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Historia y MEMORIA

Print version ISSN 2027-5137

Hist.mem.  no.24 Tunja Jan./June 2022  Epub May 31, 2022

https://doi.org/10.19053/20275137.n24.2022.10781 

Artículo de Investigación e Innovación

Contribuições de um carnaval do interior para a perspectiva da memória historiográfica pós-abolicionista nos séculos XX e XXI*

Contribuciones de un carnaval del interior a la perspectiva de la memoria historiográfica postabolicionista en los siglos XX y XXI

Contributions of an inland carnival to the perspective of post-abolitionist historiographic memory in the 20th and 21st centuries

Contributions d'un carnaval de l'intérieur à la perspective de la mémoire historiographique post-abolitionniste aux XXe et XXIe siècles

Alberto Bomfim da Silva** 
http://orcid.org/0000-0001-8448-8872

Edson Farias*** 

** Doutorando em memória pelo Programa de Pós-graduação em Memória: Linguagem e Sociedade PPGMLS/UESB; mestre em Letras pelo PPGCEL/UESB; graduado e pós-graduado em História também pela UESB; professor da Rede Municipal de Educação; bolsista FAPESB. betobomfiml@gmail.com https://orcid.org/0000-0001-8448-8872. Universidad de Brasilia (UNB)-Brasil

*** Doutor em Ciências Sociais pela UNICAMP; pesquisador do CNPq; professor do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Nacional de Brasília (PPGSOL/UNB) e do PPGMLS/UESB; pesquisador e coordenador do grupo de pesquisa Cultura Memória e Desenvolvimento da Universidade Nacional de Brasília (CMD/UNB); editor da revista Arquivos do CMD. E3nilosed@gmail.com. Universidad de Brasilia (UNB)-Brasil


Resumo

O objetivo deste texto é refletir sobre o que se convencionou chamar de período pós-abolição numa análise derivada dos estudos sobre as associações negras e mestiças da cidade de Vitória da Conquista (Brasil) entre trânsitos políticos e culturais no processo de carnavalização na segunda metade do século XX. A metodologia consistiu em análise da iconografia coligida na pesquisa de doutorado, sobretudo fotografias do carnaval, e análise dos relatos de pessoas cuja formação de memória esteve ligada aos grupos que faziam o carnaval de rua, a partir dos predicados da história oral, articulando postulados de diversas disciplinas no campo das ciências sociais coalescentes à multimodalidade da memória. A pesquisa permite concluir que é possível alterar o uso acadêmico da categoria pós-abolição no campo epistemológico da História, subtraindo seu sentido de periodização, investindo o sentido temático conferido pela inscrição de memória das lutas por liberdade e cidadania de negros e mestiços, fazendo uso de uma nova categoria: a memória historiográfica.

Palavras-chave: pós-abolição; carnavalização; associações negras; memória; história

Resumen

El objetivo de este texto es reflexionar sobre lo que convencionalmente se denomina período post-abolición en un análisis derivado de los estudios sobre las asociaciones de negros y mestizos en la ciudad de Vitória da Conquista (Brasil) entre los tránsitos políticos y culturales en el proceso de carnavalización en la segunda mitad del siglo XX. La metodología consistió en el análisis de la iconografía recopilada en la investigación doctoral, especialmente las fotografías del carnaval, y el análisis de los relatos de las personas cuya formación de la memoria estaba vinculada a los grupos que realizaban el carnaval de la calle, desde los predicados de la historia oral, articulando postulados de diversas disciplinas del campo de las ciencias sociales cohesionando la multimodalidad de la memoria. La investigación permite concluir que es posible alterar el uso académico de la categoría post-abolición en el campo epistemológico de la Historia, sustrayendo su sentido de periodización, invirtiendo el sentido temático conferido por la inscripción de la memoria de las luchas por la libertad y la ciudadanía de los negros y mestizos, haciendo uso de una nueva categoría: la memoria historiográfica.

Palabras clave: post-abolición; carnavalización; asociaciones negras; memoria; historia

Abstract

The objective of this paper is to reflect upon what is conventionally referred to as the post-abolitionist period. It is an analysis derived from studies on the associations of black and mestizo people in the city of Vitória da Conquista (Brazil), amid the political and cultural transitions in the carnivalization process in the second half of the 20th century. The methodology consisted of the interpretation of the iconography, especially photographs of the carnival, and the analysis of the first-hand accounts of the people whose formation of the memory was linked to those groups which held the street carnival, from the predicates of oral history, articulating postulates from history and other fundamental social disciplines in order to approach the memory. With this investigation, it can be inferred that it is possible to alter the academic use of the post-abolitionist category in the epistemological field of history, substracting its sense of periodization, and inverting the thematic meaning conferred by the inscription of the memory of the struggles for liberty and citizenship of black and mestizo people, making use of a new category: historiographic memory.

Keywords: post-abolition; carnivalization; black associations; memory; history

Résumé

Cet article se propose de réfléchir sur ce l'on nomme d'habitude la période post-abolition. Il s'agit d'une analyse dérivée des études sur les associations de noirs et de métis dans la ville de Vitória da Conquista (Brésil), au moment des changements politiques et culturels marqués par la carnavalisation dans la seconde moitié du XXe siècle. La méthodologie comporte une interprétation de l'iconographie, spécialement les photographies du carnaval et l'analyse des récits des personnes dont la formation de la mémoire était liée aux groupes qui participaient au carnaval dans la rue. Cette recherche permet de comprendre qu'il est possible de manier l'usage académique de la catégorie post-abolition dans le champ épistémologique de l'Histoire tout en inversant le sens conféré à l'inscription de la mémoire des luttes pour la liberté et la citoyenneté des noirs et des métis en faisant appel à une catégorie nouvelle: la mémoire historiographique.

Mots-clés: post-abolition; carnavalisation; associations noires; mémoire; histoire

O passado não é mais garantia do futuro, eis a razão principal da promoção da memória como campo dinâmico e única promessa de continuidade. A solidariedade do presente e da memória substituiu a solidariedade do passado e do futuro.

Paul Ricoeur

Fonte: Base do IBGE.

Figura 1 Localização do município de Vitória da Conquista na Bahia, Brasil, 2019. 

Introdução

No final do século XX, as ciências sociais, sobretudo a ciência historiadora, se propuseram à empreitada de repensar a escravidão na história do Brasil. Se alargou o escopo das categorias com que se explorava o fenômeno. De entendimentos centrados nas relações econômicas e na dicotomia senhor/ escravo, passou-se a estudar de maneira ampla as relações escravistas na sociedade brasileira. No XXI, uma nova senda tem oxigenado o campo das pesquisas: as relações sociais pós-abolicionistas.

É possível que os movimentos sociais negros tenham influenciado direta ou indiretamente nestas mudanças acadêmicas, já que houve uma forte pressão sobre a temática da identidade negra brasileira, provocada por aquela vertente de movimento negro que ganhou força a partir da década de 19701.

Significativos trabalhos como: Da nitidez a invisibilidade: legados do pós emancipação no Brasil2; Quase Cidadãos3; A história da educação dos negros no Brasil4; Dicionário da escravidão e liberdade5, apenas para citar alguns, já que a lista completa seria demasiado longa, são obras que reúnem dezenas de trabalhos de pesquisadores que se debruçaram sobre histórias que haviam sido ignoradas ao longo do século XX. Tais trabalhos já impactam o olhar de antropólogos, historiadores, sociólogos, enfim dos que se ocupam em refletir a sociedade brasileira. Um bom exemplo deste impacto encontra-se na obra Brasil: uma biografia6, um compêndio da história do país que já surge com ares de obra clássica desde a primeira edição. Ali a história de negros, indígenas e mestiços é ressignificada. Ganha relevo o protagonismo destes grupos em comparação à maioria das obras anteriores que se propunham a realizar grandes tratados sobre a história brasileira.

