutura securitária da ECCAS estava sendo desenvolvida (Adebajo, 2013; Francis, 2006).

O primeiro grande teste à estrutura institucional e funcional estabelecida sobretudo no âmbito da ECCAS foi a crise política na RCA, que tem suas origens em 1993, quando Ange-Félix Pattassé foi eleito presidente e passou a utilizar o aparato estatal em benefício próprio e daqueles de sua etnia. A situação interna se agravou em 1996, quando ocorreram três motins dentro das forças armadas que reivindicavam pagamentos de salários atrasados. Em novembro, a França estabeleceu um pequeno contingente militar no país, que acabou entrando em confrontos com os grupos contrários ao governo, gerando diversas críticas (ICG, 2011; Williams, 2014).

No mesmo ano, durante a Cúpula Franco-Africana, foi discutida a crise centro-africana e, por solicitação da França, seis países5 concordaram em enviar tropas à RCA. Em 1997, estabeleceu-se uma Comissão formada pelos presidentes de Gabão, Burkina Faso, Mali e Chade, que foi responsável pela criação da Missão Africana para Monitorar a Implementação dos Acordos de Bangui (Misab). Com apoio financeiro e logístico da França, a Misab desembarcou em Bangui, com o mandato de monitorar a implementação do acordo e supervisionar o processo de desarmamento. Contudo, as forças da Missão entraram em confronto com os grupos rebeldes, o que colocou em dúvida sua neutralidade. Nesse contexto, após a morte de alguns soldados e de civis, as forças da Mi-sab anteciparam sua saída da RCA, em abril de 1998 (ICG, 2011).

Ciente do fracasso da Misab, o CSNU estabeleceu a Missão da ONU na RCA (Minurca), com o mandato de supervisionar as eleições legislativas e presidenciais (previstas para 1998 e 1999, respectivamente); consolidar o cenário de segurança e estabilidade no país, e auxiliar na reforma das forças policiais. Em 1999, foram realizadas as eleições, vencidas por Pattassé. Com o cumprimento de seu mandato, a Minurca foi encerrada em 2000 (ICG, 2016; Meyer, 2008). Após uma tentativa de golpe liderada pelo ex-chefe das Forças Armadas, general François Bozizé, em 2001, houve uma nova escalada de violência em Bangui. Pattassé solicitou uma intervenção militar da Comunidade dos Estados do Sahel-Saara (CEND-SAD) no país, que foi atendida por Líbia, Sudão e Djibouti. Além do apoio da CEND-SAD, o governo também recebeu apoio do líder do Movimento de Libertação do Congo (ICG, 2011; Meyer, 2011).

Em 2002, com a deterioração da situação, a Ce-mac decidiu enviar uma força regional para a RCA a fim de substituir a força da CEND-SAD. Os 350 soldados da Fomuc - contando com o apoio logístico e financeiro francês - foram enviados para Bangui, com o mandato de proteger o governo de Pattassé e assegurar a ordem interna (ICG, 2011; Meyer, 2011). A situação do país se agravou ainda mais quando, em 2003, um golpe de Estado derrubou Pattassé, levando Bozizé ao poder - sem que houvesse qualquer intervenção da Fomuc. Com o reconhecimento do governo de Bozizé pela Cemac, o mandato da Fomuc foi revisto, passando a supervisionar o processo de transição e de reconciliação nacional lançado pelo novo presidente e a criar condições para a realização de eleições (Meyer, 2011). Em 2005, foram realizadas eleições presidenciais, vencidas por Bozizé. Contudo, uma nova escalada de violência teve início com o surgimento de um novo grupo insurgente, o Exército Popular para a Restauração da República e da Democracia. No ano seguinte, surgiram mais dois grupos rebeldes: a União das Forças Democráticas pelo Reagrupamento e a Frente Democrática do Povo Centro africano (FDPC) (Meyer, 2008).

Com a deterioração da situação interna e diante da dificuldade da Fomuc em cumprir seu mandato, em 2007, a Cemac transferiu a autoridade da missão para a ECCAS, que havia feito um progresso significativo no sentido de institucionalizar um mecanismo de prevenção e resolução de conflitos na região. Nesse contexto, em 2008, a Fomuc foi substituída pela Missão de Consolidação da Paz na RCA (Micopax), com o mandato de auxiliar o governo na reestruturação institucional, na Reforma do Setor de Segurança e na implementação do programa de desarmamento, desmobilização e reintegração dos ex-combatentes; apoiar o processo de transição política no período pós-conflito, e coordenar a ajuda humanitária (Elowson e Wiklund, 2011; Meyer, 2011). Assim, em 2008, após intensos confrontos em Bangui, foram realizadas negociações que culminaram na assinatura do Acordo de Paz Abrangente com todos os grupos insurgentes, com exceção da FDPC,6 um cessar-fogo foi estabelecido. O acordo previa o desarmamento, a desmobilização e a reintegração dos grupos armados e sua integração nas forças armadas, além da inclusão dos seus representantes no governo. Em 2011, foram realizadas eleições presidenciais, tendo sido vencidas, novamente, por Bozizé (ICG, 2011).

