Introdução
A hegemonia de relatos midiáticos e academicistas, assim como a centralidade de vozes hierárquicas dentro das estruturas e relações de poder na cultura ocidental e relatos de modernidade, deixam para fora muitas vezes a voz e a presença de culturas populares que também ficam envolvidas em processos de luta social, cultural e pedagógica. Isso é um sinal claro de crise de sentido, identidade e representação, presente no discurso moderno das ciências sociais. As crises de sentido, segundo Berger e Luckmann (2012) em Modernidade, pluralismo e crise de sentido: a orientação do homem moderno, têm origem no desalinhamento entre os sentidos intersubjetivos. Daí que outorgar visibilidade e reconhecer a presença histórica de perspectivas críticas de comunicação nas abordagens pedagógicas de Paulo Freire, no meio destes parâmetros de modernidade desencantada, pensamento único e homogeneização cultural, seja um verdadeiro desafio para estados de representação social mais comprometidos com as identidades oprimidas e vozes coletivas envolvidas naquelas experiências do esquecimento. Diz Freire (1978) em Educação como prática da liberdade: "precisávamos de uma Pedagogia de Comunicação, com que vencêssemos o desamor acrítico do antidiálogo" (p. 108).
A comunicação midiática faz parte da trama cotidiana dos discursos e ações políticas de desenvolvimento social e, portanto, cada vez mais se constitui como aparelhos e referentes de construção da realidade e formas de vida pública. Daí o papel mediador preponderante que possui a comunicação entre os cidadãos, o estado, as instituições e as comunidades que são afetados com seu poder de manipulação e modelação. Ditos parâmetros de análise permitem-nos estabelecer a seguinte questão: como atuam os meios de comunicação de massas e como essas ações de produção hegemônica determinam representações de sujeitos passivos e indiferentes com seus outros, comunidades acrí-ticas e espiritualmente indolentes, sistemas educativos sem relação prática e dialógica com o mundo da vida?
Nós termos de Freire (1978, p. 106):
O que teríamos de fazer, uma sociedade em transição como a nossa, inserida no processo de democratização fundamental, com o povo em grande parte emergindo, era tentar uma educação que fosse capaz de colaborar com ele na indispensável organização de seu pensamento. Educação que lhe pusesse a disposição meios com os quais fosse capaz de superar a captação mágica ou ingênua de sua realidade, por uma dominantemente crítica.
Daqui decorre a necessidade de possibilitar que as pessoas façam uso das suas linguagens e ferramentas para o exercício do direito de representação, o que significa um exercício constante de pesquisa, práxis e produção crítica de meios a partir dos próprios sujeitos. Principalmente, daqueles cujas "vozes afastadas" são um desafio histórico e constante para as experiências alternativas de comunicação e pedagogia crítica na América Latina.
A comunicação, uma questão de sentido profundo
Analisar e ressignificar a categoria de comunicação, desde o pensamento pedagógico de Freire, como vetor crítico na relação educação-espiritualidade, mais do que uma necessidade instrumental, é uma poderosa estratégia de transformação de consciências, construção de imaginários em re-existência, interação simbólica e produção de sentido humano. "Ama-se na medida em que se busca comunicação, integração a partir da comunicação com os demais" (Freire, 2001, p. 29).
A comunicação, como sabemos, é uma dimensão temática e transversal da vida humana que perpassa as dimensões básicas (físicas, sensoriais, emocionais, mentais e espirituais) dos seres vivos. Portanto, podemos dizer que sua capacidade de interagir e produzir sentido humano, social e amoroso é altamente afim com o campo da espiritualidade comprometido em levar em consideração a integridade do ser humano. Além disso, promover a criação de espaços de reflexão interdisciplinar e leitura crítica de meios, para problematizar a realidade e visualizar assim memórias excluídas, é um compromisso ético e ideológico de grande relevância e pertinência social na pesquisa do campo pedagógico na região latino-americana.
Há os que pensam, às vezes, com boa intenção, mas equivocamente, "que sendo demorado o processo dialógico, -o que não é verdade-se deve fazer a revolução sem comunicação, através dos "comunicados" e, depois de feita, então, se desenvolverá um amplo esforço educativo. Mesmo porque, continuam, não é possível fazer educação antes da chegada ao poder. Educação libertadora. (Freire, 1986, p. 158).
Sendo a comunicação crítica uma instância de mediação social que contribui para fortalecer relações educativas e situações dialógicas entre sujeitos e romper cadeias de alienação e opaci-zação da realidade opressora, propõe-se a leitura e apropriação de meios como elemento fundamental nos processos de apropriação cultural, identidade e construção de memória histórica de nossos povos, admitindo que:
Na linha do emprego destes recursos, parece-nos indispensável a análise do conteúdo dos editoriais da imprensa, a propósito de um mesmo acontecimento. Por que razão os jornais se manifestam de forma diferente sobre um mesmo fato? Que o povo desenvolva o seu espírito crítico para que, ao ler jornais ou ao ouvir o noticiário das emissoras de rádio, o faça não como mero paciente, como objeto dos "comunicados" que lhes prescrevem, mas como uma consciência que precisa libertar-se. (Freire, 1986, p.139).