Este artigo se concentra na discussão teórica do manuseio do termo pós-abolição pela ciência historiadora. Inserido no amplo leque dos Estudos Culturais e, ainda, dentro de predicados metodológicos próprios à ciência historiadora, ao mesmo tempo que circula entre os campos epistemológicos da História e da Memória. São elucubrações sobre um contexto nacional, partindo de uma pesquisa empírica e local que analisa as representações acionadas pelos agentes e performances das associações negras e mestiças no conjunto da memória das experiências carnavalescas de uma cidade do interior da Bahia.

Entre os diversos autores articulados nessa escrita destaca-se Paul Ricoeur, cuja obra A memória, a história, o esquecimento7 foi fundamental para propor a análise das associações negras e mestiças do carnaval enquanto estudo temático do pós-abolição, entendendo a História como uma episteme dentro do campo gravitacional da Memória.

Como é comum nas ciências, este novo ramo de pesquisa, ao mesmo tempo em que soma às reflexões dos fenômenos sociohistóricos, também instaura aporias conceituais no trato acadêmico da ciência historiadora. Fala-se ainda de um Brasil contemporâneo enquanto e, simplesmente, período republicano. Quando o país vive muito mais um período pós-abolicionista8.Este estudo trilha por esta senda.

A pesquisa se propõe à investigação das associações negras e mestiças de Vitória da Conquista (ver mapa na figura 1) entre os trânsitos políticos e culturais da carnavalização na segunda metade do século XX. Como metodologia de entrevista, tem se procurado apresentar aos entrevistados fotografias de cenas carnavalescas da segunda metade do sec. XX, tendo em vista que a memória se ancora em materialidades para se organizar em termos de espaço e tempo, pois «quando tocamos uma época em que já não conseguimos imaginar os lugares, nem mesmo confusamente, chegamos também a região do passado em que nossa memória não atinge»9. Logo, rever nas fotografias lugares, pessoas e outras materialidades estimula a retomada de lembranças latentes, possibilita a reconstrução de processos de carnavalização em termos de memória.

Por tratar-se do exímio espaço que o formato de artigo oferece à escrita, detemo-nos em apenas duas das entrevistas coletadas durante a pesquisa. Justifica-se por elas se constituírem exemplos representativos de uma contradição que se põe dentro da problemática dos quadros sociais da memória. Até este momento, a pesquisa aponta para o surgimento de dois tipos de quadros sociais da memória: (a) o de agentes que participaram dos carnavais e se envolveram no mesmo tempo, ou posteriormente, com os movimentos negros ou com suas temáticas. A evocação desses agentes sobre memória do carnaval quase sempre é atravessada por categorias que se ligam a processos de «racialização»10; (b) o de agentes que participaram do carnaval mas, aparentemente, não se envolveram com as temáticas propostas pelos movimentos negros. Para esse artigo, tomamos dois exemplos representativos de cada quadro: João Paulo11 representando o quadro (a) e Enedino12 representando o quadro (b). As relações etnicorraciais da carnavalização surgem nos dois casos, mas com conjuntos de enunciados diferentes.

Ao se indagar a um dos entrevistados como eram aqueles carnavais antigos? Depois de algum tempo revendo cenas de antigos carnavais a partir de fotografias que lhe foram apresentadas, a liderança da «Batucada Conquistense» mudou de postura corporal, investindo-se de uma energia que contradisse seus 84 anos, intensamente vividos, proferiu a frase que pareceu sintetizar o sentido que sua memória atribuía à sua participação naqueles processos festivos: «Ave Maria, era mil maravilha! »13.

As associações negras e mestiças no carnaval

Fonte: Arquivo Público Municipal de Vitória da Conquista (APMVC), Vitória da Conquista - Brasil, pasta de Secretaria do Turismo, ano 1987 - autor não informado.

Figura 2 premiação do carnaval de 1987 em Vitória da Conquista. 

A figura 2, uma fotografia em preto e branco de 10x15 cm, possivelmente realizada por um fotógrafo profissional a serviço da Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista (PMVC), em 1987, é particularmente reveladora para fundamentar a importância do protagonismo negro na cidade de Vitória da Conquista, que se torna visível nos processos de carnavalização. No registro, o então prefeito, José Fernandes Pedral Sampaio (1925-2014), e o vice-prefeito, Hélio Ribeiro, realizam a entrega de prêmios às entidades carnavalescas que promoveram a festa naquele ano. Tais entidades estão representadas por suas lideranças, majoritariamente afro-brasileiras.

Ao mostrar essa fotografia ao professor João Paulo Pereira14, filho do carnavalesco José Cezar Pereira, popular «Zé Baticabo», ele identificou as seguintes pessoas:

Da perspectiva de quem olha da direita para esquerda, no primeiro plano, vê-se - Vani - líder Batucada «O Oi da Lua» e da escola de samba «Unidos da Serra». Também era dono de bordel. A mulher que aparece ao seu lado não teve o nome identificado ainda, mas fazia parte do terreiro de candomblé de mãe Vitória de Petú. Em seguida, aparece Tranxinxim - líder do «Afoxé Tranxinxim», um dos mais ativos carnavalescos, também ligado aos terreiros. E Juraci (entre o prefeito e o vice-prefeito), que também era ligado aos terreiros e foi líder da escola de samba Unidos da Corrente, formada, principalmente, por moradores da conhecida Rua da Corrente, no bairro das Pedrinhas. No segundo plano, atrás e à direita de Juraci, está o carnavalesco identificado como Joaquim15.

João Paulo frequentou o carnaval conquistense desde a adolescência na década de 1980, quando ia à festa acompanhando a farra de Zé Baticabo, seu pai. Ele se auto identifica como negro, assim como a toda a sua família. Vivenciou os últimos momentos das batucadas, conheceu as escolas de samba e os afoxés, acompanhou de perto e com interesse a transição da festa de carnaval para «micareta» a partir de 1989 e seu crescimento em termos de «profissionalização»16, como também vivenciou, com lástima, o fim da regularidade da festa em 2008. Desde 2009, o carnaval foi realizado em Vitória da Conquista apenas algumas vezes, funcionando irregularmente por vontade de certos coletivos culturais que, mobilizavam bem menos recursos e estruturas comparativamente à época das micaretas. Para o entrevistado, «o carnaval de Conquista, nos anos 1960, 1970 e 1980, era da periferia; a elite branca conquistense pulava carnaval no clube... da praça Sá Barreto até a praça Nove de Novembro a rua era negra!» 17.

A observação de João Paulo, de que a «rua era negra», é reiterada por outros entrevistados que concordam com ele de um modo geral quando diz: «Nas batucadas, mais de 90% dos componentes eram negros e nativos»18. Também é muito comum encontrar nas entrevistas e nas fotografias uma distinção geográfica: os clubes e as ruas eram, normalmente, frequentados por pessoas de perfis etnicorraciais diferentes. Negros e mestiços se concentravam nas ruas e nas praças.

As batucadas e os demais grupos carnavalescos de rua não se pronunciavam em termos de questões e disputas políticas etnicorraciais. No entanto, a pesquisa inicial revela que suas práticas e representações em contextos de carnavalização apontam para a construção de uma formação discursiva que, na maioria das vezes, dá nitidez e positiva elementos culturais afro-brasileiros e indígenas. A formação discursiva é aqui entendida a partir das reflexões de Michel Foucault: «que consiste em não mais tratar o discurso como conjunto de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos e representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam»19

Portanto, mesmo que não sejam uniformes e não estejam presentes em todas as situações, um grande número de elementos pode ligar esses grupos, tais como: o envolvimento com as religiões de matriz africana (figura 3); a produção e circulação da música e da dança de samba (figura 4); a predominância de membros oriundos dos extratos sociais de menor poder econômico; maioria de membros moradora de bairros antigos ou periféricos; pessoas com fenótipos associados à negritude tais como pele escura e cabelo crespo; a proposição política de combate aos racismos e, sobretudo, valorização de estéticas negras e mestiças (figura 5), enunciados que formam um discurso observável nessas associações.