Em 2013, no entanto, um novo golpe de Estado (sob liderança de Michel Djotodia) foi realizado, culminando na guerra civil e em uma intervenção militar francesa. A chamada "Operação Sangui-ris" levou à derrubada de Djotodia, em dezembro de 2013, e ao estabelecimento de um governo de transição. Ainda em dezembro, uma Missão de Paz da UA foi estabelecida, substituindo as forças de paz da Micopax (Williams, 2014).

A análise dessa crise demonstra uma importante evolução na questão securitária na África Central a partir da criação de diversos mecanismos e instrumentos de prevenção, gerenciamento e resolução de conflitos - sobretudo no âmbito da ECCAS - desde o final dos anos 1990, entre os quais o principal certamente foi o Copax. Contudo, a situação de incessante instabilidade na República Centro-Africana expôs os limites e as fragilidades desses mecanismos. As sérias dificuldades enfrentadas tanto pela Fomuc como pela Micopax se devem, em parte, à falta de recursos financeiros, técnicos, materiais, logísticos e humanos. De modo semelhante à Fomuc, a maior parte dos recursos para a operacionalização e a sustentação da Micopax veio de atores não africanos, especialmente da França e da União Europeia. A França forneceu treinamento e apoio logístico aos países contribuintes com tropas na missão, e a União Europeia financiou grande parte do orçamento da Micopax. Por fim, cumpre lembrar que a ECCAS é responsável por uma das cinco Brigadas de Pronto Emprego da UA, operacionais desde 2016. O Núcleo de Planejamento Regional e o quartel-general estão sediados em Libreville, no Gabão. A força centro-africana, que inclui os Estados-membros da ECCAS, conta também com bases logísticas em Douala (operacional desde 2018) e Yaoundé, na República dos Camarões (Apuuli, 2018; Williams, 2014).

A crise camaronesa, que se instalou em 2016, impõe-se, atualmente, como um dos principais desafios à ECCAS na manutenção da paz e da estabilidade na sub-região. A posição central ocupada pelo país nas organizações - sobretudo no que concerne à ECCAS - contribui significativamente para isso. De igual maneira, a crise apresenta um importante desafio à UA, não apenas por conta de seus pressupostos e responsabilidades autoimpos-tas, mas também por conta do grande potencial de desestabilização do conflito, que tem afetado tanto a República dos Camarões e a região central do continente quanto a Nigéria. Cabe, destarte, analisar a gênese e a evolução da atual crise, de forma a identificar seus elementos motivadores e compreender os motivos pelos quais se esperava uma atuação mais assertiva não apenas da UA, mas também da ECCAS e da Cemac na resolução da questão.

A crise na República dos Camarões

A atual crise vivida na República dos Camarões tem suas origens ainda no período colonial. Durante a Conferência de Berlim, a posse do território que constitui o país atualmente foi concedida aos alemães, que mantiveram um domínio colonial marcado pela violência contra as populações autóctones. Com a derrota alemã na Primeira Guerra Mundial, o país foi despojado de sua colônia, que teve seu domínio dividido entre a Inglaterra - que passou a governar o território a partir de Lagos, na Nigéria - e a França - que assumiu o controle da maior parte do território, incorporando-o à estrutura da África Equatorial Francesa. Ao longo das quatro décadas administradas por britânicos e franceses, ambas as regiões foram submetidas a sistemas culturais, legais, políticos, administrativos e sociais profundamente diferentes (Nana, 2016; Konings e Nyamnioh, 2003).

Em 1960, a parte camaronesa sob domínio francês tornou-se independente, sendo seguida, em 1961, pela Nigéria. No contexto da independência nigeriana, foi realizado, pela ONU, um plebiscito com as populações da parcela anglófona do território camaronês, então administrado pelos britânicos, para que elas decidissem à qual das duas novas nações gostariam de se incorporar. A porção setentrional do território (aproximadamente dois terços do total), marcada por uma forte influência islâmica que a aproximava das populações nigerianas, optou por ser incorporada à Nigéria (Englebert, 1991). O entendimento de que uma eventual incorporação ao país anglófono poderia representar uma supressão de qualquer importância política da região levou a porção austral, por sua vez, a optar por incorporar-se ao Camarões. Formou-se, assim, a República Federal dos Camarões, dotada de uma constituição que afirmava o respeito a ambas as identidades culturais e garantia que a natureza federativa do novo país não seria alterada em constituições subsequentes (Merle, 1961; Awasom, 2000).

O primeiro presidente do país, Alhaji Ahmadou Ahidjo, líder da União Nacional de Camarões (UNC), apoiado pela França, manteve-se no poder de 1960 até 1982. Buscando fortalecer sua posição, ele adotou um modelo de governo centralizado, fortemente autoritário e marcado por repressão e cooptação (Mokam, 2012). Diante das críticas feitas pelos opositores, o presidente ordenou, em 1962, a prisão das diversas lideranças de oposição e, em 1968, baniu todos os partidos políticos, exceto a UNC (Englebert, 1991). Em 1972, Ahidjo conseguiu fortalecer sua posição ainda mais, quando, contando com amplo apoio do eleitorado - ma-joritariamente francófono -, foi aprovada uma nova constituição para o país, convertendo a Federação em um Estado unitário, a República Unida dos Camarões (Fomunyoh, 2017).

