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Trilogía Ciencia Tecnología Sociedad

On-line version ISSN 2145-7778

Trilogía. Cienc. Tecnol. Soc. vol.14 no.28 Medellín Sep./Dec. 2022  Epub Feb 21, 2023

https://doi.org/10.22430/21457778.2611 

Entrevista

“Não estão percebendo a importância da policy e da politics de ciência e tecnologia para mudar o mundo”*

“They don't realize how important science and technology policies and politics are in changing the world”

Evandro Coggo Cristofoletti1 
http://orcid.org/0000-0001-5178-6451

Renato Dagnino2 

1 Doutor em Política Científica e Tecnológica. Pesquisador Colaborador do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, São Paulo, Brasil, evcoggo@unicamp.br

2 Doutor em Ciências Humanas. Professor titular na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, São Paulo, Brasil, rdagnino@unicamp.br


Resumo:

Nesta entrevista, Renato Dagnino convida-nos a refletir sobre a importância de conectar os estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade às necessidades da maioria da população brasileira e a um desenvolvimento a partir do que chama de reindustrialização solidária. Para isso, sob a influência do marxismo e do Pensamento Latino Americano em Ciência, Tecnologia e Sociedade, pontua a necessidade de reprojetar a tecnociência capitalista na direção da tecnociência solidária. Dagnino fala também sobre os problemas da universidade latino-americana e brasileira. Destaca, aqui, seu caráter de enclave numa sociedade com a qual não dialoga, e que se reproduz pela emulação das agendas de ensino, pesquisa e extensão dos países centrais. Referindo-se à comunidade de pesquisa em Estudos de ciência, tecnologia e sociedade, ele aponta a necessidade de que ela se dedique mais a pensar a policy e a politics que pode alavancar uma política cognitiva coerente com o cenário que o povo brasileiro está construindo.

Palavras-chave: CTS-Brasil; política científica e tecnológica; Renato Dagnino; tecnociência capitalista; tecnociência solidária

Abstract:

In this interview, Renato Dagnino reflects on the importance of linking Science, Technology and Society studies to the needs of most of the Brazilian population and to a development based on what he calls solidarity-based reindustrialization. To this end, influenced by Marxism and the Latin American Thinking on Science, Technology and Society, he points out that it is necessary to redesign capitalist technoscience in the direction of solidarity-based technoscience. Dagnino also addresses the problems of Latin American and Brazilian universities. Here he highlights their character as enclaves in a society with which they do not engage, and which reproduces itself by emulating the teaching, research, and extension agendas of the central countries. Referring to the Science, Technology and Society research community, he stresses the need for it to spend more time thinking about policies and plans that promote a cognitive politics consistent with the scenario that the Brazilian people are building.

Keywords: STS-Brazil; science and technology policy; Renato Dagnino; capitalist technoscience; solidary technoscience

ECC Isto é um papo mais livre sobre a sua trajetória dentro do campo. Junto com essas reflexões que você já tem sobre o estado atual do campo, o futuro dos estudos sociais de ciência e tecnologia, falar um pouco da sua trajetória e da sua visão sobre a questão. Qual é sua formação, professor?

RD De formação eu sou engenheiro. Nota de rodapé: eu sou engenheiro de deformação, filho e neto de engenheiro, por parte de mãe e por parte de pai. Os meus avós eram engenheiros, ou coisa parecida. Meu avô materno era engenheiro militar, do Batalhão de Cartografia de Porto Alegre, e era também fazendeiro, criador de cavalo. Uma pessoa muito rica, casada com uma mulher muito rica. Então a minha mãe era, enfim, descendente dessa linhagem. E o meu pai, nasceu na Itália, em Gênova, e com sete anos veio para o Brasil, porque o pai dele foi contratado para montar uma fábrica têxtil em Rio Grande, em 1912. Quer dizer, a família do meu pai não é propriamente os italianos que vieram, vamos dizer assim, com fome. Ele já era o que a gente poderia chamar hoje de engenheiro. Aí eu estudei engenharia.

Eu estudava no Colégio de Aplicação da Faculdade de Filosofia do Rio Grande Sul. Eu tinha aula de filosofia e lia Sartre, era todo mundo comunista e isso era 1966… enfim, em 1966 eu terminei e entrei na engenharia. Aí entrei na engenharia. Aula de cálculo I, no anfiteatro com 220 pessoas, e o professor lá na frente escrevendo no quadro negro umas coisas que eu já tinha estudado antes. Aí foi um choque, a escola de engenharia foi um choque. E aí, era um movimento de muita efervescência. Nos anos ‘67, ‘68, ‘69. Eu comecei a fazer política estudantil, era presidente do centro acadêmico. Mas aí eu fui expulso da universidade, com o Decreto-Lei 477. Já estavam me perseguindo, já estavam me seguindo, enfim… se eu ficasse ali eu ia morrer, assim que eu pulei fora. Isso foi em dezembro de 1970, e fui para o Uruguai, para a Argentina, depois fui para o Chile e fiquei três anos no Chile. E no Chile eu não queria mais estudar engenharia; estudei ciências sociais, economia. Eu morei em Concepción, no sul do Chile, e estudei numa universidade que era chamada “La Universidad Roja de América”, né. A Universidade Vermelha da América.

