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Trilogía Ciencia Tecnología Sociedad

On-line version ISSN 2145-7778

Trilogía. Cienc. Tecnol. Soc. vol.14 no.28 Medellín Sep./Dec. 2022  Epub Feb 21, 2020

https://doi.org/10.22430/21457778.2580 

Entrevista

”Você tem uma ampliação muito grande do campo na América Latina, mas você tem uma visão cada vez menos crítica”

“You have a very large expansion of the field in Latin America, and at the same time, you have an increasingly less critical view”

1 Doutoranda em Política Científica e Tecnológica pelo Departamento de Política Científica e Tecnológica, Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, São Paulo, Brasil, dibbern.thais@gmail.com

2 Doutora em Política Científica e Tecnológica. Professora colaboradora - Aposentada, Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, São Paulo, Brasil, velho@ige.unicamp.br


Resumo:

Nesta entrevista, Léa Velho fala sobre sua trajetória profissional e sua relação com o campo dos Estudos de Ciência e Tecnologia (CTS), relata sobre suas principais influências teóricas, suas principais conquistas profissionais e suas contribuições ao campo. Através de uma série de reflexões, Velho apresenta suas percepções sobre a atuação da comunidade nacional e latino-americana do campo CTS, bem como sobre a forma como este influencia na elaboração de políticas públicas. Trata, ainda, sobre a relação estabelecida entre esta comunidade em relação às redes internacionais. Ao final, traça suas considerações sobre o futuro do campo, apresentando quais devem ser as prioridades e urgências em termos de agenda de pesquisa e de política de ciência e tecnologia.

Palavras-chave: CTS-Brasil; Léa Velho; política científica e tecnológica; políticas públicas

Abstract:

In this interview, Léa Velho talks about her professional background and involvement with the field of Science and Technology Studies (STS), shares her main theoretical influences, her main professional achievements, and her contributions to the field. Velho reflects on the achievements of the national and Latin American community in the field of CTS, as well as how it influences public policymaking. It also deals with the relationship between this community and international networks. At the end, she exposes her considerations about the future of the field, presenting what should be the priorities and urgencies in terms of research agenda and science and technology policy.

Keywords: CTS-Brazil; Léa Velho; science and technology policy; public policies

TAD Professora Léa, eu gostaria de agradecer a oportunidade de estar falando aqui com a senhora. Para mim é uma honra. A primeira questão se refere à sua trajetória pessoal e profissional junto ao campo CTS. Poderia comentar sobre a sua trajetória de formação?

LV Eu tenho uma trajetória de formação, desde a graduação, um pouco conturbada, que tem a ver com a minha história de vida. Sempre quis fazer medicina ou alguma área da biologia. Mas, no último ano do científico, eu vim para os Estados Unidos com uma bolsa de estudos da American Field Service. Fiz o último ano de high school em 1969 nos Estados Unidos e aí eu descobri um mundo. Isso era em plena ditadura militar, você imagina que eu voltei em 1970. Nessas alturas, o Brasil estava sendo governado pelo Médici. Então, era uma situação em que a gente não tinha no Brasil nem notícia de jornal. E eu caí num grupo, nos Estados Unidos, que era um grupo de pessoas ativistas, um pouco hippie, mas com muito interesse no que estava se passando no mundo. E comecei a descobrir uma porção de coisas sobre o Brasil que eu não sabia, como o genocídio indígena, como todos os tipos de tortura que o país estava passando, porque eu tinha uma amiga alemã que recebia literatura e a gente tinha um grupo e discutia, e aí eu comecei a ficar interessada em ciências sociais, que era uma coisa que eu nunca tinha pensado. Quando eu voltei para o Brasil, fiz vestibular para Ciências Sociais no que hoje é a Universidade Estadual Paulista (UNESP) de Araraquara. Eu morava em Ribeirão Preto, mas na verdade, naquela época era ainda um instituto isolado do estado de São Paulo, que tinha professores fantásticos. E Ciências Sociais em 1970... era um local de gente muito crítica, quem fazia Ciências Sociais. Os professores eram professores da Universidade de São Paulo (USP) que davam aula lá também, e eram cursos que eu amava.

Mas o que aconteceu é que no final do primeiro ano eu engravidei e me casei. E aí, meu marido fazia agronomia na UNESP de Jaboticabal, e eu comecei, então, a viajar grávida, de Jaboticabal para Araraquara, até que a coisa complicou. Não deu mais pra fazer, e eu resolvi, então, fazer um outro vestibular para Ciências Agrárias, para Agronomia. Então larguei no segundo ano de Ciências Sociais e fui fazer Agronomia. Aí, como eu sempre gostei de biologia, eu me dei hiper bem nas ciências, eu adorava, era super boa em fitopatologia, gostava daquilo, e me formei em três anos e meio, que foi uma coisa inédita em Jaboticabal na época. Eu consegui os créditos para me formar em três anos e meio, e aí eu já entrei no mestrado direto, que foi o primeiro ano do mestrado em Produção Vegetal que a UNESP de Jaboticabal colocou. Bom, nesse meio de mestrado, meu marido já estava trabalhando numa usina, ele teve uma proposta para mudar para Brasília, para ser o responsável pela Estação Experimental de Cana de Açúcar no Cerrado, e no antigo Planalsucar, Instituto do Açúcar e do Álcool, que não existe mais. E ele foi lá e eu larguei meu emprego na UNESP. Nessa altura, eu já era professora na UNESP, porque naquela época a gente entrava como auxiliar de ensino e fazia carreira de professora, não tinha que ter doutorado para entrar. Eu estava fazendo mestrado quando eu entrei. Eu larguei o emprego, fui para Brasília, prestei concurso na Universidade de Brasília (UNB), fui ser professora de Ciências Agrárias na UNB. Acontece que a Universidade de Brasília, naquela época, era um lugar muito ruim de se trabalhar do ponto de vista de perseguição política. E eu estava me sentindo muito ruim, a barra era muito pesada, quando um amigo que trabalhava no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) me disse: o CNPq todo está sendo transferido do Rio de Janeiro para Brasília e muita gente do Rio não vai vir, então eles estão abrindo uma vaga para uma analista de Ciências Agrárias, analista de C e T em Ciências Agrárias. Aí eu prestei e me candidatei para essa vaga. Naquela época, antes da Constituição de 1988, ainda era um processo seletivo, não era concurso. E aí, bom, eu fui selecionada e comecei a trabalhar no CNPq.