A despeito da mudança, todavia, características importantes da Federação foram mantidas. Para além de elementos simbólicos (como a bandeira com duas estrelas, representando as duas identidades culturais camaronesas), os arranjos de poder também foram mantidos. Havia o entendimento, ao longo do período federativo, de que, quando a presidência do país fosse ocupada por um francófono, a vice-presidência - segundo cargo na linha de comando - deveria ser ocupada por um anglófono. Com a adoção da Constituição de 1972, o cargo de vice-presidente deixou de existir, e o presidente da Assembleia Nacional passou a ser o segundo cargo na linha de comando. A ideia de equilíbrio (com um anglófono que ocupasse o cargo, enquanto o presidente fosse francófono), todavia, foi mantida (Fomunyoh, 2017).

O tênue equilíbrio que ainda restava, entretanto, passou a ser desmanchado a partir de 1975, quando foi criado o cargo de primeiro-ministro, assumido por Paul Biya, um francófono, e por ele mantido até 1982. O presidente da Assembleia Nacional, assim, deixava de ser o segundo posto na linha de comando. Com a renúncia de Ahidjo ao poder, em 1982, Biya assumiu a presidência, intensificando o processo de centralização. Assim, em 1983, a região anglófona foi dividida em duas províncias (Sudoeste e Noroeste), e, no ano seguinte, uma nova constituição foi adotada, o que trouxe mudanças, como a supressão do termo "unida" no nome do país - que passou a se chamar República dos Camarões -, a adoção de uma nova bandeira - com apenas uma estrela - e o restabelecimento do presidente da Assembleia Nacional como segundo na linha de comando nacional (Le Roux e Boucher, 2018).

Diante da situação, diversos grupos políticos anglófonos passaram a se organizar. Sua efetivi-dade em avançar suas demandas, todavia, mos-trou-se bastante reduzida, especialmente ante a expansão do predomínio das referências culturais francesas no período, contribuindo para reforçar ainda mais o sentimento de exclusão e de ataque à sua cultura e identidade (Le Roux e Boucher, 2018). O descontentamento popular se agravou a partir de meados da década de 1980, quando o país passou a enfrentar uma severa crise económica - fruto, entre outros, de uma forte seca e da queda nos preços internacionais do petróleo. Nesse contexto, as populações das regiões anglófonas, onde estavam localizadas as principais reservas de petróleo do país, entendiam que a situação era resultado da má gestão de Biya, e, por isso, intensificaram suas críticas ao governo. Para elas, além de o governo redirecionar grande parte das receitas do petróleo para outras regiões do país, muitas das vagas de trabalho - especialmente os cargos mais altos - no setor eram ocupadas por francófonos. Ademais, consideravam que os investimentos públicos na região eram muito reduzidos, não representando a contribuição advinda da exploração do petróleo e incrementando ainda mais as dificuldades económicas (International Crisis Goup [ICG], 2017). Diante disso, as pressões políticas sobre o governo de Biya se intensificaram significativamente. Como destaca Englebert:

A crise económica que começou em 1986 levou à emergência gradual de forças de oposição anteriormente latentes ou suprimidas, à uma reduzida tolerância pública à repressão e a um novo foco às diferenças étnicas e linguísticas. Tudo isso, por sua vez, se refletiu na economia, que sofreu ainda mais deterioração a partir de junho de 1991 por conta de uma campanha política que desestimula a atividade económica (a chamada tática das "Cidades Fantasmas") e que encoraja os cidadãos a boicotar o pagamento de impostos e a retirar seus depósitos do sistema bancário. (1991, p. 5)

Diante dessa situação, as eleições presidenciais de 1992 - as primeiras multipartidárias na história do país - deram grandes esperanças de mudança para as populações anglófonas. O resultado, contudo, determinou a eleição de Biya (com cerca de 40% dos votos válidos), em um processo que foi amplamente contestado - especialmente porque o candidato que ficou em segundo lugar (com cerca de 36% dos votos), John Fru Ndi, era anglófono (Mbaku, 2004). Nesse contexto, em 1993, mais de 5.000 membros da elite anglófona se reuniram na chamada "Conferência de todos os anglófonos" e elaboraram a Declaração de Buéa, um documento que expressava uma posição anglófona comum a respeito de diversas questões - como desenvolvimento social, questões territoriais e reformas constitucionais -, além de demandar o retorno ao Estado federal. A despeito de atender algumas das demandas de reforma contidas na Declaração, a principal delas - a questão federativa - foi rejeitada pelo governo (Konings, 1996). Diante disso, uma nova conferência foi realizada em 1994, elaborando outra declaração que demandava a independência da região anglófona, caso o status federativo não fosse retomado pelo governo. A resposta de Yaoundé, contudo, foi novamente negativa (Balla, 2017). Para os anglófonos, ficava claro, portanto, que seus anseios não seriam atendidos pelo governo de Biya, que buscava apenas a manutenção do status quo e a perpetuação de uma dominação francófona (Le Roux e Boucher, 2018).