Aí, na escola de economia, o que a gente aprendia era como construir a economia socialista. Enquanto lia, claro, Marx -a gente lia O Capital inteiro-; e muito planejamento. Eu tinha professores que eram poloneses, ou tinham estudado na Polônia, em Cuba. Então, a formação em economia é uma formação marxista. E muito voltada para o planejamento econômico da transição para o socialismo. Bom, aí deu o golpe no Chile, foi todo mundo preso. Eu trabalhava numa empresa petroquímica também, como eu era quase engenheiro. E aí, por causa disso eu fui, eu fiquei pouco tempo preso. E bom, aí vou encurtar a história. Consegui voltar para o Brasil, como o 477 previa a expulsão por três anos, dava justamente para eu voltar. Aí eu terminei o curso de engenharia. Tinha vindo a reforma universitária, tinha mudado um monte de coisas, mas aí eu consegui terminar em um ano e aí fui fazer economia. Eu terminei indo para Brasília, fiz o mestrado lá em Economia do Desenvolvimento.

Cheguei em Campinas em ‘77. Naquela época, eu tinha acabado de fazer minha dissertação de mestrado. A gente estava criando a CODETEC, Companhia de Desenvolvimento Tecnológico, então eu vim para a Unicamp para ajudar a implantar essa empresa, que era chamada empresa, mas na realidade era sustentada pela universidade, com Rogério Cerqueira Leite, Aldo Vieira Rosa. Ali fizemos um seminário, que eu ajudei a organizar. Convidamos o Jorge Sábato, que junto com Amílcar Herrera foram os fundadores do pensamento latino-americano de ciência, tecnologia e sociedade, do qual eu me coloco como um seguidor e um updater, um atualizador desse pensamento. Aí num jantar, na casa do Zeferino Vaz, que era o reitor, eu cochichei no ouvido do Rogério, que era naquela época coordenador das faculdades: “o Herrera fez a palestra dele e foi muito boa, vamos trazer o Herrera para cá”. E ele disse, “mas eu prefiro o Sábato”. Aí eu disse, “não, mas o Herrera é geólogo. E o Instituto de Geociências tá no organograma. Ele não foi implantado, é mais fácil”. Aí foi assim que o Herrera veio.

Mas antes disso veio o Sábato, veio passar um mês. Numa dessas conversas, o Sábato me diz: “Renato, têm três bons negócios com tecnologia, roubar, copiar e comprar. Roubar, copiar e comprar. Nenhum país e nenhuma empresa vão desenvolver a tecnologia se puder roubar, copiar ou comprar. Comprar é mais fácil. Roubar, se você tiver sorte, pode ser uma boa opção. Copiar é difícil. É engenharia reversa, é tudo isso que a gente faz na América”. Isso que eu chamei depois de adequação tecnoeconômica, se chamava tropicalização, para formular o conceito de adequação sócio técnica. Eu acho que é uma das contribuições importantes que eu dei para o pensamento latino-americano sobre CTS, é esse conceito de adequação sociotécnica. Eu respondo-lhe: “então o nosso empresário, ele faz a coisa certa. Ele não é atrasado”. Pensava no caso da ConeTec. ConeTec era a primeira incubadora de empresas da América Latina. Sua ideia era acostumar as empresas a virem até a universidade, buscar conhecimento etc. E eu estava envolvido nisso, embora eu já soubesse, porque tinha lido aquele artigo do Herrera sobre a escassa demanda social por ciência e tecnologia. Eu disse: mas se tudo que já tem aqui já é produzido no Norte. Para que fazer pesquisa, então? E essa é a visão do pensamento latino-americano, isso se extrai do pensamento latino americano. Isso que eu falei sobre a valia relativa e absoluta, isso não está no pensamento latino-americano. Isso é mais uma coisa recente. É uma reflexão que vem do Jessé de Souza, o qual eu não conheço, mas chama a atenção para esses temas. Então, como marxista, comecei a tentar entender as pessoas que refletiram sobre a questão da ciência e tecnologia na América Latina, do pensamento latino-americano, anterior ao Álvaro Vieira Pinto e os meus colegas mais recentes, que diga-se de passagem, não estão preocupados com política: policy e politics. São muito poucos os colegas CTS que estão preocupados com a nossa realidade, com aquilo que está correndo aqui, que só vai mudar pela politics e pela policy.

ECC Isso tanto no Brasil quanto na América Latina, em geral?

RD América Latina em geral, mesmo os de coração vermelho, mesmo os de esquerda, que sabem que nós não vamos fazer a revolução socialista amanhã, não estão percebendo a importância da policy e da politics de ciência e tecnologia para mudar o mundo. Aí eles estão fazendo o que? Eles estão olhando o laboratório, né, aquela coisa mais canônica, de Latour e Callon... não se questionam sobre a questão da neutralidade e determinismo. E se não fazem isso, não vão sair do pântano.

Por incrível que pareça, essa ideia de neutralidade, de absurdo determinismo da ciência e tecnologia ou do que eu chamo tecnociência, é uma coisa que atravessa ideologias. Em geral, suas explicações conferem um automatismo a uma coisa que é uma construção social. E, é muito interessante porque dentro do campo CTS existe como dominante essa visão da neutralidade e do determinismo que está na base de toda a economia da inovação. Todos os leitores de Schumpeter, os neoschumpeterianos, sejam eles marxistas ou liberais, eles aceitam a tese da neutralidade do determinismo e escrevem seus livros e suas coisas a partir dessa visão. Agora, por que isso é estranho? Porque você tem mesmo dentro do campo CTS, você tem um programa forte de Edimburgo e há dezenas de anos atrás já disse que a ciência não é neutra, a ciência é o resultado de uma negociação. Aquilo que é ciência hoje pode não ser amanhã. Os cientistas, os militares, a Igreja, os homofóbicos, os LGBTQI+ são os que decidem o que que é ciência. E do outro lado, no mesmo país, você tem a construção social da tecnologia. Quer dizer, na realidade é mais fácil perceber que a tecnologia é uma construção social do que perceber que a ciência é uma tecnologia social. Veja os marxistas, eles trabalham com o conceito de força produtiva, que inclui ciência, tecnologia e os próprios trabalhadores. Eles sequer percebem, não estão abertos a entender a construção da tecnologia e o programa de Edimburgo. Mas eu que sou mais heterodoxo, apesar de ser marxista, eu dialogo com esses dois grupos de autores. E é por isso que chego ao conceito de tecnociência, e ao conceito de tecnociência solidária, que no meu entender, é a coisa mais importante que nós deveríamos estar fazendo no ensino de CTS. Então eu estava dizendo que é muito estranho que dentro do próprio campo CTS você tem escolas de pensamento que negam o que a economia da inovação tem como pedra angular. E não só a economia da inovação. Boa parte da sociologia da ciência também não dialoga com o programa forte e com a construção social da tecnologia, o que é muito estranho, muito estranho.