Em outros termos, o processo de libertação em comunhão, ou seja, o reconhecimento do estatuto de opressão/alienação à qual têm sido submetidas as comunidades, não se separa do gesto de cuidado com o mundo que assume responsabilidade com os outros e a luta contra a lógica de reprodução, dominação e manipulação bancária, "fixista", que esmaga e reduz o homem à condição de objeto ou recipiente vazio que mora em silenciosa resignação mítica ao interior de uma realidade adaptativa. Daí a necessidade de um olhar contra hegemônico gramsciano:
No nosso entender, a perspectiva apreendida em Gramsci parece indicar uma linha de reflexão e de análise que centraria sua atenção na educação popular enquanto processo, que permitiria às classes subalternas elaborar e divulgar uma concepção de mundo organicamente vinculada aos seus interesses e não, simplesmente, como um instrumento ideológico empregado pelas classes dominantes para a conquista ou manutenção de sua hegemonia. (Manfredi, 1985, p. 40).
Assim, a necessidade de humanização é inapelável. Portanto, explorar mediações de sentido, relações dialógicas e ações de afetação humana é assunto de uma história engajada com a capacidade ontológica dos sujeitos em ser sempre mais.
Se é dizendo a palavra com que, "pronunciando" o mundo, os homens o transformam, o diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens ganham significação enquanto homens. Por isto, o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se solidariza o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes. (Freire, 1986, p. 93).
A prática de comunicação precisa de intervenção, imaginação e coerência ética-estética que favoreça a formação de um novo ethos e novas representações de educação não formal e popular. "Nesta teoria da ação, exatamente porque é revolucionária, não é possível nem em ator, no singular, nem apenas em atores, no plural, mas em atores em intersubjetividade, em intercomunicação" (Freire, 1986, p. 150). Práxis é a intervenção expressada através de uma disposição dialógica entre reflexão-ação e teoria-prática, movimento engajado com a transformação dos sujeitos oprimidos e sua própria condição histórica de ser mais, ser reconhecido através de sua palavra autêntica e experiência comunitária, o que significa perceber que:
Este diálogo, como exigência radical da revolução, responde a outra exigência radical -a dos homens como seres que não podem ser fora da comunicação pois que são comunicação. Obstaculizar a comunicação é transformá-los em quase "coisa" e isto é tarefa e objetivo dos opressores, não dos revolucionários. (Freire, 1986, p.149).
Assim, a articulação dialógica entre comunicação, educação e espiritualidade revela uma apertura significativa para a apropriação crítica da realidade e transformação social das comunidades em processos de libertação e humanização. Uma janela de comunhão e sentido onde podem-se recolocar os componentes dialógicos da educação problematizadora, engajada sempre com a pronúncia de um novo sujeito histórico, social e cultural, cognoscente sempre, que tenta sair das múltiplas dependências ideológicas e epistémicas, assim como das contradições afins às lógicas verticais de educação e formação política adaptativa.
A comunicação, pelo contrário, implica numa reciprocidade que não pode ser rompida. Por isto, não é possível compreender o pensamento fora de sua dupla função: cognoscitiva e comunicativa. Esta função, por sua vez, não é a extensão do conteúdo significante do significado, objeto do pensar e do conhecer. (Freire, 1975, p. 67).
Lembre-se que a comunicação é comunhão, participação e intersubjetividade, polifonia de vozes, interligação e reciprocidade; ela pode romper com processos educativos centrados na transmissão mecânica de dados e conhecimentos isolados e sem contexto. É prática de amor e coragem, prática para a liberdade e a esperança, humanização de homens em movimento e educação criadora.
Comunicar é comunicar-se em torno do significante. Desta forma, na comunicação, não há sujeitos passivos. Os sujeitos co-intencionados ao objeto de seu pensar se comunicam seu conteúdo. O que caracteriza a comunicação enquanto este comunicar comunicando-se, é que ela é diálogo, assim como o diálogo é comunicativo. (Freire, 1975, p. 67).
Uma leitura dialógica da comunicação
Já agora ninguém educa ninguém,
como tampouco ninguém se educa a
si mesmo: os homens se educam em
comunhão, mediatizados pelo mundo.
(FREIRE, 1986, p. 79).
A criação de um mundo duradouro - aquele espaço de suporte existencial dos sujeitos - é uma tarefa interdisciplinar, tanto de esferas humanas transcendentes e relações de produção interdependentes, como de ações ético-simbólicas, portadoras de imagens de representação, dignidade e humanismo, e não legitimar um mundo obsoleto, efêmero e descartável.
A carga simbólica dos suportes da vida e a existência incita a lutar por um destino onde seja possível intervir com responsabilidade através de práticas formadoras e relações inter-humanas autênticas para um bem viver coletivo não ingênuo.