Isso tudo para te dizer como é que foi a minha entrada em estudos de Ciência e Tecnologia. Ela foi muito modelada pelas circunstâncias de vida que eu vivi. Então, quando eu entrei na ciência e tecnologia, eu entrei pela prática da política científica. Eu comecei a trabalhar no CNPq como analista de política científica. Eu conhecia razoavelmente as coisas técnicas de Ciências Agrárias, sempre fui super boa aluna, já tinha mestrado e... eu era a única, eram muito poucas pessoas que tinham um mestrado em Ciências Agrárias, e estou falando de 1978. Então eu era uma boa técnica, aprendi logo, e a gente tinha um grupo no CNPq, cada um cuidava de uma área, e eu era a única que só tinha mestrado. Eu era a mais nova, eu tinha 26 anos. Então a gente tinha grupos de estudo e toda semana a gente lia um texto sobre política científica, lia sobre indicadores, lia sobre peer review, lia os textos do Merton... a gente discutia sobre o que era a nossa prática, o que nós estávamos fazendo. E bom, quando foi em 1980, eu sentia uma certa pressão para eu também ter o doutorado, porque o respeito dos comitês de assessores pelos técnicos tinha a ver com eles reconhecerem os técnicos como sendo seus pares ou não. E eu era a única que não conversava com o comitê assessor, sendo doutora também. E aí o CNPq deu essa chance de eu fazer o doutorado, e eu fui fazer o doutorado em Política Científica e Tecnológica. Nessa época, um dos poucos programas realmente sobre política de ciência e tecnologia era o programa do Science Policy Research Unit (SPRU), na Universidade de Sussex. Então, eu fui fazer o doutorado lá. Quer dizer, quando eu fui fazer o doutorado, eu já trazia comigo pelo menos quase cinco anos de prática na política científica, e de questões que se colocavam naquele meu dia a dia lidando com a comunidade de Ciências Agrárias; eu cuidava das Ciências Agrárias, da Veterinária, da Zootecnia, da Engenharia Florestal, do Meio Ambiente. Então, várias áreas afins que eu lidava. Aí eu, vamos dizer assim, fui da prática para uma reflexão teórica sobre as questões que o dia a dia do trabalho no CNPq colocavam para mim. E bom, aí eu escrevi uma tese sobre a comunidade científica agrícola, onde eu trabalhava muito com os indicadores de ciência e tecnologia. Foi o primeiro estudo, talvez, que foi feito, bem abrangente, sobre como que os pesquisadores da área agrícola nas universidades se comunicavam entre si, se comunicavam com os parceiros no âmbito nacional e internacional, como era o padrão de coautoria nacional e internacional, como eles escolhiam a sua agenda de pesquisa, quais eram as influências que eles tinham na construção da agenda. E aí, foi uma pesquisa que, talvez por ser inédita na época que ela foi feita, ela teve bastante repercussão. Eu consegui publicar bons artigos em revistas importantes, e voltei para o Brasil.

Quando eu voltei para o Brasil, em 1985, o CNPq estava uma instituição muito diferente, pois já estavam ampliando muito as ações do CNPq. Enfim, foi ficando um lugar onde os técnicos tinham muito menos interferência na relação com a área que eles cobriam. Porque nos velhos tempos, eu visitava os projetos das universidades, entendeu? Já foi ficando uma instituição muito mais burocrática, onde os técnicos eram mais repassadores de papel do que realmente tinham alguma atuação.

Bom, daí pra frente eu fui fazer um pós-doc na Universidade de Edimburgo, na Science Studies Unit. Comecei a trabalhar, além de indicadores, com a questão da relação universidade-setor produtivo, que era um tema quente naquela época. Quando eu voltei, em 1990, foi criado o Ministério da Ciência e Tecnologia. Aí, o CNPq realmente perdeu sua função de cabeça de sistema, e eu perdi totalmente o interesse, eu não tinha espaço. Aí eu já tinha pegado o gosto pela pesquisa, e já tinha publicado bastante. Nesse momento, a Hebe Vessuri, que era a professora do nosso programa, resolveu voltar para a Venezuela, e eles estavam precisando de uma pessoa que trabalhasse com Sociologia da Ciência, Estudos Sociais da Ciência, um pouco com essas questões. Eu já conhecia a Hebe de reuniões e troca de mensagens. E eu fui, com um afastamento do CNPq por três meses, porque o Fernando Collor de Mello tinha proibido qualquer seção de funcionários de um órgão para o outro. Mas eu consegui esse afastamento de três meses, eu fiquei três meses recebendo meu salário do CNPq e trabalhando na Universidade de Campinas (UNICAMP) até que a UNICAMP criasse a vaga para mim ou abrisse o concurso, o processo seletivo. Finalmente saiu o processo seletivo e eu fui contratada. Bom, mais ou menos é essa saga, é longa, eu tenho 70 anos, você vai ter que escutar... só pra dizer o seguinte, quer dizer, a minha vida deu muita volta. Eu já quis fazer uma coisa em ciência, depois eu fui para Ciências Sociais, depois eu voltei para a área mais científica. E até que eu, quando caí na política científica, foi o lugar onde eu me encontrei como técnica e como acadêmica. Mas eu entrei nessa área pela prática da política científica. Não foi um interesse, assim, acadêmico que surgiu pra mim. Foi muito mais pela prática.

TAD Professora, pode ficar à vontade para falar sobre sua trajetória. A próxima pergunta tem a ver com essa primeira questão. A senhora poderia indicar quem foi ou quem foram suas principais influências ao longo desse caminho? Quais são os principais trabalhos que você tem em mente que te influenciaram a seguir essa carreira acadêmica?