Essa noção se reforçou ainda mais com a adoção de uma nova constituição, em 1996, que, entre outras modificações, estabelecia a criação de uma segunda casa do parlamento, um Senado composto por 100 assentos - 70 dos quais ocupados por membros eleitos e os 30 restantes indicados pelo presidente -, cujo cargo de presidente passava a ser o segundo posto na linha sucessória nacional (Central Intelligence Agency [CIA], 2019). A criação do Senado, que dependia de um decreto presidencial, todavia, se deu apenas em 2013, com Marcel Niat Njifenji, um francófono, sendo eleito para sua presidência. Com isso - e com outras modificações realizadas pelas diversas emendas à Constituição nacional -, o anglófono mais próximo do comando do país, à época o primeiro-ministro, passou a ser apenas o quinto na linha sucessória, ficando atrás dos presidentes do Senado, da Assembleia Nacional e do Conselho Econômico e Social, reforçando ainda mais o sentimento de marginalização experimentado por parcelas da população anglófona do país (Fomunyoh, 2017).

A partir de 2016, contudo, a situação na República dos Camarões passou por um agravamento ainda mais acentuado, especialmente a partir da decisão do governo, ainda comandado por Biya, de nomear juízes e professores francófonos para atuarem nas províncias anglófonas do país. Em resposta, diversos protestos passaram a ser realizados na província do Noroeste, considerando as mudanças como ataques à cultura e à identidade anglófona, e como formas de aumentar ainda mais a sua marginalização no sistema político e social camaronês. Após uma greve de juízes, realizada em outubro daquele ano, foi organizada, no início de novembro, uma passeata com a participação de centenas de pessoas, demandando, entre outros, a retomada do federalismo. A despeito do caráter inicialmente pacífico da passeata, as forças de segurança usaram a violência para tentar dispersar os manifestantes - a que parte deles respondeu, igualmente, com violência, dando início a um en-frentamento direto, que teve como saldo inúmeros feridos (ICG, 2017).

Uma nova passeata ocorreu no final do mês, em apoio aos professores da região, que entraram em greve em protesto às medidas adotadas em relação a educação na região. Milhares de pessoas se juntaram à manifestação, protestando, entre outros, contra a marginalização das populações anglófo-nas no país. A resposta das forças do governo foi novamente violenta, com um saldo de vários feridos, dezenas de presos e ao menos duas mortes. Os protestos, até então restritos à província do Noroeste, passaram a ocorrer também na província do Sudoeste, levando o governo a promover a militarização da região. As medidas adotadas, todavia, contribuíram para a deterioração da situação, que passou a ser marcada por uma intensificação não só das manifestações, mas também da violência com que estas eram reprimidas - com diversos registros de abusos por parte das forças do governo - e do número de feridos e mortos em cada uma delas (Crisis Group, 2017).

Em dezembro de 2016, foi formado o Consórcio da Sociedade Civil Anglófona dos Camarões (CACSC), que passou a centralizar as demandas7 das duas províncias anglófonas junto ao governo camaronês. As negociações, todavia, não avançaram. Diante do impasse, o CACSC conclamou a população anglófona a realizar a tática das "cidades fantasmas", paralisando completamente todos os serviços das cidades da região ao menos um dia por semana. Em resposta, o governo federal ordenou a prisão de algumas das lideranças do CACSC e do Conselho Nacional dos Camarões do Sul (SCNC),8 além de interromper o acesso à internet das duas províncias - medidas que contribuíram para reforçar a animosidade das populações angló-fonas em relação a Yaoundé (Okereke, 2018).

Protestos continuaram sendo realizados ao longo de toda a primeira metade de 2017, sem que houvesse uma escalada da violência. A partir de setembro, entretanto, as manifestações passaram a se tornar, gradualmente, mais violentas, sendo acompanhadas por ataques a infraestruturas críticas e por confrontos com as forças de segurança. Progressivamente, os protestos passaram a abandonar as demandas por representação em um Estado federal, adotando a defesa da separação da região anglófona do restante do país (Okereke, 2018). Parte expressiva das manifestações que vinham sendo realizadas integrava as atividades planejadas pela Southern Cameroons Ambazonia Consortium United Front (SCAUF), um grupo formado por membros do CACSC e do SCNC que se exilaram na Nigéria após as prisões de lideranças do grupo realizadas pelo governo, e que tinha como objetivo principal a independência da região anglófona sob o nome de República Federal da Ambazônia (Pedneault e Sheppard, 2018). Nesse contexto, no dia 1 de outubro de 2017, data comemorativa do aniversário da unificação dos Camarões, a SCAUF e outros grupos pró-independência organizaram grandes manifestações com o objetivo de celebrar a declaração de independência da República Ambazônia, evento marcado pelo hasteamento da bandeira da pretensa nova república em diversas cidades das províncias de Noroeste e Sudoeste (Okereke, 2018).