ECC Mas por que você acha que isso acontece?

RD Tem os desumanos e os inexatos. A brincadeira que eu faço, a universidade é o arquipélago, tem ilhas onde vivem uns inexatos, em outras ilhas vivem os desumanos. E os cientistas duros são os desumanos e os cientistas sociais das humanidades são os inexatos. Nós estamos falando de um conflito que perdura há tanto tempo, mas nós estamos falando dentro de uma área que nasce em boa parte se antepondo a esse conflito. Quer dizer, quando se fala em interdisciplinaridade, multidisciplinaridade, transdisciplinaridade, é um dos fundamentos do campo CTS, certo? E está se negando de fato essa evidência que eu estou dizendo. Que dentro do campo CTS, dentro desse próprio campo que foi fundado com essa visão multidisciplinar, interdisciplinar etc., não há conversa, não há conversa substantiva. E, por que não há conversa substantiva? Em parte, porque eles têm uma formação disciplinar. Nesse sentido, essa é a minha grande mágoa porque nós podíamos estar fazendo diferente. E nós começamos fazendo diferente. No DPCT é o pioneiro na América Latina. Então, como a geração dos teus professores ainda é economista, sociólogo, engenheiro, isso atrapalha. Apesar de estarem em campo CTS, como eles têm uma formação disciplinar, eles não estão muito antenados para ler função social da tecnologia, programa forte, economia da inovação. Eles não são tão antenados para isso porque eles estão no clima de uma novidade neoliberal mais acentuado do que ocorre nos países de capitalismo avançado. Então, eu acho que essa é uma questão: que os professores que ensinam CTS na América Latina a maior parte deles vem de uma formação disciplinar e estão no contexto de universidade neoliberal, formatada como enclave na nossa sociedade. A nossa universidade é um enclave, ela emula o comportamento dos países de capitalismo avançado.

Aliás, no discurso do Lula ontem ele falou uma coisa verdadeira que as universidades nos países latino-americanos, com exceção do Brasil, eram no século XVI, XVII e o Brasil só foi ter uma universidade em 1922, para dar o título de Doutor Honoris causa ao rei da Áustria. E aí ele colocou isso como sendo um sinônimo de atraso, da nossa elite que não quer ter universidade e isso é uma bobagem. Que a nossa elite é mau caráter é uma verdade, mas que as universidades não tenham ocorrido no século XVI, XVII por causa disso é uma bobagem, porque as universidades no Peru, na Bolívia, na Guatemala, no México, elas foram criadas para subordinar a cultura pré-existente. Assim como eles construíram igrejas em cima dos alicerces dos templos incas, eles fizeram a mesma coisa com o conhecimento, que naquela época já era propriedade privada. Porque o problema do capitalismo não é só a propriedade privada dos meios de produção, é propriedade privada do conhecimento. E embora hoje se fale muito em sociedade do conhecimento, a apropriação privada do conhecimento é tão velha quanto o capitalismo.

Mas o que é nossa universidade, mesmo nos países centrais, se não é instrumento para acumulação de capital? Nossa universidade, voltando ao tema, é um enclave. No capitalismo, na transição do feudalismo para o capitalismo, coisa que durou 300 anos, os capitalistas perceberam que não podiam extrair mais valia absoluta. A mais valia absoluta é aquela que decorre da diminuição do salário ou do aumento da jornada de trabalho. O movimento operário começou a se organizar, não dava mais pra extrair uma mais valia absoluta. Aí começou aquilo que Marx chama de mais valia relativa. O que é mais valia relativa? Mantido o salário e mantida a jornada de trabalho, você introduz conhecimento para aumentar a produtividade do trabalho. Esse aumento da produtividade do trabalho, o aumento do produto, não é dividido, é concentrado como lucro. Isso gera uma burguesia, isso gera a classe dominante inovadora. Quer dizer, o milagre schumpeteriano não é milagre. Está tudo muito claro, é só ler a Marx. É só refletir um pouco e entender que o capitalista tem duas frentes de batalha, não é só na frente externa da inovação, onde ele compete com seus pares e por isso ganha uma aura de positividade schumpeteriana: aquele homem que é valente, que briga no mercado. Mas, antes da segunda batalha, tem uma primeira batalha, quando seus adversários são os seus trabalhadores e só na medida que ele aumente a produtividade no trabalho, ou seja, gere um lucro diferencial. Que ele faz? Ele sacrifica uma parte do seu lucro, faz um dumping com os seus pares que não inovaram e pega aquele mercado. Mas se a primeira frente de batalha não é ganha por ele, não tem a segunda. Esse é o capitalismo dos países centrais. Hoje, fruto de uma série de coisas que, evidentemente, não têm como sintetizar, se gera uma classe proprietária inovadora, essa mesma classe proprietária que estava se formando lá veio para cá.