LV Eu fiz o meu doutorado numa época em que o campo estava muito em transição, percebe? Quando eu cheguei no SPRU a gente estava... toda a Sociologia da Ciência, os Estudos Sociais da Ciência... eu cheguei no SPRU em 1981, então toda essa área estava passando por uma mudança paradigmática de onde deixou-se de entender a ciência como neutra, para ela passar a uma posição de uma ciência mais socialmente construída, foi exatamente nessa reviravolta. Era quando, vamos dizer assim, as influências do Kuhn, as influências do Mike Mulkay estavam realmente tomando conta dos meios que trabalhavam com essa questão, entendeu? Então, por exemplo, a minha tese de doutorado, ela ainda se baseia, vamos dizer assim, numa sociologia da ciência mertoniana, mas ela é muito crítica da sociologia mertoniana, a gente estava passando por esse processo. Era quando o primeiro livro do Latour saiu um pouco antes, em 1975, ‘76, entendeu? Ainda não tinha aquela influência; a nova sociologia da ciência do Barnes e Bloor, a nova sociologia da ciência do Collins, era uma coisa assim, ainda que não estava consolidada no meio. A Antropologia da Ciência ainda nem existia. Então, eu estudei exatamente nessa transição, e os debates que eu vi e que eu consegui escutar dentro do SPRU eram debates muito ricos. A minha formação foi num período muito rico e eu consegui testemunhar isso e vi isso acontecer, por exemplo, o Freeman, eu vi a primeira apresentação do Freeman sobre a ideia dele de sistema nacional de inovação. Eu era colega do italiano Giovanni Dosi, ele era meu colega do doutorado, entendeu? O Luc Soete, Pavitt ainda era muito jovem, o Lundvall não estava nem escrevendo ainda sobre sistema de inovação, entendeu? Então, o SPRU era um lugar onde essas coisas aconteciam, principalmente com relação a essa coisa da Economia da Tecnologia. A Sociologia da Ciência nem era uma coisa que se discutia muito lá, mas a Escola de Edimburgo era ali do lado, então o SPRU trazia essas pessoas para falar. Eu vi o Collins falar quando ele ainda era um cara de 40 anos, entendeu? Eu tive aula com o Freeman, que, por sua vez, sabe, estudou com os economistas. Você ficava muito contagiado pelo que estava acontecendo. Porque era um burburinho constante. Então, eu acho que esse entusiasmo desse debate aberto, desse debate que eu vi acontecer, acho que foi a coisa que mais me atraiu para academia. Outras coisas da academia eu achava extremamente chato, mas essa coisa assim, um pouco arrogante, essa coisa um pouco competitiva, que na Inglaterra é muito melhor do que nos Estados Unidos. Mas ali eu percebia que era, naquele momento específico, um desejo real de construir uma coisa nova através do debate. Então, eu acho que foi isso que me atraiu. E a outra coisa que me atraiu para a vida acadêmica é que eu sou uma pessoa muito independente. Eu odeio que digam para mim o que eu tenho que fazer. E serviço público é uma coisa complicada, eu sei por que depois disso eu trabalhei nas Nações Unidas, eu vi bem como é que é, eu fiquei quatro anos nas Nações Unidas e não é o meu estilo. Então essa independência acadêmica, essa coisa de que você escolhe seu objeto, você tem que ser séria, ética, trabalhar duro, mas é a sua escolha. Isso me levou pela minha vida inteira, porque agora, por exemplo, eu estou com 70 anos, eu tenho um monte de colega que ainda trabalha. Eu resolvi que eu só estudo as coisas que me interessam mesmo, sabe? Eu não pego consultoria, eu não faço nada que não me interesse mesmo, porque agora eu posso fazer isso. Quando eu dava aula era mais difícil, porque eu tinha os interesses dos alunos que eu tinha que atender, as teses, com os temas que eles faziam, e eu cansei de fazer coisas que eu não gostava de fazer. Não só por causa dos alunos, mas por causa, principalmente, da burocracia da universidade, e comissão disso, e comissão daquilo, coleta dados..., mas eu gosto da coisa acadêmica, da coisa intelectual, da coisa de estudar, de discutir. Acho que só a academia te dá isso. Não sei se eu estou respondendo direito, Thais, se eu estou divagando muito, me fala.

TAD Não, está ótimo, professora. Dentro ainda dessa sua trajetória pessoal e profissional na área, eu gostaria de saber quais são as suas principais conquistas e marcos profissionais no âmbito da sua carreira. O que a senhora considera o seu maior feito dentro do campo CTS?

LV Eu não sei... eu acho que uma área que contribuí muito cedo foi essa área de reflexão sobre indicadores, sabe? Quando eu comecei a escrever sobre indicadores científicos, eu estudei muito. Eu li tudo o que tinha. E eu acho que eu escrevi alguns textos que são seminais nessa área com relação à perspectiva de indicadores, do uso de indicadores científicos desenvolvidos como se a ciência não tivesse contexto, está certo? Quando eu digo que eu escrevi uns papers importantes, não quer dizer que eles tenham tido grande impacto na política em si. Porque muito cedo eu advertia que a gente não deveria estar usando os indicadores que a gente está usando e a política cada vez se baseou mais nesses indicadores. Isso foi uma das coisas que me desanimou um pouco na vida acadêmica, porque, ainda que eu ame a vida acadêmica, talvez por causa da minha entrada, da maneira que eu entrei nela, eu sempre fiz pesquisa com um olho em fornecer subsídios para a política. Então assim, ainda que use instrumentos da Sociologia da Ciência, eu sempre usei esse olhar mais sociológico, mas o meu objetivo sempre foi poder fornecer subsídios para a política. Então, o Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT), para mim era um sonho, porque eu entrava no DPCT e tinha a sensação de “eu pertenço”, a esse lugar eu pertenço. Esse lugar tem o nome daquilo que eu quero contribuir nesse mundo, que era a política científica, entendeu? Mas todo o meu trabalho com indicadores, que durou bastante tempo, fui convidada para muitas coisas. Eu fiz o primeiro projeto de avaliação piloto da USP. A minha contribuição na questão de indicadores, a minha produção nessa área é muito grande, a minha reflexão, os meus textos, a minha crítica..., mas eu, de fato, nunca consegui que isso tivesse um impacto na política. Eu fui, por exemplo, nas reuniões de avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), eu achava aquilo um absurdo. Eu não conseguia nem ficar lá, eu passava mal com esse uso indiscriminado. Assim, virou pra alguma coisa quantitativista. É claro que eu não quero que todo mundo pense igual a mim, mas eu estou dando argumentos científicos. Eu estou mostrando como é que a coisa funciona. Eu olhava aquilo e falava “eu não acredito que nós estamos fazendo isso!”. Aí eu resolvi largar os indicadores, aí, encheu meu saco.

Acho que eu não tenho mais nada para falar de indicadores, vamos falar de outras coisas interessantes. Aí o fato de virar professora foi muito bom, porque ampliou muito meus horizontes, meus interesses de pesquisa. Eu fiz muita consultoria internacional, trabalhei muito com cooperação científica em ciência e tecnologia. Cooperação internacional acho que foi outra contribuição importante que eu dei, entender não só o olhar a cooperação internacional através de produção co-autorada, mas olhar realmente o que acontece? como essa agenda é negociada? quem paga o quê? quem entra com o quê? quem são os primeiros autores? E eu fiz isso para o caso da Amazônia, eu amei fazer, quando trabalhei com a cooperação internacional na Amazônia, eu fiquei bastante tempo trabalhando. Depois trabalhei em outros países sobre cooperação internacional. Quando eu estava no INTEC, na Universidade das Nações Unidas, em Maastricht, eu trabalhei com a cooperação internacional em vários países da África, em vários países da América Latina, na Bolívia, na Nicarágua; entendi o papel das agências de cooperação na construção da agenda de pesquisa. Então, assim, eu acho que eu ainda sou uma referência com relação a esses temas.