Fonte: APMVC, acervo fotográfico, festas populares, série-micaretas.

Figura 3 Lavagem do beco na abertura da micareta de 1990. 

Fonte: APMVC, acervo fotográfico, festas populares, série-micaretas.

Figura 4 Escola de samba na micareta de 1990 

Fonte: Arquivo Público Municipal de Vitória da Conquista (APMVC) - pasta de Secretaria do Turismo.

Figura 5 Desfile no carnaval de 1986. 

Assim, faz-se necessário para este estudo atentar para os efeitos de sentidos propostos nos enunciados colhidos entre as fontes, sobretudo o «caráter necessariamente histórico dos sentidos»20, para explorar os significados de gestos, danças, risos, corpos, cores, palavras e outros enunciados que enalteciam um protagonismo negro e mestiço, num momento em que não havia um vocabulário político de movimentos negro em Vitória da Conquista, pelo menos do modo como o conhecemos hoje.

Concorda-se com Mikhail Bakhtin ao enxergar que as práticas de carnavalização oferecem permissão para que elementos culturais, normalmente recalcados ou repreendidos, possam vir à cena, no «abrigo das ousadias legitimadas pelo carnaval»21. Desse modo, a folia e a prática política podem se encontrar numa catarse, e os registros do carnaval podem se tornar, por excelência, uma senda aberta aos estudos da história cultural, cujos vestígios foram apagados por outros caminhos.

Nesses carnavais de 1950 a 1990, no abrigo das escolas de samba, blocos de índio, batucadas e afoxés, uma grande quantidade de pessoas com suas peles escuras e cabelos crespos se expunha à rua, requalificando e afirmando valores estéticos negros e mestiços, ressignificando coletivamente representações sociais que, normalmente, não eram bem vistas no conjunto daquela sociedade. Nesse contexto, o próprio corpo se converte num enunciado que positiva suas qualidades estéticas na corrente da linguagem carnavalesca.

Fonte: fotografia de Alberto Bomfim em 14 de julho de 2018.

Figura 6 Enedino, «dono» da Batucada Conquistense. 

Para este artigo, também se pôde contar com o acréscimo das memórias de Enedino Ribeiro dos Santos22, que aparece na figura 6, possivelmente o único ainda vivo dentre os carnavalescos que fizeram parte da era das batucadas na cidade. Algumas de suas evocações reiteram o que tem sido dito sobre as associações negras e mestiças; outras contradizem, o que torna o exercício de análise mais trabalhoso e ao mesmo tempo mais profícuo. Enedino foi «dono» da Batucada Conquistense, grupo que desfilava de azul e branco todos os anos. Sua trajetória de vida como chapa23 e carnavalesco revela-se repleta de atividades. Teve 43 filhos e 4 esposas, tornou-se referência no bairro Guarani e teve acesso a lugares do carnaval normalmente restritos aos extratos elitizados da sociedade conquistense, algo incomum aos que participavam do carnaval da rua. Ao lhe ser apresentada, também, a fotografia da figura 2, ele identificou quase os mesmos nomes das pessoas ali presentes, corroborando com as informações prestadas por João Paulo.

Enedino e tantos de seus pares, os chamados «chapas», sobreviviam do trabalho de carregar e descarregar mercadorias de caminhões, levando as cargas nas costas. Outros que frequentavam as batucadas obtinham o sustento econômico do trabalho de quebrar pedras na serra do Periperi com marretas à mão para vendê-las em montes que serviriam à construção civil. Essa atividade econômica de vender pedras quebradas confere o nome ao bairro popular onde surgem várias lideranças carnavalescas: Pedrinhas. Ainda outros, sobretudo, mulheres e crianças, sobreviviam vendendo latas d'água. Na década de 1960, quando ainda não havia o serviço de distribuição encanada na cidade, a água era captada no Poço Escuro, na serra do Periperi, e levada em latas de água sustentadas na cabeça até o centro da cidade, onde eram vendidas a comerciantes ou a donas de casa. Além desses, havia outras formas de trabalho, geralmente no comércio ou no mundo doméstico. A maioria dos que faziam parte dessas associações negras e mestiças da carnavalização ocupava formas de trabalho precarizadas, de baixa remuneração e irregulares.

Enedino conta, com certo orgulho, que foi exatamente num período de sua vida, em que trabalhou de «carteira assinada», que juntou um dinheiro e pediu ao «nêgo Juraci» (ele aparece no centro da imagem 2, entre o prefeito e o secretário), dono da Batucada Unidos da Corrente, que lhe comprasse instrumentos musicais na cidade de São Paulo, para munir a Batucada Conquistense.

Diante de várias outras fotografias relacionadas aos carnavais, Enedino também evocou pessoas, grupos e situações do processo de carnavalização que se tornaram importantes para esse estudo. Sua memória emergiu entre expressões de atenção e afeto no olhar dirigido às fotos; seus gestos de um senhor de 84 anos, ligeiramente tímidos e curvados inicialmente, mudaram, ficaram largos. Seu sorriso irrompeu em vários momentos da entrevista e, no ápice de seu estado de afetação, cantou canções desses antigos carnavais, conferindo emotividade à trama da recordação. Perguntado sobre como eram aqueles carnavais entre 1960 e 1983, período em que a Batucada Conquistense desfilou, ele responde: «Ave Maria, era mil maravilha! Ninguém brigava, num tinha briga, num tinha nada, era só prazer, era só brincadeira; a gente só ia para curtir; a turma amanhecia o dia fantasiado nas ruas mais as 'mininas' brincando... »24.

Algo que ainda não havia aparecido nas fontes, e que se destaca no testemunho de Enedino, é a existência de certa porosidade social. Em sua narrativa, aparece como destaque sua relação com José Fernandes Pedral Sampaio (ele aparece na figura 2, terceira pessoa da esquerda para a direita, da perspectiva de quem olha), então prefeito da cidade, secretários e do empresário Oliveira Neto, chamado por Enedino de Biliu: «Biliu chamava a gente para brincar lá na casa dele ... às vezes eu ia no terreiro de mãe Vitória de Petú, Biliu também ia lá de vez em quando »25.

Tal fato revela como seu envolvimento com o carnaval lhe colocava em situação de reconhecimento e autoafirmação numa sociedade que, em outras situações, não carnavalizadas ou destituídas do rito do candomblé, não lhe respeitariam do mesmo modo, possivelmente. Também se descortina aqui uma ambivalência no jogo social: a mesma elite que recrimina as práticas daquele extrato social, reconhece a envergadura de seu protagonismo, pelo menos nas circunstâncias da carnavalização. Como aponta o excerto do Código de Posturas do Município, de 1954:

É expressamente proibido sob pena de multa ou prisão: I - Perturbar o sossego público com ruidos e sons excessivos evitáveis tais como:[...] II - Promover batuques, sambas, candomblés e outros divertimentos congêneres na cidade, vilas e povoados, sem licenças das autoridades, não se compreendendo nesta vedação os bailes e reuniões familiares26.