Em resposta, teve início uma forte onda de repressão por parte das autoridades camaronesas. A administração Biya destacou forças para atuarem na repressão das manifestações, realizando operações militares e de segurança para enfrentar a situação, vista como de ameaça à integridade territorial do país. Além de muitos feridos, mais de 500 civis foram presos, e ao menos 20 foram mortos nos en-frentamentos (Amnesty International [AI], 2018). O Presidente, nesse contexto, declarou, em novembro, que o país estava em guerra, sob ataque de terroristas disfarçados de separatistas, de modo que todas as medidas de segurança necessárias seriam empregadas para restabelecer a paz (Okereke, 2018).

A intensificação das operações militares e de segurança levou mais de 30 mil pessoas a se deslocarem para as áreas de fronteira com a Nigéria, sendo que até abril de 2018, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (UNHCR) havia registrado mais de 20.400 pedidos de asilo de camaroneses no país (UNHCR, 2018). O número de deslocados internos originários das regiões angló-fonas também passou por um grande aumento, sendo estimado em mais de 150.000 no período (AI, 2018). Além disso, registrou-se também a ocorrência de violações ao território nigeriano por parte das forças camaronesas, em perseguições a militantes das Forças de Defesa da Ambazônia que estariam lançando ataques às forças do governo a partir das áreas de fronteira com a Nigéria. Nesse contexto, em dezembro de 2017, o governo ca-maronês destacou mais contingentes para atuar na área de fronteira, por considerar possível uma escalada do conflito (Okereke, 2018).

Ao longo de 2018, a situação seguiu se deteriorando. Os constantes embates entre forças do governo e grupos separatistas foram marcados por acusações mútuas de abusos contra as populações civis. Enquanto as forças de segurança foram acusadas de queimar vilarejos e praticar tortura, assassinatos extrajudiciais e prisões indiscriminadas, os grupos rebeldes eram acusados de realizar sequestros, mutilações e assassinatos, além de ataques a professores, escolas e instalações de saúde -, o que contribuiria para potencializar as consequências humanitárias da crise (Husted e Arieff, 2019). Com a aproximação das eleições, em outubro de 2018, a situação se tornou cada vez mais crítica no país, especialmente por conta da candidatura de Biya ao sétimo mandato, o que, entre outros, motivou grupos separatistas a conclamar um boicote ao pleito nas regiões anglófonas.

Mesmo diante da continuidade e da intensificação dos enfrentamentos entre as forças de segurança e os grupos separatistas, a realização das eleições foi mantida. Após a apuração, Biya, que teria recebido mais de 70% dos votos, foi declarado vencedor, com o líder de oposição, Maurice Kamto, do Movimento para o Renascimento dos Camarões (MRC), que teria recebido pouco mais de 14% dos votos, ficando em segundo lugar. O processo, todavia, foi marcado por diversas acusações de fraude e irregularidades, bem como pelos altos índices de abstenção - apenas cerca de 54% dos eleitores cadastrados compareceram às urnas, com esse número caindo para aproximadamente 10% nas regiões anglófonas, consequência, em grande medida, do conflito em curso (Kiven et al., 2018). Após a divulgação dos resultados, a violência e a situação de crise nos Camarões se mantiveram, com frequentes enfrentamentos entre as forças do governo e os grupos separatistas - caracterizados, por Yaoundé, como terroristas. No final de 2018, o número de deslocados internos no país já era estimado em mais de 437 mil, e o número de refugiados que viviam na Nigéria, em mais de 29 mil (Husted e Arieff, 2019).

A situação se deteriorou ainda mais ao longo de 2019. Já em janeiro, Maurice Kamto e cerca de 200 outros líderes e membros da oposição, que haviam se recusado a reconhecer o resultado das eleições, organizando diversas manifestações públicas críticas ao processo, foram presos, acusados de sedição, insurreição e incitação à violência (Maclean, 2019). Diante da continuidade da contestação, em junho de 2019 cerca de 350 outros membros de partidos de oposição e simpatizantes foram presos pelas forças camaronesas (Cynthia, 2020). Em agosto do mesmo ano, o governo sentenciou Sisiku Julius Ayuk Tabe, um dos principais líderes separatistas, e mais nove apoiadores à prisão perpétua (Cameroon crisis, 2019). Os dez, que haviam sido presos em 2018, na Nigéria, e depois deportados para a República dos Camarões, foram acusados, entre outros, de rebelião, terrorismo e hostilidade contra o Estado. No mesmo contexto, Yaoundé decretou a proibição dos protestos que levavam ao fechamento das escolas da região anglófona. Como resposta, o que se viu foi não só o surgimento de novos grupos de oposição ao governo9 - o que potencializou ainda mais a fragmentação do movimento separatista -, como também uma maior articulação interna desses grupos, a adoção de novas táticas de combate (como sequestros e ataques a civis considerados como apoiadores do governo) e a aquisição de armamentos mais avançados (Agwanda et al., 2020).