Ainda que eu não tenha feito muito sobre mulheres da ciência, eu fui um pouco pioneira nisso; trabalhar com mulheres na ciência, no estudo que a gente fez sobre a Universidade de Campinas, então assim, meio que eu introduzi o tema no Departamento. Se o que eu fiz tem grande relevância, eu não sei. Eu tenho a meu favor o fato de que eu sou velha, de que quando eu comecei na área tinha muita pouca gente na área, entendeu? E que eu tive assim um pouco de clareza, isso eu posso dizer que eu sou pioneira, eu fui pioneira em abrir muitas áreas de pesquisa, inclusive no Departamento, para que as pessoas que viessem depois de mim, os próprios alunos, tivessem um elenco de coisas que eles pudessem se interessar. O Departamento tendia a ser uma coisa só de olhar empresas, como é que era o processo de inovação no nível de empresa. Era muito mais com relação à área de Economia da Inovação e, um pouco seguindo aquele mito de sistema nacional de inovação, sem muita crítica se o modelo cabe. A crítica que eu fiz para os indicadores eu acho que muito poucos no Brasil fizeram sobre o modelo de tecnologia da inovação, de economia da inovação, sistemas nacionais de inovação, arranjos produtivos locais, ou o que seja. Então, eu acho que se eu fiz alguma contribuição, foi isso: ampliar os horizontes, ser crítica na apropriação de referenciais teóricos e metodológicos dos países avançados nas nossas condições sem muita reflexão sobre o que está sendo feito. Se a gente acredita que a ciência é socialmente construída, como é que a gente importa referenciais sem nenhuma reflexão sobre o contexto em que eles vão ser aplicados? Entendeu? Acho que talvez tenha sido isso. Essa visão mais crítica sobre esses referenciais. Conhecer os referenciais, sim, mas ser crítico e saber se faz sentido que eles sejam aplicados naquelas condições. Quais são os conceitos por trás dos indicadores? Acho que foi uma contribuição grande que eu dei foi trabalhar com as bases conceituais: um número não é só um número. Ele tem uma base conceitual. Esse número, ele quer dizer alguma coisa. E ele foi construído para dizer tal coisa. Ele está realmente dizendo isso nas nossas condições? Acho que é isso, Thais.

TAD Professora, a minha próxima pergunta tem um pouco a ver com o que acabou de comentar sobre essa questão da emulação da agenda. Eu queria saber o que pensa sobre o campo CTS na América Latina do passado e de hoje em dia. A senhora acredita que houve mudanças significativas no campo, principalmente quando se pensa nessa questão da emulação da agenda internacional de pesquisa? E de desenvolvimento?

LV Quando eu entrei no campo, ele era um campo bastante crítico naquela época. Quando você lê os pioneiros da política científica-tecnológica no país, ele é um campo bastante crítico nesse começo, com essas pessoas todas, como Amílcar Herrera. Mas, com o tempo, eu acho que o campo tendeu a normalizar um pouco, sabe? E essa política científica baseada em sistema de inovação, baseada em indicadores quantitativos, nessa visão mais, vamos dizer assim, mais importada, numa agenda de política científica que é um pouco importada de outros países. Eu acho que isso acabou virando mais tendência. Porque a produção aumentou muito e porque existem pessoas, autores ou escolas que são muito influentes no nível internacional, e tem essa tendência de que a gente tem que fazer o que eles estão fazendo, eu acho que a gente passou... o que não deixa de ser um paradoxo: você tem uma ampliação muito grande do campo na América Latina, mas você tem uma visão cada vez menos crítica, cada vez replicando estudos que são feitos lá atrás. E a produção científica é muito grande e tem estudos isolados, e tem pesquisadores importantes que são muito críticos aqui dentro; pegue a Hebe Vessuri, a contribuição da Hebe é toda muito crítica, mesmo o Pablo Kreimer, o Renato Dagnino...

Mas eu acho assim, que durante muito tempo... olha só. Você pega um trabalho, pega uma tese escrita no nosso Departamento, por exemplo. Eu já fui de algumas bancas onde as pessoas estão estudando um estudo de caso, vamos dizer assim, da biotecnologia. Ninguém fala nada do que está acontecendo na Argentina. Cita todos os trabalhos dos Estados Unidos e da Europa, ninguém fala nada do que está acontecendo na Argentina. É uma coisa muito louca, é uma visão assim, de que você olha sempre um mundo avançado, você nunca de fato tem uma reflexão sobre o contexto do seu país. O que está sendo feito? Tem muita coisa boa que está sendo feita na América Latina hoje nessa área. Hoje em dia você tem grupos importantes em todos os países. O Chile que era menos presente, hoje em dia já tem um grupo importante. Até a Bolívia tem um grupo importante. Então, em vários e vários desses países, a área cresceu muito. O brasileiro também sempre foi um pouco... sempre teve dificuldade de se encaixar como latino-americano. Eu falo sempre que eu precisei sair de São Paulo e ir para Brasília para descobrir o Brasil. Porque eu achava que São Paulo era o Brasil. Eu precisei morar na Inglaterra para descobrir a América Latina. Para descobrir como é que o mundo via a gente: que o mundo olhava o brasileiro como latino-americano, e conhecer, de fato, um monte de colegas latino-americanos que tinham estado lá e que estavam lá. Eu só me descobri latino-americana quando fui pra Inglaterra. Muito louco, me descobri brasileira quando eu fui para Brasília e me descobri latino-americana quando eu fui para a Inglaterra. É assim que o mundo olha a gente, mas não é assim que a gente se vê. A gente se vê muito mais com referência na Europa, na França, do que a gente se vê como referência na América Latina, embora a gente se localize na América Latina. Talvez isso esteja um pouco melhor agora, mas quando eu comecei, não era.