O conceito de família evocado na Lei municipal exclui e violenta a diversidade familiar das pessoas que se organizavam em torno das batucadas e dos terreiros. A própria família de Enedino não se encaixava naquele conceito de arranjo familiar: a «família burguesa»27. As batucadas e os sambas incomodavam parte da sociedade representada pelos vereadores que aprovaram tal lei. Logo, ficam expostos acordos e tensões sociais e etnicorraciais entre setores da sociedade conquistense. Práticas e representações do universo cultural afro-brasileiro discriminados no dia-dia pelos setores elitizados daquela sociedade encontravam «abrigo das ousadias legitimadas pelo carnaval»28 Importa saber que as práticas carnavalescas não se restringiam aos três dias do carnaval, como informou Enedino.

As pessoas que participavam do carnaval iniciavam seus preparativos vários meses antes dos dias da festa. Para muitos, os meses anteriores, em que ocorriam os ensaios, constituíam sua melhor parte e, mesmo depois daqueles dias momescos, a carnavalização ainda poderia reverberar por tempo significativo. Segundo Dionísia de Oliveira Silva, popular Dona Dió do Acarajé, «a gente saía nas festas, no carnaval, e ali começava a ter contato com os amigos e os amigos arranjavam os namorados pra gente»29. Mulher negra, com origem na comunidade quilombola Lagoa de Maria Clemência, Dona Dió foi tradicional vendedora de acarajé, teve significativo papel social na vida carnavalesca da cidade. Sua fala se referindo ao circuito das batucadas demonstra como elas se constituíram como espaços/tempos que se configuravam como lugares de sociabilidade.

As leis, os jornais, as decisões administrativas e as fotografias pesquisadas até aqui demonstram que parte da cidade preferia silenciar e invisibilizar as práticas sociais afro-brasileiras. Enquanto isso, o processo de carnavalização abria as comportas da visibilidade do mundo afro-conquistense. Diversas fontes apontam para a formação expressiva desse protagonismo negro, como diz, por exemplo, Rosalvo Lemos: «Em 1950 o povo que habitava os bairros mais humildes da cidade se apresentam para uma inserção mais ativa nos festejos momescos, introduzindo os sons fortes dos instrumentos de percussão através das batucadas e elementos cênicos da religiosidade afro-brasileira com a presença dos afoxés»30.

Os bairros de que fala Lemos são, em parte, aqueles hoje conhecidos como Patagônia, Jurema, Alto Maron, Guarani e Pedrinhas. Notadamente, o trecho em torno da Rua das Pedrinhas e da Rua da Corrente, que inclui o chamado «beco da vó Dola», identificado por Flávio Passos como «território negro»31, esteve no epicentro dessa movimentação cultural.

A pesquisa inicial demonstra que surgiram várias associações que figuraram entre as décadas de 1950 e 1990 como: Fundação Cultural Oriza Negra; Movimento Cultural Ogum Xorokê; Bloco Afro Raízes Negras; Escola de Samba Unidos do São Vicente; e os afoxés Filhos de Angola, Tupinambá Rei da Floresta, Rei do Congo, Filhos do Congo, Afoxé Filhos de Iansã, Afoxé Filhos de Ogum e várias batucadas. Também a capoeira aparece nesse cenário como demonstra Jonatan Silva ao falar sobre a trajetória dos mestres de capoeira na cidade32. Finalmente, na composição do tecido social contemporâneo da cidade de Vitória da Conquista, nota-se a presença de um grande número de bairros com população de maioria negra e de comunidades quilombolas. São 43 comunidades quilombolas reconhecidas pelo Poder Público Municipal, das quais 23 certificadas pela Fundação Cultural Palmares. Os dados oficiais apontam que 65,06% da população de Vitória da Conquista é preta ou parda33.

Cabe agora perguntar: por que grande parte do trabalho historiográfico sobre a cidade não inferiu sobre este universo sociocultural? Fez-se a opção por centrar principalmente nos aspectos político-administrativos e econômicos como fizeram: Mozart Tanajura34, Aníbal Viana35, Medeiros & Fonseca36, Maria A. Sousa37 e outros. Embora a importante contribuição que esses trabalhos conferiram à história da região, muito ficou por se pesquisar no campo da História Cultural.

A História no Período Pós-abolição

Se causa surpresa, numa cidade que se autodenomina «Suíça baiana»38, vir à tona tanto protagonismo negro, há que se considerar que no cenário nacional isso se repete com certa frequência. Esse protagonismo relacionado ao período pós-abolição só recentemente ganhou atenção da academia, como apontam Flávio Gomes e Petrônio Domingues39 Para esses autores, a construção da história recente do Brasil passa por «um apagamento de memórias no Brasil moderno (ou face dele) do século XX que se construiu com base nas memórias do pós-abolição... trata-se de um tempo quase presente do século XX»40 . Trata-se de um esforço de apagamento do protagonismo negro que atuou no sentido de manter o status quo de uma sociedade, que submetia aquela parcela da população à condição de «quase-cidadãos» (Cunha e Gomes, Quase cidadãos).

Assim, mais importante que uma possível periodização que os historiadores comumente atribuem à noção de pós-abolição, situando-o entre a promulgação da Lei Áurea, que determina o fim da escravidão, oficialmente Lei n.° 3.353 de 13 de maio de 1888, e a Era Vargas, na década de 1930, está a questão da temática da luta por direitos de cidadania de negros e mestiços que atravessa um período bem mais extenso e muito mais ligado aos contextos da contemporaneidade. Cabe citar que, apenas em 2015, as empregadas domésticas, grupo predominantemente negro e feminino, passaram a dispor, legalmente, dos mesmos direitos trabalhistas que qualquer cidadão, Lei Complementar n° 150, de 1a de junho de 201541. Não é incomum encontrar entre patrões e empregadas do serviço doméstico relações interpessoais herdeiras do período escravista. Segundo Wlamira Albuquerque, «Fazer transbordar para a sociedade pós-abolição as regras sociais do mundo escravista foi o principal empenho das elites. Entre as formas de salvar os ex-senhores do desatino estava a de garantir-lhes a exclusividade da condição de cidadão»42.

Algo que esteve sempre em jogo nessas regras sociais do mundo escravista foi o exercício de poder de determinados grupos, sobre outros e as relações etnicorraciais adquirem maior importância neste jogo no período pós-abolicionista, já que a velha forma senhor-escravo tendia ao desaparecimento. Vale lembrar que a racialização, em sua semântica contemporânea ligada à genética, não era algo importante na formação da sociedade escravista brasileira no século XVI. Não era incomum que negros possuíssem escravos. É no decorrer do XIX que o racismo científico se instala no Brasil a partir de construções da ciência do mundo europeu, como aponta Lilian Moritz Schwarz43 (1993) e, a partir daí, o racismo gradativamente se transfere às práticas socioculturais brasileiras.

A ciência é uma construção humana, realizada dentro da corrente de linguagem de uma sociedade. A História não escapa a isso. Logo, o fazer historiográfico, imerso na memória desse período, reflete o Brasil pós-abolição, reproduzindo, em parte, suas conformações culturais. É comum na tradição historiográfica brasileira distinguir uma periodização anterior a 1889, classificando-a como Período Imperial, e outra, pós 1889, classificando-a como Período Republicano. Isso aparece nos livros didáticos; na própria BNCC (2018, p. 416)44; em autores como José M. Carvalho45, Raymundo Faoro46 e outros. Não à toa, no próprio 30° Simpósio Nacional de História (SNH) que ocorreu em 2019, é possível verificar esse uso no simpósio temático: «História e Culturas Políticas no Brasil Republicano»47.

É curioso observar comparativamente os significados dos processos que ocorreram em 1888 e 1889. O processo da República, selado com um evento de caserna e de gabinete, distante da participação popular como diz José M. Carvalho, na obra Os bestializados, se tornou a marca do século seguinte no fazer dos historiadores. Enquanto o processo abolicionista, que teve seu desenlace jurídico em 13 de maio de 1888, contou com o envolvimento de amplos setores da população, com intensas lutas intelectuais, políticas e físicas travadas por sujeitos e por grupos de, praticamente, todos os extratos sociais do país e, mesmo com toda essa profundidade histórica, aparece, em muitos aspectos da historiografia, em segundo plano em relação à «República». Tal opção está ligada, entre outras referências, à tradição historiográfica europeia, principalmente francesa, cujo lócus principal eram os temas operados em torno das demandas do Estado-nação.