Desde o início da crise, diversas lideranças religiosas - sobretudo cristãs e muçulmanas - demandaram o estabelecimento de um diálogo nacional inclusivo entre o governo e os grupos separatistas. Se, por um lado, inicialmente, essas propostas encontraram apoio nos grupos separatistas, por outro, enfrentaram a oposição do governo. Previsto para acontecer em agosto de 2018, o diálogo foi postergado sucessivas vezes - primeiro para novembro do mesmo ano, em seguida para março de 2019 e depois para julho -, sendo finalmente realizado entre 30 de setembro e 3 de outubro de 2019 (Cynthia, 2020).

O Diálogo Nacional, cuja realização foi celebrada tanto pela UA quanto pela ONU, foi responsável por estabelecer diversas recomendações - entre as quais se destacam a concessão de um status especial às regiões anglófonas e a garantia da igualdade do francês e do inglês em todos os aspectos da vida nacional - com o objetivo de alcançar uma solução para a crise em curso. Apesar do apoio inicial dado à sua realização, diversos líderes separatistas se recusaram a participar do diálogo, por considerarem que suas demandas básicas não haviam sido atendidas - entre as quais estavam a retirada das forças militares camaronesas das regiões anglófonas, a libertação dos dez líderes separatistas condenados à prisão perpétua e a realização do diálogo em um território neutro, com a presença de mediadores internacionais (Willis et al., 2019; Cynthia, 2020). Entre os principais resultados do diálogo, destacam-se a promulgação, em dezembro de 2019, de uma nova lei, concedendo às duas regiões anglófonas um "status especial", baseado em suas especificidades históricas, sociais e culturais, e a adoção pelo parlamento dos Camarões de uma lei que garante a igualdade do inglês e do francês em todos os setores de atividades administrativas, econômicas, sociais e políticas no país (Cynthia, 2020). Ainda, diversos ativistas políticos que estavam presos foram libertados (Willis et al., 2019).

As mudanças, contudo, não se mostraram suficientes para pôr fim à crise. Isso ficou bastante evidente na eleição parlamentar que ocorreu em fevereiro de 2020, a primeira realizada em sete anos, marcada pelo boicote realizado pelo MRC.

Como resultado, pouco mais de 45% dos eleitores registrados compareceu às urnas, e o Movimento Democrático do Povo de Camarões, partido do presidente Paul Biya, renovou sua maioria, conquistando 139 dos 167 assentos (Cameroon's ruling party, 2020; Cameroon elections, 2020). A emergência da pandemia global da covid-19 contribuiu para complexificar a situação, que, além dos mais de 3 mil mortos e cerca de 600 mil deslocados internos pelo conflito, em junho de 2020, já registravam cerca de 12 mil casos de covid-19 confirmados e mais de 300 mortes pela doença (ICG, 2020). Diante da situação, um grupo formado por diversas organizações e indivíduos - como ex--chefes de Estado e ex-embaixadores, além de cinco agraciados com o Nobel da Paz - demandou, em junho, o estabelecimento de um cessar-fogo - ecoando, assim, a manifestação do secretário-ge-ral das Nações Unidas, António Guterres, que em abril havia feito um apelo para que se estabelecesse um cessar-fogo global, diante do contexto de pandemia (Jalloh, 2020). Diante de tal contexto, no mês de julho, pela primeira vez desde o início do conflito, o governo e as principais lideranças dos grupos separatistas deram início a conversas para que o cessar-fogo pudesse ser estabelecido (Cameroon holds, 2020).

A despeito da longa duração e dos impactos humanitários do conflito, a atuação da UA tem sido bastante aquém de suas prerrogativas e responsabilidades. Em julho de 2018, o presidente da Comissão da UA, Moussa Faki Mahama, realizou uma visita ao país, na qual deu diversas declarações em que condenava o contexto de violência crescente, além de conclamar as partes a buscarem uma solução negociada para o conflito. Ainda no mesmo ano, a organização enviou duas missões ao país - uma de curta duração e outra de longa -, com o objetivo de acompanhar o desenvolvimento do processo eleitoral. Para além da produção de um relatório preliminar em que são apontadas diversas fragilidades que marcaram o pleito e que conclamavam os diversos grupos de interesse político a engajarem-se em um processo de diálogo para buscar uma solução para a crise, todavia, nenhuma ação concreta para dirimir a crise foi tomada (AU, 2018a).

A atuação da UA em relação à crise camaro-nesa, nesse sentido, tem se limitado à emissão de declarações que condenem a violência sem que haja qualquer previsão - ou mesmo consideração a respeito da possibilidade - de estabelecimento de uma missão de estabilização para o país,10 que atualmente é um dos membros do Conselho de Paz e Segurança da UA, o que pode ajudar a explicar tal situação (Agwanda et al., 2020; Institute for Security Studies [ISS], 2020). A atuação da ECCAS e da Cemac, nesse contexto, anda na mesma direção - e por razões semelhantes. Isso se deve, em grande medida, ao fato de os Camarões serem, especialmente no primeiro caso, o país que ocupa a posição de liderança da organização, o que dificulta que uma ação prática seja adotada sem a sua participação e iniciativa (Fomunyoh, 2017).