Houve uma conquista que envolveu o território, no sentido geográfico da palavra, ou seja, a terra e as pessoas que estavam em cima. Quando os europeus chegaram aqui, estima-se que o Brasil tivesse 7 milhões de indígenas. Em 1880, se não me engano, foi feito o primeiro censo e os indígenas eram então 400000. Foi uma conquista horrorosa e uma escravização. Dos índios que se deixaram escravizar, os outros foram mortos. Os nossos portugueses daqui acharam que valia a pena e escravizaram os negros. 350 anos. O que que faz nossa classe proprietária cujos pares ou até os seus primos eram inovadores, extraíam a mais valia relativa? Eles extraiam mais valia absoluta. Da forma mais brutal. “Ah, bom, mas isso foi no modelo primário exportador, professor, depois veio a industrialização via substituição de importações”, diria um economista, “Aí o país virou industrial e aí esse modo de produção terminou”. Não foi mais assim. Aí, o Wilson Cano, no livro dele, Raízes da concentração industrial em São Paulo, mostra como a burguesia brasileira é a mesma oligarquia rural. Não houve nada parecido com uma revolução democrática burguesa, a la França, Alemanha, não; eram as mesmas famílias. Então, achar que eles iam levar uma cultura diferente da cultura de mais valia absoluta, quando começaram essa indústria, não tem fundamento. Então, o que se instalou aqui? Se instalou uma indústria baseada na mais valia absoluta, por incrível que pareça. Isso ocorreu porque o que era introduzido como inovação não era gerado localmente e pelo proprietário da empresa, pelo capitalista. Então, essa é uma diferença importante.

A segunda diferença importante é que esses ex-escravos e os cidadãos de segunda classe, que são os nossos antepassados, que vieram com fome, expulsos pela “revolução industrial europeia”. Eles também foram contratados a um preço vil, para produzir mercadorias que tinham um preço até maior do que aquele que tinha no Norte. Então, os capitalistas produziam mercancias, e as vendiam ao preço mais elevado. Estou falando da indústria para o mercado interno, pela proteção feita por eles mesmo através do seu Estado. E aqui vamos entender o que é o nosso Estado. Não é nosso, é deles, certo? Todo o marco legal permitia que você produzia a um preço menor, a um custo menor e vendia a um preço maior. E por que você produzia a um preço menor? Porque os descendentes dos escravos e esses cidadãos europeus de segunda classe eram pagos a um valor menor do que o praticado no resto do mundo. Isso é a nossa realidade. É a realidade do capitalismo de mais valia absoluta. Agora, como se isso não bastasse, aí há uma pedra final em cima dessa visão inovacionista da economia da inovação. Tudo o que você vê aqui, que é Made in Brazil, já era produzido no Norte.

Eu acho que a coisa mais importante é a gente ter uma ideia do contexto em que nós estamos. Olhando no âmbito global, o que que a gente vê? O que que mais preocupa as pessoas, os países, as lideranças? Eu não vou discutir se é bom ou se é mau. Estou só olhando a realidade, numa visão bem descritiva, não é normativa. Por exemplo: todo mundo já entendeu que canudinho de plástico engasga baleia. Ou seja, em outras palavras, que nós temos que mudar o nosso perfil de consumo. Um número menor de pessoas se dá conta de que mudar o perfil de consumo não é suficiente, tem que mudar o perfil de produção dessas coisas, porque, de alguma forma, essas novas coisas que serão consumidas, serão produzidas. Então tem que produzir diferente. Mas quem é que produz? São as empresas. E como é que fazem as empresas? As empresas desenvolvem uma tecnologia. Nota de rodapé: há 70 anos não tinha uma agricultura orgânica. Tudo era orgânico, né? O que que acontecia? As empresas contrataram os melhores cérebros para inviabilizar o conhecimento anterior. E esse é o problema do capitalismo. Ele não é apenas um sistema que monopoliza o conhecimento. Ele esteriliza o conhecimento prévio. No México tinha mil qualidades de milho. Aqui no Brasil, quantas qualidades de mandioca você conhece? Três? De banana? Três, quatro... tinha centenas ou dezenas, pelo menos. Então as empresas desenvolvem uma tecnologia para produzir daquela forma e quando elas causam uma externalidade negativa, se espera que o Estado ou a população organizada diga: olha meu senhor empresário, internaliza essa externalidade. Então, o empresário vai dizer “ah claro, o meio ambiente, os objetivos do milênio, não sei do quê”.

Mas se ele for sincero, ele vai dizer: “se eu internalizar externalidades, no outro dia eu estou fora do mercado, porque o meu custo vai para cima e eu não tenho como vender”. “Ah, mas então desenvolve tecnologia”, pode responder o Estado ou a sociedade. E nessa história de desenvolver tecnologia para internalizar as externalidades nós estamos há 50 anos. Veja, qual é a recomendação política no mundo inteiro dos neoschumpeterianos? É desenvolver uma tecnologia sustentável, ecofriendly, como o carro elétrico. Mas, por que temos que estudar carro elétrico no Brasil? Nós precisamos de um transporte de massa, nós não precisamos de carro. E quem quer carro elétrico são os alemães. Fizeram a eletricidade queimando combustível fóssil e na cidade querem carro elétrico. Tem coisa mais cínica do que essa? E a pessoa “não, porque eu estudo carro elétrico, que é um negócio do futuro, é muito importante para o Brasil”. E esse é um grupo superimportante hoje, que recebe financiamento. Eu mesmo tenho vários alunos, estudando carro elétrico.

Bom, mas então, nessa conversa de internalizar as externalidades negativas, nós estamos até agora. Todo mundo diz que tem que mudar o perfil de consumo, algumas pessoas dizem que tem que mudar o perfil de produção e tentam isso que nós falamos até agora e um grupo menor de pessoas, que dizem: não, as empresas não vão dar conta desse recado. São necessários outros arranjos econômico-produtivos, que não as empresas.