Mesmo um autor de verve positivista como Maurice Halbwachs, ao falar sobre a diferença entre memória coletiva e história, já traçava uma crítica ao modo como a disciplina era articulada nas escolas em seu tempo, como aparece na citação de Paul Ricoeur:

A história é aprendida pela memorização de datas, de fatos e nomenclaturas de acontecimentos marcantes, de personalidades importantes de festas a celebrar. É essencialmente uma narrativa ensinada, cujo quadro de referência é a nação. Nesse estágio de descoberta, ela própria relembrada ulteriormente, a história é percebida, principalmente pelo aluno como [exterior] e morta48.

Halbwachs dava conta que uma história dissociada da memória perderia de vista a memória coletiva e os processos de identidade. Pode-se inferir, também, que a crítica que se faz hoje à «visão linear da história» clama por uma maior atenção ao fenômeno da memória e por uma quebra dos grilhões da periodização desencarnada da cultura. Contribuir através deste estudo com a produção de conhecimento de história local, somando-se a outros trabalhos que possam ser posteriormente utilizados de forma didática nas escolas do município e que diga respeito às construções identitárias dos estudantes, constitui a relevância social de estudos como este.

Finalmente, para estudar as associações negras e mestiças no processo de carnavalização de Vitória da Conquista, na segunda metade do século XX sob um viés do pós-abolição, a partir do amplo leque dos Estudos Culturais e, ainda, dentro de predicados metodológicos próprios à ciência historiadora, será preciso insistir mais na opção temática e menos na periodização historiográfica tradicional. Para proceder com uma análise teórica que fundamente essa opção faz-se necessário circular entre os campos epistemológicos da História e da Memória.

Para justificar o uso do termo pós-abolição nesse estudo propõe-se, aqui, a construção de uma categoria: memória historiográfica. Diferente de memória histórica, que se refere principalmente aos documentos e aos seus tratos nos lugares de memória, a memória historiográfica diz respeito às noções que o pesquisador utiliza para produzir uma pesquisa na área de história. Essas noções podem aparecer claramente ou não numa dada obra, assim como podem ser articuladas conscientemente ou não pelo autor. Há um incômodo na proposição «memória historiográfica», uma vez que tem havido esforços significativos de autores em separar os campos Memória e História.

A ideia aqui não será de unir forçosamente os dois signos, mas de tentar encontrar as teias pelas quais as duas áreas se diferenciam, se estabelecem e tornam a convergir. Assim, uma análise a partir da memória historiográfica é aquela que não se restringe à relação memória-história, enquanto memória matriz da história; outrossim uma relação memória-história-memória, enquanto memória matriz da história que retorna à memória.

O historiador Jacques Le Goff, assim como vários outros, admite como o conceito de Memória fica «nebuloso» ao se tentar cercá-la no campo das ciências. Com reticências, diz: «A memória como propriedade de conservar informações, remetenos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas»49. Para o autor, a Memória se realiza no processo de narrativa e constitui-se como elemento fundamental na formação das identidades coletivas e sociais. A História, segundo Le Goff, cresce na memória, ou seja, surge a partir da memória, desenvolve-se como área específica do conhecimento e, em sua versão mais recente, toma a memória como objeto de estudo.

A tentativa de distinguir História de Memória ganha mais atenção na obra de Pierre Nora50, que descreve a memória como afetiva e mágica, ligada ao sagrado, pertencente a um grupo que ela une, enraizada no concreto e no absoluto. Enquanto a história seria intelectual, por isso demanda análise e discurso crítico, dessacralizada, com vocação para o universal, enraizada nas continuidades e evoluções temporais e também enraizada no relativo.

Na compreensão de Nora, vivemos um período de «aceleração da história» com uma sociedade que, contraditoriamente, constrói cada vez mais lugares de memória. Os lugares de memória são, segundo o autor, de três tipos: material, simbólico e funcional. Em sociedades pós-industriais e complexas, o motivo pelo qual esses lugares se proliferam é que cada vez mais essas sociedades se desinvestiriam de suas tradições, vivem «o fim de uma tradição de memória», as memórias seriam apenas restos, vestígios. «Tudo o que é chamado hoje de memória não é, portanto, memória, mas já história... a necessidade de memória é uma necessidade de história»51

Desse modo, o mundo em que vivemos estaria cada vez mais destituído de memória. Será? A análise proposta por Nora coloca uma das principais diferenças entre memória e história no terreno da ciência historiadora. Esta ideia está reproduzida em termos mais sucintos em Ruy Medeiros, que afirma que «o historiador não evoca, estuda à luz da ciência. Ele mantém independência diante da memória»52. Para esse autor, uma das diferenças elementares para o pesquisador em História é que ele elide sistematicamente enquanto que a memória é evocada. A história é acessível através da ciência, enquanto a memória é um fenômeno social, acionado pessoalmente no exercício psicológico de lembrança e esquecimento, imagens subjetivadas de dados fenômenos objetivos.

Embora pareça claro que o ideal da ciência historiográfica se propõe à construção de um conhecimento independente da memória, cabe perguntar: a História realiza esse ideal? O historiador, de fato, não evoca? O historiador, em sua prática do fazer de ciência, se destitui da sua condição de sujeito imerso na memória?

Seao pesquisador é dada a tarefa de construção sistemática de conhecimento e para tal ele precisa, obviamente, acionar um conhecimento historicamente acumulado, seja em qual for a área de pesquisa, nessa operação é feita uma distinção entre busca, enquanto recordação, e evocar, enquanto lembrança espontânea. No entanto, «existe pathos no zétesis e afecção na busca. Assim se entrecruzam a dimensão intelectual e a dimensão afetiva do esforço de recordação como em qualquer outra forma de esforço intelectual»53. Dito por outro modo, não haveria como o sujeito da pesquisa científica não evocar de uma maneira ou outra.

Como propõe Michel Foucault54, o enunciado contém outros enunciados. A ciência é feita, também, por enunciados. Assim se faz necessário perguntar: esses enunciados secundários seriam acionados pela análise científica ou pela evocação? Se a resposta for a evocação, ou mesmo pelas duas categorias ao mesmo tempo, então o constructo da ciência está repleto de memória, por consequência, também a História. Seu esforço no sentido de não evocar não é necessariamente em vão, pois traça um roteiro a ser seguido, o que chamamos de método, mas não o retira da condição de produto dos sujeitos no seu fazer de ciência, cuja identidade se constrói na memória (dentro ou a partir dela). «A formação dos conceitos não está na mentalidade ou na consciência dos indivíduos, mas no próprio discurso»55. Embora sem utilizar a palavra «memória», a discussão realizada sobre a cadeia de enunciados que formam o discurso remetem diretamente ao campo da memória, do mesmo modo que fez Pierre Bourdieu ao falar em «habitus»56.

Ao mesmo tempo em que história e memória se põe como categorias distintas como propõe Nora, os dois conceitos possuem interfaces que constantemente podem ser acionados simultaneamente, justapostos ou sobrepostos em uma mesma análise.

Para Henri Bergson, o próprio poder de percepção estaria mais vinculado à memória enquanto fenômeno:

É preciso levar em conta que perceber acaba não sendo mais do que uma ocasião de lembrar, que na prática medimos o grau de realidade com o grau de utilidade, que temos todo o interesse, enfim, em erigir em simples signos do real essas intuições imediatas que coincidem, no fundo, com a própria realidade57.