Também já tivemos a sorte de ter o professor Herrera na UNICAMP, que ele sempre lembrou a gente de que a gente era latino-americano. Quando eu falei das influências, eu não falei do Herrera, que foi uma influência muito grande, não só como intelectual. Durante a minha pesquisa de campo, ainda que eu fizesse doutorado na Inglaterra, foi com ele que eu discuti todo o meu questionário, pergunta por pergunta, ele me ajudou a fazer perguntas que tivessem sentido em revelar o contexto. E depois, quando eu cheguei na UNICAMP, o professor Herrera já não era mais o diretor, ele estava como professor, e eu dividia a sala com ele até ele morrer. Então, dividir a sala com o professor Herrera foi um dos grandes privilégios que eu tive na minha vida, porque ele não era só um pesquisador fantástico, ele era uma pessoa fora de série, uma pessoa que não se encontra todo dia, de uma sabedoria impressionante. Então acho que ele foi uma das grandes influências na minha vida, apesar de ele não ter sido meu orientador de fato. Mas ele me ajudou muito. Ele era um espelho, eu olhava e via como ele se comportava, eu via a generosidade dele com os alunos. Era uma coisa impressionante. A generosidade que ele tinha com as pessoas jovens, como ele tratava as meninas, sabe? Como ele achava que era importante que as mulheres viessem para o campo, que elas trouxessem a visão delas para o campo. Eu acho uma pena que os nossos alunos saibam tão pouco sobre o Herrera.

Agora, eu estou vendo uma reviravolta com essa coisa anticolonialista que está aparecendo hoje. Essa tentativa, que ainda é muito recente, de incorporar nos estudos de ciência uma visão anti-colonialista, uma visão mais feminista, uma visão de raça. Eu estou vendo essa preocupação, mas eu acho que ela ainda se manifesta de uma maneira muito leve. Nos estudos, de fato. Você pega, por exemplo, a cooperação internacional. Eu ainda leio muito sobre cooperação internacional, é muito raro passar uma semana que eu não leia três, quatro artigos nessa nossa área. E eu vejo, assim, que as pessoas ainda partem dessa visão de principalmente naquilo que procura informar a política científica, que a internacionalização da ciência é uma meta a ser alcançada. “O Brasil tem que estar inserido nas redes internacionais”. Eu não estou discutindo isso, mas isso é vago de um tanto. O que significa estar inserido nas redes internacionais? Significa estar inserido em que termos que a gente tem que estar inserida na rede internacional? Como é que se faz isso? Pra quê? Para atingir quais objetivos? O objetivo é estar lá? É publicar em coautoria? Se você olhar a participação da América Latina nos últimos 50 anos em cooperação internacional, ela aumentou muito de volume, mas em termos de papel executado por nós, não mudou. Não somos nós que estamos agindo. O Pablo Kreimer tem uma série de estudos sobre a participação do Brasil nos projetos da União Europeia, da Comunidade Europeia. E bom, nós ainda somos chamados de última hora para entrar numa rede, quando os objetivos já estão determinados, a metodologia já está determinada. Você vai coletar esses dados e a síntese vai ser feita pelo grupo na Suécia, na Espanha. Em qualquer outro lugar, certo? Então, sim, eu acho importante, eu acho que participar da ciência internacional é importante, acho que a colaboração é importante, mas assim, não é dado. Nenhum país pode ter como objetivo internacionalizar a sua coisa; “internacionalizar”, qualifique o que é isso: com a soberania, nas áreas que têm interesse para o país; nós vamos entrar com esse financiamento; as pessoas vão vir para cá; vamos colocar isso como que uma coisa tem que ser feita para atingir quais objetivos?

E com relação à teoria que domina a nossa área de conhecimento, as principais tendências, as principais linhas teóricas, eu acho ainda que essa submissão às redes de atores, Actor Network, isso é usado de uma maneira totalmente equivocada nas nossas condições. Eu acho que se tem uma coisa que nós temos falhado no nosso programa na América Latina, é uma construção teórica muito sólida. Teórica, eu acho que isso ainda a gente não conseguiu, não conseguiu no nosso programa. Eu sei que é difícil, porque nós temos alunos das mais variadas formações, gente que vem da área de, das áreas de ciências, das várias áreas de Ciências Sociais, da Comunicação, que têm as formações mais variadas. É muito difícil, mas eu acho que talvez a gente poderia ter menos disciplinas, mais estudos aprofundados, um pouco mais personalizados, e em vista das deficiências de cada um. Mas as pessoas vão ter que se debruçar mais tempo sobre teoria, entender e ser crítico se aquilo serve ou não para elas. Eu nem sei de quantas teses eu já fui banca. Eu orientei quase cem, entre mestrado e doutorado. E eu cansei de ver referenciais teóricos que eram totalmente descompassados do que a pessoa fazia com o seu capítulo empírico, com a sua coleta de dados e com tudo. Então, eu acho que isso é um problema que nós temos ainda que resolver e talvez não exigir mudar o formato da tese. Eu acho que nós não estamos numa situação muito fácil, e eu acho que nós temos que acompanhar a literatura, que está se diversificando, apesar das principais tendências, está se diversificando. Hoje as pessoas estão na infraestrutura, estão trabalhando com coisas muito variadas, que não se faziam antes, é muito difícil acompanhar isso tudo. Mas eu acho que no Brasil a gente ainda tem uma formação teórica deficitária em STS. E muito pouca atenção ao que é publicado na América Latina. Fazer essa conversa é uma coisa que ainda está para ser feita. E tem que ser crítico, tem que ser muito crítico.

TAD Obrigada, professora. Estou completamente de acordo. Dando continuidade às questões, na sua opinião, o campo CTS vem sendo bem-sucedido nessa parte de influenciar a elaboração de políticas públicas? Ou seja, elaborar políticas públicas que de fato são formuladas a partir de evidências científicas? Ou é algo que, por exemplo, no Brasil isso não acontece? Como que a senhora enxerga essa relação?

LV Olha só, eu acho que muitas áreas do conhecimento têm intenção de fazer essa ponte, de fornecer subsídios para a tomada de decisão. E não é um artigo que vai fazer isso. Assim, um artigo não tem poder de evidência para realmente sugerir ou ter intenção de fazer uma modificação. Eu acho que alguns órgãos no Brasil têm tentado escutar especialistas na hora de fazer a sua tomada de decisão. Por exemplo, o Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) como órgão ligado ao Ministério de Ciência e Tecnologia. A maioria dos recursos do CGEE historicamente veio do MCTI. Mas tem um certo vício das pessoas que são chamadas sempre consistentemente. E essas pessoas, ainda que sejam da comunidade, que façam estudos, e que tenham opiniões embasadas em evidência, etc., acaba um pouco viciando. São aquelas, evidentemente, aqueles que têm poder de convidar identificam como sendo interlocutores que interessam. Então, apesar de ter uma certa participação da comunidade, sempre acaba sendo um grupo muito seleto de pessoas. Uma vez eu fiz um levantamento, assim, só por curiosidade, entre os assessores da CAPES e os assessores do CNPq na tomada de decisão; existiu uma coincidência de mais de 50%, que também coincidia com a representação de São Paulo. Então, quer dizer, você tem um núcleo duro que está sempre resolvendo e influenciando. E a tendência é que esse núcleo duro sejam cientistas duros e não cientistas sociais. Eu me lembro que uma vez eu estava no CNPq e, numa reunião de alguma coisa, eu falei para um dos diretores, eu falei: “Vocês dão bolsa de produtividade para professores do nosso programa de Política Científica e Tecnológica. Vocês sabem que a gente existe e várias outras pessoas. Vocês dão bolsa de doutorado e mestrado para o nosso programa, vocês acham que é importante formar gente nessa área, porque vocês estão financiando. Mas quando vocês têm que tomar alguma decisão, vocês chamam o cara da Física? Não tem ninguém da Política Científica que possa vir aqui dizer o que está achando da coisa?”.