E é aí que nasce a economia circular. A economia… enfim, tem vários nomes, né. Aqui no Brasil a gente chama de economia solidária, economia popular, economia social... o que é economia solidária? São empreendimentos econômico-produtivos que atuam segundo uma outra lógica, que não a da propriedade privada, a heterogestão, o controle. E atuam, segundo uma visão de solidariedade, cooperativa. Quer dizer, para o pobre, para o cara que não tem um emprego. Veja, nós somos 210 milhões. 180 em idade de trabalhar. 180 é a nossa força de trabalho. Isso é nota de rodapé também. Desses 180, 30 tem carteira assinada, que é o que o capital promete à classe trabalhadora, né? Qual é a melhor coisa que a classe trabalhadora pode ter? É um emprego, décimo terceiro, seguro saúde, aposentadoria… só 30 dos 180 têm. Aí você tira os 30, tira os 10 que trabalham no serviço público, vai tirando, vai tirando, os fazendeiros, os estudantes, as donas de casa. Você vai chegar a 80 milhões de pessoas que nunca tiveram e nunca terão emprego. Porque isso também é uma coisa importante do ponto de vista mais genérico, de como se deve ensinar e aprender CTS. Escolha bem os seus indicadores. Não pega o indicador de taxa de desemprego, que trabalha com a população economicamente ativa. Pegue no denominador a população em idade ativa, que são os 180. Porque usando entre 180, você chega nos 80 e são o povo. A maior parte deles, analfabeto funcional, excluídos, miseráveis. E nós, intelectuais, temos que dar uma resposta e a resposta é a economia solidária. E essas pessoas, embora sejam analfabetos funcionais, sabem muita coisa. Sabe muito mais do que nós sobre muitas coisas que são importantes para produzir, para se relacionar com o meio ambiente, para se relacionar com as pessoas.

Agora, tudo isso é conhecimento tácito. Não é conhecimento codificado. Então esse conhecimento tácito que tem os 80 milhões, nós temos uma obrigação, como intelectuais de esquerda, de codificar para trazer para a universidade, porque nós temos que mudar a universidade. E para mudar a universidade, os nossos pares só vão entender conhecimento codificado, não vão querer saber de conhecimento tácito. Conhecimento tácito é coisa de inexato. “Eu sou físico, eu sou engenheiro, quero saber a fórmula, eu quero saber a integral, a derivada. Não é pouco que nós temos que fazer. Bom, mas aí então, essa consciência de que é necessários novos arranjos econômicos produtivos. Tudo bem, mas é a tecnociência capitalista, essa expressão minha, não é adaptada para a economia solidária. Ela é segmentada, ela é hierarquizada, ela é codificada, ela é controladora, ela é hetero-gestionária, ela causa alienação. A gente não quer essa, a gente quer outra. Como que é essa outra? Bom, isso eu não sei. Aí tem um problema que a gente se for por esse caminho, de indagar filosoficamente. A gente pode até tentar por essa via de codificar o que é tácito.

Mas tem outro caminho. Quer dizer, vamos pegar pelo outro extremo, não da produção, mas do consumo. O que que as pessoas consomem? Quais são as necessidades de bens, serviços? Transporte, comunicação, saúde, educação, construção civil. Isso são as necessidades materiais. Aí você tem que perguntar, o que são as demandas cognitivas que estão embutidas nessas necessidades materiais? Essas demandas cognitivas elas são satisfeitas pelas empresas desse jeito. Por exemplo: por que temos tantos problemas com redes de água potável? Porque muito provavelmente o engenheiro que projetou essas redes, faz segundo uma agenda de ensino, pesquisa e extensão que a nossa universidade, o nosso enclave adota, para formar pessoas para fazer do jeito que se faz na Alemanha. “Quais são necessidades materiais? É água potável? Ah, os alemães fazem assim”. Bom, mas a gente não quer fazer assim. Isso é muito caro, isso exige uma tecnologia que nós não temos, um equipamento que nós não temos, a manutenção disso é proibitiva. Nós queremos uma coisa que a população faça, saiba operar e saiba fazer a manutenção. “Ah, mas isso eu não sei fazer”. Pois aprenda a fazer, porque é isso que nós temos que saber fazer. Quer dizer, o problema do saneamento no Brasil -tem 100 milhões de pessoas que não têm saneamento e mais ou menos isso água potável também. “Ah não, é muito fácil, bota um cano aqui e tal”. Velho, são 100 milhões de pessoas. Isso é um problema que vai envolver inexatos e desumanos. O antropólogo, o sociólogo têm que ir lá gerar junto essa solução. E é isso que o movimento CTS teria que estar impulsionado dentro da universidade. Porque esse conhecimento que eu estou te propondo agora é um conhecimento que tem por substrato, por base, um enxergar, um olhar CTS. Não é só um olhar “Renato Dagnino”, é o olhar de uma pessoa que está há 40 anos preocupado com essas coisas.

Então, olhando o cenário internacional você tem mudança no perfil de consumo, mudança no perfil de produção, mudança da propriedade, mudança, ou seja, novos arranjos econômicos produtivos com propriedade coletiva dos meios de produção. Isso é muito importante. A gente não quer a propriedade privada da empresa, mas a gente também não quer a propriedade estatal do socialismo soviético. Por isso que a gente quer economia solidária. Então, nessa cadeia a gente chega na tecnociência solidária. Quer dizer, é a maneira como eu acho, a gente pode ajudar nesse processo. É como diz o Ailton Krenak, prolongar o nosso tempo de vida nesse planeta. É isso, e a tecnologia, a tecnociência é um elemento fundamental dessa negociação.