Ao dizer que perceber é apenas uma ocasião de lembrar, o autor aposta alto em reduzir o papel das percepções do presente e amplificar a importância atribuída à memória. Logo, a categoria «tempo» passa a ocupar um lugar especial na obra. Curiosamente o autor não o põe em termos de passado, presente e futuro. O que importa é a duração.

A tomar como válidas as afirmações de Henri Bergson, Paul Ricoeur e outros, não há possibilidade de construção do conhecimento científico que «mantenha independência da memória», como quer Medeiros, no excerto anteriormente citado. Sem utilizar a categoria «memória», o estudo sobre história da ciência feita pelo físico Thomas Kuhn contribui decididamente com esta tese. Ao proceder com a análise histórica dos paradigmas científicos, ele diz:

Simultaneamente, esses mesmos historiadores confrontam-se com dificuldades crescentes para distinguir o componente "científico" das observações e crenças passadas daquilo que seus predecessores rotularam prontamente de "erro" e "superstição". Quanto mais cuidadosamente estudam, digamos, a dinâmica aristotélica, a química flogística ou a termodinâmica calórica, tanto mais certos tornam-se de que, como um todo, as concepções de natureza outrora correntes não eram nem menos científicas nem menos produto da idiossincrasia do que as atualmente em voga58.

Em outras palavras, Kuhn afirma que a ciência nunca deixou de ser produzida dentro das margens da subjetividade, envolvida com certas crenças de seu tempo. Ora, a própria posição de entender a ciência como única fonte de verdade e conhecimento típico do Iluminismo, se constitui também num ato de fé. A ciência constrói sua própria cosmovisão dentro da memória de seu tempo, imersa nas idiossincrasias de seu tempo histórico.

Significa questionar a objetividade científica que se pretende neutra em relação às subjetividades dos sujeitos que fazem a ciência e da sociedade em que a ciência é feita. Contribuem com esse questionamento vários outros autores como Foucault, em a Ordem do discurso59, ou Boaventura Santos, em Um discurso sobre as ciências, quando diz: «não conhecemos do real senão a nossa intervenção nele»60. Aqui importa, sobretudo, perceber que análises do fazer científico, como a termodinâmica calórica, ou qualquer outra, estão imersas no mundo das idiossincrasias, enquanto característica comportamental ou estrutural peculiar a um indivíduo ou grupo e seus símbolos.

Talvez melhor se poderia falar em termos de «habitus» enquanto sistema de disposições. «Os condicionamentos associados a uma classe particular de condições de existência produzem habitus, sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes»61. Trata-se do modo como a sociedade constrói, sob a forma de disposições duráveis, capacidades treinadas e modos de pensar, agir e sentir, e também das respostas inventadas pelos agentes às demandas da sociedade em que se vive. Desta forma, o habitus de que fala Bourdieu são os fenômenos sociais incorporados como memória.

A memória coletiva aparece como elemento essencial de formação social na obra de Maurice Halbwachs, para quem o fenômeno da recordação é, principalmente, coletivo. Seria impossível aos indivíduos procederem com a recordação e a localização das lembranças, se estas não se referenciarem em contextos sociais que balizam a reconstrução da memória. Desse modo, só conseguimos organizar a memória porque balizamos a recordação em termos do que se processa em referência à família, escola, trabalho, cidade, bairro, áreas de interesse artístico, científico, etc. ou seja, nos lembramos a partir dos quadros sociais da memória62.

Instigados a falar do mesmo objeto, qual seja, a composição etnicorracial dos membros das batucadas, a construção de memória de João Paulo narra uma maioria expressiva de negros, assim como outras fontes validam sua fala; enquanto a construção de memória de Enedino narra uma festa com «todo mundo misturado, de tudo que é cor». Ao mesmo tempo ao ser perguntado se havia racismo naquela época ele responde «não», mas não expressa compreender o sentido atual da pergunta.

Ainda é necessária mais coleta de dados e análise para compreender melhor a fala de Enedino, mas uma hipótese a ser considerada é que, para o grupo do qual ele fazia parte, as demandas por igualdade de direitos, respeito e reconhecimento social passavam pela tentativa de anulação das diferenças etnicorraciais. Não seria a primeira vez que tal fenômeno apareceria na história. Ao falar dos significados da liberdade no sudeste escravista do século XIX e também de 1888 até a década de 1930, período convencionado como pós-abolição pelos historiadores, Hebe Mattos (2013) demonstra como o «a cor inexistente»63 funcionou como estratégia na luta por liberdade e cidadania de negros livres, forros e seus descendentes. Também a própria Frente Negra Brasileira (FNB), um dos mais significativos movimentos negros do Brasil na década de 1930, acionava valores encontrados nos movimentos fascistas e instigava os negros de seu tempo a abandonarem costumes herdados da cultura afro-brasileira como forma de serem socialmente reconhecidos, como informam Amilcar Pereira e Petrônio Domingues64.

Será preciso ainda pensar sobre as molduras normativas a que se submete a memória de Enedino a partir de sua própria linguagem, como diz Edson Farias:

[...] os enfrentamentos entre as tantas molduras normativas (com suas respectivas imagens de mundo) se dão nos usos das linguagens cotidianas, quer dizer, nas performances discursivas mediante as quais as respectivas narrativas apresentam formas de vida específicas que concorrem entre si por deliberar a favor de uma economia de emoção também própria65.

O autor, ao discutir a multimodalidade da memória e a sociologia dos a priori sociais, aponta o quanto a linguagem, constituída na e pela memória, traz no si do sujeito uma performance discursiva. Obviamente, uma análise do discurso da entrevista de Enedino, cujas evocações estão fortemente ancoradas no universo social das elites dominantes e não negras, poderá evidenciar uma prática racista. O que não seria nenhuma surpresa, pois o racismo está espraiado em diversas práticas sociais do Brasil. O que fundamentalmente importaria aqui seria conhecer como a categoria «racismo» é operada nos usos de linguagem de Enedino, certamente diferente daqueles usos de linguagem dos entrevistados do grupo (a), envolvidos com as demandas políticas da racialização. Esta pode ser uma senda a ser trilhada por esta pesquisa numa outra etapa.

Paul Ricoeur66, se propõe investigar a epistemologia da História e a fenomenologia da memória, fazendo-se acompanhar neste percurso de inúmeros autores desde a antiguidade clássica, como Aristóteles e Platão até os seus contemporâneos Pierre Bourdieu e outros. A obra ocupa-se da narrativa e o que está no centro da problemática é a dimensão veritativa da memória e da história, que só pode ser analisada sob o «enigma» da representação, enquanto a presença de uma ausência.

Enquanto Pierre Nora fala em «aceleração da história», Ricoeur fala em promoção da memória como campo dinâmico de promessa de continuidade, como aparece na epígrafe deste artigo: «O passado não é mais garantia do futuro, eis a razão principal da promoção da memória como campo dinâmico e única promessa de continuidade. A solidariedade do presente e da memória substituiu a solidariedade do passado e do futuro»67. O passado que poderia ser entendido como garantia do futuro era aquele articulado pela história do Estado-nação, pois concorria para a manutenção das instituições nacionais. Uma história que se sabe retornando à memória continuamente, uma memória historiográfica não precisa da solidariedade do passado com o futuro.

Retornando às entrevistas de João Paulo e de Enedino, utilizadas na composição deste artigo, merecem ser analisadas agora sob a proposição de memória posta por Ricoeur. A memória e a história continuam unidas quanto à perspectiva da fidelidade ao passado, e quanto a construírem um passado que é perspectivado conforme as perguntas do presente. Assim, ambos entrevistados se esforçaram por reconstruir o passado dos contextos de carnavalização e acabaram por produzir relatos que, aparentemente, divergiam no aspectos da importância conferida ao protagonismo negro.