É simbólico - e bastante esclarecedor -, nesse contexto, que, no comunicado final de sua visita ao país, em julho de 2018, Moussa Faki tenha feito questão de ressaltar o compromisso inabalável da UA com a unidade e integridade territorial da República dos Camarões, bem como com a rejeição ao uso da violência, e que tenha saudado o que considerou como iniciativas satisfatórias do presidente Paul Biya para encerrar o contexto de violência no país (AU, 2018b). Tal posição seria indicava, em grande medida, de que, para a UA, a crise se tratava exclusivamente de uma instabilidade interna do país, e que ainda que a Organização estivesse pronta a apoiar o governo em sua resolução, não tomaria a iniciativa nesse sentido - posição muito semelhante à adotada durante a existência da OUA e, em larga medida, contrária à de "não indiferença" proposta pela UA em seu ato constitutivo. Ainda, Faki, após reconhecer a falta de consistência na implementação das disposições legais e políticas da UA na crise camaronesa, destacou a natureza intergovernamental da organização e o papel dos Estados-membros nos seus órgãos de decisão, destacando, também, as limitações impostas à UA pelo princípio da subsidiariedade, que reconhece a primazia das organizações sub-regionais na liderança de intervenções nos Estados-membros, limitando assim as intervenções da Organização continental (ISS, 2020).

Diante da falta de atuação das organizações regionais, em fevereiro de 2019, o Vaticano propôs realizar uma mediação do conflito, indicando sua preocupação com a situação do país e sua disposição em prestar auxílio na busca por uma solução de longo prazo. Vale lembrar que o Vaticano possui atuação no setor de educação da República dos Camarões, e a situação de crise já levou, por exemplo, à ocorrência de sequestros de sacerdotes na região anglófona (Fofung, 2019). Em abril do mesmo ano, foi a vez do embaixador suíço no país africano colocar os serviços do seu país à disposição para mediar o conflito e buscar uma solução de longo prazo, iniciativa que, inclusive, foi saudada pelo presidente da Comissão da UA (Cameroon: African Union, 2019; Song, 2020). Os Estados Unidos da América, por sua vez, anunciaram o cancelamento da ajuda militar destinada aos Camarões (um total de USD$ 17 milhões) e, por meio de seu secretário de Estado adjunto para assuntos africanos, Tibor Nagy, pediram a libertação de presos políticos e instaram os separatistas e o governo a encontrarem uma solução amigável para o conflito (Agwanda et al., 2020). Nesse sentido, ao não tomar a liderança no gerenciamento do conflito, abstendo-se, assim, de aplicar o princípio de não indiferença em relação à crise camaronesa, a UA tem aberto espaço para que atores extracontinen-tais tomem a liderança nesse processo.

Conclusões

A partir da análise realizada, percebe-se uma importante evolução da questão securitária no continente africano, a partir da substituição da OUA pela UA. A grande importância dada pela OUA ao princípio da não intervenção nos assuntos internos dos Estados-membros, fez com que a organização fosse marcada por uma forte imobilidade. Isso, somado à falta de recursos (financeiros, humanos, técnicos e materiais) e à natureza das guerras africanas (em geral, guerra proxy), restringiu a atuação da organização em diversos eventos importantes, que demandavam uma resposta mais assertiva. Para contornar essa situação, a OUA teve que contar com o auxílio de atores extrarregionais, o que limitou ainda mais a sua liberdade de ação.

A criação UA, nesse contexto, tinha como principal objetivo romper com esse paradigma e promover uma mudança no panorama securitário do continente. Nesse sentido, a UA introduziu a noção de intervenção legítima nos assuntos internos dos Estados-membros, caso eles se tornassem focos de instabilidade interna, promovessem violações dos direitos humanos, genocídio, crimes contra a humanidade ou mudanças inconstitucionais de governo, a partir da substituição da ideia da "não intervenção" pela "não indiferença". Isto é, diferentemente da OUA, que necessitava do consentimento das partes para posicionar-se sobre uma intervenção em um Estado-membro, a UA tem a responsabilidade de intervir, sem a necessidade de consentimento das partes, para proteger a população e restaurar a paz e a estabilidade.

Contudo, a UA apresenta as mesmas limitações de recursos (materiais, técnicos, humanos e logísticos) da OUA - o que contribui para que ela se mantenha dependente não só do auxílio, mas também da disposição e dos interesses de atores extracontinentais para poder assegurar a paz e a estabilidade no continente. Isso ficou claro nas operações de paz conduzidas pela organização, desde o início dos anos 2000, em Burundi (Amib), no Sudão (Amis) e na Somália (Amisom), onde as forças de paz tiveram dificuldades em cumprir os seus mandatos e restabelecer a paz, em grande medida, pela falta de recursos suficientes (Cardoso e Oliveira, 2018).