Se você quer ter alguma influência, as universidades, ou os programas que gostariam de ter um pouco mais influência nas políticas públicas, na influência na direção das políticas públicas, têm que escrever alguns dossiês de política que sejam dossiês de duas, três páginas e que sejam encaminhados, sejam parte da publicação de um determinado departamento. Quando eu estava no INTEC, a gente fazia isso sempre, eu publiquei vários dossiês de política. São os policy briefs, que você cria a partir da sua experiência em pesquisa. Claro que se você fizer isso no nível da ESOCITE, por exemplo... “vamos ver o que os pesquisadores latino-americanos têm encontrado sobre cooperação internacional. Vamos fazer um dossiê de cooperação internacional, está certo? Vamos ver o que o pessoal que está no Equador, tem um grupo no Equador, tem um grupo na Venezuela, tem na Argentina, no Brasil, vamos fazer uma meta”. Sabe que nem as Ciências Médicas fazem? O que é um meta-estudo nas Ciências Médicas? Fazer uma revisão de literatura de tudo que foi feito sobre o impacto da ivermectina na COVID, e dizer: os estudos são assim. Eles são casos, trabalham com uma população longitudinal. As conclusões deles são tais, convergem os resultados em tantos por cento... isso é fazer uma metanálise. Quem faz isso na nossa área? Na América Latina? Uma meta análise. O que é que já foi escrito sobre cooperação internacional em todos esses lugares que poderiam fazer uma síntese dos resultados e das perspectivas e dizer “gente, olha só. No final das contas, esses estudos mostram: de 1 a 6 isso aqui”, o que certamente nos levaria a pensar em políticas com essas características ou com aquelas. Então, para você realmente achar que você pode ter uma influência na política, você tem que trabalhar fazendo esses grandes resumos, essas grandes sínteses sobre as áreas que nós estamos coletivamente desenvolvendo de forma bastante espalhada. Eu escrevo uma coisa sobre cooperação, Pablo escreve outra, e eu trabalho com o INPA; ele trabalha com os programas da Comunidade Europeia; não sei quem trabalha com... sabe? Bom, e aí? Como é que o político faz para tirar a essência disso aí? O que é que isso tudo nos leva a concluir? O que a gente pode dizer? O que a gente pode dizer sobre mulheres na ciência? O que está acontecendo? Quais são os problemas? Por que elas não avançam? Porque é possível fazer um estudo meta sobre isso. E eu acho que são essas sínteses que uma organização tipo ESOCITE deveria nos levar a fazer. Sínteses latino-americanas. O que nós sabemos sobre mulheres na ciência? Como é que é a questão da cooperação internacional? Quais são as metodologias principais que nós estamos usando e isso está nos levando a o quê? Alguns meta-estudos eu acho que está precisando ser feito para a gente ter realmente pé, de qual é o estado da área? A gente pode até começar com o Brasil. Hoje já tem muitos grupos e a gente pode começar com o Brasil a partir disso, incorporando, ou fazer um estudo coletivo; a gente faz no Brasil, ou outra pessoa faz para outros países, depois a gente juntas coisas... porque nós estamos um pouco perdendo pé de tudo que nós já sabemos sobre a nossa política de ciência, sobre as políticas públicas e o quanto que elas incorporam e que elas convergem ou divergem daquilo que os estudos na área têm encontrado e têm sugerido.

TAD Uma próxima questão, também relacionada com o que a professora estava comentando. Na sua opinião, quais devem ser as prioridades dentro do campo CTS em termos de agenda de pesquisa e agendas de política de C e T, tanto para o Brasil quanto para a América Latina?

LV Essa pergunta é muito difícil, não é uma coisa que a gente possa resolver sentada aqui. Eu acho que existem alguns fóruns que tentam colocar essas prioridades. As Conferências Nacionais de Ciência e Tecnologia tentaram fazer isso, tem outros fóruns que tentam colocar isso. Cada área tem um pouco essa preocupação. Agora, eu acho que a questão chave que nós precisamos entender nesse nosso país desigual, cada vez mais desigual, qual é a função? Como é que a ciência e tecnologia pode contribuir para isso? Dentro dessa desigualdade imensa, nesse país que parecia que um dia ia alavancar, mas era uma coisa tão frágil que desmoronou em tão pouco tempo e agora nós estamos andando para trás... e nós falamos tanto em formar mestres e formar doutores... qual que é a relação entre essas coisas? O que pode ser feito no sistema educacional? O que pode ser feito com o ensino de primeiro, segundo e terceiro grau, que leve à construção de uma agenda de pesquisa que realmente atenda às nossas necessidades? Eu acho que o problema que nós temos é imenso, porque ao mesmo tempo, nós temos que acompanhar o que está acontecendo no resto do mundo, se não, você não se coloca no mercado, se não, o país não se coloca no mercado. Mas por outro lado, você tem uma responsabilidade imensa de produzir conhecimento, e você pode dizer “Ah, mas a questão de resolver a pobreza não é uma questão de ciência e tecnologia, é uma questão que você resolve com outras políticas públicas”. Não sei. Será que é? Será que não tem nada a ser contribuído? Será que o próprio conteúdo que se ensina nas escolas, a maneira como se ensina, não poderia talvez ter uma influência no pouco interesse que as crianças hoje em dia têm com ciência? A própria carreira competitiva, que a pessoa termina o doutorado e fica não sei quantos anos sem conseguir emprego, porque não tem emprego para doutor que não seja na universidade. Tudo isso não desestimula? É claro que essas coisas estão conectadas. Nós temos um contexto e dentro desse contexto, nós temos que ligar as coisas. Não basta formar doutores, não basta brigar pelas bolsas. Eu entendo que a gente tenha que brigar pelas bolsas e eu entendo o desespero de vocês. Mas, cara, eu tenho alunos que já fizeram, já terminaram o doutorado faz sete anos. Estão não sei quanto tempo com bolsa de pós-doc e não conseguem nada. Vai prestar concurso e tem 43 pessoas disputando uma vaga no concurso. Para onde nós vamos? Eu escrevi um texto sobre isso há uns 15 anos atrás, dizendo: esse nosso sistema de pós-graduação vai chegar num ponto que vai se esgotar, porque nós estamos reproduzindo a nós mesmos de uma forma absolutamente sem pensar. Os bons cursos recebem mais bolsas, é uma maneira onde a gente multiplica a si mesmo. Quando eu fiz um estudo sobre as bolsas junto com o professor Jacques Veloso, no final dos anos ‘90, mais de 80% dos alunos de pós-graduação no Brasil inteiro tinham ou tiveram bolsa em algum momento. Quando eu repeti essa pesquisa, 15 anos depois, só 40%. Ou seja, não tem bolsa para todo mundo. E se o sistema depende de bolsa... que loucura é essa de achar que as pessoas de ciências sociais vão sobreviver com uma bolsa de... mil e setecentos um mestrado?