Enquanto para João Paulo, «nas batucadas, mais de 90% dos componentes eram negros e nativos», Enedino, ao ser perguntado se havia mais negros ou não, respondeu: «era todo mundo misturado». Até o momento da pesquisa, as fontes cotejadas, sobretudo as iconográficas, consolidam mais o testemunho de João Paulo. No entanto, na pespectiva de Enedino, a valorização dos negros, possivelmente, passava pela referencialização da branquitude. Parte do seu sistema de entendimento de afirmação estava ancorada no reconhecimento de pessoas que faziam parte da elite dominante naquele meio social. Seu esforço por igualdade social passava por um apagamento das diferenças etnicorraciais. Na maior parte da entrevista, ele aludiu tanto sua relação com esses sujeitos de destaque social quanto aos companheiros das batucadas, ou talvez menos a estes últimos.

Em outras palavras, o que parece ter sido guia para a reconstrução do passado no relato de Enedino, foi sua condição de ser cidadão capaz de ter participado da história do lugar e do tempo em que viveu, tendo sido reconhecido por seus pares e por aqueles que ocupavam lugares de poder naquele meio social. A categoria «cidadão» aparece como um esforço de compreensão usando uma linguagem contemporânea. No discurso de Enedino, talvez se situasse melhor o conceito de «viver sobre si»68, muito utilizado por aqueles que haviam conhecido de perto a experiência do cativeiro na passagem do séc. XIX para o XX.

Conceitos como racismo, que subjazem no relato de João Paulo, que aparecem como enunciados secundários aos enunciados tornados frases na entrevista, não aparecem, ou adquirem sentido diverso, na operação de Enedino. Se para João Paulo a afirmação social dos negros passava por reconhecer as diferenças etnicorraciais, para Enedino passava por apagá-las. Possivelmente, ele mesmo participava de uma corrente de linguagem que inferiorizava negros e mestiços, como era comum à sua geração e mesmo a muitas pessoas dos dias atuais. Assim mesmo, sua trajetória como homem negro, vivendo num bairro periférico de uma cidade do nordeste brasileiro, que se torna popular e respeitado em diversos setores como importante agente social, diz respeito às conquistas de cidadania.

Conclusão

A memória, enquanto fenômeno biopsíquico e simbólico, é uma construção imersa no tema da passagem do tempo e da inscrição; possui traços emocionais e pulsões condicionadas ao mesmo tempo em que é institucionalmente regulada por molduras sociohistóricas. Na atualidade, não está conformada como uma ciência específica, outrossim, atravessa as outras ciências, e se situa num campo de disputas, seja socialmente, como instrumento de poder apropriada por diferentes grupos sociais, seja academicamente, como uma área do conhecimento em construção. Pode-se falar em multimodalidade da memória enquanto lugar de produção de ciência.

Para as pesquisas ligadas aos fenômenos sociais pós-abolicionistas interessa, sobremaneira, a relação entre memória e história. Tanto na história como na memória ocorre um paradoxo que une as duas categorias, como é observado por Gilles Deleuze, citado por Ricoeur: «O passado é contemporâneo do presente que ele foi... o passado nunca se constituiria se não coexistisse com o presente do qual ele é o passado»69. Entre as várias diferenças que percorrem a relação memória e história, sobressai o caráter de operação intelectual/científico investida na história em oposição a evocação da memória.

A história nasce da memória para ganhar autonomia conforme aumentam nas sociedades os usos da escrita. Quanto mais claras ficam as periodizações mais se investe uma visão linear à história e a História aparece como ciência angustiada, às vezes se percebendo emaranhada com a memória, outras lutando para sair do seu campo gravitacional. Para Krzystof Pomian, a história deixou de ser parte da memória e a memória tornou-se parte da história70. Tal raciocínio perde de vista a memória coletiva e os processos de identidade em que a história continua imersa, como se percebe na operação de representâncias das batucadas acionadas por Enedino e João Paulo. Sem acionar categorias por dentro da memória não seria possível pesquisar adequadamente o objeto proposto neste artigo e na tese da qual ele faz parte. Assim como a maioria dos estudos culturais ficaria amputada de parte de seus significados.

Buscou-se demonstrar neste artigo a validade da tríade memória-história-memória na construção da categoria memória historiográfica, defendendo que não apenas a história nasce na memória, mas retorna a ela, daí a validade de pensar a história das associações negras e mestiças, no processo de carnavalização da segunda metade do século XX, em termos de uma história do pós-abolição sustentado pela temática das lutas por liberdade e cidadania. Propõe-se, aqui, um apaziguamento da angústia epistemológica da História e seu retorno suave à memória, sem culpa.

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Entrevistas

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* Este artigo é fruto das pesquisas realizadas para a composição da tese de doutorado: O carnaval era mil maravilha! Onde se investigam as representações das associações negras e mestiças da cidade de Vitória da Conquista (Brasil) entre trânsitos políticos e culturais no processo de carnavalização na segunda metade do século XX. A pesquisa se desenvolve no âmbito do Programa de Pós-graduação em Memória: Linguagem e Sociedade (PPGMLS) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) e conta com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB) na forma de bolsa de estudos.

1Para Amilcar Pereira, o movimento social negro passou por três fases distintas. A última fase ocorrida a partir de 1970, teria instaurado uma busca por reconhecimento e afirmação das identidades negras. Amílcar Araújo Pereira, «"O mundo negro": a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil (1970-1995)» (Tese Doutorado em História, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010), 80-97.

2Flávio dos Santos Gomes e Petrônio Domingues, Da nitidez e invisibilidade: legados dopós-emancipação no Brasil (Belo Horizonte: Fino Traço, 2013), 1-380.

3Olivia Maria Gomes da Cunha e Flávio dos Santos Gomes, Quase cidadãos: histórias e antropologia da pós-emancipação no Brasil (Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007), 1-452.

4Marcus Vinícius Fonseca e Surya Aaronovich Pombo de Barroas, orgs., A história da educação dos negros no Brasil (Niterói: EdUFF, 2016), 1-442.

5Lilian Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes, Dicionário da escravidão e liberdade (São Paulo: Cia das Letras, 2018), 1-513.

6Lilian Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling, Brasil: uma biografia (São Paulo: Cia das Letras, 2015), 1-694.

7Paul Ricoeur, A memória, a história, o esquecimento (Campinas: Unicamp, 2007), 1-534.

8No Brasil, a escravidão foi extinta, na forma da lei, em 13 de maio de 1988, conhecida como Lei Áurea. A historiografia tradicional considera como período pós-abolicionista o que ocorre desde então até a década de 1930. Brasil. Lei Imperial n° 3.353/1888, de 13 de maio, Lei Áurea, acesso em 08 de junho de 2020, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM3353.htm.

9Maurice Halbwachs, A memória coletiva (São Paulo: Editora Centauro, 2006), 189.

10Wlamyra R. de Albuquerque, O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil (São Paulo: Cia das Letras, 2009), 13.

11João Paulo Pereira (professor, 48 anos), entrevistado por Alberto Bomfim da Silva, 08 de novembro de 2017.

12Enedino Ribeiro dos Santos (chapa, 84 anos), entrevistado por Alberto Bomfim da Silva, 14 de julho de 2018.

13O título da tese de doutorado em memória, com a qual este artigo se articula, «O carnaval, ave Maria, era mil maravilha!» surgiu num momento de descontração e de evocações dionisíacas do carnaval, durante esta entrevista.

14Pereira, entrevistado.

15Pereira, entrevistado.

16Milton Araújo Moura, «A Música como Eixo de Integração Diferencial no Carnaval de Salvador», CADERNO CRH, n° 24/25 (1996): 186.