Nós estamos numa situação insustentável no Brasil. Mesmo que a gente tenha um governo democrático popular novamente. Mas tem que reconstruir esse país. E para reconstruir esse país, existem duas estratégias frente à desindustrialização que a classe proprietária operou. Porque vamos entender a desindustrialização e a reprimarização é uma opção para a classe proprietária. Isso que os economistas precisam entender também. A Classe proprietária e o seu Estado resolveram desindustrializar o país. Por quê? Porque é muito simples, onde é que eu ganho dinheiro? Quer dizer, tirando o dinheiro mal havido, o que é o dinheiro mal havido? 10 % do PIB é sonegação. 3 % do PIB é corrupção público privada. A sonegação é corrupção privada. A corrupção é uma corrupção público privada. Depois, ele tem 8 % do PIB é a serviço da dívida. É uma forma de roubar do país. E depois você tem 18 % do PIB que é a compra pública. É dinheiro que o Estado com o nosso imposto paga para a empresa para nos fornece educação, saúde, água potável, eletricidade etc. 18 % do PIB, tudo isso vai para a classe proprietária. Tem uma estratégia de reindustrializar o país que eu chamo de “reindustrialização empresarial”. Eu botei esse nome para distinguir da reindustrialização solidário, àquilo que depois resolvi mudar o nome de Revolução Industriosa, falando lá do Japão, China, etc.

A reindustrialização empresarial é parecida com o que a gente fez 20 anos atrás, onde os empresários que são detentores de 90 % do que se investe no país, investiram em criar emprego e salário. Claro, teve o boom das commodities, teve várias coisas, mas a economia cresceu. E a economia, a proposta da economia solidária que estava na agenda do Partido dos Trabalhadores no primeiro governo [de Lula da Silva], foi se esvaindo. A estratégia do emprego, do trabalho e renda e da geração de renda pelos pobres saiu da agenda porque a dado emprego, salário e da distribuição de renda para os pobres, o mecanismo keynesiano tradicional, ocupou o espaço. Então, essa reindustrialização empresarial é voltar a fazer o que nós fizemos há 20 anos atrás. Agora, numa conjuntura mundial e nacional totalmente adversa. Os economistas de esquerda, que são os que formulam a política da esquerda, pensam desse jeito. Os economistas, inclusive os meus colegas da Unicamp que são os que fazem o plano de governo do PT. O plano econômico fiscal, eles são keynesianos, claramente keynesianos. E no plano econômico, produtivo, eles são neoschumpeterianos. Eles dizem: “quem vai resolver isso é a empresa”. Quer dizer, a política compensatória sai de uma visão econômico fiscal keynesiana e uma política inovacionista que sai da visão no plano econômico produtivo neoschumpeteriana. E aí? A reindustrialização empresarial está baseada nisso, embora eles não digam. Mas a minha leitura é essa, está equivocada?

E depois nós temos uma outra proposta que não é excludente, mas que a gente quer um espacinho pra ela, que é a reindustrialização solidária. Nós temos que desmanchar o mito de que indústria quer dizer empresa privada. Indústria não quer dizer empresa privada, você tem que produzir bens e serviços de natureza industrial na economia solidária. E esse 18 % do PIB tem que ser repartido. Nós temos que disputar a compra pública que hoje é praticamente zero para economia solidária, tirando o que vai para agricultura familiar, né. É 18 % do PIB, com zero cinco do PIB Bolsa Família tirou se 30 milhões da miséria. Cara, quanto é que dá fazer com a economia solidária? E muito importante fazer as quatro coisas que tem que fazer: conscientização, estou falando do movimento popular, conscientização e da classe média também; mobilização; participação, o Movimento Popular tem que participar da gestão; e empoderamento que é a única coisa que pode dar governabilidade para a esquerda. Quem vai sair para a rua para enfrentar o fascismo se ele vier de novo depois da vitória que nós vamos ter vai ser esse povão da economia solidária. Quer dizer, nós temos no Brasil 17 milhões de pessoas vivendo em favelas. O Favelópolis, vamos chamar assim, um estado chamado favela, é o quarto estado brasileiro em população. E o primeiro colégio eleitoral maior que o de São Paulo. E é o sétimo estado entre aspas, em poder de compra. Mostra inclusive o lado de alavancagem do crescimento econômico que tem a economia solidária. Eu estou usando a favela como um exemplo, mas enfim, a gente foi indo por um caminho mais político, porque eu acho mais necessário e por um caminho mais brasileiro. Não falei muito de América Latina. Porém, essas questões que eu estou colocando, elas se apresentam de uma forma muito semelhante nos outros países, muito semelhante. Mas a palavra é tua agora.

ECC Não, estou achando muito interessante a questão, porque isso se liga também com a questão ao que me parece, me corrija se eu estiver equivocado, o campo não está hoje a altura desse desafio. Tanto para mobilizar a própria universidade comunidade acadêmica quanto ele mesmo se engajar no que você está chamando de politics e policy.