TAD É 1500.

LV Mil e quinhentos o mestrado. Como é que a pessoa vai sobreviver com isso? Eu já tive vários alunos de mestrado, que eram casados, que tinham filhos. Assim, então, esse negócio de achar a dedicação exclusiva ao curso; a pessoa ganha R$ 1500, tem dedicação exclusiva ao curso? Então, eu acho assim: tem muita coisa complicada no nível micro e no nível macro. O que é a pós-graduação? Como é que ela se insere no nosso programa de desenvolvimento? O que é que nós queremos com os nossos doutores? Eu acho que tem muitas coisas em relação à política científica que têm que ser discutidas profundamente, e não de uma visão corporativa. De uma visão corporativa, eu diria “vamos salvar nosso programa. Vamos conseguir o número de bolsas possível e vamos abrir mais vagas, vamos contratar mais professores”. Eu acho isso legal, é válido. Mas de uma perspectiva da política em si, onde que isso está nos levando? O que está acontecendo? Nossos mestres e doutores, eu acho que não sabemos ainda. Quantos estão empregados, quantos estão desempregados, trabalhando em quê? Quantos que drop out, quantos que saíram...? Nem desse acompanhamento no nível do programa é muito bem-feito.

Então, eu acho que tem muita coisa complicada nessa agenda e eu acho que essa política, se você perguntar para mim qual é a nossa questão central, a nossa questão central é pobreza, é a desigualdade. Essa é a nossa questão central. Como é que ciência e tecnologia, como é que as políticas públicas de ciência e tecnologia podem contribuir para isso? Esse é o nosso problema central. Racismo, desigualdade causada por racismo, desigualdade causada por problemas de classe social, mas onde é muito difícil separar a questão de raça da questão da pobreza; é o papel das mulheres, é violência, são essas coisas que são... e como a ciência e tecnologia entram aí. Porque hoje, ciência e tecnologia é uma questão de elite. Você já viu um estudo que foi feito nos Estados Unidos mostrando que a chance de uma pessoa fazer uma carreira universitária, um professor jovem, fazer uma carreira universitária nos Estados Unidos, se ele tem pais acadêmicos é cinco vezes maior do que se ele não tem pais acadêmicos. Esse estudo foi feito nos Estados Unidos e eu acho que nunca foi feito no Brasil e deveria. Porque nós estamos reproduzindo privilégios de classe, reproduzindo privilégios de classe social, de capital familiar. Eu mesma tenho dois filhos acadêmicos, um professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a outra professora na universidade nos Estados Unidos. Você acha que eu não tenho nada com isso? Você acha que eles não estão reproduzindo os meus privilégios? E tenho uma neta que está fazendo doutorado nos Estados Unidos. Ou seja, só na minha família, meu marido era PhD, eu sou PhD, meu filho é PhD, minha filha é PhD, minha neta é PhD. O que é esse nosso sistema? A gente tem que escrutinar o nosso sistema. Agora eu vi um programa esse ano pela primeira vez falando de cota. Primeira vez que nosso programa de pós-graduação falou em cotas. As cotas não resolvem. Elas são fundamentais para tentar diminuir uma distorção, mas se você está falando em uma agenda para o futuro, para a política científica e tecnológica, essa agenda não tem como fugir. Eu não tenho como fugir dessa questão no Brasil. Talvez ela não seja tão importante na América, mas eu estou vendo a pobreza na rua, que aumentou pra caramba. As pessoas estão ficando pobres. Está cheio de gente viciada, porque não tem nenhuma perspectiva de ter uma vida melhor. Está complicado, o mundo está complicado, então a questão do mundo é “escuta, como é que nós vamos incorporar, incluir? E o que a ciência e a tecnologia têm a ver com isso? Qual o papel dela nesse processo?”.

TAD Professora, como a senhora enxerga o papel da comunidade científica do campo CTS diante desse cenário político do país, do Brasil? A comunidade científica CTS está à altura de enfrentar esses desafios?

LV Eu não vejo nenhum movimento da comunidade CTS no Brasil, nenhum posicionamento político. Qual seria a representação dessa comunidade CTS? Seria a ESOCITE BR? Seriam publicações ou manifestações dos programas de pós-graduação nessa área? O que seria isso e como é que a gente esperaria que essas pessoas se manifestem ou pelo tipo de pesquisa que elas fazem? Se fosse pelo tipo de pesquisa que elas fazem, de vez em quando aparece uma, mas não é isso. E como manifestação institucional desse grupo que trabalha nessa área, eu também não vejo nenhuma ação mais política ou mais incisiva da ESOCITE, ou dos próprios programas de pós-graduação. É o que eu disse para você, a gente não publica nenhum dossiê de política, nenhum briefing de política. Se pelo menos no final do ano saísse alguma coisa, “olha, à luz do que foi feito esse ano, o Departamento...”, e isso aí fosse distribuído ou publicado na página do Instituto de Geociências (IG), ou na página do DPCT, distribuído nas redes sobre qual é o pensamento... a gente não consegue ter um pensamento no nosso programa nem para discutir o próprio programa. A gente não consegue discutir nem o nosso próprio programa, como é que nós vamos ter consenso para produzir um policy brief anual; quer dizer, nós vamos escrever um policy brief à não sei quantas mãos. Ele precisa dizer o que cada uma dessas linhas de pesquisa que nós dizemos que temos, quais são as principais pesquisas aí, e os objetivos e que relação que isso tem com a política? O que isso informa? Sabe? Não tem. Então assim, eu acho que a contribuição real que a área CTS faz do ponto de vista pragmático para a política é pífia. É só se algum policy maker importante resolver ler algum artigo e tirar alguma coisa dali. Eu não vejo, realmente eu não vejo. Talvez na política científica internalista que é praticada no Brasil. Se você está considerando a política científica internalista, e eu estou chamando internalista como os recursos são alocados, critérios para a alocação, projetinhos, programinhas que a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) cria, que é de ligar, sei lá, uma empresa, nessa coisa dessa alocaçãozinha de recursos, nessa política científica interna, eu acho que tem algumas pessoas da política científica que têm alguma influência nessa direção. Mas se você quer falar nas grandes linhas, na contribuição da Ciência, Tecnologia e Sociedade para as políticas públicas, acho que não tem. Acho que é inexistente.