17Pereira, entrevistado.

18Pereira, entrevistado.

19Michel Foucault, A arqueologia do saber (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013), 60.

20Sírio Possenti, Os Limites do Discurso: ensaios sobre discurso e sujeito (Curitiba: Criar edições, 2004), 183.

21Mikhail Mikhailovicht Bakhtin, Cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais (São Paulo: Hucitec, 2013), 11.

22Ribeiro dos Santos, entrevistado.

23Chapa, era como se denominavam os trabalhadores que carregavam e descarregavam os caminhões que chegavam à feira. Esta foi na maior parte do tempo a ocupação profissional de Enedino.

24Ribeiro dos Santos, entrevistado.

25Ribeiro dos Santos, entrevistado.

26APMVC, «Código de posturas municipais de Vitória da Conquista, 1954», 19-20.

27O documento não especifica o que é considerado família. Tomo aqui a expressão «família burguesa» pensando com Friedrich Engels, na família nuclear que passa a existir conforme às demandas de uma sociedade capitalista moderna entrelaçada à construção moral cristã. Friedrich Engels, A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Trabalho relacionado com as investigações de L. H. Morgan, 9. ed., trad. Leandro Konder (Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1984), 66-90.

28Mikhailovicht Bakhtin, Cultura popular..., 11.

29Dionísia de Oliveira Silva (1936-2012), vendedora de acarajé, foi uma importante agente social enquanto referência de mulher negra na história conquistense, é reconhecida popularmente como Dona Dió - Entrevista concedida em 19 de maio de 2000 para Rosalvo Lemos (Rosalvo Lemos, «As batucadas em Vitória da Conquista: identidades culturais, ritmos e representações» (Dissertação de Mestrado, Unirio/ Uesb, 2001, 97).

30Lemos, «As batucadas em Vitória da Conquista...», 63.

31Flávio José dos Passos, «Beco de (vò) Dola: Territorialidade e ancestralidade negra em Vitória da Conquista» (Dissertação de mestrado em Ciências Sociais apresentado à PUC de São Paulo, 2012).

32Jonatan dos Santos Silva, «"Capoeira não pede bênção a coronel": os Mestres e a Memória da disseminação da Capoeira em Vitória da Conquista-BA (1950-2000)» (Dissertação de Mestrado apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia — UESB, 2018).

33Várias informações do IBGE, da Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista, UnB, SEPPIR , INCRA, APNs e outros registros são apresentados para fundamentar essa configuração social que opera no sentido da construção dessa invisibilidade como apontado na dissertação de mestrado de Alberto Bomfim da Silva, «Os Agentes de Pastoral Negros (APNs) de Vitória da Conquista (1986-2010)» (Dissertação mestrado, Programa de Pós-graduação em Letras: Cultura, Educação e Linguagens, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Vitória da Conquista, 2015).

34Mozart Tanajura, Histórias da Conquista: crônicas de uma cidade (Vitória da Conquista: Gráfica Brasil, 1992), 1-267.

35Aníbal Lopes Viana, Revista Histórica de Conquista. Vol. 2. Cópia Impressa -Museu Regional de Vitória da Conquista, (1982).

36Ruy Hermam Medeiros e Humberto J. Fonseca, O município da Vitória (Vitória da Conquista: Museu Regional de Vitória da conquista/Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, 1996) 1-149.

37Maria Aparecida de Sousa, A Conquista do Sertão da Ressaca: povoamento e posse da terra no interior da Bahia (Vitória da Conquista: Edições UESB, 2001), 1-220.

38Constantemente Vitória da Conquista é referida pelos seus jornais e pelos extratos médios ou mais aquinhoados, nos dias atuais, como «Suíça baiana», supostamente por associação ao seu clima frio. Com tantos países de clima frio no mundo, alguns na América Latina, historicamente, geograficamente e culturalmente mais próximos, por que razão a elite social e a imprensa local preferem se espelhar num país «civilizado», europeu, rico e branco?

39Gomes e Petrônio Domingues, Da nitidez e invisibilidade..., 48.

40Gomes e Petrônio Domingues, Da nitidez e invisibilidade..., 19.

41BRASIL. Lei Complementar n° 150/2015, de 1a de junho, acesso em 08 de julho de 2020, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp150.htm.

42Albuquerque, O jogo da dissimulação...,123.

43Lilian Moritz Schwarcz, O espetáculo das raças: cientistas, instituições, e a questão racial no Brasil 1870-1930 (São Paulo: Companhia das Letras, 1993), 1-373.

44«BRASIL. Ministério da Educação,» Base Nacional Comum Curricular, acesso em 01 de novembro de 2018, http://basenacionalcomum.mec.gov.br/wp-content/uploads/2018/02/bncc-20dez-site.pdf.

45José Murilo de Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013), 1-236.

46Raymundo Faoro, Os donos do poder: formação do patrimônio político brasileiro (São Paulo: Globo, 2012.), 1-750.

47«075. História e Culturas Políticas no Brasil Republicano,» 30 Simpósio Nacional de História, acessado em 4 de março de 2019, https://www.snh2019.anpuh.org/simposio/view?ID_SIMPOSIO=198.

48Ricoeur, A memória... , 404.

49Jacques Le Goff, História e Memória, 7ed. (São Paulo: Unicamp, 2003), 423.

50Pierre Nora, Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História, v. 10 (São Paulo: PUC, 1993), 9-12.

51Nora, Entre memória..., 14.

52Ruy Hermann Araújo Medeiros, «História Compartilhada e Memória: entre Alienação e Ideologia» (Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, 2015), 7.

53Ricoeur, A memória, a história..., 48.

54Nora, Entre memória... , 14.

55Foucault, A arqueologia..., 74.

56Pierre Bourdieu, Le sens pratique (Paris: Minuit, 1980), 88.

57Henri Bergson, Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito (São Paulo: Martins Fontes, 1999), 69.

58Thomas S. Kuhn, A estrutura das revoluções científicas (São Paulo: Perspectiva, 1998), 21.

59Michel Foucault, A ordem do discurso (São Paulo: Edições Loyola, 1996),1-79.

60Boaventura de Sousa Santos, Um discurso sobre as ciências, 7° ed. (São Paulo: Cortez, 2010), 22.

61Bourdieu, Le sens..., 88.

62Halbwachs, A memória coletiva..., 30.

63Hebe Mattos, Das Cores do silêncio. Os significados da liberdade no Sudeste escravista - Brasil, século XIX (São Paulo: Editora da Unicamp, 2013), 101.

64Pereira, «"O mundo negro"...», 80-87. Petrônio Domingues, «Um "TEMPLO DE LUZ": Frente Negra Brasileira (1931-1937) e a questão da educação», In A história da educação dos negros no Brasil, orgs. Marcus Vinícius Fonseca, Surya Aaronovich Pombo de Barros (Niterói: EdUFF, 2016), 329-362.

65Edson Farias, «Multimodalidade da Memória e a Sociologia dos a Priori Sociais», Arquivos do CMD vol. 4, n° 1 (2016): 139.

66Ricoeur, A memória, a história... , 420.

67Ricoeur, A memória, a história... , 420.

68Mattos, Das Cores do silêncio...., 50.

69Ricoeur, A memória, a história..., 442.

70Ricoeur, A memória a história..., 399.

Citar este artículo: Bomfim da Silva, Alberto, y Edson Farias. «Contribuições de um carnaval do interior para a perspectiva da memória historiográfica pós-abolicionista nos séculos XX e XXI». Historia Y MEMORIA, n° 24 (2022): 227-264. DOI: https:/doi.org/10.19053/20275137.n24.2022.10781.

Recebido: 23 de Março de 2020; Revisado: 02 de Julho de 2020; Aceito: 12 de Dezembro de 2020

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