RD Por incrível que pareça, toda eleição federal, a comunidade de pesquisa e os tecnoburocratas que orbitam em torno da política de ciência, tecnologia e inovação, que é controlada pela comunidade de pesquisa, pela elite científica, pelo alto clero da ciência dura e os tecnoburocratas do nível superior, se reúnem para dizer o que eles querem no próximo governo. E o que eles querem, o que eles sempre quiseram ao longo do tempo. E aí vem a pergunta, vocês querem isso? Vai fazer o quê? A comunidade científica nacional está dizendo nós queremos 3 % do PIB, 1 % do PIB é pouco. “Nós temos que reconstruir, porque o número de doutores por metro quadrado ou por habitante é muito baixo, nós temos que formar mais”. De 2006 a 2008 nós formamos 90000 mestres doutores em ciência dura. Se fosse nos Estados Unidos 45000 iam ser contratados pelas empresas para fazer pesquisa, porque é para isso que ele serve. Pelo menos 30000 por ano, 90000 em três anos quando a economia estava bombeando. Quantos foram empregados pelas empresas inovadoras para fazer pesquisa? 68 pessoas dos 90000. E o que é mais doloroso, Evandro, é que o governo de extrema direita percebeu isto. Percebeu isso, sabe disso. E aí, disseram “vamos cortar a pesquisa e a formação e as bolsas porque não serve pra nada”. Já não servia antes para o nosso projeto de subserviência ao establishment internacional, diga se Estados Unidos, China, inclusive. “A gente não precisa disso, corta”. E o que a comunidade de pesquisa está dizendo? “Não pode cortar, isso aí tem que voltar”. E que compromisso essa carta à qual fiz referência faz com mudar a sua conduta? Mudar a sua agenda de ensino? Porque o que nós ensinamos aqui, e não é só a universidade, a criança entra no jardim de infância se preparando para o vestibular. E quem é que diz o que ela tem que estudar? A elite científica, esse alto clero da ciência dura que hegemoniza a política cognitiva. Eu uso o termo política cognitiva para fechar a de ciência, tecnologia, inovação e de educação. Eles é que dizem do jardim de infância até o doutorado e dizem como, já que a ciência é neutra, universal, verdadeira, filha de um homem infinitamente curioso e uma natureza infinitamente bela. Então eles dizem “a ciência básica gera o desenvolvimento”. Velho, o Herrera estava dizendo isso 50 anos atrás que não era assim.

Então, você vê como existe um núcleo de pensamento CTS muito simples e que está na origem do pensamento CTS latino-americano, que é o PLACTS, e que foi sufocado, a partir dos anos 1980, pelo filhote do neoliberalismo, que é a economia da inovação. A economia da inovação, a teoria da inovação -que é um termo mais impreciso para abarcar a sociologia, antropologia, etc., não só economia- esse filhote do neoliberalismo, que veio do Norte para o Sul, encontrou na universidade, nesse nosso enclave, um ambiente muito amigável e se tornou um cachorrão forte; não é mais um filhote. É essa teoria da inovação que patrolou o pensamento latino-americano, patrolou o PLACTS. PLACTS passou a ser uma palavra, quer dizer, os argumentos do PLACTS passaram a ser palavrão. Então, a nossa universidade se transformou muito nesses 40 anos, houve uma mudança muito significativa; a nossa universidade hoje é neoliberal. Não estou nem falando apenas da agenda de ensino, pesquisa e extensão, estou falando agora dos próprios professores. Essa coorte de professores que entraram na universidade a partir da década de 1980, durante já o neoliberalismo, eles têm uma consciência a respeito do que é o Brasil e do que poderia ser o Brasil muito escasso. Por outro lado, muitos deles cresceram fazendo vídeo game, então eles perceberam muito rapidamente qual é o fundamento atual da universidade, o publish or perish. Então, eles sabem muito bem quantos artigos, em que revistas... então é uma coisa que ninguém obriga ninguém a fazer nada, mas todo mundo faz algo que é nocivo. Você tá entendendo Evandro? A crise? Nós temos, na Unicamp, inúmeras, muitas pessoas que só não são Prêmio Nobel porque o Prêmio Nobel não passa por aqui, mas tem um conhecimento muito profundo na sua área. Mas eles são capazes de dizer o que nós estamos dizendo aqui?

ECC Não.

RD Não, né? E isso se reproduz em cada universidade latino-americana. E a política de ciência e tecnologia, a política cognitiva, ela segue sendo hegemonizada por essa moçada.

ECC Eu tenho algumas perguntas, mas acho que talvez mais pontuais. Na sua visão, qual a maior contribuição ou as maiores contribuições dentro da sua trajetória, que você acha que você deu para o campo? Por exemplo, tecnociência solidária, mas na sua visão aí.

RD Vou falar um pouco de tecnociência solidária. Quer dizer, introjetada no nosso inconsciente está a ideia de que a tecnologia é a aplicação da ciência, né? Que existe a ciência dura, neutra, boa em si mesmo e uma tecnologia que pode ser para o bem ou para o mal. Bom, isso não é dito em nenhuma escola de engenharia. Mas faz parte do nosso currículo oculto. E sabe o que é currículo oculto?

ECC Sim.

RD Mas enfim, essa ideia não me satisfazia, né? Aí eu disse, bom, se eu sou marxista, eu tenho que fazer um outro conceito, pensar de outra forma, porque o Feenberg, que é marxista, contemporâneo, que faz uma crítica muito forte, mas ele mantém a ideia de tecnologia; quando ele fala de ciência, ele diz que a ciência neutra. E o Lacey, que é filósofo da ciência, que fala da não neutralidade da ciência e ele não diz exatamente, porque ele não é marxista. Então, um fica olhando para a tecnologia e outro fica olhando para ciência. E esses dois e outros autores que eu li, com os quais eu concordava, eles não chegavam onde eu queria. Então eu disse: “Olha, o que é fundamental no pensamento marxista é o processo de trabalho, então vamos olhar esse processo de trabalho, para ver como é que o homem se comporta”. Isso me ajudou, eu formulei o conceito de tecnociência. O que é a tecnociência? Tecnociência é a decorrência cognitiva -decorrência, ou seja, ex-post- da ação de um ator social sobre um processo de trabalho que ele controla, por isso que ele pode atuar sobre ele. Em função dessa ação, permite uma modificação no produto gerado -seja quantitativa, seja qualitativa- uma modificação material no resultado material; e ele pode se apropriar. Ele tem que poder se apropriar, não adianta aumentar o produto, se ele não puder se apropriar. Quer dizer, isso tem muito a ver com a ideia do capital, o que que é a tecnociência capitalista? É a ação de um capitalista sobre um processo de trabalho, é a decorrência cognitiva da ação do capitalista sobre o processo do trabalho que ele controla e que, em função do contrato social, do ambiente econômico, político, social que envolve, permite que ele, no circuito produtivo, controle a produção e obtenha um resultado material que é superior e que o Estado carimba como sendo dele. Se esse conhecimento, que é decorrente disso, serve para fazer isso, é a tecnociência. Por exemplo, se vai tudo bem, mas ele não consegue se apropriar, não é tecnociência.