TAD Como a senhora pensa hoje o futuro do campo na América Latina? Como a senhora visualiza que vai ser? E como gostaria que fosse?

LV Faz muito tempo que eu estou querendo que o mundo seja uma coisa que não vai ser. Eu vou morrer e meus netos acho que não vão ver um mundo, uma América Latina que seja mais igualitária, que seja mais justa, que as pessoas tenham acesso aos bens básicos de sobrevivência, acesso à escola, possam ter opções do que fazer com a sua vida. Então, é um sonho muito generalista de uma pessoa velha e que durante muitos anos eu achava que isso ia acontecer... quando acabou a ditadura e depois veio o Lula e aí “não, agora vai!”; depois a coisa anda para trás. É a mesma coisa com os governos mais de esquerda na América Latina. Mas eu estou vendo que hoje o mundo está tão ruim quanto estava, só esteve pior durante a ditadura mesmo, em termos do que as pessoas podiam fazer. Mas o mundo inteiro está um lugar muito difícil de viver. E não é só a América Latina, está tudo muito difícil. Então, claro, o que eu gostaria era essa coisa utópica. Se eu acredito que isso vai acontecer? Não, não acredito, não acredito. Eu não estou vendo muita saída para isso. Mesmo que eu seja uma lulista de primeira hora e, apesar das críticas que eu tenho a ele, acho que ele poderia contribuir; mas acho que ele vai pegar o país muito pior do que ele deixou, não sei se ele vai conseguir fazer alguma coisa.

Acho que é o mesmo em outros países da América Latina que, como o Chile, que está vivendo um processo político social superinteressante, nós vamos ter que esperar e ver o que as coisas vão acontecer. Você vê o que é a Argentina de hoje comparada com a Argentina de 50 anos atrás, é uma tristeza você pensar que o país não só estagnou, ele andou pra trás em termos de um monte de benefícios sociais, de qualidade de educação, de tudo. E vou falar para você, quando eu cheguei no DPCT, que a gente começou a receber alunos argentinos e uruguaios, a formação média desses meninos e meninas, em escolas públicas, era melhor do que a dos nossos alunos de escola privada. Era muito melhor. O nível deles de conhecimento histórico, de hábito de leitura, era melhor do que os dos nossos alunos de escola privada. Então, eu sei pelo testemunho das pessoas desses países que as coisas pioraram muito, pioraram no Uruguai, pioraram na Argentina...

Então, Thais, eu não sei te dizer o que eu espero para o futuro. O que eu espero é isso, o que eu gostaria. Mas eu não tenho nenhuma esperança de que isso vai acontecer, e, para ser muito honesta com você, acho que a participação das políticas de C e T nesse processo é muito pequena, tem sido muito pequena e é muito pequena, porque quando eles inventaram essa ideia de política de ciência e tecnologia, meio que eles destacaram, tiraram essa política da área de política industrial, mas ela nunca deixou, porque eles entenderam que ela era uma coisa mais ampla, que ela entrava também pela área de educação, pela formação científica e tal. Mas ela ainda é entendida, na maioria dos países, como uma política industrial, no sentido de que ela é vista como uma política de inovação, entendeu? E é engraçado, porque ela é uma política de inovação e esse é o paradoxo: ela é uma política de inovação que é dominada pela comunidade científica. Você entendeu? Quem resolve o que vai ser feito é a própria comunidade? Quem é que constrói a agenda, de fato? Quem aprova? Quem que aloca recursos? É a comunidade. Mas ela é vendida, nos textos, nos programas, como uma política de inovação. Como é que você avalia, com indicadores de inovação, produção? O máximo que se chega é patentes. Na construção de hoje, no mundo que nós estamos construindo, os processos de avaliação ainda são os processos de avaliação da primeira fase da ciência. Assim, como é que a gente avalia se as políticas deram certo ou não deram certo? Eu estou agora querendo fazer um estudo sobre... é uma longa história que não vem ao caso, mas eu tenho lido sobre avaliação de projetos de big size. Cara! Não tem nenhuma concordância sobre como avaliar os projetos de big size, porque uma coisa é você dizer assim “esse projeto de big size deu certo, que é o que sempre se fez, porque foi construído e sai não sei quantos artigos internacionais publicados aqui e ali; a cooperação é altíssima, autores do mundo inteiro contribuem para o mesmo artigo; ele junta engenheiros com físicos, com estatísticos, com não sei o que, tal”. Isso tudo é interno. Quem que alguma vez olhou qual foi o impacto que esse projeto teve na comunidade onde ele foi instalado? O que a UNICAMP, o que a cidade de Campinas deu para ele? O que ele traz para a cidade de Campinas? Que projetos que ele faz para as comunidades educacionais? Ele é um projeto público, financiado com recurso público. Ninguém avalia isso. As pessoas estão se interessando, as escolas e os estudantes estão se interessando porque eles vão lá, porque eles vão nas escolas, têm um programa educacional ligado a ele, entendeu? Essas são perguntas que nunca são feitas. Então assim, você fala da política científica hoje, você entra lá no Ministério da Ciência e Tecnologia, só se fala de empresas. “Não, porque o empresário, porque o espírito empreendedor, porque esse projeto é para as empresas, e está ligando empresas...”. Aí você vai avaliar produção, não sei o quê. Eu acho que essa nossa área está precisando de revisão numa porção de coisas, e eu estou muito velha para fazer, fica para a sua geração.

TAD Sim, vamos tentar… muito obrigada, professora!

Cómo referenciar / How to cite Dibbern, T. A., Velho, L. (2022). ”Você tem uma ampliação muito grande do campo na América Latina, mas você tem uma visão cada vez menos crítica”. Trilogía Ciencia Tecnología Sociedad, v. 14, n. 28, e2580. https://doi.org/10.22430/21457778.2580

Publicado: 30 de Setembro de 2022

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