No caso específico da África Central, a complexa situação de segurança quando da criação da ECCAS, associada às consequências decorrentes do final da Guerra Fria - perda da importância estratégica da África e crises dos Estados -, as lideranças regionais, sobretudo Paul Biya, Omar Bongo e Denis Nguesso, buscaram, através de uma série de mudanças institucionais, criar um mecanismo regional capaz de dar respostas qualificadas às situações de crise na região. Assim, a partir de 1999, foram estabelecidos diversos órgãos, como o Copax, os quais permitiram à ECCAS assumir a responsabilidade primária pela manutenção da paz e da segurança na região central do continente. A intervenção da Cemac, por meio da Fomuc, no conflito da República Centro Africana, marcou o início de um maior envolvimento dos Estados da região na promoção da estabilidade regional. No entanto, as dificuldades para operacionalização dessas estruturas são as mesmas enfrentadas no nível continental. A principal delas é a falta de recursos financeiros e a dependência de atores não africanos para concretizar as iniciativas planejadas e seus esforços de paz.

A análise da recente crise camaronesa, contudo, parece demonstrar que há um retorno aos padrões de atuação da OUA por parte da UA e das organizações sub-regionais (ECCAS e Cemac), as quais têm parecido priorizar o respeito à soberania e à integridade territorial, em detrimento da proteção aos direitos humanos e da garantia de estabilidade no continente. Como visto, desde o início da crise, em 2016, a atuação da UA se limitou ao envio de representantes, a declarações e à publicação de relatórios sobre a situação de segurança no país, não existindo, até o momento, qualquer plano de paz ou possibilidade de uma missão de estabilização. Nesse contexto, percebe-se que a UA vem tratando a crise como uma questão estritamente interna que deve ser resolvida pelos camaroneses. A falta de atuação da ECCAS, em parte, pode ser explicada pelo papel de liderança de Camarões na organização.

Todavia, o agravamento da situação e a falta de atuação assertiva dos atores africanos - sobretudo da UA - abrem a possibilidade para que se estabeleçam intervenções, inclusive de natureza militar, promovidas por atores extrarregionais no conflito - como as que ocorreram na Costa do Marfim e no Mali (ambas lideradas pela França e legitimadas por instituições multilaterais) -, o que contribuiria para reforçar os questionamentos à nova estrutura institucional e funcional continental e ao próprio princípio da "não indiferença" adotado pela UA. Se comprovado esse cenário, a segurança regional africana - e a própria UA - sairia sensivelmente prejudicada.

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* Artículo de investigación

1 As guerras africanas foram marcadas pelo suporte de países vizinhos e de atores extrarregionais a grupos insurgentes, fenómeno denominado "guerra proxy". Esse instrumento foi amplamente adotado durante a Guerra Fria (porém não se restringiu a esse período), transformando o continente africano em um palco de confrontação entre as duas superpotências, a partir da década de 1970 (Chazan et al., 1999).

2Em 1993, foi estabelecido o Mecanismo para a Prevenção, Manutenção e Resolução de Conflitos da OUA, cujo objetivo era prevenir e auxiliar a resolução dos conflitos no continente, que acabou sem muito efeito prático (Adebajo, 2013).

3Burundi, Camarões, Chade, Congo, Gabão, Guiné Equatorial, São Tomé e Príncipe, República Centro-Africana, Ruanda e Zaire (atual República Democrática do Congo).

4 Camarões, Gabão, Guiné Equatorial, Congo, RCA e Chade.

5 Burkina Faso, Chade, Gabão, Mali, Senegal e Togo.

6 Em dezembro do mesmo ano, no entanto, a FDPC foi incorporada ao governo de transição (Meyer, 2011).

7As principais demandas eram o fim da marginalização imposta às regiões anglófonas; o retorno à Federação que era a base da União estabelecida à época da independência; a preservação dos sistemas educacional e legal das regiões anglófonas; a libertação de mais de 100 pessoas presas pelo governo, envolvidas nos protestos realizados nas províncias anglófonas (Okereke, 2018).

8O SCNC é um órgão administrativo da Conferência dos Povos dos Camarões do Sul criado a partir da mudança de nome da Conferência de Todos os Anglófonos (Balla, 2017).

9Entre os quais, destacam-se o Ambaland Forces, o Vipers, o Tigers e o Forças de Defesa dos Camarões do Sul (Agwanda et al., 2020).

10A capacidade limitada da UA de dar respostas rápidas e assertivas às crises políticas no continente nos últimos anos tem sido objeto de diversas discussões, não só nos meios acadêmicos, mas também nos fóruns multilaterais no continente. Nesse contexto, para a Cúpula dos Chefes de Estado e de Governo da UA, que está agendada para acontecer em fevereiro de 2021, está prevista a avaliação do progresso feito pela UA na implementação de suas prioridades de paz e segurança (ISS, 2020).

Para citar: Ziebell de Oliveira, G., & Fernandes, N. C. (2021). A crise anglófona na República dos Camarões e a inação dos mecanismos africanos de resolução de conflitos: The inaction of the African conflict resolution mechanisms in the Cameroon crisis. Revista De Relaciones Internacionales, Estrategia y Seguridad, 16(1), 29-47. https://doi.org/10.18359/ries.5104

Recebido: 09 de Agosto de 2020; Aceito: 17 de Dezembro de 2020

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