Então, analisando o capitalismo me ajudou a formular esse conceito genérico, que aí depois eu particularizo. Bom, e se a gente trocar de ator? Se a gente colocar o coletivo de produtores, um empreendimento solidário; quem é o ator social? É o coletivo de produtores, sobre o processo de trabalho que ele controla e que ele pode modificar e se apropriar do resultado. O que é a tecnociência solidária? É a decorrência desse processo. Então, a ideia de neutralidade, não é que ela desaparece, ela não existe. Por definição, esse conhecimento não é neutro. Por quê? Porque é o ator social que controla o processo de trabalho que vai se apropriar do resultado. Então não tem neutralidade. É muito comum pessoas que são contra a tecnociência capitalista, ou a tecnologia capitalista ou a ciência capitalista e dizem: “Ah, eu quero uma que sim, seja neutra, verdadeira”. Velho, não existe. Não existe ciência verdadeira. Porque aquela pergunta de má vontade que sempre me fazem: “Ah, então você está dizendo que existe uma ciência proletária e uma ciência, uma mecânica quântica proletária e uma mecânica quântica capitalista?” Quer dizer, é o tipo da pergunta que dá vontade de dar uns tapas na cara. Você tem que entender como é que essa coisa nasceu? Qual era a circunstância? Qual era o contexto? Aonde foi? Quem foi? Pago por quem?

Até os cientistas sociais, que teriam por obrigação, entre aspas, entender isso que nós estamos falando, não entendem. Então, por isso que CTS é uma disciplina, com esse conteúdo que nós estamos aqui colocando, que tem que estar em todos os cursos da universidade, até nas engenharias.

Então, a tecnociência solidária, eu acho que é uma contribuição importante. Eu não sou um cara muito teórico não, eu te disse que eu sou, de formação, engenheiro, e o engenheiro tem uma vantagem entre as inúmeras desvantagens: ele resolve o problema. Ele resolve, do jeito que dá para resolver. E eu fui e encontrei uma solução para o meu problema, que é a tecnociência, e essa visão da tecnociência solidária, que é coerente com a minha ideologia. Então, acho que é um caminho muito fértil, que tem por origem e por viés esse meu pensamento CTS, é isso que me permitiu chegar aí. O que nós temos que fazer é adequar sócio tecnicamente a tecnociência capitalista. Como eu te disse, necessidade material, como é que a tecnociência capitalista resolve isso? Resolve desse jeito; esse jeito é bom? Se esse jeito for bom pra nossa ideologia, pro nosso projeto político, beleza, usa. Se não for bom, adequa com o movimento popular. Não somos nós que vamos dizer para eles, eles é que têm que dizer para nós. Nós temos que dizer qual é a demanda cognitiva, o povão sabe de demanda de necessidade material. Agora eu te pergunto: quem nós estamos formando gente para decodificar necessidade material em demanda cognitiva? Não estamos, então, nós temos que fazer. Essa contribuição da adequação sociotécnica da tecnociência capitalista para orientar a tecnociência solidária, eu acho que é uma outra contribuição interessante.

Então, eu se eu pudesse dar um conselho, eu diria: em termos metodológicos, o ensino CTS tem que estar cada vez mais seguindo aquela metodologia que a gente formulou no curso de Gestão Estratégica Pública que tem a ver com aquela história: vamos fazer um mapa cognitivo, vamos fazer um fluxograma, vamos identificar os nós estratégicos, vamos pendurando o conhecimento, porque as pessoas não aprendem aquilo que a gente quer que elas aprendam, as pessoas aprendem o que elas querem aprender, só vão aprender alguma coisa se as pessoas acharem que aquele conhecimento preenche um vazio, mostra para eles uma maneira. Então, quando a gente usa essa metodologia, a gente realmente está, está dialogando e está ensinando e está mostrando. eu acho que essa maneira de trabalhar o conteúdo CTS, ela é muito fértil, ela é muito adaptada. E acho que dá primeira vez que você faz isso, você, como um professor, vai ficar muito inseguro, porque você não vai ter um programa, você vai ter que correr atrás da máquina, mas você vai correr junto com seus alunos. Nós temos que ver se isso corresponde ao que alguém já escreveu sobre isso e nós vamos ter que entender melhor isso para poder resolver o problema, sobretudo se esse problema, se esse nó explicativo é um nó estratégico. Ora, eu reconheço, Evandro, que isso não é para qualquer um. A pessoa tem que ter alguma experiência. Não é muito fácil, mas se a gente não experimentar, nós não vamos conseguir fazer.

* Transcrição realizada por Victória Farias, Ygor Martins, Lana Romano e Maria Quintan, estudantes da graduação em Psicologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Cómo referenciar / How to cite Coggo Cristofoletti, E., Dagnino, R. (2022). “Não estão percebendo a importância da policy e da politics de ciência e tecnologia para mudar o mundo”. Trilogía Ciencia Tecnología Sociedad, v. 14, n. 28, e2611. https://doi.org/10.22430/21457778.2611

Publicado: 30 de Setembro de 2022

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