A invenção da existência envolve, repita-se, necessariamente, a linguagem, a cultura, a comunicação em níveis mais profundos e complexos que ocorria e ocorre no domínio da vida, a 'espiritualização' do mundo, a possibilidade de embelezar como de enfear o mundo e tudo isso inscreveria mulheres e homens como seres éticos. (Freire, 2009, p. 51).
Propor, então, a leitura dialógica da comunicação como prática articuladora de experiência de vida e formação humana é dinamizar, ante todo, uma vital tradição, histórica e filosófica corajosa, que entre muitos destaques vai contribuir para, segundo Michel Foucault (1991) na obra O sujeito e o poder, "a busca da história dos modos pelos quais os seres se constituem como sujeitos" (p. 51).
Não é possível pensar os seres humanos longe, sequer, da ética, quanto mais fora dela. Estar longe, ou pior, fora da ética, entre nós, mulheres e homens, é uma transgressão. É por isso que transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é ames-quinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter formador. (Freire, 2009, p. 33).
Cada dimensão transversal da vida humana, a ética, a estética, a comunicação, promove um deslocamento espiritual, audaz e epistemológico, frente aquelas estruturas rígidas e convencionais, mediante as quais os sujeitos adquirem novos sentidos como produtores de conhecimento e conscientização. Este confronto histórico começa através de um processo dialético e de resistência, horizontal e político, de aprendizagem e apropriação da sua própria realidade e necessidades vivenciais. Deixar de ser manipulado, coisificado, e sem palavra verdadeira que não lhe permite a pronúncia do seu próprio mundo.
Consequentemente, podemos dizer com Freire:
A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres “vazios” a quem o mundo “encha” de conteúdos; não pode basear-se numa consciência espacializada, mecanicistamente compartimentada, mas nos homens como “corpos conscientes” e na consciência como consciência intencionada ao mundo. Não pode ser a do depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens em suas relações com o mundo. (1986, p. 77).
Cada uma destas relações críticas e libertárias, políticas e pedagógicas, reivindicam a confiança, a identidade e a intuição própria dos indivíduos para criar novas formas de ser, sentir e morar em um território simbólico e político de realidades possíveis.
O percurso histórico dos enfoques de pensamento racional, assim como aqueles onde prevalecem olhares e práticas de disciplinamento das crianças e de reprodução ideológica imitativa, cheios de certezas e imperativos categóricos, incide na adequação de perspectivas pedagógicas verticais e autoritárias carentes de mediação e diálogo.
E que é o diálogo? É uma relação horizontal de A com B. Nasce de uma matriz crítica e gera criticidade (Jaspers). Nutre-se do amor, da humildade, da esperança, da fé, da confiança. Por isso, só o diálogo comunica. É quando os dois polos do diálogo se ligam assim, com amor, com esperança, com fé no outro, se fazem críticos na busca de algo. Instala-se, então, uma relação de simpatia entre ambos. Só aí há comunicação. (Freire, 1986 p. 107).
Assim, o amor, a humildade, a esperança, a fé no ser humano e a confiança são fundamentos do diálogo e comunicação que vão compor a práxis revolucionaria de um novo conhecimento freiriano. A confiança e autonomia também são esferas a desenvolver. Portanto, o sentido de articulação intersubjetiva própria do diálogo atrela ainda mais a produção e construção do significado coletivo com perspectiva histórica e comunicativa:
O diálogo com as massas não é concessão, nem presente, nem muito menos uma tática a ser usada, como a sloganização o é, para dominar. O diálogo, como encontro dos homens para a "pronúncia" do mundo, é uma condição fundamental para a sua humanização. (Freire, 1986, p. 160).
Acho que é possível comunicar o transcendente, gerar apropriação de espaços de saber dialéticos e multiculturais, poder simbólico dos sentimentos e despertar aquela consciência criativa e transformadora própria da condição humana. Esta é uma aposta interdisciplinar de enunciação crítica sobre o uso social e cultural dos meios de comunicação, destinados a transformar cenários de imobilidade, passividade e domesticação. Uma comunicação que permite a problematização e expressão dos integrantes da sociedade em situação ativa de intersubjetividade.
Finalmente, não há o diálogo verdadeiro se não há nos seus sujeitos um pensar verdadeiro. Pensar crítico. Pensar que, não aceitando a dicotomia mundo-homens, reconhece entre eles uma inquebrantável solidariedade. (Freire, 1986, p. 97).
Ditas possibilidades dos seres humanos fornecem coerência, fortaleza, compromisso, convicção e curiosidade epistemológica, as quais ficam como formas alternativas de imaginar outros mundos possíveis. Fica claro, então, a necessidade de ressignificar o conceito de comunicação a partir da obra de uma das experiências educativas críticas mais importantes na história da América Latina.
Quer dizer, já não foi possível existir sem assumir o direito e o dever de optar, de decidir, de lutar, de fazer política. E tudo isso nos traz de novo a imperiosidade da prática formadora, de natureza eminentemente ética. E tudo isso nos traz de novo à radicalidade da esperança. Sei que as coisas podem até piorar, mas sei também que é possível intervir para melhorá-las. (Freire, 2009, p. 52).